SERVIÇO DE COMUNICAÇÃO MULTIMÍDIA

SERVIÇO DE COMUNICAÇÃO MULTIMÍDIA

1 de dezembro de 2021 Off Por Cognitio Juris

MULTIMEDIA COMMUNICATION SERVICE

Cognitio Juris
Ano XI – Número 37 – Dezembro de 2021
ISSN 2236-3009
Autor:
Lucirino Fernandes Santos[1]

Resumo: Analisa-se o direito humano de desenvolver serviço de comunicação multimídia nos termos do artigo 170, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988. Questiona-se: – em que medida há tipicidade penal de condutas em função da norma penal em branco do Artigo 183 da Lei nº 9.472/1997. Objetiva-se analisar a tipicidade material em função do conceito de serviço de telecomunicação e formas de exploração da atividade, investigando a incidência do Direito Penal e Direito Administrativo, bem como aplicação do princípio da insignificância. Pretende-se contribuir com o debate que orbita a legalidade da modulação normativa, recorrendo a um estudo interdisciplinar para aspectos do cumprimento regulamentar, garantia dos direitos humanos e identificação dos requisitos para não incidência do direito penal. Adota-se uma revisão bibliográfica, método hipotético-dedutivo e, como aporte, a Teoria do Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli. Espera-se que as ideias desenvolvidas fomentem o debate jurídico acerca da modulação da norma penal em branco e do poder legiferante anômalo das Agências Reguladoras. Conclui-se que o Direito Administrativo é suficiente para coibir condutas que geram conflitos de interesse em casos específicos diante do livre exercício da atividade econômica.

Palavras-Chave: Garantismo Penal; Necessidade de Pena; Princípio da Insignificância. Norma Penal em Branco.

Abstract: The human right to develop multimedia communication service is analyzed, based on the following concern: – To what extent there is criminal typicality of conduct due to the blank penal rule of Article 183 of Law n° 9.472/1997? The objective is to analyze the typicality, concept of telecommunication service and forms of exploration of the activity, investigating the incidence of Criminal Law and Administrative Law, as well as the application of the principle of insignificance. The aim is to contribute with the debate that orbits legality of normative modulation, using interdisciplinary studies, aspects of regulatory compliance, guarantee of human rights and identification of requirements in face of the principle of insignificance. A bibliographic review was adopted, a hypothetical-deductive method and, as a theoretical contribution, the theory of Guaranteeism model proposed by Luigi Ferrajoli. The expectations relies on the fact that the developed ideas may stir up juridical debate about blank criminal law modulation, from the anomalous power of regulatory agencies to create norms. It’s concluded that the Administrative Law is sufficient to curb behaviors that generate conflicts of interest in specific cases in view of the right to free exercise of economic activity.

Keywords: Guaranteeism; Punishment Needed; Principle of Insignificance; Blank Criminal Law.

1 INTRODUÇÃO

A tecnologia tem sido fator decisivo para o desenvolvimento social, econômico, cultural e político, servindo como instrumento para mitigação de problemas em diversas áreas com reflexos na garantia de direitos humanos.

Tudo é possível em face dos serviços de telecomunicações, notadamente aqueles que possibilitam conexão à internet, a exemplo do Serviço de Comunicação Multimídia (SCM), popularmente conhecido por internet banda larga fixa, vulgarmente e, quando prestado de forma clandestina, denominado de “gatonet”.

A internet existe em função de uma infraestrutura composta de bens corpóreos e incorpóreos que viabilizam a conexão de pessoas e a interconexão de coisas. Segundo a Evans (2011), em 2010, cerca de 12,5 bilhões de smartphones e tablets estavam conectados à internet, sendo que a população humana chegou a 6,8 bilhões, tornando o número de dispositivos conectados por pessoa superior a 1 (um) pela primeira vez na história. Hoje o cenário é de maior conectividade.

Estimava-se que no ano de 2020 seriam 50 bilhões de terminais conectados (CISCO, 2011), fenômeno já identificado como Internet of Things (IoT) e que já é uma realidade. Assim, percebe-se que a prestação de serviços que possibilitam acesso à internet é tema relevante, sendo dever estatal mitigar o fosso digital por meio da inclusão tecnológica, bem como coibir práticas que possam prejudicar quem desenvolver essa atividade econômica.

A exploração de atividades de telecomunicações que viabiliza o acesso à internet condicionada é regulada pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), sendo a clandestinidade do serviço e o uso não autorizado de radiofrequência ilícitos penais nos termos do Art. 183 da Lei n° 9.472/1997, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT). Nesse sentido, busca-se perscrutar conceitos e implicações em ramos do Direito para avançar na valoração da tipicidade material do crime, especialmente para responder o seguinte questionamento: – em que medida há tipicidade do Art. 183 da Lei nº 9.472/1997 em função de condutas que modulam esta norma penal em branco?

Objetiva-se analisar a tipicidade material em função do conceito de serviço de telecomunicação e formas de exploração da atividade clandestina, investigando a incidência do Direito Penal e Direito Administrativo, bem como a aplicação do princípio da insignificância, utilizando-se como aporte a Teoria do Garantismo Penal proposta por Luigi Ferrajoli.

