PODER E DOMINAÇÃO NO PLANO DO INCONSCIENTE: MENTES DÓCEIS, HABITUADAS E UNIDIMENSIONAIS
1 de dezembro de 2021POWER AND DOMINATION IN THE PLAN OF THE UNCONSCIOUS: DOCILE, HABITUAL AND ONE-DIMENSIONAL MINDS
Cognitio Juris Ano XI – Número 37 – Dezembro de 2021 ISSN 2236-3009 |
Autor: Juliano Locatelli Santos[1] |
RESUMO
O tema do poder e das relações de dominação, na teoria política, passa por formulações históricas em que o medo, o contrato, o consenso entre iguais, violência ou dominação legítima sempre apoiaram uma reflexão racional ou um cálculo sobre vantagens e desvantagens da submissão. A partir da questão de Etienne de La Boetie no século XVI, quando se perguntou sobre quais são os motivos pelos quais se obedece ao tirano, analisa-se o tema do poder considerando a dominação no inconsciente do indivíduo. Através das abordagens de Michel Foucault, Pierre Bourdieu e Herbert Marcuse, fornecem-se elementos diversos para entender como se disseminam as relações de poder na sociedade, para além do Estado. Ao final, aborda-se sobre as formas de resistência que se opôem à dominação do inconsciente. Conclui-se que a resposta ao questionamento de La Boétie na contemporaneidade envolve a compreensão sobre como o poder e a dominação se disseminam no meio social, definindo padrões e subjetividades, tornando assim complexas as formas de resistência a esta dominação.
Palavras-chave: Ciência política; servidão; mentalidade
ABSTRACT
The theme of power and domination relations, in political theory, goes through historical formulations in which fear, the contract, the consensus between equals, violence or legitimate domination have always supported a rational reflection or a calculation on the advantages and disadvantages of submission. Based on the question of Etienne de La Boetie in the 16th century, when asked what are the reasons for obeying the tyrant, the theme of power is analyzed considering domination in the individual’s unconscious. Through the approaches of Michel Foucault, Pierre Bourdieu and Herbert Marcuse, different elements are provided to understand how power relations are disseminated in society, beyond the State. In the end, it approaches the forms of resistance that are opposed to the domination of the unconscious. It is concluded that the answer to the question of La Boétie in contemporary times involves the understanding of how power and domination are disseminated in the social environment, defining patterns and subjectivities, thus making the forms of resistance to this domination complex.
Key Words: Political science; servitude; mindset
Sumário: 1. Introdução; 2. Percorrendo alguns caminhos do conceito de poder; 3. O poder para além do Estado e o plano do inconsciente; 4. Considerações finais; Referências.
- Introdução
O ensaísta e filósofo Etienne de La Boétie, nascido em 1530, em seu “Discurso da Servidão Voluntária”, expressou sua inquietação contra os governos absolutistas, perquirindo sobre as razões pelas quais as tiranias se perpetuam.
Por hora gostaria apenas de entender como pode ser que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto tem vontade de suportá-lo, que não poderia fazer-lhes mal algum senão quando preferem tolerá-lo a contradizê-lo. (LA BOÉTIE, 1982, p. 12)
Buscava La Boétie, segundo Tonetti (2009, p. 175), descobrir como se desenvolve esta particular vontade de servir ao tirano, mostrando que a servidão não integra a natureza humana, da qual a liberdade seria traço essencial.
Já no século XVI, La Boétie distinguia e classificava como incompatíveis a liberdade e a submissão às formas de poder reconhecidas aos soberanos. A partir dessa premissa, La Boétie (1982, p. 16) se questionava sobre as causas pelas quais o povo se submete à servidão ao tirano ou governante, concedendo-lhes parcela de sua liberdade, e em consequência outorgando-lhe parcela de um poder que será utilizado para a sua própria dominação. Referindo-se a La Boétie, Saul Newman (2011, p. 23) simplifica a pergunta: por que obedecemos? Exsurge assim o problema: por que obedecer a poderes que não foram politicamente legitimados?
