O SISTEMA DE COTAS PARA ACESSO À UNIVERSIDADE PÚBLICA À LUZ DOS PRINCÍPIOS E DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS

O SISTEMA DE COTAS PARA ACESSO À UNIVERSIDADE PÚBLICA À LUZ DOS PRINCÍPIOS E DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS

10 de junho de 2023 Off Por Cognitio Juris

THE QUOTA SYSTEM FOR ACCESS TO THE PUBLIC UNIVERSITY IN THE LIGHT OF THE CONSTITUTIONAL PRINCIPLES AND PROVISIONS

Artigo submetido em 29 de maio de 2023
Artigo aprovado em 09 de junho de 2023
Artigo publicado em 10 de junho de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 47 – Junho de 2023
ISSN 2236-3009

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Autor:
Anne Caroline Amaral de Lima[1]

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Resumo: O sistema de cotas é uma ação afirmativa adotada pelo Poder Público que cria reserva de vagas em instituições públicas e privadas para determinados segmentos sociais, visando atenuar desigualdades e acelerar o processo de inclusão social de grupos à margem da sociedade. Tendo em vista que a implementação do sistema de cotas para acesso à universidade pública foi recebida com muita resistência e objeções pela sociedade brasileira, faz-se necessário um estudo analítico acerca dos pontos controversos que giram em torno do assunto, para que, posteriormente, verificar sobre sua constitucionalidade.

Palavras-chaves: Ações afirmativas. Cotas. Universidade Pública. Constitucionalidade.

Abstract: The quota system is an affirmative action adopted by the Public Power that creates reserved vacancies in public and private institutions for certain social segments, aiming to mitigate inequalities and accelerate the process of social inclusion of groups on the margins of society. Bearing in mind that the implementation of the quota system for access to the public university was met with a lot of resistance and objections by Brazilian society, it is necessary to carry out an analytical study on the controversial points that revolve around the subject, so that, later, we can verify about its constitutionality.

Keywords: Affirmative actions. Quotas. Public university. Constitutionality.

1 INTRODUÇÃO

Entre as diversas modalidades de ações afirmativas existentes, o sistema de cotas nas universidades desponta como uma de suas acepções mais autêntica, mas que, no entanto, tem gerado polêmicas e questionamentos quanto a sua legalidade, apresentando-se como um tema verdadeiramente inflamável.

Discute-se sobre o tema no dia a dia e surgem diversos argumentos favoráveis e contrários sobre a reserva de vagas para acesso às universidades públicas. Portanto, busca-se trazer a baila referidos argumentos a fim de confrontá-los com as normas estabelecidas no ordenamento jurídico.

A complexidade desse tema leva a questionamentos por parte da sociedade. Trata-se, na verdade, de tema quase desconhecido tanto em sua concepção quanto nas suas inúmeras formas de implementação. A presente pesquisa, então, surge da necessidade de algumas considerações acerca da sua gênese, objetivos e da problemática constitucional por ele suscitada afim de enriquecer o presente estudo.

Para a classificação da pesquisa, será adotado como referencial o critério proposto por Vergara (2007), que considera dois aspectos: quanto aos fins e quanto aos meios. Quanto aos fins, a pesquisa será classificada como descritiva e explicativa. Descritiva, porque expõe sobre os aspectos constitucionais que possibilitam a utilização do critério de cotas para acesso ao ensino superior nas Instituições Públicas. Explicativa porque buscará efetivar a imbricação das normas infraconstitucionais que disciplinam a questão das cotas com os parâmetros constitucionais. Quanto aos meios a pesquisa será documental e bibliográfica. Documental porque será realizada uma análise dos artigos da Constituição que se referem ao tema objeto da pesquisa e outras normas jurídicas que tratem sobre os mesmos institutos. Bibliográfica porque será feito uso de livros, artigos e outros materiais que discutam a questão das cotas para acesso ao ensino superior.

2 AS AÇÕES AFIRMATIVAS E O SISTEMA DE COTAS

Ações afirmativas são medidas que buscam criar oportunidades iguais para grupos e populações excluídas do ponto de vista social. Na legislação brasileira, o art. 1º, parágrafo único, inciso VI, da Lei 12.288/2010 conceitua as ações afirmativas como programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades.