Em função do objetivo e problema, adotou-se método hipotético-dedutivo. Conforme Popper (1974, p. 33), partindo-se de uma proposição, “[…] a partir de uma ideia nova, formulada conjunturalmente e ainda não justificada de algum modo – antecipação, hipótese, sistema teórico ou algo análogo – podem-se tirar conclusões por meio de dedução lógica” (POPPER, 1974, p. 33). Assim, formula-se como hipótese que o Direito Administrativo é suficiente para regular conflitos de interesse, afastando a incidência do Direito Penal por ser última razão (ultima ratio) de atuação estatal.

A escolha das condutas associadas ao SCM se dá em função de ser um serviço de interesse coletivo com maior incidência de crimes, podendo ser facilmente executado por pessoa natural ou jurídica.

Verifica-se relevância jurídica e social do estudo uma vez que a consequência da constatação da atividade clandestina implica em instauração de processo administrativo e criminal para o infrator, com interrupção do serviço aos usuários-consumidores, implicando no exercício de direitos fundamentais proporcionados pelo ambiente virtual da internet, como acesso à informação, liberdade de expressão, oportunidades laborais e educacionais.

Dividiu-se o estudo em três seções. Na primeira, apresenta-se o que é a exploração do SCM, em que medida este se diferencia de outros serviços e como se dá a exploração da atividade. Já na segunda seção, apresentam-se os aspectos relacionados ao tipo penal, discutindo-se os bens jurídicos tutelados pelo art. 183 da Lei n° 9.472/1997 e as implicações da atividade clandestina. Por fim, a terceira seção, realiza a análise da tipicidade penal em função do princípio da insignificância, convergindo para a compreensão de uma abordagem garantista.

2 O SERVIÇO DE COMUNICAÇÃO MULTIMÍDIA NO BRASIL

Nos termos do Art. 21, XI, da Constituição de 1988, compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações no território brasileiro. Com a edição da Lei n° 9.472/1997, Lei Geral de Telecomunicações (LGT), criou-se a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) com a missão de organizar a exploração dos serviços supracitados que inclui, entre outros aspectos, o disciplinamento e a fiscalização da execução, comercialização e uso dos serviços e da implantação e funcionamento de redes de telecomunicações, bem como da utilização dos recursos de órbita e espectro de radiofrequências (BRASIL, 1997).

A LGT conceitua serviço de telecomunicações como o conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação (art. 60, caput, da LGT), compreendendo-se o termo “atividade” como a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza (art. 60, §1°, LGT). Diante deste conceito, o diploma estatui a necessidade de prévia autorização para exploração dos serviços supramencionados nos termos do art. 131 da LGT.

A Anatel criou modalidades de serviço definidas em função de sua finalidade (comunicação fixa ou móvel), âmbito de prestação (local, estadual, nacional), meio de transmissão (radiofrequência, satélite, cabeamento, fibra ótica, etc.), interesse de exploração (coletivo ou privado), dentre outros atributos (Art. 69, LGT). Por conseguinte, serviço de telecomunicação é gênero que comporta espécies. O SCM, conhecido como banda larga fixa, é um dos exemplos:

Serviço fixo de telecomunicações de interesse coletivo, prestado em âmbito nacional e internacional, no regime privado, que possibilita a oferta de capacidade de transmissão, emissão e recepção de informações multimídia, utilizando quaisquer meios, a assinantes dentro de uma área de prestação de serviço (ANATEL, 2013)

O SCM viabiliza um meio de comunicação, de forma que seja possível transmitir/receber informações multimídia (sinal de voz, vídeo, dados, imagens, textos) para qualquer usuário do planeta (fixo ou móvel) desde que ambos estejam com terminais conectados à internet.

Portanto, o prestador de atividade de telecomunicações oferta um serviço de interesse coletivo[2], ou seja, é um fornecedor à luz do conceito preconizado no Art. 3° da Lei nº 8.078/1990, o Código de Defesa do Consumidor – CDC, sendo o empresário identificado com o fornecimento de um meio de comunicação, aduzindo uma relação gênero-espécie.

Em face da Ementa Constitucional n° 8/1995, o constituinte reformador entendeu por distinguir serviço de radiodifusão[3] de serviço de telecomunicações. Assim, a Radiodifusão Sonora em Frequência Modulada, a Rádio Comunitária, a Televisão Aberta Digital, a Retransmissão de TV, entre outros serviços outorgados pelo Ministério das Comunicações, não se confundem com serviço de telecomunicação, como o SCM.

Feita a discrepância inicial, o SCM também não se confunde com o Serviço Móvel Pessoal – SMP[4] ou o Serviço Telefônico Fixo Comutado – STFC[5]. Ressalta-se que o fato de viabilizar acesso à internet não caracteriza o SCM[6], porque, este não se confunde com o conteúdo que transporta, com os terminais dos usuários[7], tampouco, com os serviços de aplicações de internet[8].

Geralmente, quando um consumidor contrata o SCM deseja conectar dispositivos para acessar a internet, contudo, o processo de habilitação do terminal (computador, smartphone, etc.) para envio e recebimento de pacotes de dados, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP, pode ser feito por outro fornecedor, como um provedor de Serviço de Valor Adicionado (SVA). Disso resulta que SCM também não se confunde com o SVA[9], pois, o primeiro (principal) existe independentemente do segundo, ou seja, extinguindo-se o SCM (principal) não existirá o segundo (acessório), critério simples para constatar que o SVA não se confunde com nenhum serviço de telecomunicações

O SCM pode ser realizado utilizando qualquer meio de comunicação (fibras óticas, cabos do tipo par trançado, dentre outros meios confinados), inclusive, o espectro de radiofrequência, este merecedor de atenção, pois, caso utilizado sem autorização, pode também caracterizar o ilícito penal do art. 183 da LGT.

