A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (ANPP) AO CRIME DE HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR
28 de novembro de 2023THE POSSIBILITY OF APPLYING THE AGREEMENT NOT TO PROSECUTE (ANPP) TO THE CRIME OF MANSLAUGHTER WHILE DRIVING A MOTOR VEHICLE
Artigo submetido em 2 de outubro de 2023
Artigo aprovado em 26 de outubro de 2023
Artigo publicado em 28 de novembro de 2023
Cognitio Juris Volume 13 – Número 50 – Novembro de 2023 ISSN 2236-3009 |
.
.
RESUMO: Este artigo explora a viabilidade da aplicação do acordo de não persecução penal ao crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor, infração prevista no artigo 302 da Lei n.º 9.503, de 1997, conhecida como o Código de Trânsito Brasileiro. O acordo de não persecução penal, também denominado ANPP, é um pacto celebrado entre o membro do Ministério Público e o indivíduo sob investigação, e está previsto no artigo 28-A do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei n.º 13.964, de 2019, popularmente conhecida como Pacote Anticrime. Esse acordo também é comumente chamado de negócio jurídico extraprocessual, já que, quando celebrado entre as partes evita a propositura de uma ação penal. Uma das principais finalidades desse acordo é aliviar a carga do sistema judiciário, reduzindo o número de processos criminais e economizando recursos públicos. Além disso, busca resolver conflitos e minimizar as consequências de uma condenação para o acusado, contribuindo para a redução da superlotação do sistema prisional. Para que o acordo de não persecução penal seja proposto, é necessário cumprir certos requisitos, conforme estabelecido no artigo mencionado anteriormente. Um desses requisitos está relacionado à ausência de violência ou grave ameaça, o que é particularmente relevante para a situação em questão, uma vez que o crime discutido envolve a morte de um indivíduo. O ponto central do debate reside na falta de intenção por parte do agente, considerando que o resultado violento não é desejado nem aceito pelo suspeito, o que, em alguns casos, pode abrir a possibilidade de aplicação do acordo.
Palavras-chave: acordo, homicídio, trânsito.
ABSTRACT: This article explores the feasibility of applying the non-prosecution agreement to the crime of manslaughter while driving a motor vehicle, an offense provided for in Article 302 of Law No. 9,503 of 1997, known as the Brazilian Traffic Code. The criminal non-prosecution agreement, also known as ANPP, is a pact entered into between the member of the Public Ministry and the individual under investigation, and is provided for in article 28-A of the Code of Criminal Procedure, introduced by Law n.º 13.964, of 2019, popularly known as the Anti-Crime Package. This agreement is also commonly called an extra-procedural legal transaction, since, when concluded between the parties, it avoids the filing of a criminal action. One of the main purposes of this agreement is to ease the burden on the judicial system, reducing the number of criminal cases and saving public resources. In addition, it seeks to resolve conflicts and minimize the consequences of a conviction for the accused, contributing to the reduction of overcrowding in the prison system. For the criminal non-prosecution agreement to be proposed, it is necessary to meet certain requirements, as established in the aforementioned article. One of these requirements is related to the absence of violence or serious threat, which is particularly relevant to the situation in question, since the crime discussed involves the death of an individual. The central point of the debate lies in the lack of intention on the part of the agent, considering that the violent result is neither desired nor accepted by the suspect, which, in some cases, can open the possibility of applying the agreement.
Key words: agreement, murder, traffic.
- INTRODUÇÃO
Na seara do sistema jurídico contemporâneo, emerge uma questão de relevância inegável: a potencial extensão do instituto jurídico conhecido como acordo de não persecução penal às situações que envolvem o crime de homicídio culposo na condução de veículos automotores. O âmbito da responsabilidade penal no contexto viário, onde a imprudência e negligência muitas vezes resultam em tragédias irreparáveis, suscita reflexões profundas acerca da justiça criminal e da adequação de medidas alternativas à persecução penal tradicional.