Diversas teorias e formas de pensamento surgiram sobre o tema do poder e de sua legitimação durante toda a modernidade, sendo que o transcurso do século XX igualmente manteve viva e efervescente a questão. Tomando emprestada a inquietação inicial de La Boétie, pretende-se inicialmente resgatar, em sobrevoo, um pouco do percurso pelo qual o pensamento teórico da ciência política tratou do tema da constituição e legitimação do poder ao longo dos últimos séculos. Em seguida percorre-se um caminho diverso, dissociando-se formas de poder consentidas, ou decorrentes de uma escolha ou cálculo sobre sua concessão, das formas de poder que se alojam no plano do inconsciente dos dominados, produzindo e reproduzindo modos de dominação. Nesse sentido, aborda-se três percursos filosóficos distintos, traduzidos pelas obras de Michel Foucault, Pierre Bourdieu e Herbert Marcuse, que analisam o tema do poder e da dominação enquanto forças que se espraiam nas mentalidades, e tratam de formas de resistência a estas formas de poder. Para tal, desenvolve-se o método dedutivo, abordagem qualitativa e técnica de revisão bibliográfica.
2 . Percorrendo alguns caminhos do conceito de poder.
Um adequado ponto de partida para a análise da construção teórica do poder político e da soberania, pode ser o século XVI. No mesmo ano de 1530, além de La Boétie, nascia na França Jean Bodin, cuja obra formulou o suporte teórico da idéia de soberania, calcada na construção de um poder absoluto, concentrado nas mãos do rei, e limitado apenas pelo direito natural e pela providência divina. Um soberano que apenas não pode se excluir da lei de Deus, a qual está vinculado (BODIN, 2011, p. 317).
Remanescia após Bodin a necessidade de garantia do direito natural, bem como a construção teórica de justificação do poder do soberano. O que surge no século XVII, com a construção do estado de natureza pelos contratualistas, enquanto formulação hipotética de um estado primitivo e prévio à criação do poder estatal. Não obstante as variações de conceito, a noção de estado de natureza e a conversão para um estado civil a rigor convergiam para a justificação deste poder estatal. Em Thomas Hobbes, o estado de natureza era a guerra entre os homens ou guerra contra todos, em que o medo e a luta pela vida definem a violência como sistema de imposição da soberania pelo mais forte. Já o estado de natureza de Locke não se descrevia como o monstruoso Leviatã, mas sim um Estado permeado pelas leis da natureza, que…“com respeito à razão, que é esse direito, toda humanidade aprende que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade e seus bens” (LOCKE, 1994, p. 84). Apropriado, portanto, a dissipar a instabilidade que ameaça a liberdade, a vida e a propriedade, criando-se o consentimento individual e coletivo gerador da sociedade civil.
Em Rousseau, se tem ainda outra conceituação do estado de natureza, baseada no isolamento e na figura do bom selvagem que vivia em felicidade original. E que começa a ruir, segundo Marilena Chauí (2000, p. 517), quando pela primeira vez se delimita a propriedade individual privada, criando-se o estado de sociedade, este sim similar ao estado de natureza hobbesiano. A noção de contrato social de Rousseau, já no século XVIII, parte ainda de uma idealização em que a igualdade de direitos e a participação do povo estabelecem um contratualismo que se opere permeado pela vontade geral, limitadora do poder do soberano.
Simone Goyard-Fabre narra de forma elucidativa a transição do naturalismo providencial de Bodin para a secularização dos preceitos teológicos a partir do artificialismo racional de Hobbes (GOYARD-FABRE, 1999, p. 157), quando afirma que “a potência soberana resulta do cálculo teleológico de interesses pelo qual a razão, no universo de signos (marks) edificados por ela, opõe-se à anarquia e à beligerância do estado de natureza.” (GOYARD-FABRE, ibid, p. 155).
Entre os contratualistas portanto, tem-se que a origem do poder político do estado está calcada na premissa de que, no estado da natureza, ou no estado de sociedade de Rousseau, a convivência coletiva carece de segurança suficiente para uma coexistência que contemple não apenas a liberdade, mas o direito à vida e à autopreservação. O que implica em uma renúncia ou cessão de direitos em favor da figura do governante, que tem como contrapartida a garantia da preservação da integridade humana. A fonte do poder político, legitimadora da soberania, está no consentimento dos governados.
Nas teorias contratualistas, evidencia-se enquanto característica comum a noção de que há um claro e refletido consentimento em relação à concessão do poder ao soberano. John Locke claramente afirmava, no Segundo Tratado do Governo Civil: “Mas além disso eu afirmo que todos os homens se encontram naturalmente nesse estado e ali permanecem, até o dia em que por seu próprio consentimento, eles se tornem membros de alguma sociedade política” (LOCKE, 1994, p. 90) Há, em outras palavras, uma racionalidade justificadora do poder que está calcada na outorga, na concessão de poder em favor da soberania do Estado.