O espectro de radiofrequência compreende a faixa eletromagnética de 9kHz a 300GHz, sendo amplamente utilizado nas radiocomunicações em todo o mundo. A administração deste recurso limitado, bem escasso, consiste em atribuir faixas definidas em tratados e acordos internacionais, notadamente no âmbito da União Internacional de Telecomunicações (UIT). No Brasil, a Anatel é responsável pela edição do plano de atribuição, destinação e distribuição de faixas de frequências, contendo o detalhamento do uso daquelas associadas aos diversos serviços.

3 O USO DAS RADIOFREQUÊNCIA NO SERVIÇO DE COMUNICAÇÃO MULTIMÍDIA

A Anatel coordena o uso das radiofrequências de forma a evitar degradação ou o mau funcionamento das redes de telecomunicações. Com efeito, o art. 159 da LGT informa que “na destinação de faixas de radiofrequência serão considerados o emprego racional e econômico do espectro, bem como as atribuições, distribuições e consignações existentes, objetivando evitar interferências prejudiciais” (BRASIL, 1997).

Pela importância deste bem escasso, o Legislador entendeu por tutelar seu uso no Art. 163 da LGT, informando a necessidade de prévia outorga, contudo, a lei estabeleceu faixas que prescindem de autorização, como nos casos de equipamentos de radiação restrita (Art. 163, § 2°, LGT), tratando-se de transmissores ou transceptores utilizados em aplicações ordinárias, como exemplo, uso de microfone sem fio, telefone sem fio, controles remotos de portões ou brinquedos, alarmes de veículos, sistemas de sonorização de ambientes, redes locais sem fio (redes Wi-Fi). Ressalta-se que há equipamentos para exploração do SCM que podem fazer uso de radiação restrita.

O uso de equipamentos de radiação restrita ganhou novos contornos em face da edição da Resolução Anatel nº 680/2017, uma vez que criou duas modalidades de prestação. Na primeira modalidade, o SCM é prestado com dispensa de autorização, desde que respeitados três requisitos: a) o fornecedor possuir menos de 5 (cinco) mil usuários-consumidores; b) o fornecedor utilizar equipamentos de radiação restrita; e c) o fornecedor realizar comunicação prévia à Anatel.

Por sua vez, a segunda modalidade, sem dispensa de autorização, ocorre nas situações em que o fornecedor utiliza radiofrequência licenciável (obtida a título oneroso), bem como nas situações em que possuir mais que 5 (cinco) mil ou mais usuários-consumidores (ANATEL, 2019a).

Esclarecendo os objetivos das alterações normativas, a Anatel publicou que:

As alterações normativas recentemente aprovadas têm o condão diminuir os entraves burocráticos e reduzir irregularidades na prestação de serviços de telecomunicações, facilitando o acesso dos interessados em tornarem-se prestadores do Serviço de Comunicação Multimídia. Em particular, trata-se de medidas que facilitarão que prestadoras de porte reduzido ofereçam serviços de telecomunicações a usuários que muitas vezes não são atendidos por outras prestadoras, ao mesmo tempo contribuindo para a ampliação da justa competição, para a massificação de serviços de telecomunicações e para o estímulo a investimentos em qualidade como diferencial de mercado. Ressalta-se, ainda, que com a alteração normativa há um ambiente mais propício para que a Agência tenha efetivo conhecimento da existência de empresas que hoje não constam em sua base de dados, facilitando a fiscalização e o controle. (ANATEL, 2019b)

Percebe-se que a Agência Reguladora fez bem ao realizar atividade de fomento e desburocratização na outorga do SCM. Interessante notar que tal medida administrativa gerou reflexos na esfera penal, afastando condutas que outrora integraram o tipo penal, tema analisado a seguir.

4 DESENVOLVIMENTO CLANDESTINO DO SERVIÇO DE COMUNICAÇÃO MULTIMÍDIA

Entender o desenvolvimento clandestino do SCM requer previamente um breve estudo acerca do conceito de tipo penal, construção imaginária, pois, “[…] ele é um modelo abstrato de conduta, formulado através de expressões linguísticas. Seu fim é individualizar as condutas que são relevantes no âmbito do Direito Penal, cominando à sua realização uma pena” (BRANDÃO, 2015, p. 59).

Del Rosal e Vives Antón explicam que a análise do tipo penal envolve três planos: o plano valorativo, o plano da linguagem e o plano da realidade.