Neste contexto, indaga-se se o acordo de não persecução penal, concebido como um instrumento de cunho consensual destinado a descongestionar o sistema de justiça penal, pode ser aplicado com eficácia e equidade diante de casos de homicídio culposo nas estradas e vias urbanas. Esta análise se desdobra em um intricado debate, que abrange aspectos legais, éticos e sociais, e levanta questões fundamentais acerca da ponderação entre a necessidade de responsabilização e a busca por soluções que contemplem os princípios da proporcionalidade e da resolução pacífica de conflitos no contexto da justiça criminal.
Neste contexto, o presente estudo se propõe a explorar as nuances desta temática complexa, considerando as implicações jurídicas e sociais inerentes a essa discussão que transcende as fronteiras do sistema penal.
- O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
O acordo de persecução penal é um instrumento legal fora do âmbito do processo judicial tradicional. Sua finalidade, em consonância com uma abordagem de política criminal voltada para a redução da população carcerária, é estabelecer acordos entre o Ministério Público e o autor de infrações penais, com o propósito de cumprir determinadas medidas punitivas, evitando assim a exposição às complexidades e desafios inerentes ao procedimento criminal convencional. Nesse contexto, a intenção é, na verdade, adiantar uma realidade que é inevitável: em crimes de menor gravidade, com penas relativamente leves, não haverá uma verdadeira separação do indivíduo da sociedade. Portanto, mesmo que todo o complexo sistema judicial seja ativado, o infrator, ao fim de um processo demorado, acabará por receber sanções alternativas, como a prestação de serviços à comunidade, como exemplo. Assim, o objetivo deste acordo é evitar o processo completo, aplicando imediatamente medidas alternativas, desde que haja consenso entre as partes envolvidas, ou seja, o Ministério Público e o acusado concordem com isso (BARROS e ROMANIUC, 2019).
No acordo, o Ministério Público é responsável por estabelecer todas as condições que o investigado deve seguir de maneira clara, direta e proporcional ao crime em questão. Além disso, é concedido ao investigado, juntamente com sua defesa técnica, um prazo para analisar e se manifestar sobre as cláusulas propostas pelo Ministério Público. É importante destacar que, uma vez que se trata de um acordo, não há impedimento para que a defesa técnica sugira modificações em algumas cláusulas ao Ministério Público, desde que essas modificações busquem atender às necessidades do investigado, dentro dos limites do acordo. Em resumo, o acordo de não persecução penal é uma negociação, não uma imposição unilateral (RANGEL, 2021).
Atualmente, o acordo de não persecução penal está previsto legalmente no artigo 28-A do Código de Processo Penal, incluído pela Lei nº 13.964, de 2019, também conhecida como Pacote Anticrime.
O referido artigo é composto por cinco incisos e quatorze parágrafos, que regulamentam o acordo de não persecução penal (BRASIL, 1941).
Antes da Lei Anticrime (Lei n.º 13.964/2019), o instituto do acordo de não persecução penal era regulamentado exclusivamente pelo artigo 18 da Resolução n.º 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público. Posteriormente, essa regulamentação foi alterada pela Resolução n.º 183/2018 do mesmo órgão (MESSIAS, 2020).
O caput do artigo 28-A do Código de Processo Penal, prevê alguns requisitos iniciais: a investigação não pode ser caso de arquivamento; o investigado deve confessar formal e detalhadamente; a infração penal não pode ser cometida com violência ou grave ameaça; e sua pena mínima cominada deve ser inferior a 4 (quatro) anos. (RANGEL, 2021).
O inciso I especifica que para que um acordo de não persecução penal seja possível, a lei estipula que é necessário que o autor do crime repare o dano causado, a menos que ele possa provar que é impossível fazê-lo. Nesse caso, a responsabilidade de demonstrar a impossibilidade recai sobre o investigado, e não sobre o Ministério Público (RANGEL, 2021).