O pensamento de Max Weber retoma, na esteira do que em parte já se encontrava entre os contratualistas, o argumento de que reside no medo e na insegurança a origem da outorga de poderes ao soberano. Mas diversamente da perspectiva do contrato, tratou o sociólogo alemão da premissa de que o poder está fundado no monopólio do uso legítimo da força física, ou da violência (WEBER, 2013, p. 56). Assim, é o Estado o ente a exercitar a dominação, calcada na noção de uma violência legítima, avalizada pelo poder.
É quando emergem dois conceitos-chave do pensamento de Weber, para quem o poder é a probabilidade de imposição da própria vontade em uma determinada relação social, mesmo que diante de certa resistência. E a dominação, por sua vez, é a probabilidade de encontrar obediência dentro de um grupo determinado para mandatos específicos (WEBER, 1983, p. 170). A dominação é, portanto, o exercício do poder legítimo. Uma dominação que segundo Weber é necessária à manutenção da hierarquia e da ordem social (WEBER, 2013, p. 56), e que se utiliza da violência legítima para assegurar a soberania do Estado. A dominação envolve o consentimento por parte do dominado, enquanto ânimo de se submeter ao poder, qualquer que seja o tipo de dominação legítima, legal, tradicional ou carismática. Quando Weber afirma que “un determinado mínimo de voluntad de obediência, o sea, de interés (externo o interno) em obedecer, es essencial en toda relación auténtica de autoridade,” (WEBER, 1983, p. 170), em verdade se refere a uma dominação que é fruto de um ato consciente de aceitação.
Hannah Arendt passa a trazer um aporte completamente diverso, e que se desenvolve pela premissa de que poder e violência são elementos dissociados. A associação entre o poder e a violência, enquanto elementos correspondentes e fundantes da soberania do Estado, é vista de forma completamente diversa por Arendt, para quem o poder se origina do consenso entre iguais (ARENDT, 2001, p. 34). Ou seja, surge no âmbito de uma coletividade composta por opiniões e a consequente formação de um consenso a partir desta ação conjunta e comunicativa no ambiente público, em remissão à polis grega.
Para Arendt, Não há poder nas manifestações de violência, inclusive nas guerras ou revoluções. Onde há violência, não há poder. Ou a diminuição do poder é um convite à violência (ARENDT, ibid, p. 63). O poder na acepção arendtiana está ligado à noção de consentimento, sendo um fenômeno de ação humana e coletiva que surge quando o grupo se forma, e desaparece quando este se desfaz, autorizando quem está no poder a falar em nome do grupo. O momento posterior à formação inicial do grupo, é segundo Arendt, autoridade, ou seja, uma relação hierárquica de mando e obediência. O poder se constitui quando do momento fugaz (ARENDT, 1981, p. 212) da fundação do grupo, e para além deste momento, se converte em autoridade, denotando-se que são conceitos complementares (PERISSINOTTO, 2004, p. 121), não opostos.
A noção de autoridade se aproxima do conceito weberiano de dominação, embora com uma considerável diferença: se para Arendt trata-se de atingir uma vontade comum, visando um acordo, Weber considera realizar a vontade de uns sobre outros, considerando vencedores e derrotados neste conflito. Arendt traz um modelo absolutamente dissonante da tradição teórica então predominante acerca dos conceitos de poder e violência, conceitos cuja falta de uma devida diferenciação, a seu ver, revela o triste estado da então atual da ciência política (ARENDT, 1981, p. 36), concentrada no pensamento weberiano.
A obra de Arendt, nesse sentido, foi objeto de contundente crítica, especialmente por Jürgen Habermas (1980, p. 100), que embora comungue da noção de poder a partir do consenso, observa que Arendt equivocadamente minimiza o elemento estratégico da política, calcado na violência, quando distingue poder de força. O recurso aos elementos greco-romanos da polis e oikos, enquanto espaços público e privado, são também objeto da crítica de Habermas, conforme destaca Jean-Marc Ferry (2003), afirmando serem desassociados da realidade.
O esquema aristotélico clássico, portanto, não convém mais como para dar conta do político, pois tal esquema introduz uma dissociação rígida das categorias homogêneas do público e do privado, do político e do doméstico, (polis, oikos), o que transposto a nossas sociedades atuais, não poderia funcionar a não ser como utopia no mau sentido do termo. (p. 38).
Após este breve percurso, a resposta à inquietação de Etienne de La Boétie, no século XVI, sobre as razões da servidão voluntária, passa por considerar que a submissão ao poder ocorre após uma reflexão consciente, pelos dominados, acerca das consequências em face da sua eventual insurgência.