No plano valorativo estuda-se o tipo com referência ao bem jurídico; este plano tem bastante relevância porque, se a conduta, a primeira vista típica, não violar o bem jurídico, tem a sua tipicidade excluída pelo princípio da insignificância. O segundo plano leva em conta que a descrição da conduta é feita através de elementos linguísticos, sendo estas expressões linguísticas que, com maior ou menor acerto, tentam descrever, com as devidas notas de abstração e generalidade, a conduta proibida. O último plano de análise é o da realidade. Nele, estuda-se o substrato material do tipo, que é representado por diversos elementos do fato incriminado: sujeito ativo, sujeito passivo, objeto material, elementos objetivos e subjetivos da conduta (DEL ROSAL; VIVES ANTON, 1999 apud BRANDÃO, 2015, p. 60)

Diante dos planos supramencionados, pode-se compreender que, ao criminalizar o desenvolvimento clandestino de atividade de telecomunicação como o SCM, buscou-se tutelar algum  bem jurídico na norma do Art. 183 e 184 da Lei 9.472/1997, in verbis:

Art. 183. Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação: Pena – detenção de dois a quatro anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

(…)

Art. 184. Parágrafo único. Considera-se clandestina a atividade desenvolvida sem a competente concessão, permissão ou autorização de serviço, de uso de radiofrequência e de exploração de satélite. (BRASIL, 1997)

Por outro lado, percebe-se que sem os complementos normativos para integrar a expressão “atividades de telecomunicação”, bem como as regras de dispensa de “uso de radiofrequência”, o tipo penal do Art. 183 da LGT não possui eficácia normativa, ou seja, tornar-se espécie de norma simbólica (NEVES, 2011). Estar-se diante de uma norma penal em branco heterogênea integrada por resoluções da Anatel. Diz-se heterogênea diante do complemento normativo não emanar do Poder Legislativo, mas sim de fonte normativa diversa (CUNHA, 2015, p. 50).

Masson (2015), lembrando lições de Franz Von Liszt, aduz que normas penais em branco são como “corpos errantes em busca de alma”, existem na ordem jurídica, mas não podem ser aplicadas em razão de sua incompletude.

A lei penal em branco é também denominada de cega ou aberta e pode ser definida como a espécie de lei penal cuja definição da conduta criminosa reclama complementação, seja por outra lei, seja por ato da Administração Pública. O seu preceito secundário é completo, o que não se verifica no tocante ao primário, carente de implementação (MASSON, 2015, p. 163)

Refletindo sobre o poder legiferante que promove a complementação normativa, Cunha (2015) afirma que, modernamente, em face do Princípio da Legalidade (art. 5º, II, CF/1988)[10], parte da doutrina questiona a constitucionalidade desta espécie de norma[11], notadamente a subespécie heterogênea em virtude de possível violação ao Princípio da Reserva Legal ou mesmo do Princípio da Tripartição dos Poderes.

O tema conduz a posicionamentos doutrinários discrepantes. Por exemplo, Zaffaroni e Pierangeli (2009, p. 452) ensinam que o poder legiferante que gera o complemento da norma penal em branco deve “[…] respeitar a natureza das coisas porque, do contrário, através de tal recurso pode ser mascarada uma delegação de competências legislativas penais”. Assim, evidencia-se uma crítica ao poder anômalo legiferante de agências reguladoras, como a autarquia especial Anatel.

É preciso destacar que as agências reguladoras no modelo brasileiro são caracterizadas pela autonomia e independência, contudo, este último atributo deve ser entendido em termos compatíveis com o regime constitucional e a independência em comento se revela com maior intensidade tão somente em relação ao Poder Executivo (DI PIETRO, 2014), entretanto, verifica-se no caso de certas autarquias especiais, como a Anatel, há um verdadeiro poder legiferante anômalo à luz de matérias técnicas. Eis o alerta:

[…] das características que vêm sendo atribuídas às agências reguladoras, a que mais suscita controvérsias é a função reguladora, exatamente a que justifica o nome da agência. Nos dois tipos de agências reguladoras [discorrendo sobre Anatel e Anvisa], a função reguladora está sendo outorgada de forma muito semelhante à delegada às agências reguladoras do direito norte-americano; por outras palavras, a elas está sendo dado o poder de ditar normas com a mesma força de lei e com base em parâmetros, conceitos indeterminados (DI PIETRO, 2014, p. 545)

Apesar de pensamentos contrários, o entendimento majoritário da doutrina inclina-se pela constitucionalidade da norma penal em branco, contudo, mesmo havendo fundamento jurídico-constitucional para a delegação de função normativa, o poder em comento deve ser exercido com prudência e em sintonia com a Carta “Cidadã” de 1988, notadamente para evitar afronta aos direitos humanos fundamentais. Questiona-se então: – quais bens jurídicos o Legislador quis proteger em face do objeto do crime do Art. 183 da LGT?

Cunha (2015) esclarece que o objeto de um crime contempla duas perspectivas: objeto material e objeto jurídico. O primeiro é a pessoa ou coisa sobre a qual recai a conduta criminosa e o segundo revela o interesse tutelado pela norma, ou seja, o bem jurídico protegido pelo tipo penal.

Acerca do objeto material do crime preconizado no art. 183 da Lei n° 9.472/1997, identifica-se o espectro radioelétrico ou a pessoa que sofre algum dano em face da atividade clandestina. Já em relação aos bens jurídicos, identifica-se: a segurança dos meios de comunicação; e o monopólio da União para exploração dos serviços de telecomunicações. Ressalta-se que os bens em comento não foram tratados na exposição de motivos da Lei n° 9.472/1997, bem como, não há estudo aprofundado na doutrina pátria sobre o tema. Basicamente, tais ideias vêm da jurisprudência, em especial, julgados emanados dos Tribunais Federais[12].

A tutela da segurança dos meios de comunicação visa primordialmente proteção das redes de telecomunicação contra interferência prejudicial gerada pela atividade clandestina. Por sua vez, a tutela do monopólio para exploração do serviço no Brasil é da União, cabendo a Anatel autorizar qualquer interessado que queira desenvolver este tipo de atividade, evidentemente se respeitados requisitos estabelecidos.