O II inciso ilustra que se o Ministério Público tiver conhecimento de que o investigado possui bens e direitos que foram obtidos como resultado do crime, esses ativos serão identificados no acordo, e o investigado será obrigado a renunciar a eles para que o acordo de não persecução penal possa ser concretizado. Isso implica que o investigado deve fornecer voluntariamente informações sobre a localização de todo o seu patrimônio, produto ou proveito do crime. Se o Ministério Público conseguir localizar esses ativos sem a colaboração do investigado, não será considerada uma renúncia voluntária, e, consequentemente, o acordo de não persecução penal não será viável. Por exemplo, se o crime (ou crimes) envolver a obtenção de vantagens patrimoniais indevidas, como dinheiro, carros, casas, ações na bolsa, pedras preciosas, moeda estrangeira etc., o investigado deverá renunciar voluntariamente a todos esses ativos se quiser prosseguir com o acordo de não persecução penal (RANGEL, 2021).
O inciso III prevê que no caso de um acordo de não persecução penal ser aceito, o investigado concorda em realizar serviços à comunidade ou em entidades públicas por um período que corresponda à pena mínima prevista para o delito, reduzida em um a dois terços. O local onde esses serviços serão prestados é determinado pelo juiz responsável pela execução penal (RANGEL, 2021).
No inciso IV, a ideia central do acordo de não persecução penal fica evidente, pois se destina a indivíduos que têm recursos financeiros para pagar uma quantia determinada. Isso levanta questões sobre a possível comercialização do sistema de justiça penal. O juiz encarregado da execução penal será responsável por definir o montante a ser pago a uma entidade pública ou de interesse social, que compartilhe uma identidade semelhante ou idêntica às vítimas lesadas pela prática do crime (RANGEL, 2021).
O último inciso de número V descreve que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade são fundamentais no contexto do acordo de não persecução penal. Isso significa que o Ministério Público não pode estabelecer condições que não sejam compatíveis com o crime sob investigação, pois, nesse caso, o juiz não homologaria o acordo proposto. É importante rejeitar qualquer abuso de poder por parte do Ministério Público, e, caso uma condição seja imposta de forma abusiva, os indivíduos têm o direito de buscar remédios legais, como um habeas corpus, para contestar essa imposição injusta (RANGEL, 2021).
O §1° esclarece que para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto (RANGEL, 2021).
O §2° é de suma importância, pois acompanha quatro incisos esclarecedores sobre hipóteses em que não haverá acordo (RANGEL, 2021).
Seu inciso I demonstra que a transação penal tem prioridade sobre o acordo de não persecução penal, ou seja, se uma situação for passível de transação penal, o acordo não será aplicável. Portanto, o primeiro passo é avaliar se a transação penal é aplicável. Se for, uma proposta de transação penal é oferecida ao autor do fato. Se a transação penal não for aplicável ou não for aceita pelo Ministério Público, em vez de apresentar uma denúncia, conforme estabelece o artigo 77 da Lei 9.099/95, o Ministério Público opta pelo acordo de não persecução penal. Esta é a nova abordagem que será implementada nos Juizados Especiais Criminais (RANGEL, 2021).
O inciso II narra sobre a reincidência. Conforme previsão legal do artigo 63 do Código Penal, a reincidência impede a possibilidade de realizar o acordo. O Estado não está disposto a fazer acordos com indivíduos que continuam a cometer crimes, especialmente se o investigado for um criminoso habitual, com um histórico consistente de condutas criminosas. No entanto, há uma exceção quando as infrações penais em questão são consideradas insignificantes, ou seja, quando a ação do agente causa um dano tão mínimo ao bem jurídico protegido que a lesão é considerada desprezível em relação ao patrimônio da vítima. Por exemplo, casos como furto de uma caneta de 0,50 centavos, furto de uma banana ou furto de um chinelo de dedo de borracha podem se enquadrar nessa categoria e permitir a aplicação do acordo de não persecução penal (RANGEL, 2021).
O inciso III prevê que o investigado não poderá ter sido beneficiado por acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo, nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração (RANGEL, 2021).
O IV inciso cita a impossibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal aos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar e crimes praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino (RANGEL, 2021).
O §3° do referido artigo, expõe a necessidade de escrita no acordo de não persecução penal, já que a sua formalização deve ser documentada por escrito. Ademais, prevê que no caso de haver discordância entre o investigado e seu advogado quanto ao acordo, a vontade do investigado deve prevalecer, uma vez que as consequências desse acordo afetam diretamente a sua liberdade de locomoção. Além disso, o acordo deve ser transparente, espontâneo e voluntário, sem qualquer forma de coação por parte do órgão ministerial (RANGEL, 2021).
