POLIGAMIA: INTERVENÇÃO INDEVIDA DO ESTADO NA VIDA PRIVADA

POLIGAMIA: INTERVENÇÃO INDEVIDA DO ESTADO NA VIDA PRIVADA

POLYGAMY: UNDUE STATE INTERVENTION IN PRIVATE LIFE

Artigo submetido em 23 de maio de 2024
Artigo aprovado em 04 de junho de 2024
Artigo publicado em 30 de junho de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 55 – Junho de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Julio Cesar Fonseca de Almeida Junior[1]

RESUMO: Este artigo busca analisar a união poliafetiva numa perspectiva de uma quebra de paradigma em face ou ao lado da união monogâmica, tendo como base que a união monogâmica, no cenário brasileiro teve sua gênese intimamente ligada a religião e, sendo o Brasil um Estado Constitucional Democrático de Direito que adota como forma de Governo a República e, no que diz a religião, a laicidade, não se pode admitir que a intimidade de individuo seja alcançado pelos braços do Estado com viés de inibir e reprimir a união poliafetiva.

Palavra-chave: União poliafetiva. Estado. Indevida intervenção. Autonomia privada.

ABSTRACT: This article seeks to analyze the polyamorous union in a perspective of a paradigm shift in face of or alongside the monogamous union, based on the fact that the monogamous union, in the Brazilian scenario, had its genesis closely linked to religion and, since Brazil is a Democratic Constitutional State of Law that adopts the Republic as a form of Government and, in terms of religion, secularism, it cannot be accepted that the intimacy of the individual is achieved by the arms of the State with the bias of inhibiting and repressing the polyaffective union.

Keywords: Polyaffective union. State. Improper intervention. Private autonomy.

INTRODUÇÃO

De início cabe destacar que o objetivo do presente artigo não é se aprofundar nos temas propostos, mas sim tecer breves comentários sobre cada um deles, para que se possa ter uma clara compreensão a respeito do instituto do casamento e sua intervenção na autonomia da vontade dos contraentes bem como a tipificação penal da bigamia em desrespeito ao princípio da intervenção mínima e da ofensividade, entre outros.

Dito isto, o presente artigo partira de breves comentários acerca da gênese do casamente em solo brasileiro, já sob a égide da Constituição outorgada em 1824 que, neste início da independência do Brasil, ainda continuou-se aplicando as normas dispostas nos Ordenamentos Filipinos.

Em seguida se fara uma rasa abordagem sobre o modelo, chamado, conservador de casamento no Brasil, modelo este herdado do catolicismo, de uma época em que a religião se confundia com direito, momento este em que aqueles que não mantinham suas relações intimas de afeto nos moldes em que a igreja pregava, era considerado um pecador, razão pela qual determinadas uniões homo e heteroafetivas passaram a ser ilícitos civis e até penais.

Mais adiante, ir-se-á decorrer, sucintamente, a respeito da ilicitude civil e penal da poligamia, expondo as restrições que o direito civil impõe aqueles que optam por viver em uma relação poliafetiva bem como a intervenção do direito penal nesta ceara.

Logo após se verá a (im) compatibilidade de alguns princípios com a intervenção do Estado no seio das relações intimas de afeto assim como a tipificação penal do crime de bigamia.

Por fim, será feita uma concisa abordagem sobre uma possível quebra de paradigma no que diz respeito a uniões monogâmicas, ou seja, com base na viabilidade de hoje ser possível dois homens ou duas mulheres contraírem casamento e sabendo que é cada vez menos incomum vermos uniões poliafeivas, veremos se esta união está no caminho de ser regulamentada e o crime de bigamia de ser descriminalizado.

No presente trabalho será utilizado o método dedutivo, pois, também terá como base princípios, leis, jurisprudências e pensamentos doutrinários para se chagar a possíveis conclusões, do ponto de vista formais. De igual forma, será utilizado o método indutivo, haja vista que o presente artigo também terá como alicerce fatos e circunstancias particularizadas para então se chegar a determinada conclusão.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CASAMENTO NO BRASIL

O instituto do casamento, embora seja ainda mais remoto, este, da forma tradicional em que conhecemos, ou seja, uma cerimônia religiosa com a presença de noivo e noiva, teve sua origem na Roma Antiga (CANUTO).