3 O PODER PARA ALÉM DO ESTADO E O PLANO DO INCONSCIENTE
Há portanto uma marca que se pode referenciar nas mencionadas teorias sobre o poder. A submissão pelos dominados ao poder instituído se opera de modo consciente, como quem pondera ou efetua um cálculo, para assim concluir que a submissão é necessária ao viver em sociedade.
Para Michel Foucault, trata-se de subverter completamente esta ordem de pensamento. Roberto Machado ressalta que em Foucault, “…as relações de poder não se passam fundamentalmente nem no nível do direito nem no da violência: nem são basicamente contratuais nem unicamente repressivas” (MACHADO, 2017, p. 19). Se não pretendeu Foucault construir uma teoria do poder, quando muito um conjunto de precauções metodológicas (FOUCAULT, 2017, p. 282; ALBUQUERQUE, 1995, p. 105) é inegável que sua obra traz absolutas e imprescindíveis considerações sobre como se operam as relações de poder ao longo do transcurso histórico. E o tema das relações de poder permeia todas as fases metodológicas da obra de Foucault. Na fase arqueológica, evidencia-se em seus estudos a relação entre o sujeito e os processos pelos quais se constroem os saberes, através de um processo de escavação das camadas históricas. Na fase genealógica, o recorte metodológico se volta para o exercício do poder junto as instituições sociais, bem como as relações entre saber e poder. E a última fase metodológica, a fase ética, tem por foco a questão do cuidado de si e da resistência, e o conjunto de técnicas que transformam o sujeito.
Um dos aspectos mais centrais de sua temática implica em considerar que o poder não se concentra unicamente nas estruturas estatais de governo, mas sim está disseminado por todas as demais estruturas sociais, de diversas formas, disposto em microestruturas. Roberto Machado (2017, p. 16) lembra:
O que Foucault pretendia era se insurgir contra a idéia de que o Estado seria o órgão central e único de poder, ou de que a inegável rede de poderes das sociedades modernas seria uma extensão dos efeitos do Estado, um simples prolongamento ou uma simples difusão de seu modo de ação, o que destruiria a especificidade dos poderes que a análise pretendia focalizar.
Trata-se de um poder que não se concentra não apenas no rei em sua posição central, mas nos súditos em suas relações recíprocas (FOUCAULT, 2017, p. 282). Um poder que está associado ao conhecimento ou aos saberes, que por sua vez o constituem em um processo de moldagem das subjetividades. Trata-se de um poder que está no plano do indivíduo e dos saberes que o integram. O poder em Foucault impõe o saber, e assim define os patamares de verdades construídas historicamente, servis a uma dominação que age sobre os corpos, mantendo-os dóceis e úteis à reprodução das relações de poder. Nesse sentido:
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeito estrita. (FOUCAULT, 1999, p. 119)
O poder é examinado em suas extremidades, em sua face externa, agindo sobre a corporeidade. A este poder arraigado essencialmente à docilidade dos corpos, e descrito primordialmente na primeira fase do pensamento foucaultiano, denomina-se poder disciplinar. Para Gilles Deleuze (2006, p. 1-7), dentro do conceito de sociedade de controle, a dinâmica do poder disciplinar foucaultiano deve ser revista para o âmbito do supra-local, e a partir das novas tecnologias. O panóptico dá lugar a circuitos de imagens. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. Somos todos controladores e controlados, o que torna o poder ainda mais disseminado e invisível.
Além desta dimensão de poder disciplinar, Foucault passa a fundamentar a respeito de uma nova forma de poder, não excludente da primeira, mas complementar. Segundo o filósofo, as técnicas do poder disciplinar se originam nos séculos XVII e XVIII, e são caracterizadas pelo poder de vida e de morte pelo soberano, no sentido de que o mesmo detinha a prerrogativa de determinar, pela força da espada, quem deveria viver e morrer. Foucault destaca o que a seu ver seria uma contradição em relação ao contrato social, que pressupõe a outorga de poderes ao soberano pelos súditos, premidos pelo perigo ou pela necessidade, e que por isso assentem com esta outorga como meio de auto proteção da vida. A contradição está em que, se constituem um soberano para lhes proteger a vida, não pode este soberano reclamar de seus súditos o direito de vida e de morte, em outras palavras, o direito de matá-los. “Não deve a vida ficar fora do contrato na medida em que ela é que foi o motivo primordial, inicial e fundamental do contrato?” (FOUCAULT, 2010, p. 203).