O §4° trata da característica da voluntariedade no acordo de não persecução penal, que é determinada pelo juiz durante a audiência, onde o investigado, em uma sessão pública, afirma voluntariamente aceitar os termos do acordo. Nesse momento, o juiz também informa ao investigado sobre as consequências de aceitar o acordo, e tudo isso ocorre na presença de seu defensor. Se os requisitos do artigo 28-A estiverem presentes, pelo menos em tese, o Ministério Público tem o dever e a prerrogativa de realizar o acordo. É um ato discricionário, mas essa discricionariedade é limitada pela lei. Se a lei prevê a possibilidade do acordo e os requisitos estão preenchidos, o Ministério Público deve fazer a proposta de acordo. Se o Ministério Público se recusar, o juiz encaminha os autos da investigação ao Chefe do Ministério Público para avaliação e decisão. O Chefe do Ministério Público pode então fazer a proposta de acordo, designar outro órgão do Ministério Público para fazê-lo ou insistir na não realização do acordo. O juiz estará obrigado a acatar a decisão do Ministério Público nesse sentido (RANGEL, 2021).
O §5°menciona que o juiz exerce um controle estrito sobre a legalidade do acordo, garantindo que ele seja justo e adequado, enquanto protege os direitos do investigado ao longo do processo. Vale ressaltar que a função do juiz não inclui fazer uma proposta de acordo; no entanto, ele pode recusar homologar um acordo que seja considerado abusivo e contrário aos princípios legais. Além disso, a proposta de acordo pode ser inadequada ou insuficiente. A inadequação ocorre quando a proposta não está alinhada com a natureza do crime em questão, sendo desajustada, imprópria ou inadaptada. A insuficiência acontece quando a proposta não abrange todos os aspectos necessários, deixando lacunas diante da gravidade do crime. Se o juiz identificar inadequação, insuficiência ou abusividade na proposta de acordo, ele devolverá os autos ao Ministério Público para reformulação da proposta, contanto que haja concordância tanto do investigado quanto de seu defensor. Nota-se que a remessa dos autos ao Ministério Público para reformulação do acordo requer a concordância do investigado e de seu defensor, conforme estipulado pela lei (RANGEL, 2021).
O §6° discorre que o Ministério Público é a autoridade responsável por solicitar ao juiz da execução penal que supervisione e autorize a execução do cumprimento do acordo. A razão para que isso ocorra perante o juiz da execução penal reside no fato de que o acordo resulta no cumprimento de uma pena que foi acordada entre as partes, sem a necessidade de um processo judicial completo. Nesse cenário, o juiz da execução penal desempenha um papel fundamental, pois ele supervisiona e controla a execução da pena imposta pelo acordo, garantindo que os termos acordados sejam cumpridos (RANGEL, 2021).
O §7° apenas ratifica que o juiz tem a autoridade para rejeitar a homologação de uma proposta de acordo quando esta não estiver em conformidade com os requisitos legais estabelecidos ou quando não for realizada a devida adequação, conforme mencionado no § 5º deste artigo. Interessante mencionar que caso o Ministério Público e o investigado considerem que a recusa judicial à homologação do acordo é injustificada ou infundada, eles podem recorrer da decisão por meio de recurso em sentido estrito, conforme previsão legal do artigo 581, inciso XXV, do Código de Processo Penal (RANGEL, 2021).
O §8° prevê que em caso de rejeição da homologação, os documentos retornam ao Ministério Público, onde este se encarregará de deliberar sobre a necessidade de prosseguir com investigações suplementares ou de apresentar uma acusação formal. Além disso, cabe ao Ministério Público a prerrogativa de contestar a rejeição da homologação por meio de uma ação de mandado de segurança, fundamentada na alegação de violação de um direito inequívoco e incontestável (RANGEL, 2021).