Entretanto, no Brasil tivemos as primeiras disposições acerca do casamento nas Ordenações Filipinas que regulamentava, no Livro IV, Título XLVI, em certa medida, o regime de bens, veja:

“Como o marido e mulher são meeiros em seus bens”

Todos os casamentos feitos em nossos Reinos e senhorios se entendem serem feitos  per  carta  de  ametade:  salvo  quando  entre  as  partes  outra  cousa  for acordada  e  contractada,  porque  então  se  guardará  o que  entre  elles  for contractado. 

1 -E quando  o  marido  e  mulher  forem  casados  per  palavras  de  presente  à porta  da  Igreja,  ou  per  licença  de  prelado  fora  della,  havendo  copula  carnal, serão  meeiros  em  seus  bens  e  fazenda.  E  posto  que  elles  queiram  provar e provem  que  foram  recebidos  per  palavras  de  presente,  e  que  tiveram  copula, se  não  provarem  que  foram  recebidos  á  porta  da  Igreja,  ou  fora  della  com licença do Prelado, não serão meeiros.

2 -outrosi serão meeiros, provando que stiveram em casa teúda e manteúda, ou  em  casa  de  seu  pai,  ou  em  outra,  em  pública  voz  e  fama  de    marido    e  mulher    per    tanto  tempo,  que  segundo  Direito  baste  para  se  presumir Matrimônio antre elles, posto que se não provem as palavras do presente. 

3 -E acontecendo, que o marido, ou a mulher venham a ser condenados por crime de heresia,  por  que  seus  bens  sejam   confiscados,  queremos  que  comuniquen  entre  sí todos  os  bens,  que  tiverem  ao  tempo  do  contracto  do    Matrimonio,    e    todos    os    mais,  que  depois  adquirirem,  como  se  ambos fossem Catholicos. O que assi havemos por bem, por  se  acusarem  conluios  e    falsidades,    que    se    poderiam    commeter    sobre    a  prova  dos  bens,  que cada hum delles comsigo trouxe.

Porém, o casamento em si era regulamentado pelo direito canônico, portanto, era indissolúvel.

Contudo, o marco histórico do casamento civil no Brasil se deu com Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, por meio do Decreto n° 181, de 24 de janeiro de 1890, que em seu Capítulo I, dispunha, do art. 1º ao 6º, “Das Formalidades Preliminares do Casamento”, vejamos:

Art. 1º As pessoas, que pretenderem casar-se, devem habilitar-se perante o official do registro civil, exhibindo os seguintes documentos em fórma, que lhes deem fé publica:

§ 1º A certidão da idade de cada um dos contrahentes, ou prova que a suppra.

§ 2º A declaração do estado e da residencia de cada um delles, assim como a do estado e residencia de seus paes, ou do logar em que morreram, si forem fallecidos, ou a declaração do motivo por que não são conhecidos os mesmos paes, ou o seu estado e residencia, ou o logar do seu fallecimento.

§ 3º A autorização das pessoas, de cujo consentimento dependerem os contrahentes para casar-se, si forem menores ou interdictos.

§ 4º A declaração de duas testemunhas, maiores, parentes ou estranhos, que attestem conhecer ambos os contrahentes, e que não são parentes em gráo prohibido nem teem outro impedimento, conhecido, que os inhiba de casar-se um com o outro.

§ 5º A certidão de obito do conjuge fallecido, ou da annullação do anterior casamento, si algum dos nubentes o houver contrahido.

Art. 2º A’ vista dos documentos exigidos no artigo antecedente, exhibidos pelos contrahentes, ou por seus procuradores, ou representantes legaes, o official do registro redigirá um acto resumido em fórma de edital, que será por elle publicado duas vezes, com o intervallo de sete dias de uma á outra, e affixado em logar ostensivo no edificio da repartição do registro, desde a primeira publicação até ao quinto dia depois da segunda.

Art. 3º Si, decorrido este prazo, não tiver apparecido quem se opponha ao casamento dos contrahentes e não lhe constar algum dos impedimentos que elle pode declarar ex-officio, o official do registro certificará ás partes que estão habilitadas para casar-se dentro dos dous mezes seguintes áquelle prazo.

Art. 4º Si os contrahentes residirem em diversas circumscripções do registro civil, uma cópia do edital será remettida ao official do outro districto, que deverá publical-a e affixal-a na fórma do art. 2º, e, findo o prazo, certificar si foi ou não posto impedimento.

Art. 5º Si algum dos contrahentes houver residido a mór parte do ultimo anno em outro Estado, deverá provar que sahiu delle sem impedimento para casar-se ou, si tinha impedimento, que este já cessou.