A partir do século XIX passa-se a constituir-se um novo paradigma, baseado não mais no poder ou direito de fazer morrer e deixar viver, e sim no poder de fazer viver e deixar morrer (FOUCAULT, ibid, p. 207). Novas técnicas ou tecnologias de poder exsurgem, e em outra escala não mais se dirigem ao homem-corpo, mas ao homem-espécie (FOUCAULT, ibid, p. 204). Trata-se da biopolítica, que se situa no plano da população, como problema científico, político, biológico e como problema de poder (FOUCAULT, ibid, p. 206), atuando assim associado à dimensão das regulamentações mas também no nível das instituições, eis que implica em órgãos centrais complexos de coordenação. O tema das relações de poder em Foucault revela portanto uma submissão irracional que se opera desacompanhada de uma maior reflexão pelo sujeito. Um sujeito que se considera autônomo e livre, mas que permanece atado às estruturas dominantes do poder, que o normalizam e o docilizam para que replique tais estruturas como se fossem parte de sua natureza.
O tema das relações de poder em Foucault revela portanto uma submissão irracional que se opera desacompanhada de uma maior reflexão pelo sujeito. Um sujeito que se considera autônomo e livre, mas que permanece atado às estruturas dominantes do poder, que o normalizam e o docilizam para que replique tais estruturas como se fossem parte de sua natureza. Café, Ribeiro e Ponczek (2016, p. 244) destacam este aspecto:
Uma das grandes reflexões de Foucaultquando discute a questão do poder está em sua percepção sobre como os indivíduos estão submetidos ao poder sem ter, necessariamente, a consciência disso. Ou seja, na perspectiva foucaultiana, os indivíduos agem na ilusão de que são livres, de que possuem as suas próprias ideias e opiniões quando na verdade, estão submetidos ao poder produzido historicamente dentro de espaços sociais que os fabrica enquanto sujeitos.
Pierre Bourdieu foi contemporâneo de Michel Foucault desde o movimento de Maio de 1968, e também no Collége de France. São poucas as referências recíprocas, mas ainda assim guardam certa simetria de pensamento, principalmente em relação ao tema do poder. Para ambos, as relações de poder não estão apenas no Estado, mas essencialmente no interior das relações sociais, em Foucault, e no seio dos campos sociais, em Bourdieu. Partilham ainda a relação íntima entre saber e poder, no sentido de que as relações de poder estão permeadas por um saber que o legitima, exercendo sujeição e dominação. Uma das diferenças mais visíveis entre Foucault e Bourdieu em relação ao tema das relações de poder, provavelmente se refira ao alcance ou abrangência da análise.
Se para Foucault o poder se dissemina nos mais diversos estratos sociais ou microestruturas, este não adentra no exame sobre quem seja o agente que produz os discursos de produção de verdades e exercício do poder. Bourdieu, por sua vez, adentra com maior profundidade na busca por este agente. Está interessado em descobrir quem enuncia os discursos de verdades, e por consequência, a dominação. Em uma das raras referências a Foucault, Bourdieu assinala que o colega desenvolve um discurso acerca do saber e o poder que, não levando em conta os agentes e seus interesses, bem como a violência simbólica, torna-se “abstrato e idealista” (BOURDIEU, 1996, p. 226).
A busca pela origem do discurso faz Bourdieu desenvolver o seu referencial teórico através de um marco metodológico permeado pela noção de campo, dentro dos quais tanto o discurso quanto as práticas se inserem e fazem sentido. O campo é “o espaço estruturado por posições onde dominantes e dominados lutam pela obtenção e manutenção de postos.” (TAVARES NETO; BARBOSA, 2012, p. 64). É o ambiente simbólico onde se determinam, se legitimam e se normatizam verdades estabelecidas, constituídas pelo poder simbólico. Outro conceito absolutamente relacionado com o tema em questão é o de habitus. Trata-se de uma disposição que já está incorporada no seio da sociedade, e é aplicada sem raciocínio ou reflexão. Um agir sem pensar em como agir, eis que dentro do campo, as condutas dos agentes são incorporadas e permeadas por maneiras influenciadas de pensamento e ação, que já estão interiorizadas no plano do inconsciente do indivíduo. Para Bourdieu, a noção de habitus expressa primordialmente, “a recusa a uma série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou, a da consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e do mecanicismo, etc.” (BOURDEIU, 2002, p. 60).
É portanto da essência do pensamento de Bourdieu conceber um poder simbólico, onde os detentores do conhecimento exercem a dominação de uma classe sobre outra, através da violência simbólica, impondo assim os platôs que distinguem dominantes de dominados. Para Bourdieu, “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, ibid, p. 7) O campo é onde o discurso e sua ortodoxia atuam, sedimentando o habitus, que é a expressão maior de como age o poder, encrustado no domínio do inconsciente, enquanto verdade já assimilada e reconhecida.
E enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem sua ‘função política’ de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço de sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos dominados. (Bourdieu, ibid, p. 11).
Assim, o poder é em Bourdieu uma relação que se exerce a partir do domínio da psique humana, em que “as propriedades correspondentes a uma posição social específica são incorporadas pelos sujeitos tornando-se parte de sua própria natureza.” (ALVES, 2010, p. 55). Um poder que não implica em cálculos, contratos ou assentimentos. Um poder que expressa a dominação no domínio da mente.
Outra forma indispensável de se pensar as relações de poder e a dominação sobre o inconsciente, é reconhecer a enorme influência do modo de produção capitalista no campo das mentalidades e na construção de subjetividades. Nesse sentido, por certo algumas categorias tratadas por Marx são eficazes para ilustrar não apenas a alienação, enquanto relação hostil e estranha (MARX, 2004, p. 81) na qual o homem não mais reconhece como seu o produto do seu trabalho, mas também o fetichismo da mercadoria (MARX, 2017, p. 148). Também a noção de reificação, trabalhada por por Lukács (2003) a partir da idéia de fetichismo da mercadoria, elucida um estado mental de consciência unitária e coisificação para além da relação entre o trabalhador e o fruto do seu trabalho.
Mas para os fins deste estudo, a relação entre o modo de produção capitalista e os elementos mentais da dominação será abordada a partir da reflexão que Herbert Marcuse desenvolvia na década de sessenta do século XX, e que ainda permanece atual. Seus estudos da teoria crítica centrados na sociedade industrial e de consumo estadunidense, analisavam como as estruturas de poder na modernidade se mantém hegemônicas, dizimando formas diferentes de pensamento e de insurgência.
Marcuse (2015) agrega aportes freudianos à sua base marxista, e desenvolve o argumento central de que o capitalismo e suas formas sedutoras de alienação e reificação, trouxeram uma nova racionalidade. O chamado homem unidimensional é um ser que perde completamente a capacidade de autonomia e de compreender a sua própria subjetividade. Um homem dominado, totalmente imerso em um sistema político-econômico único, que lhe suprime qualquer possibilidade de construção de alternativas. As alternativas dadas são apenas as que o sistema onipresente de dominação oferece, enquanto produtos, para que sejam consumidas.
Boaventura de Souza Santos (2013, p. 238), sobre a temática de Marcuse, descreve com precisão que a docilidade e a passividade são obtidas através das formas repressivas de felicidade ofertadas por via do consumo compulsivo de mercadorias. Ou seja, a construção de alternativas e subjetividades existe apenas enquanto opções criadas e disponibilizadas pelo próprio sistema de dominação. O progresso técnico não serve senão como instrumento de não-liberdade, sujeitando o humano ao seu aparato produtivo, gerador de pretensos confortos e uma dita vida boa e uma “consciência feliz”. Segundo Marcuse:
Enquanto esta conjuntura prevalecer, ela reduzirá o valor de uso da liberdade; não há razão para insistir na autodeterminação se a vida administrada é a vida confortável e até mesmo a vida boa. Este é o fundamento racional e material para a unificação dos opostos, para o comportamento político unidimensional. (Marcuse, 2015, p. 79).
Parte Marcuse de um aspecto absolutamente essencial: o ser humano na sociedade capitalista industrial tecnológica é pré-condicionado a se considerar satisfeito em seus sentimentos e em seus objetivos de vida. Não precisam pensar por si, pois o que existe já assim o fez. A racionalidade da não-liberdade, que impõe formas de pensar, de se relacionar, de consumir e de produzir, está a serviço dos mecanismos de dominação política, da qual a dominação econômica por certo é parte relevante. As escolhas são produto de uma falsa consciência, pois se operam diante de escolhas pré-concebidas, enquanto produtos, e não como formas autônomas e libertárias de vida.
A sociedade unidimensional, revela-se totalitária na medida em que transforma a racionalidade tecnológica em racionalidade política (MARCUSE, ibid, p. 37), minimiza os modos e meios tradicionais de protesto e resistência, e mantém a ilusória noção de soberania popular, que em verdade seria calcada não no pluralismo de ideias, opiniões e de culturas, mas na visão unificada e servil de que o progresso, a produção, o consumo, o bem-estar da tecnologia, devem imprimir a racionalidade do que determine o modo correto de vida, e por sua vez, defina as condutas dissonantes a este modo de vida. A liberdade na sociedade unidimensional é a liberdade de escolha entre opções de consumir, produzir e agir que se situam dentro do que é hegemonicamente aceito e construído.