Conforme já analisado, sem autorização para exploração do SCM ou autorização de radiofrequência, estar-se diante da exploração clandestina. Ainda, para explorar regularmente o SCM é necessário recolher diversos tributos, sob pena de crime de sonegação fiscal nos termos do Art. 1º da Lei nº 4.729/ 1965.

As implicações tributárias decorrem do dever de pagar o licenciamento das estações de telecomunicações, sendo devida a Taxa de Fiscalização de Instalação (TFI) e, em caso de uso de radiofrequência, o Preço Público pelo Direito de Uso de Radiofrequências (PPDUR), bem como, anualmente, Taxa de Fiscalização de Funcionamento (TFF). Ainda, existe a necessidade de recolher aos cofres públicos a Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP) e a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (CONDECINE), incidindo ainda a COFINS (3%), o ICMS (de 25% a 37%), PIS (0,65%), imposto de renda sobre pessoas jurídicas (15%), dentre outros. Segundo site TELECO (2017), o Brasil é um dos países com maior carga tributária sobre os serviços de telecomunicações do mundo, fato que representa entrave ao ingresso de novos prestadores no setor.

Assim, a atividade clandestina pode gerar concorrência desleal em face do agente do tipo conseguir praticar preços inferiores àqueles comercializados por outorgados, haja vista não ter que suportar a carga tributária supramencionada, em sua totalidade ou em parte, bem como não ter que passar pelo processo burocrático para uma operação legal.

Ainda, o serviço clandestino, caso use radiofrequência, ainda pode gerar interferência prejudicial em atividades devidamente autorizadas, causando prejuízo às outras comunicações de interesse coletivo ou mesmo risco à vida de pessoas, por exemplo, nos casos em que a interferência afetar o Serviço Móvel Aeronáutico[13], cabendo esta análise sempre no caso concreto.

Por fim, a atividade clandestina comumente produz denúncias perante o Órgão regulador[14], provocando a atuação da Anatel, criando-se custos para a Administração Pública pela necessidade de mover o aparado administrativo para coibir a prática delituosa, ação que comumente desemboca na interrupção do serviço com lacração e apreensão dos equipamentos, sendo instaurado processo administrativo nos termos do art. 173 da LGT e representação criminal, uma vez que o crime é de ação penal pública incondicionada (Art. 185 da LGT).

Ressalta-se que a interrupção do serviço acarreta própria interrupção do acesso à internet, gerando efeitos aos usuários-consumidores, mesmo estando adimplentes perante o fornecedor gerando violações ao microssistema da Lei n° 8.078/1990, Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Assim, verifica-se que a atividade ilícita objeto do presente estudo afeta diversas relações jurídicas e o acesso à internet dos usuários pode ser interrompido, gerando danos a esta parte vulnerável, surgindo responsabilidade à luz do Art. 14 do CDC.

Por fim, diante da interrupção da atividade ilícita, verifica-se que o direito humano de acesso à internet, bem como daqueles decorrentes do uso do ambiente virtual, resta prejudicado, nos termos do Art. 7º, caput, da Lei n°12.965/2014 (Marco Civil da Internet).

Do exposto, é necessário compreender a modulação do tipo penal em função do poder legiferante anômalo da Anatel e dos efeitos gerados diante de diversas relações jurídicas de direito público e privado já citadas.

5 A NORMA PENAL EM BRANCO HETEROGÊNEA MODULADA

A ideia formal de crime consiste em todo fato realizado pela pessoa humana que seja vedado pela norma penal. Materialmente, o crime pode ser compreendido como todo fato humano que afronta um interesse capaz de comprometer as condições de existência, de conservação e de desenvolvimento da sociedade, ou seja, diante da existência de lesão aos bens jurídicos relevantes (BETTIOL, 2000 apud GRECO, 2015).

Ocorre que tais ideias não refletem de forma satisfatória o conceito de crime e, na tentativa de escapar das fragilidades conceituais, a doutrina majoritária moderna[15] compreende o conceito de crime sob a análise de três elementos: o fato típico (tipicidade), a ilicitude (antijuridicidade) e a culpabilidade, conforme demostrado a seguir.

A conduta humana como requisito primeiro à ideia de crime apareceu com Berner em 1857, a ideia de antijuridicidade foi desenvolvida por Ihering em 1867 à luz Direito Civil, sendo introduzida na esfera penal por Von Liszte Beling em 1881 e a culpabilidade tem origem nas lições de Merkel em face dos estudos de Binding em 1877, nascendo a ideia de tipicidade no início do século XX em face de estudos de Beling em 1906 (PRADO, 1999 apud GRECO, 2015). Deste cenário, hoje temos o conceito analítico de crime.

O fato típico constitui-se de uma conduta (dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva) que produz um resultado naturalístico nos crimes material e formal[16]. O liame entre a conduta e o resultado é denominado de nexo de causalidade, contudo, restará configurado o crime somente se houver a chamada tipicidade, ou seja, subsunção da conduta ao modelo abstrato previsto no tipo penal segundo o princípio da legalidade (nullum crimen sine lege). Neste sentido, estar-se diante de uma tipicidade formal, contudo, a tendência moderna é conceituar a tipicidade também pelo aspecto material, inclusive em uma perspectiva conglobante (CUNHA, 2015).