O §9°esclarece que caso o acordo seja oficialmente homologado, a vítima será notificada para ter acesso integral ao seu conteúdo, com a finalidade de, se assim desejar, acompanhar a sua execução ou ser informada sobre o eventual descumprimento do acordo. É importante ressaltar que não cabe à vítima impugnar o acordo celebrado e homologado, principalmente porque já recebeu a devida compensação, como estipulado no inciso I do referenciado artigo (RANGEL, 2021).
O §10 é importante, pois destaca que se o acordo for violado, isso resultará na sua rescisão por parte do juiz, seguida pelo oferecimento de uma denúncia pelo Ministério Público. Não há espaço para uma nova transação penal nesse contexto, uma vez que o acordo já foi descumprido. Se o réu descumpriu o acordo, não faz sentido oferecer a ele uma nova proposta de transação penal. O réu, ao não aceitar o acordo anterior e não agir de maneira apropriada e compatível com qualquer possibilidade de acordo com o Estado, torna-se, por si só, um inadimplente e, portanto, não merece mais nenhuma oportunidade de acordo com as autoridades (RANGEL, 2021).
Os mesmos argumentos mencionados no parágrafo anterior são aplicáveis aqui, no §11. Se o investigado não conseguiu cumprir com as obrigações estabelecidas no acordo de não persecução penal, é evidente que também não estaria disposto a cumprir as condições da suspensão condicional do processo. Em ambos os casos, ele se mostra como alguém que não honra compromissos legais e, portanto, pode ser considerado um inadimplente (RANGEL, 2021).
O §12 explana que as informações referentes ao acordo de não persecução penal não serão incluídas na certidão de antecedentes criminais, salvo quando se tratar dos propósitos estipulados no inciso III do § 2º deste artigo. Isso porque a aceitação do acordo por parte do investigado não implica em reconhecimento de culpa. No Direito Penal brasileiro, a culpa só é estabelecida mediante uma sentença penal condenatória transitada em julgado, e o acordo de não persecução penal, conforme já analisado, trata-se de um pacto firmado entre o Ministério Público e o investigado (RANGEL, 2021).
O §13 indica o notável efeito do acordo, com seu cumprimento integral, a punibilidade é extinta. Importante destacar que, uma vez declarada a extinção da punibilidade com a subsequente sentença transitada em julgado, não cabe revisão criminal pro societate, ou seja, por parte do Ministério Público. A revisão só é possível em favor do réu, caso surjam evidências de sua inocência e que ele não cometeu o crime em questão (RANGEL, 2021).
E por fim, o §14 disserta sobre a recusa por parte do Ministério Público em propor o acordo de não persecução penal. Conforme prevê o referido parágrafo, caso houver recusa, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do artigo 28 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941).
Entretanto, a regra do presente parágrafo possui adaptação devido a decisão do Ministro Luiz Fux, considerando que ele suspendeu a eficácia do artigo 28 do Código de Processo Penal na redação dada pela Lei 13.964/19, sendo assim, o investigado não requererá a remessa dos autos ao órgão superior do Ministério Público, mas sim a Procuradoria-Geral de Justiça ou ao Procurador-Geral da República (RANGEL, 2021).
Concluída assim a íntegra análise do artigo 28-A do Código de Processo Penal, segue com o estudo no tocante ao crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor, infração prevista no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503, de 1997).
- CRIME DE HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR
Adentrando no crime em comento, fundamental é a análise quanto aos elementos dolo e culpa.
Iniciando pelo crime doloso, conclui-se que a norma do artigo 18, inciso I, do Código Penal (Lei n.°2.848, de 1940), estabelece que o dolo consiste em desejar o resultado ou aceitar conscientemente o risco de que ele ocorra. Portanto, o dolo faz parte da ação em questão e, como resultado, influencia o elemento do tipo penal que descreve a conduta (JÚNIOR, 2023).
O dolo não se limita apenas a desejar o resultado material, mas abrange também a própria ação e, em alguns casos, o resultado dela decorrente (JÚNIOR, 2023).