Ação afirmativa é a medida adotada tanto por particulares, quanto por entidades públicas para combater desigualdades de qualquer natureza – social, econômica, racial ou cultural – sofridas por grupos desfavorecidos em decorrência do processo histórico-cultural vivido no período colonial. Esta medida é chamada também de discriminação positiva, uma vez que defende a aplicação do tratamento diferenciado para suprir as desigualdades existentes entre grupos em situações desiguais.

Nesse caso, o tratamento é desigual visando a promover ao grupo o direito que é seu e está sendo lesado. Bem diferente da discriminação negativa, que deixa o cidadão à margem da sociedade e com seus direitos lesados.

Como bem define Joaquim B. Barbosa Gomes (2001, p. 40), grande estudioso acerca do tema, ação afirmativa é:

um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.

A legislação brasileira adota atualmente ações afirmativas como medida de políticas públicas para combater a discriminação negativa, tratando de forma diferenciada alguns grupos em situações desfavoráveis, como, por exemplo: Decreto-Lei n. 5.452/1943 (Consolidação das Leis de Trabalho – CLT), que prevê, em seu art. 354, cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas individuais ou coletivas e estabelece, em seu art. 373-A, a adoção de políticas destinadas a corrigir as distorções responsáveis pela desigualdade de direitos entre homens e mulheres; Lei n. 8.213/1991, que fixou, em seu art. 93, cotas para os portadores de deficiência no setor privado; Lei n. 9.504/1997, que preconiza, em seu art. 10, § 3º, cotas para mulheres nas candidaturas partidárias.

As cotas se constituem na forma mais usual de ação afirmativa e, também, na mais polêmica, na medida em que excluem direitos de pessoas privilegiadas para favorecer os oprimidos. Por meio das cotas, incluem-se as minorias em espaços a que antes não tinham acesso. No Brasil, as propostas de implementação de cotas em vestibulares surgiram em razão de consideráveis desníveis nos indicadores da educação, sendo a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) a instituição pioneira na aplicação dessa política, posteriormente adotada em instituições como a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade de Campinas (Unicamp), entre outras.

Nesse sentido, o sistema de cotas, como espécie de ação afirmativa, é uma discriminação positiva temporária e especial em que o Poder Público objetivando atenuar os efeitos decorrentes de ações discriminatórias, reserva vagas a específicos segmentos sociais e étnicos em instituições universitárias públicas e privadas.

A institucionalização das ações afirmativas, ao contrário do que muitos pensam, ocorreu inicialmente na Índia e não nos Estados Unidos. A reserva de vagas foi aplicada aos intocáveis (dalits), minorias religiosas, tribos e castas que estavam entre os intocáveis e os djiva. O argumento foi que um “tratamento especial” deveria ser dado para os dalits e determinados grupos, já que não havia representação proporcional ao seu percentual na população da Índia.

No Brasil, as propostas de implementação de cotas em processos seletivos para universidades apareceram em razão de consideráveis desníveis nos indicantes da educação, sendo a Universidade do Estado do Rio de Janeiro a primeira na aplicação dessa política. As ações afirmativas no ensino superior brasileiro têm início através de iniciativas locais articuladas, principalmente, entre as universidades estaduais, são essas as instituições a aderir mais precoce e rapidamente a essas políticas, ainda que em um momento posterior as universidades federais tenham passado a aderir em ritmo acelerado, em especial, em resposta a incentivos do governo federal e, nos últimos anos, em cumprimento à Lei Federal 12.711/2012.

As instituições de ensino superior podem atuar com certa liberdade na implementação do sistema de cotas, tendo em vista que são possuidoras de autonomia para isto, não podendo contrariar o que prega o dispositivo constitucional.

Em março de 2020, o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a lei distrital que previa que 40% das vagas das universidades e faculdades públicas do Distrito Federal serão reservadas para alunos que estudaram em escolas públicas do Distrito Federal.
Essa lei, ao restringir a cota apenas aos alunos que estudaram no Distrito Federal, viola o art. 3º, IV e o art. 19, III, da CF/88, tendo em vista que faz uma restrição injustificável entre brasileiros. Vale ressaltar que a inconstitucionalidade não está no fato de ter sido estipulada a cota em favor de alunos de escolas públicas, mas sim em razão de a lei ter restringindo as vagas para alunos do Distrito Federal, em detrimento dos estudantes de outros Estados da Federação.