A perspectiva de Marcuse aponta para um homem que tem sua individualidade notadamente marcada por um conjunto de informações e formações que o moldam no plano do inconsciente, forjando uma subjetividade hegemônica e inscrevendo um comportamento absolutamente moldado em função deste pensamento único. As necessidades do homem já não são as suas próprias necessidades, mas sim as que lhe foram impostas. Assim, Marcuse expõe uma forma de dominação que se relaciona com o capitalismo, a dimensão da psique humana e sua domesticação.
Tendo influenciado movimentos de resistência e contracultura desde a última década de sessenta, inclusive no Brasil, (VENTURA, 2006, p. 66), a obra do filósofo alemão permanece atual, e expõe uma forma de dominação que se relaciona com o capitalismo, a dimensão da psique humana e sua domesticação. Consagrando através do conflito de classes a constatação de um ser humano cuja mente foi dominada, e cujo esforço de libertação envolve, antes, um ato de resistência no plano individual, para então se expandir no âmbito das coletividades. Mas acima de tudo, e no que pertine o presente estudo, uma visão acerca da proeminência da expressão do poder pela dominação capitalista.
Também em relação ao cenário do capitalismo, Anibal Quijano trabalha o tema do poder por um olhar transverso, decolonial, e igualmente relevante. Resgatando séculos de dominação capitalista e apropriação cultural na América Latina, Quijano trata da colonialidade do poder baseada na idéia de raça enquanto instrumento de dominação. A padronização das diferenças culturais por meio de uma codificação estanque, formula no contexto da América Latina a aceitação projetada de uma imagem eurocêntrica como se nossa fosse, comprometendo a construção identitária e o enfrentamento dos problemas latino-americanos, diante da contaminação por premissas distorcidas e parciais, moldadas nas mentalidades. Na expressão de Quijano, “é tempo de deixar de ser o que não somos” (2000, p. 242).
Se por um lado o alcance da análise de Marcuse não contemplou a realidade tecnológica do século XXI, permeada pelo avanço da propagação da informação-contrainformação, e uma tecnologia cibernética muito mais desenvolvida, seu pensamento permanece atual e instigante. Todavia, parece pertinente a ressalva de Isabel Maria Loureiro, para quem a leitura da sociedade objeto de análise por Marcuse não pode ser aplicada por completo na atualidade. A seu ver é inegável a precarização do acesso aos bens, serviços e facilidades ofertados pela promessa do capitalismo, que não se oferecem como uma possibilidade à imensa parcela de despossuídos, que sequer satisfazem suas necessidades mais urgentes. (Loureiro, 1998, p. 163). Ellen Meiksins Wood (1996, p.122) formula crítica semelhante, quando pondera que a temática marcuseana desconsidera as crises do capitalismo que já se podiam perceber desde o pós guerra.
A despeito das críticas específicas, a obra de Marcuse ao retomar a luta de classes e a temática marxista, relacionando-a com o tema do inconsciente em Freud, permite a compreensão mais acurada sobre como se operam as relações de constituição e manutenção do poder e dos mecanismos de dominação na contemporaneidade.
As formas de dominação que estão arraigadas no plano das consciências e das subjetividades do indivíduo pressupõem como característica fundamental uma dificuldade ainda maior para que resistências ao poder instituído se implementem.
Para Foucault, todo poder pressupõe conjuntamente uma resistência a este poder. Em sua última fase teórica, o filósofo traz o tema da estética da existência, onde se lança a tratar de formas de resistência à construção normalizada das subjetividades e verdades, visando a constituição de um indivíduo que desenvolva as práticas do conhecimento de si e o cuidado de si, noções extraídas de temas da antiguidade greco-romana no sentido de se fazer da vida uma obra de arte. Para Cesar Candioto, a resistência em Foucault cria um sujeito singular, que “deixa de ser constituído somente na imanência das práticas que o sujeitam; ao mesmo tempo, torna-se sujeito e objeto para si próprio” (2008, p. 89).