O dolo é intrinsecamente ligado ao desejo. No entanto, para que alguém deseje algo, é necessário possuir um conhecimento completo sobre o que está sendo desejado. Portanto, o dolo implica uma intenção consciente por parte do agente, que deve estar plenamente ciente de todos os elementos que compõem a conduta, incluindo seus pressupostos e circunstâncias (BRICOLA, 1960).
O dolo pode se manifestar de duas maneiras, sendo direto ou eventual, no entanto, em ambas as formas, sempre se caracteriza pela presença de conhecimento e vontade por parte do agente (JÚNIOR, 2023).
O dolo é considerado direto quando o agente age com a intenção deliberada de realizar uma conduta típica, tendo pleno conhecimento de todos os seus elementos (JÚNIOR, 2023).
O dolo eventual ocorre quando o agente, ao confrontar a possibilidade de que o resultado ocorra, aceita conscientemente o risco de sua concretização, não confiando que ele não acontecerá (JESCHECK, 2002).
Já o crime culposo, que engloba o delito em tela estudado, está previsto no artigo 18, inciso II, do Código Penal (Lei n.º 2.848, de 1940)
O crime culposo refere-se a uma conduta que resulta em um evento indesejado devido à imprudência, negligência ou imperícia do agente (JÚNIOR, 2023).
No crime em comento, há previsão de culpa em seu artigo:
Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:
Penas – detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. (BRASIL, 1997)
Quando se trata da forma simples dos crimes culposos cometidos na direção de veículo automotor, conforme estipulado no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, e que implica em uma pena de detenção de dois a quatro anos, existe a possibilidade de considerar a aplicação do acordo (SILVEIRA e PINHO, 2021).
De acordo com Mauro Messias (2019), os delitos culposos não se enquadram na definição de crimes cometidos com violência, uma vez que esta categoria exige a presença do dolo.
Nesse contexto, surge a interrogação sobre se o acordo de não persecução penal poderia ser uma ferramenta eficaz para prevenir e punir os homicídios ocorridos na direção de veículo automotor (SILVEIRA e PINHO, 2021).
- DA POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL AO CRIME DE HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR
De acordo com o Enunciado 23 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) respectivamente, o acordo pode ser aplicável aos crimes culposos com resultado violento, uma vez que, nesses delitos, a violência não está intrinsecamente na conduta, mas sim no resultado (SILVEIRA e PINHO, 2021):
ENUNCIADO 23
É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pela agente, apesar de previsível (BRASIL, 2020).
O mesmo entendimento reflete o posicionamento do Ministério Público dos Estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Goiás, entre outros (FERRASSIOLI, 2021).
Apesar da ausência de uma menção explícita no caput do artigo 28-A do Código de Processo Penal, parece haver uma implicação de que a violência ou grave ameaça referida nesse contexto deve ter sido perpetrada com intenção dolosa. Portanto, é possível considerar a celebração do acordo em casos de crimes culposos com resultado violento, como por exemplo, a lesão corporal culposa, desde que todos os demais requisitos estejam presentes. Nesse sentido, a violência que impediria a celebração do acordo parece estar relacionada à conduta em si e não ao resultado produzido (LIMA, 2020).
Se a intenção é dificultar a celebração de acordos de não persecução penal em casos de crimes culposos com resultado violento, como o homicídio culposo, o que não foi abordado de forma explícita pelo legislador, torna-se evidente que a argumentação precisa ser substancialmente sólida. Essa argumentação deve superar consideravelmente a abordagem falha de que “a violência da ação não difere da violência do resultado”, a qual claramente se afasta da interpretação correta da norma de natureza híbrida, das teorias que distinguem entre crimes dolosos e culposos na dogmática penal brasileira e da própria finalidade do acordo de não persecução penal, que se alinha a um direito penal de intervenção mínima e a uma política criminal orientada para a funcionalidade (FERRASSIOLI, 2021).
Deste modo, nota-se que o acordo pode ser aplicado a crimes culposos com resultado violento. Isso se justifica pelo entendimento de que, nesses tipos de delitos, a violência não está intrínseca na conduta do agente, mas sim no resultado, que é involuntário, não desejado e nem aceito pelo autor, embora previsível. Essa abordagem se alinha com a busca por um direito penal de intervenção mínima e uma política criminal orientada para a funcionalidade.