Em suma, o sistema de cotas surgiu a partir do momento em que se notou que não bastava ao Estado apenas combater a discriminação, mas este deveria atuar positivamente no sentido de reduzir as desigualdades sociais. O nosso Texto Magno foi muito além do plano retórico no concernente aos direitos e garantias fundamentais, estabelecendo diversos instrumentos jurídicos para conferir-lhes plena efetividade.

3 SISTEMA DE COTAS NAS UNIVERSIDADES À LUZ DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

O texto constitucional apresenta em seus dispositivos princípios e dispositivos que servem de embasamento para a adoção de ações afirmativas tanto por parte do Estado quanto por parte dos particulares.

A República Federativa do Brasil constitui-se num Estado Democrático de Direito que se fundamenta em princípios, objetivos e direitos fundamentais, conforme determina a Constituição Federal de 1988. Entre os princípios fundamentais, encontramos a cidadania e a dignidade da pessoa humana, que são essenciais para que o país concretize seus principais fundamentos.

Destacam-se entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, estabelecidos no art. 3º, da CF:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Ao versar sobre os direitos fundamentais no art. 5º, caput, da Constituição do Brasil garante a todos os brasileiros, entre outros, o direito à igualdade. E, no rol dos direitos sociais, em seu art. 6º, encontramos o direito à educação, também assegurado no art. 205, que versa sobre a Ordem Social, sendo relacionado como um dos elementos essenciais para garantir bem-estar e justiça social ao povo brasileiro.

O acesso restrito à educação e o ensino de qualidade inferior oferecido nas escolas da rede pública, em especial, resultam no grande abismo socioeconômico e cultural entre as classes sociais de nosso país, visto que os cidadãos com poder aquisitivo melhor pagam por um ensino de melhor qualidade, enquanto os cidadãos menos favorecidos não possuem condições financeiras para isso. Além disso, é sabido que, ainda hoje, existe uma parcela da população à margem do acesso à educação: os analfabetos.

A negligência com uma educação básica de qualidade tem como resultado cidadãos despreparados para cursar o ensino superior e, ainda, profissionais desqualificados para o mercado de trabalho. Isso traz à tona uma crítica muito válida para o Estado, pois reservar vagas nas instituições de ensino superior para os desfavorecidos socialmente não é o suficiente para resolver o problema em questão. Em verdade, trata-se de um tema com profundidade muito mais ampla do que aparenta ser.

No contexto educacional, a Constituição Federal do Brasil de 1988, em seu art. 1º, constitui a República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito e contempla entre seus princípios fundamentais: a cidadania e a dignidade da pessoa humana, os quais só poderão ser exercidos plenamente por cada brasileiro por meio do acesso à educação. Assim, possível concluir que a educação básica, além de ser dever do Estado, é condição crucial para o exercício pleno da cidadania. E, quanto maior o grau de escolaridade e instrução do eleitor, melhor ela será exercida.

Segundo Silva (2020, p. 104), a cidadania prevista no art. 1º da CF apresenta um sentido mais abrangente que o exercício dos direitos políticos, ela qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal (art. 5º, LXXVII). Significa, também, que o funcionamento do Estado estará submetido à vontade popular. E aí o termo conexiona-se com o conceito de soberania popular, com os direitos políticos e com o conceito de dignidade da pessoa humana, com objetivos da educação, como base e meta essencial do regime democrático.

A dignidade da pessoa humana é o maior direito fundamental regulamentado pela Carta Magna, pois ele engloba todos os outros direitos fundamentais, inclusive a igualdade e a educação, que se encontram em destaque na discussão do sistema de cotas.

De acordo com Silva (2020, p. 105), a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. Como já mencionado, destacam-se entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, estabelecidos em seu art. 3º.