Art. 6º Os editaes dos proclamas serão registrados no cartorio do official, que os tiver publicado e que deverá dar certidão delles a quem lh’a pedir.

 Com isso, o casamento deixou de ser indissolúvel, já que este dispositivo normativo, em seu Capítulo IX, notadamente o art. 82, passou a dispor das hipóteses para se requer o divórcio, eram elas: §1º adultério; §2º sevicia, ou injuria grave; §3º abandono voluntario do domicílio conjugal e prolongado por dous anos contínuos; e §4º mútuo consentimento dos cônjuges, si forem casados a mais de dous annos.

Todavia, foi com a Lei 3.071 de 1º de janeiro de 1916, que o casamento passou a ter os contornos que estamos familiarizados, contudo, esta lei ainda estava contaminada pela cultura patriarcal, isto é, não havia direitos iguais entre homem e mulher, haja vista que colocava a mulher na figura de “curatelada”, já que o art. 233 desta lei estabelecia que os maridos era o chefe da sociedade conjugal, sendo este, o representante legal da família. Nesse sentido:

Sempre se atribuiu à família, ao longo da história, funções variadas, de acordo com a evolução que sofreu, a saber, religiosa, política, econômica e procracional. Sua estrutura era patriarcal, legitimando o exercício dos poderes masculinos sobre a mulher — poder marital, e sobre os filhos — pátrio poder. As funções religiosa e política praticamente não deixaram traços na família atual, mantendo apenas interesse histórico3 , na medida em que a rígida estrutura hierárquica foi substituída pela coordenação e comunhão de interesses e de vida.

Mas, com a promulgação da CF/88, que prevê no inciso I, do art. 5º que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição, fez com que o atual Código Civil, que revogou o seu antecessor, dispusesse no art. 1.511, que inaugura o Livro IV, que traz como título “Do Direito de Família”, que: O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. (negritei)

Desta forma, nas relações conjugais passou a vigor o “poder família”, em substituição ao “pater poder”.

MODELO CONSERVADOR DE CASAMENTO

Em que pese as inovações promovidas pela CF/88, seu especial cuidado ao estabelecer uma série de direitos e garantias fundamentais, o que fez com que todos os outros ramos do direito passassem a ser interpretados a partir dela, e a respeito, o Ministro Luiz Roberto Barroso (2001, p. 42-43) nos explica que:

Este fenómeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. A constitucionalização do direito infraconstitucional não identifica apenas a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob única ótica constitucional.

Nesse mesmo sentido, o professor Flavio Tartuce (2017, p. 17), nos elucida que:

O Direito Civil Constitucional pode ser encarado como um novo caminho metodológico que procura analisar os institutos de Direito Privado, tendo como ponto de origem a Constituição Federal de 1988. Não se trata apenas de estudar os institutos privados previstos na Constituição Federal de 1988, mas sim de analisar a Constituição sob o prisma do Direito Civil, e vice-versa. Para tanto, deverão irradiar de forma imediata as normas fundamentais que protegem a pessoa, particularmente aquelas que constam nos arts. 1.º a 6.º do Texto Maior.

Porém, nem mesmo a constitucionalização do direito insfraconstitucional, neste primeiro momento, fez com que o direito tivesse um olhar evolutivo para as relações intima entre pessoas, pois a CF/88 ao tratar da união entre pessoas, refere-se, em seu art. 226, a homem e mulher, assim como o faz o Código Civil de 2002, em seu art. 1.514, respectivamente, veja:

 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[…]

[…]

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 

Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.

Com isso, o ordenamento jurídico pátrio passou a tutelar a união composta por um homem e uma mulher, seja através do casamento ou da união estável, mas não entre duas pessoas do mesmo sexo ou, até mesmo, composta de 03 ou mais pessoas.

Mas, em 05 de maio de 2011, ao julgar, conjuntamente, a ADPF n° 132/RJ e ADI n° 4.277/DF, o STF conferiu interpretação conforme ao art. 1.723 do Código Civil de 2002, atribuindo aos casais homoafetivos os mesmos direitos dispensados aos casais héteroafetivos, logo, em tese, com base no art. 1.726, do Código Civil de 2002, a união estável formada por casais homoafetivos, poderia converter-se em casamento.