A tipicidade material diz respeito ao confronto entre a conduta do agente e a lesão aos bens jurídicos relevantes para a sociedade. Por conseguinte, sem esta, não há que se falar em conduta típica, não há que se falar em crime.

Desta concisa explicação, percebe-se que a tipicidade material é capaz de afastar a incidência do Direito Penal se verificado, no caso concreto, a inexistência de afronta aos bens jurídicos, revelando assim o Princípio da Insignificância, amplamente difundido pela doutrina e pela jurisprudência pátria, mas que tem origem no Direito Romano, sendo introduzido no sistema penal em 1964 pelo jurista alemão Claus Roxin, informando que determinadas condutas devem ser afastadas da aplicação do Direito Penal, isto diante de danos não causam lesão significativa aos bens jurídicos.

Nucci (2012) considera que o referido princípio é uma excludente supralegal de tipicidade. Por sua vez, Manas (1994), aduzindo a relevância da ideia de insignificância, ensina que:

Ao realizar o trabalho de redação do tipo penal, o legislador apenas tem em mente os prejuízos relevantes que o comportamento incriminado possa causar à ordem jurídica e social. Todavia, não dispõe de meios para evitar que também sejam alcançados os casos leves. O princípio da insignificância surge justamente para evitar situações dessa espécie, atuando como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático político- criminal da expressão da regra constitucional do nullum crímen síne lege, que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal (MAÑAS, 1994, p.56 apud GRECO, 2015, p.115)

O Supremo Tribunal Federal consagrou quatro vetores subjetivos a serem observados para a aplicação do princípio da insignificância, a saber: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Percebe-se que os requisitos somente podem ser avaliados em face do caso real, bem como requerem desenvolvimento de hermenêutica para fins de exercício de jurisdição.

Sobre a atividade clandestina do SCM, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou a Súmula n° 606/2018, estabelecendo a não aplicação do princípio da insignificância em casos de transmissão clandestina de sinal de internet via radiofrequência (fato típico previsto no art. 183 da Lei n. 9.472/1997), contudo, o próprio poder legiferante da Anatel revela posicionamento que conflita com a referida súmula, bem como se alinha aos requisitos estabelecidos pelo STF, aduzindo reflexões acerca da uma hermenêutica para uma política de descriminalização, isto em função de modulações do tipo penal.

Para exemplifica, imagine-se o seguinte caso: uma pessoa decide instalar uma infraestrutura de telecomunicações para ofertar SCM em uma comunidade em que inexiste o serviço, sendo o meio de comunicação realizado o uso de radiofrequência com equipamentos de radiação restrita, tudo de forma clandestina.

Depreende-se que o desenvolvimento clandestino emprega pessoas, movimenta a economia local, reduz o fosso digital, viabiliza efetividade de direitos humanos e exercício de direitos fundamentais, inclusive, colaborando para exercício de direitos sociais (oportunidade educacional diante do ensino a distância, oportunidade de trabalho nas chamadas profissões virtuais, inclusão da pessoa com deficiência, entre outros). Percebe-se que a atividade caracterizada como ilícito penal promove direitos humanos.

O caso supramencionado, não obstante hipotético, representa exemplo de situações em que o fornecedor do serviço pode ser sancionado pelo Direito Penal e pelo Direito Administrativo de forma concomitante, algo que gerou mudança no âmbito regulatório, produzindo assim o afastamento do Direito Penal por normas da Anatel.

Com efeito, analisando-se as inovações introduzidas pela Resolução Anatel nº 680/2017, verifica-se que, dependendo da quantidade de consumidores (menos de 5 mil) e do uso de certas faixas de frequências (radiação restrita), o agente não é mais afetado pelo Direito Penal, uma vez que a matéria passou a ser tratada exclusivamente no âmbito de regulação administrativa.

A Anatel, ao editar a resolução supramencionada, buscou mitigar entraves burocráticos, reduzir irregularidades na prestação da banda larga fixa e estimular o ingresso de novos prestadores, em especial, pessoas jurídicas de porte reduzido.

Percebe-se como eixo central das medidas a atividade administrativa de fomento, com reflexos na universalização do acesso à internet no território brasileiro.

Por outro lado, evidencia-se que o critério adotado pela Anatel na Resolução nº 680/2017 não tem qualquer relação com os bens jurídicos reconhecidos e tutelados em função da prestação jurisdicional penal (segurança dos meios de comunicação e o monopólio da União para exploração dos serviços de telecomunicações). Por conseguinte, a Anatel, detentor de poder legiferante anômalo, descriminalizou condutas, situação que conduz à reflexão da necessidade de incidência do Direito Penal em relação as outras condutas que configuram o crime do Art. 183 da LGT.

De fato, com a inovação da Resolução Anatel nº 680/2017, um fornecedor de SCM clandestino pode, de um dia para outro, tornar-se criminoso em função da variação da sua base de consumidores (referência 5 mil), motivo pelo qual se revela uma norma penal em branco modulada.

O termo “modulação” está associado às ciências naturais empíricas, em especial a Física, informando um “processo que envolve dois sinais ondulatórios, no qual uma variação na amplitude, frequência, intensidade ou fase de um deles implica uma mudança correspondente no outro sinal” (HOUAISS, 2009).

Metaforicamente, os critérios da Resolução Anatel nº 680/2017 modulam a norma penal em branco do art. 183 da LGT e causa espécie. É que a modulação em comento gera a integração do tipo penal que ora criminaliza e ora descriminaliza conduta em função de uma base de consumidores, fato jurídico inédito na ordem vigente.