- CONCLUSÃO
Em conclusão, a possibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal ao crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor é uma questão que requer análise cuidadosa. Embora o Código de Processo Penal brasileiro tenha previsto o acordo de não persecução penal como uma ferramenta flexível e versátil, a sua aplicação a crimes culposos com resultado violento, como o homicídio culposo, não é explicitamente mencionada no texto da lei.
No entanto, jurisprudências e enunciados do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União têm sinalizado a possibilidade de aplicação do acordo em casos de crimes culposos com resultado violento, desde que os demais requisitos legais sejam atendidos. Isso se baseia na interpretação de que a violência mencionada na lei se refere à conduta em si, e não ao resultado produzido.
No entanto, é importante ressaltar que essa questão ainda pode ser objeto de debates e interpretações divergentes, uma vez que não existe uma disposição clara e inequívoca na lei. Portanto, a aplicação do acordo de não persecução penal a casos de homicídio culposo na direção de veículo automotor deve ser analisada caso a caso, levando em consideração as circunstâncias específicas de cada situação, bem como a jurisprudência e os posicionamentos do Ministério Público.
Em resumo, a possibilidade de aplicação do acordo de não persecução penal a esse tipo de crime está sujeita a interpretações e pode ser considerada em determinadas situações, desde que sejam observados todos os requisitos legais e os entendimentos jurisprudenciais e institucionais pertinentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Francisco Dirceu e ROMANIUC, Jefson. Acordo de não persecução penal: teoria e prática. Leme, SP: JH, Mizuno, 2019.
BRASIL, Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG). Disponível em: https://criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/GNCCRIM_-_ANALISE_LEI_ANTICRIME_JANEIRO_2020.pdf. Acesso em: 13 set. 2023.
BRASIL. Decreto Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.
BRASIL. Decreto Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997. Código de Trânsito Brasileiro.
BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Manual de Processo Penal. 8 ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Editora Jus Podvim, 2020. p. 280.
BRICOLA, Franco. Dolus in re ipsa. Milano: Giuffrè, 1960; p. 83.
FERRASSIOLI, Bárbara Mostachio. ANPP em crime culposo com resultado violento: é cabível? Revista Migalhas. 22 de julho de 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/348986/anpp-em-crime-culposo-com-resultado-violento-e-cabivel. Acesso em: 13 set. 2023.
JESCHECK, Hans-Heinrich e WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal parte general.Trad. Miguel Olmedo Cardenete. 5. ed. Granada: Editorial Comares, 2002; p. 321.
JÚNIOR, Miguel R. Código penal comentado. Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786555599510. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555599510/. Acesso em: 13 set. 2023.
MESSIAS, Mauro. Acordo de Não Persecução Penal: teoria e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.
MESSIAS, Mauro Acordo de não persecução penal: teoria e prática; prefácio por Renato Brasileiro de Lima. – 2. ed. – 1 Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
RANGEL, Paulo. Direito processual penal – 29. ed. – Barueri – SP: Atlas, 2021.
SILVEIRA, Maria Luiza Alves; PINHO, Wagner Leandro Pereira et al. O cabimento do acordo de não persecução penal em casos de homicídios na direção de veículo automotor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6569, 26 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91420. Acesso em: 13 set. 2023.
[1] Acadêmica do curso de direito da Faculdade Educacional de Medianeira – UDC Medianeira – Paraná; realizou estágios junto a advocacia criminal no período de fev./2020 a jan./2023, e posteriormente junto a 2ª Promotoria de Justiça da Comarca de Matelândia do Ministério Público do Paraná no período de mar./2023 a dez./2023.
[2] Doutor em Direito pela Universidade de Marília – UNIMAR, Mestre em Direito Processual e Cidadania na Universidade Paranaense – UNIPAR, Especialização Latu Sensu pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná, Especialização em Docência no Ensino Superior, Especialização em Gestão Pública e Graduação em Direito pela Universidade Paranaense. Advogado, e Professor da Faculdade Educacional de Medianeira – UDC/Medianeira.