Contudo, a despeito deste entendimento firmado pelo STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade, portanto, vinculante, muitos casais homoafetivos tiveram dificuldades, nos cartórios, de converter a união estável em casamento, o que levou o CNJ a editar a Resolução n° 175 de 14 de maio de 2013, que previa 3 arts., são eles:

Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.

Art. 2º A recusa prevista no artigo 1º implicará a imediata comunicação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis.

Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Porém, passados 20 anos da sanção do atual Código Civil e 11 anos da decisão do STF que garantiu o direito a união e casamento de casais homoafetivos, apesar de em 2011 ter sido protocolado uma proposta de lei pela, então Senadora, Marta Suplicy, para alterar a lei, estabelecendo como família “a união estável entre duas pessoas”, mantendo o restante do texto inalterado, este projeto de lei acabou por não passar pelo plenário da casa, sendo arquivado no fim do mandato da congressista em 2018 (Araújo, 2022).

Desta forma, conquanto, ainda não haja uma lei que preveja de forma expressa o direito a união e casamento entre casais homoafetivos, há a decisão do STF proferida em sede de controle abstrato de constitucionalidade, o que garante, em certa medida, tais direitos aos casais homoafetivos, mas, o mesmo não ocorre com os casais poligâmicos.

Não é segredo para ninguém que a cada dia os chamados “trisais” estão se tornando menos incomum e, ainda, há inúmeros casos em que homens mantem duas famílias, hora com o conhecimento de ambas, hora com conhecimento de apenas uma delas, hora sem o conhecimento de ambas.

Em que pese não existir uma norma que tutele, simultaneamente, o direito de todos envolvidos, quer seja, em um relacionamento a três sob o mesmo teto, seja um relacionamento a três sob teto distinto, acontece que tais fatos já é uma realidade em nossa sociedade e, em vez de o Estado tutelar o direito de todos envolvidos, ele faz absolutamente o contrário, tipificou tais condutas como ilícito civil e, dependendo do caso, ilícito penal.

POLIGAMIA: ILÍCITO PENAL E CIVIL  

Objetivamente falando, é possível afirmar que a relação marido e mulher trata-se de uma relação de direito privado, pois:

 Não há qualquer relação de direito público entre marido e mulher, entre companheiros, entre pais e filhos, dos filhos entre si e dos parentes entre si. Não lhe retira essa natureza o fato de ser o ramo do direito civil em que é menor a autonomia privada e em que é marcante a intervenção legislativa. Diz-se que “as situações sociais típicas ou os supostos institucionais do direito civil são, precisamente, a pessoa, a família e o patrimônio” (LÔBO, 2011, p. 45).

Ademais, ainda que não se pudesse afirmar que tais interesses são absolutamente privados, de igual sorte não se poderia afirmar que seriam estatais, nesta esteira é o ensinamento de Hugo Nigro Mazzilli (2012, p. 48), veja:

[…] nos últimos anos, tem-se reconhecido que existe uma categoria intermediária de interesses que, embora não sejam propriamente estatais, são mais que meramente individuais, porque são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas, como os moradores de uma região quanto a questões ambientais comuns, ou os consumidores de um produto quanto à qualidade ou ao preço dessa mercadoria.

A respeito de direito público e privado, Paulo Lôbo (2011, p. 45) explica que:

Consequentemente, o direito é público se a relação jurídica for juridicamente desigual sob império do Estado, seja esta parte ou não (por exemplo, direito constitucional, direito administrativo, direito penal, direito tributário); o direito é privado se a relação jurídica, pouco importando o grau de intervenção estatal ou de limitação da autonomia das partes, for encetada entre pessoas privados ou destas com o Estado, quando este não estiver investido de seu império. Portanto, o direito de família é genuinamente privado, pois os sujeitos de suas relações são entes privados, apesar da predominância das normas cogentes ou de ordem pública. Não há qualquer relação de direito público entre marido e mulher, entre companheiros, entre pais e filhos, dos filhos entre si e dos parentes entre si. Não lhe retira essa natureza o fato de ser o ramo do direito civil em que é menor a autonomia privada e em que é marcante a intervenção legislativa. Diz-se que “as situações sociais típicas ou os supostos institucionais do direito civil são, precisamente, a pessoa, a família e o patrimônio”

Entretanto, o CC/02 não permite que uma pessoa, enquanto casada, constitua novo matrimonio ou até mesmo constitua uma união estável com outra pessoa, dessa maneira, o Código Civil de 2002 dispõe que:

Art. 1.723 (…)

§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; (…)

Art. 1.521. Não podem casar:

(…)

VI – as pessoas casadas;

Dessa forma, ainda que todas as partes envolvidas – o marido, a mulher e a terceira pessoa – firmem um compromisso por escrito, para salvaguardar os direitos da terceira pessoa, ou seja, um contrato de união estável, este, legalmente, não terá nenhum valor jurídico.