Bourdieu também concebe em todo campo um espaço de resistência, e as possibilidades decorrentes de transformação da hegemonia dominante. Ressalta que “a destruição deste poder de imposição no desconhecimento supõe a tomada de consciência do arbitrário, quer dizer, a revelação da verdade objetiva e o aniquilamento da crença” (Bourdieu, 2002, p. 15). Em outra obra, Bourdieu é ainda mais enfático:
Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produto da dominação ou, em outros termos, seus pensamentos e suas percepções estão estruturados em conformidade com as estruturas mesmas da relação de dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são inevitavelmente atos de reconhecimento, de submissão. Porém, por mais exata que seja a correspondência entre as realidades, ou os processos de mundo natural, e os princípios de visão e de divisão que lhes são aplicados, há sempre lugar para uma luta cognitiva a propósito do sentido das coisas no mundo e particularmente, das realidades sexuais. A indeterminação parcial de certos objetos autoriza, de fato, interpretações antagônicas, oferecendo aos dominados uma possibilidade de resistência contra o efeito da ação simbólica. (BOURDIEU, 2012, p. 22)
Marcuse não deixa de se dedicar a tratar de possibilidades e alternativas calcadas na grande recusa em relação ao sistema dominante. Sustenta que a insurgência somente advém dos grupos marginalizados, minorias, e estão fora do processo democrático e das relações de consumo, e que portanto não existem para o pensamento unidimensional. A resistência, para Marcuse, passa pela atuação interconectada das lutas sociais e dos movimentos específicos dos excluídos. A força desta resistência, “está por trás de cada manifestação política pelas vítimas da lei e da ordem. O fato de eles se recusarem a jogar o jogo pode ser o fato que marca o fim de um período” (Marcuse, 2015, p. 240).
A resistência portanto está associada umbilicalmente a um processo de tomada de consciência em relação a todas as formas de dominação que atuam no campo das mentalidades, conforme a referência de Antonio Gramsci, quando abordava a filosofia da práxis “enquanto terreno no qual determinados grupos sociais tomam consciência do próprio ser social, da própria força, das próprias tarefas, do próprio devenir” (1978, p. 270). Ainda segundo Gramsci, a tomada de consciência deve ser um processo de efetiva elaboração crítica, fruto de uma auto-construção, no sentido de não se deixar de ser “o guia de si mesmo e não aceitar o exterior, passiva e servilmente” (op. cit, p. 12).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existir sob a égide de um poder que coloniza o campo das mentalidades, é não existir por si. O poder e a representação política serão o poder e a representação política dos dominantes, pelos dominantes, e para os dominantes. O poder político se constrói, assim, sob a falsa premissa de um antagonismo que em verdade é simbólico ou inexistente, eis que anexado a um discurso reprodutor de verdades unidimensionais.
Nesse contexto, a resistência às formas de poder que atuam sobre o inconsciente passa necessariamente pela identificação e a construção de um saber que não se origine da mera reprodução das verdades construídas pelos mecanismos de dominação. O entendimento do indivíduo, ou a luta cognitiva, segundo Bourdieu, em relação à sua própria posição enquanto classe, e enquanto sujeito de suas demandas próprias, ao invés de objeto das demandas alheias, é o percurso primeiro a ser trilhado neste devir de resistência.
Sem a autoconsciência enquanto parte de um processo de (re)construção identitária de raça, gênero, classe, campos específicos e cidadania, em seus movimentos de resistência, os jogos de produção de verdades permanecerão normalizando os paradigmas e marginalizando a heterodoxia. O indivíduo obedece a quem exerce o poder mesmo sem intenção deliberada ou racional de servir. Obedece-se ao poder na ilusão de que se busca os próprios interesses. A dominação do inconsciente se opera impondo quais sejam estes interesses.
Afirma-se, em conclusão, que após cinco séculos, a resposta ao questionamento de Etienne de la Boétie, sobre as razões pelas quais se obedece de forma servil aos tiranos, passou desde então a envolver novas complexidades. Às quais Foucault, Bourdieu e Marcuse, entre outros, e a seus modos, conseguem demonstrar. Vão desde a dificuldade de identificação da ilegitimidade do tirano, passando pela disseminação do poder no seio social e para além do Estado. Passam ainda pelas novas formas do capitalismo e da sociedade tecnológica. Mas sobretudo, envolvem a dominação em relações de poder que florescem no campo do inconsciente, e cujas raízes são tão arraigadas na constituição das subjetividades, que já se confundem com a própria identidade. Uma identidade que se traduz em mera reprodução hegemônica dos discursos morais e verdades pré-produzidas, que se incorporam a dóceis, habituadas e unidimensionais subjetividades.
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[1] Mestre e Doutorando em Direito (PUC-PR), área de concentração Direito Socioambiental e Sustentabilidade. Pós graduado em Direito Processual Civil (PUC-PR). Pós graduado em Direito Civil e Empresarial (PUC-PR). Graduado em Direito (PUC-PR). Advogado. E-mail: jlocatelli7@gmail.com.