No caso, a modulação do tipo do Art. 183 da LGT, realizada pela Resolução Anatel nº680/2017, leva em conta somente questões de natureza econômica à luz de um critério de base de consumidores implicando em atração do Direito Penal.

Por outro lado, percebe-se que o desenvolvimento clandestino do SCM por meio de equipamentos de radiação restrita não afronta os bens jurídicos, denotando: a) ausência de periculosidade social da ação, uma vez que a atividade promove direitos fundamentais e cidadania; b) reduzido grau de reprovabilidade da conduta, isto evidenciado pela promoção do direito humano ao acesso à internet; c) inexpressiva da lesão jurídica em face do uso de frequências de radiação restrita, bem como pela própria dispensa de outorga do SCM pelo Regulador; e d) a conduta é minimamente ofensiva, uma vez que atende ao interesse público, notadamente em face de mitigar o fosso digital. Eis presentes os requisitos para aplicação do princípio da insignificância nos termos do STF.

A análise supramencionada remete à observância de uma política criminal de intervenção mínima, bem como se coaduna com o garantismo penal proposto por Luigi Ferrajoli (2002), que consiste em pensar as estruturas de poder à luz de direitos superiores identificados em normas jurídicas, no caso, nossa Constituição, uma vez que nela os direitos fundamentais são colocados em posição central, sendo a dignidade humana princípio e fundamento republicano (Art. 1°, III, CF/1988). Assim, fazer atuar o Direito Penal quando o Direito Administrativo tem capacidade de dar respostas a condutas consideradas ilícitas não é o caminho mais adequado em um Estado Democrático de Direito.

A ideia garantista decorre da compreensão de que se estabeleçam “[…] critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a “defesa social” acima dos direitos e garantias individuais” (CARVALHO, 2001 apud GRECO, 2015, p. 10), inferindo-se o caráter fragmentário do Direito Penal e revelando que o Princípio da Legalidade deve nortear substancialmente os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Ferrajoli (2002) lembra que a legalidade representa norma para identificação dos desvios da incidência do Direito Penal com escopo de assegurar o grau máximo de racionalidade e de limitação do poder punitivo estatal, contra a arbitrariedade em favor da tutela da pessoa humana.

De fato, três axiomas do garantismo permite compreender que a lei penal deve ser expressa (nullum crimen sine lege), aplicada se houver efetivamente ocorrido ilícito penal (nulla poena sine crimine) em função de lesões efetivas aos bens jurídicos, devendo ser aplicado somente em condutas que afrontem materialmente tais bens e caso seja fundamental ao convívio em sociedade (nulla lex (poenalis) sine necessitate). Não parece ser este o caso da atividade clandestina do SCM, inclusive, cabendo uma análise prudente em função de qualquer conduta que venha a modular o Art. 183 da LGT.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisou-se a tipicidade penal do Artigo 183 da Lei Geral de Telecomunicações (LGT), Lei nº 9.472/1997, com reflexos no exercício do direito econômico de desenvolver o Serviço de Comunicação Multimídia (SCM), tudo em sintonia com o Artigo 170, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988, que ratifica o direito ao livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

A atividade de prestar o SCM requer prévia autorização da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), sob pena da conduta ser considerada criminosa em face do Art. 183 da LGT, norma penal em branco que passou a ser regulada pela Resolução Anatel nº 680/2017.

Diante da importância da atividade para sociedade, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) buscou, administrativamente, mitigar entraves burocráticos e estimular a legalização de prestadores do SCM, fato jurídico que acabou afastando a incidência do Direito Penal diante de critérios materializados na Resolução nº 680/2017, a saber: a) o fornecedor possuir menos de 5 (cinco) mil usuários-consumidores; b) o fornecedor utilizar equipamentos de radiação restrita; e c) o fornecedor realizar comunicação prévia à Anatel.

Evidenciou-se no estudo que o legislador, ao criar o Art. 183 da LGT, buscou tutela 2 (dois) bens jurídicos: a segurança dos meios de comunicação e o monopólio da União para exploração dos serviços. Logo, inexistindo uma lesão concreta aos referidos bens, depreende-se que o Direito Penal deve ser afastado. Com efeito, o poder anômalo das agências reguladoras (caso da Anatel) revela-se intenso, capaz de esvaziar a eficácia social de normas produzidas pelo Poder Legislativo (caso do Art. 183 da LGT).

Por outro lado, depreende-se que o Direito Penal não deve ser pensado como resposta a qualquer problema social, razão pela qual há incidência do Princípio da Insignificância à luz dos critérios estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal. Tal entendimento se coaduna com o Princípio da Intervenção Mínima inerente ao Direito Penal, imprimindo reflexões acerca do poder legiferante anômalo do Regulador diante dos princípios da Legalidade, Tripartição dos Poderes e Reserva Legal.

Com efeito, compreende-se que o poder de polícia administrativa da Anatel é capaz de combater os ilícitos que envolvem atividades irregulares no SCM, aduzindo respostas aos conflitos de interesse que orbitam o tema, por exemplo, pela possibilidade de interrupção do serviço, com lacração e apreensão dos equipamentos utilizados.