Mesmo que um homem seja casado com uma mulher em uma cidade e, em outra cidade viva em união estável com outra mulher, sem com que uma saiba da outra, aquela que não é casada não teria direito nenhum assegurado, como no caso de morte ter direito a pensão por morte ou ter direito a herança.

Por tais fatos serem corriqueiros, o STJ, ao analisar se “concubina” poderia ser beneficiaria de segura de vida, esta Corte Superior, por meio de sua 4° Turma, no REsp de n° 1.391.954, julgado em 22/03/2022, fixou o entendimento de que “O seguro de vida não pode ser instituído por pessoa casada em benefício de parceiro em relação concubinária”. (Info 731)

Neste mesmo sentido, o STF quando foi instado a se manifesta a respeito do direito a pensão por morte, assim como a Corte Superior de Justiça, contrariamente aos princípios da autonomia da vontade, da adequação social, entre outros, em sede de Repercussão geral, fixou o seguinte entendimento:

É incompatível com a Constituição Federal o reconhecimento de direitos previdenciários (pensão por morte) à pessoa que manteve, durante longo período e com aparência familiar, união com outra casada, porquanto o concubinato não se equipara, para fins de proteção estatal, às uniões afetivas resultantes do casamento e da união estável.

STF. Plenário. RE 883168/SC, Rel. Dias Toffoli, julgado em 2/8/2021 (Repercussão Geral – Tema 526) (Info 1024).

Data máxima vênia, não se pode concordar que, se três pessoa firmam um contrato entre si e, inclusive dá publicidade a ele, sendo ainda que os acordos ali firmados se trata de bens privados absolutamente disponíveis, vem o Estado e diga que aquele contrato não tem nenhum valor jurídico.

Não bastasse a intervenção estatal na autonomia da vontade, não permitindo que, de forma simultânea, mais de duas pessoas mantenham, formalmente, vínculos afetivos, ainda, no âmbito penal, tipificou a bigamia, que consiste em:  Art. 235 – Contrair alguém, sendo casado, novo casamento, cominando uma pena de 02 a 06 anos de reclusão, ou seja, é uma pena que, diferentemente da pena de detenção, admite que o regime de cumprimento de pena se inicie no fechado.

No entanto, em âmbito penal, em razão da vedação da analogia in malam partem, não constitui em ilícito celebrar um contrato de união estável mesmo sendo casado, pois, a Lei 11.106, em 2005 revogou o art. 240 do Código Penal, que dispunha do crime de adultério, sendo assim, para o direito penal a conduta de uma pessoa casada manter uma união estável com outra não constitui crime.

Contudo, entende-se que, tanto a proibição civil de, simultaneamente, manter, formalmente, vínculos afetivos com mais de uma pessoa, seja por meio casamentemos ou uniões estáveis, quanto a criminalização de casar-se com mais de uma pessoa, violam inúmeros princípios constitucionais.

POLIGAMIA: PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Conforme exposto nos tópicos anteriores, o Código Civil de 2002 não permite que uma pessoa casada contraia, enquanto casado, novo casamente e os Tribunais Superiores pacificaram o entendimento no sentido de que uma pessoa casada não pode constituir uma união estável, e caso o faça, não produzira nenhum efeito jurídico.

Já foi apresentado também que, se uma pessoa casada contrair novo casamento, este estará sujeito a uma pena de reclusão de 02 a 06 anos.

Com isso, no que diz respeito a ilicitude civil da bigamia, entende-se que, data vênia, há desrespeito ao princípio da intervenção mínima no Direito de Família, uma vez que a atuação estatal não poderia invadir essa esfera de intimidade, pois, em uma relação de afeto, são os protagonistas que devem estabelecer as regras aceitáveis de convivência, desde que não violem a sua dignidade, nem interesses de terceiros (GAGLIANO, 2012, p 108).

 Ademais, sabendo que a união estável pode ser instrumentalizada, por meio de um contrato e que o casamento, em sua essência, é um contrato e que este é um ato jurídico bilateral que depende da declaração de vontade de duas ou mais pessoas, cujo objetivo é a criação, a alteração ou até mesmo a extinção de direitos e deveres de conteúdo patrimonial (TARTUCE. 2017, p. 18), por conseguinte, a intromissão do Estado em relações puramente patrimoniais, em que não envolve direitos indisponíveis, evidencia-se uma flagrante afronta ao princípio da autonomia privada, nesse sentido:

Percebe-se que o negócio jurídico constitui verdadeiro instrumento da liberdade humana, tendo sua raiz na vontade. A declaração de vontade, segundo ensina Castro Y Bravo, constitui o elemento central e mais característico do negócio jurídico, sendo o seu estudo comum às declarações que afetam a relação negocial (La estructura…, 2002, p. 57 apud, TARTUCE. 2017, p. 78)

Dito isto, cabe destacar, ainda, que a proibição de três pessoas constituir entre si uma união estável e até mesmo casamente, vai de encontro ao princípio da igualdade, que constitui um dos postulados básicos da República Federativa do Brasil e tem se apresentado como diretriz para a correta compreensão e interpretação de todas as demais normas que compõe o sistema jurídico (NONATO, 2011, p. 236), e do direito à diferença que, de certa forma, é corolário daquele, ou seja, trata-se da igualdade material.

Desta feita, embora, no Direito de Família, várias de suas regras são cogentes, de ordem pública, inderrogáveis pela simples vontade das partes (GAGLIANO, 2012, p. 61), no que diz respeito a direitos disponíveis, direitos estes que não viola a dignidade da pessoa humana e nem direitos de outrem, não poderia o Estado, a pretexto de, eventualmente, tutelar a moralidade privada ou até mesmo preceitos religiosos, se imiscuir desta forma nas relações entre particulares.

Nesse sentido é possível verificar que na CF/88 não há nenhuma disposição que vede a “união pluriafetiva” ou poliafetiva, tão pouco alguma norma mandamental no sentido de criminalizar o “pluricasamento”, ao revés, pois o princípio da Intervenção Mínima que, em Direito Penal se desdobra no princípio da Fragmantariedade e da Subsidiariedade que nas palavras do professor Gustavo Junqueira e da professora Patrícia Vanzolini (PRADO, 2007, p. 120, PUIG, p. 89 apud, 2017, p. 39-40), nos esclarece que:

Segundo o princípio da fragmentariedade, diretamente ligado ao princípio da intervenção mínima, o Direito Penal deve proteger apenas os bens jurídicos mais relevantes contra os ataques mais violentes. A tutela penal é, portanto, “seletiva, limitada àquela tipologia agressiva dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e a intensidade da ofensa”.

O princípio da subsidiariedade ou da necessidade também está umbilicalmente ligado ao da Intervenção Mínima e diz respeito a possibilidade da proteção do bem jurídico por intermédio de meios menos gravosos para os cidadãos do que a pena estatal. Segundo Mir Puig, “o Direito penal deixa de ser necessário para proteger a sociedade quando isto pode ser conseguido por outros meios, que serão preferíveis na medida em que forem menos lesivos aos direitos individuais.

Com base nestes princípios, o crime de bigamia, previsto no art. 235, do CP, vai de encontro a ambos os princípios, haja vista não se tratar de uma conduta dotada de indiscutível relevância quanto à gravidade e a intensidade da ofensa, logo, não deveria o legislador ter, criminalmente, tipificado esta conduta, porém, uma vez tipificado, não deve o magistrado impor uma sanção penal, já que tal bem jurídico pode ser tutelado, satisfatoriamente, por outros ramos do direito.   

POLIGAMIA: QUEBRA DE PARADIGMA

Como visto, no Brasil, as primeiras disposições acerca do casamento se deram com as Ordenações Filipinas, porém, era regido pelo direito canônico, ou seja, o direito se confundia com religião, por esta razão, instaurou-se em nossa cultura a união monogâmica, já que a igreja demonizava a união poliafetiva.

Ocorre que a sociedade vive um processo permanente de evolução e, a despeito de há décadas ter sido fixado a monogamia como paradigma para as uniões afetivas, é possível notar que está ocorrendo uma quebra desse paradigma, ou seja, mais que uma evolução, talvez esteja ocorrendo uma revolução.