Por fim, não se quer negar ou diminuir a importância do Direito Penal, tampouco, o papel da Anatel. Buscou-se no presente estudo gerar reflexões acerca do dever-poder de descriminalizar condutas a partir da esfera administrativa em função de bens jurídicos. Nesse aspecto, o critério objetivo de “cinco mil usuários-consumidores” informa fato jurídico estranho ao Direito Penal, pois, cria possibilidade de haver tipicidade penal em função de um fato variável no tempo ou sob aspectos econômicos, especialmente em cenários fortuitos, como é o caso da pandemia.

O critério supracitado gera uma implicação que causa espécie. Ao exercer o direito humano de desenvolver o SCM, uma pessoa poderia, durante um único dia, realizar o crime do Art. 183 da LGT diversas vezes, isso em função da variação de sua base de clientes superar cinco mil consumidores, razão pela qual evidencia-se uma norma penal em branco modulada.

Por fim, destaca-se que a internet é possível diante de uma infraestrutura composta de bens corpóreos e incorpóreos e o SCM é um dos principais serviços que viabiliza esse ambiente virtual no Brasil, aduzindo estreita relação com desenvolvimento econômico, social, político e cultural.

Com efeito, a desburocratização dada pela Resolução Anatel nº 680/2017 representou um bom caminho para fomentar o acesso à internet, contudo, a norma penal em branco modulada informa certa insegurança jurídica que precisa de uma análise futura, especialmente diante de casos julgados pelo Poder Judiciário.

Referências

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[1] Graduado em Direito. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas. Membro da Comissão de Justiça Restaurativa e Comissão de Ensino Jurídico na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/PB). Membro do Núcleo de Pesquisas e Estudos sobre a Criança. Servidor público federal na Agência Nacional de Telecomunicações. Professor de Direito. Interessados em temas interdisciplinares envolvendo Ética, Política e Direitos Humanos no contexto das Tecnologias de Informação e Comunicação.

[2] Serviço de interesse coletivo é aquele cuja prestação deve ser proporcionada a qualquer interessado em condições não discriminatórias (Art. 17 da Resolução Anatel n° 73/1998).

[3] A radiodifusão é regulada no Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/1962). Ressalta-se que sanções ligadas à LGT e ao CBT são distintas. O art. 183 da Lei nº 9.472/1997 prevê pena de detenção de dois a quatro anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Já o Art. 70 do CBT prevê pena de detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro.

[4] É a chamada Internet banda larga móvel definida no Art. 4° da Resolução Anatel nº 477/07 como “serviço de telecomunicações móvel terrestre de interesse coletivo que possibilita a comunicação entre Estações Móveis e de Estações Móveis para outras estações”. Uma das características do serviço é a dispensa de contratação de um Provedor de Serviços de Conexão à Internet.

[5] Trata-se da telefonia fixa por voz que possibilita o acesso comutado à Internet (algo em desuso). Nesta forma, o assinante tem possibilidade de acessar a Rede mediante de contratação de um Provedor de Serviços de Conexão à Internet, responsável pela interligação do terminal, com a desvantagem da conexão possuir baixo poder de transferência de dados, teoricamente 56kbps.

[6] O SCM, o SMP e o STFC possibilitam acesso à internet, contudo, são serviços distintos.

[7] Exemplificando, são computadores, servidores de rede, terminais de resposta automática, sensores em geral.

[8] Nos termos do Art. 5°, VII, da Lei n° 12.965/2014, as aplicações de internet representam o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet.

[9] O Art. 61 da Lei nº 9.472/1997 define o SVA como “a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações” (BRASIL, 1997). Como exemplo de SVA no contexto ora desenvolvido temos a internet discada, ofertada como serviço adicional ao serviço de telefonia fixa (STFC).

[10] De acordo com o art. 5º, II, da Constituição Federal, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (BRASIL, 1988).

[11] Ressalta existência de doutrina minoritária (Rogério Greco, Paulo Queiroz, dentre outros) que questiona a constitucionalidade da norma penal em branco.

[12] Exemplo é o julgado da 2ª Turma, decisão do Relator Desembargador Federal Fernando Braga, do TRF-5 no RSE: 1611620124058309, bem como, verifica-se na decisão do magistrado Márcio Mesquita no âmbito do TRF-3 na ACR: 8610 SP 0008610-44.2009.4.03.6103.

[13] Trata-se de serviço que possibilita a transmissão e recepção de informações por meio de radiocomunicação entre estações de aeronave, estações aeronáuticas, dispositivos de segurança e salvamento.

[14] Segundo Relatório Anual da Anatel de 2015, naquele ano houve tratamento de 1,8 mil denúncias, sendo: 30,68% denúncias de uso não autorizado do espectro; 23,90% de prestação de serviço de telecomunicações sem outorga; 10,10% foram casos de radiointerferência envolvendo interesse comercial; e 5,58% de radiointerferência envolvendo risco à vida (ANATEL, 2015).

[15] Para Damásio, Dotti, Mirabete e Delmanto o crime, sob o aspecto formal, seria tão somente um fato típico e antijurídico, sendo a culpabilidade um pressuposto para a aplicação da pena (GRECO, 2015, p. 198).

[16] Destaca-se que existem crimes formais em que a consumação é antecipada para antes da ocorrência do resultado naturalístico (caso do Art. 183 da LGT) e crimes de mera conduta, quando o delito consiste na simples atividade, em que o legislador não fez qualquer previsão de resultado naturalístico a fim de caracterizá-lo.