Assim, um aspecto central de qualquer revolução reside no fato de que algumas das relações de similaridade mudam. Objetos que antes estavam agrupados no mesmo conjunto passam a agrupar-se em conjuntos diferentes e vice-versa (KUHN, p. 247), isto é, o que outrora era visto como uma anomalia, gradativamente, está se incorporando à sociedade contemporânea.

Além do mais, com base na constante evolução em que a sociedade está submetida, tanto a democracia quanto o pluralismo, são direitos fundamentais, tidos por Bonavides, como direitos de 4ª geração/dimensão, vejamos:

Não há consenso quanto às espécies que comporiam uma quarta geração (dimensão) de direitos humanos. Bobbio, por exemplo, aponta ser ela composta pelo direito à integridade do patrimônio genético perante as ameaças do desenvolvimento da biotecnologia. Bonavides, por sua vez, entende ser, principalmente, o direito à democracia, somado aos direitos à informação e ao pluralismo (ANDRADE, 2016, p. 4)

Há poucos anos, apesar das relações homoafetivas já serem comuns, era inconcebível falar em casamento entre pessoas do mesmo sexo. Todavia, com base em diversos princípios constitucionais, tais como, dignidade da pessoa humana, igualdade, direito a felicidade etc., o STF, ao julgar conjuntamente a ADPF n° 132/RJ e ADI n° 4.277/DF, reconheceu aos homossexuais o direito de casarem-se.

Portanto, hoje é plenamente possível duas pessoas do mesmo sexo constituírem união estável, contrair casamento. Também, é plenamente permitido ter mais de uma mãe e/ou mais de um pai, tendo em vista que há situações em que, ainda que um adolescente já tenha um pai, o provimento 63/2017, alterado pelo provimento 83/2019 do CNJ, traz a hipótese de reconhecimento voluntario de paternidade socioafetivo.

Ademais, em que pese as disposições legais e jurisprudenciais contrairias a união poliafeitivas, em 2012, num cartório em Tupã – SP, foi registrado um documento entre um home e duas mulheres que mantinham uma união poliafetiva, resguardando direitos entre si e, em 2015, num cartório na Barra da Tijuca no Rio de Janeiro, em um caso que envolvia 03 mulheres em uma união homopoliafetiva, foi elaborado um testamento entre elas (CRIACIONISMO, 2012).

Assim, não resta dúvidas que a regulamentação da união e casamento poliafetivos, é uma questão de quando e não de si. A vista disso, além de a CF/88, estabelecer que o Brasil é Estado Laico, fato este que, por si só, já deveria ser o suficiente para assegurar o direito a união poliafetiva, o presidente eleito, que assumirá o governo em janeiro de 2023, irá criar o Ministério dos Povos Originários, se aproximando, desta forma, cada vez mais do Novo Constitucionalismo Latino-Americano que, em apartada síntese é fruto de reivindicações e manifestações populares e tem como principal escopo a busca por uma maior legitimidade democrática da Constituição, garantindo-se a participação política de grupos até então alijados do cenário político (MARTINS, 2020, p. 83).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo o exposto, acerca do tema em questão, pode-se perceber que a intervenção do Estado nas relações intimas de afeto e nos desdobramentos que advém dela não se mostra legitima.

Nestes cenários entende-se que o dever do Estado é exatamente o contraio, ou seja, tutelar os direitos de todos os envolvidos e não impor restrições, pois, não é compreensível que um homem que tenha duas mulheres, todas elas vivendo sob o mesmo teto ou tenha duas famílias vivendo sob distintos tetos, queira resguardar direitos a ambas, tais como tê-las como beneficiarias na Previdência Social ou até mesmo ter ambas como beneficiarias de seguro de vida, e tenha esta pretensão tolhida pelo Estado.

Desta forma, verificou-se que, ao impor restrições as uniões poliafetivas e criminalizar a conduta de casar-se com terceira pessoa já sendo casado (a), viola os princípios da autonomia da vontade, da intervenção mínima, da adequação social, da ofensividade, da igualdade, do direito a felicidade, entre outros.

Foi possível perceber que ao invés do Estado impor restrições e tipificar condutas que não cause lesão ou exponha a perigo de lesão um bem juridicamente tutelado, deveria tutelar estes direitos, a começar com a descriminalização do crime de bigamia e progredir para a regulamentação das uniões poliafetivas.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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[1] Advogado, Especialista em Direito e Processo Penal e Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Paulista de Direito e Mestrando em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica–PUC-SP, Fone: (11) 3242-3628. E-mail: fonseca.julio@adv.oabsp.org.br