Sobre este dispositivo e sua relação com a temática em questão, vale destacar o comentário de Rocha (1996, p. 85):

Verifica-se que todos os verbos utilizados na expressão normativa – construir, erradicar, reduzir, promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se tem, pois, é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro social e político retratado pelo constituinte quando da elaboração do texto constitucional. E todos os objetivos contidos, especialmente nos três incisos acima transcritos, do art. 3º, da Lei Fundamental da República, traduzem exatamente mudança para se chegar à igualdade.

Com base nesse entendimento, pode-se dizer que a Constituição Federal propõe uma transformação social para a República Federativa do Brasil, visando, mediante essas ações, a alcançar uma sociedade igualitária, o que também é objetivo do sistema de cotas para acesso à universidade pública.

A Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, dispõe: “Art. 21. A educação escolar compõe-se de: I – educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; II – educação superior”. A mesma legislação enumera, em seu art. 3º, II, como princípio do ensino: a igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola, o que também é estabelecido pelo art. 206, I, da Constituição Federal do Brasil.

Vale lembrar que o sistema de cotas para acesso à universidade pública tem como objetivo principal alcançar este princípio. Esse sistema pode ser amparado constitucionalmente também pelo princípio da autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, disposto no art. 207 da Constituição brasileira.

Nesse sentido, Bastos (2012, p. 774) assinala: “As universidades são entes autônomos, gozando de uma liberdade de atuação, tanto no campo didático-científico como na da administração e gestão financeira e patrimonial”. Portanto, as instituições de ensino superior podem atuar com liberdade na implementação do Sistema de Cotas, tendo em vista que são possuidoras de autonomia para isto, não podendo contrariar o que prega o dispositivo constitucional.

Na discussão teórica sobre a criação de um sistema de cotas para ingresso em universidades públicas, percebe-se, num primeiro momento, que o assunto pode ser fundamentado juridicamente nos dispositivos constitucionais supracitados, visto que o tema em tela está intimamente relacionado ao que a Constituição Federal prega: cidadania, dignidade humana, direito à educação, direito à igualdade, justiça social, solidariedade, erradicação da pobreza, redução das desigualdades e combate a qualquer tipo de discriminação. No entanto, sua implementação tornou o assunto bastante polêmico e com grande repercussão social.

O cerne da questão pauta-se na aplicação do princípio da igualdade. A igualdade na sua acepção formal (art. 5º, da CF/88) prega o previsto na Constituição Federal, a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Já a igualdade na sua acepção material defende tratar igualmente pessoas que estejam nas mesmas condições e estabelecer um tratamento desigual para pessoas que estejam em situações desiguais, conforme expressão Aristotélica.

A controvérsia, portanto, encontra-se na concepção de igualdade que cada um adota, enquanto uns defendem a igualdade “estática” de todos perante a lei, outros defendem a ideia de igualdade efetiva e justa, questionando o tratamento igual para pessoas em condições desiguais.

O jurista português Dray (apud Gomes, 2001, p. 130- 131) assim discorre sobre o princípio da igualdade formal:

Paulatinamente a concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade perante a lei, começou a ser questionada, quando se constatou que a igualdade de direitos não era, por si só, suficiente para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo nível de partida. Em vez de igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições. Assim, a concepção clássica de igualdade revela-se insuficiente, o que culminou na falência da visão liberal do princípio isonômico. Com isso, houve o surgimento de uma outra faceta deste princípio, a igualdade material.

Acerca da igualdade material, cabe transcrever o entendimento de Gomes (2001, p. 131):

Da transição da ultrapassada noção de igualdade “estática” ou “formal” ao novo conceito de igualdade “substancial” surge a ideia de “igualdade de oportunidades”, noção justificadora de diversos experimentos constitucionais pautados na necessidade de se extinguir ou de pelos menos mitigar o peso das desigualdades econômicas e sociais e, consequentemente, de promover a justiça social. Quanto ao princípio da igualdade, Emiliano (2008, p. 1) afirma: O princípio da igualdade foi acolhido pela Constituição Federal de 1988 na sua máxima acepção, em sintonia com os movimentos a favor da diminuição das injustiças sociais e combate às desigualdades.

A concepção moderna do princípio da igualdade determina que os Estados não devem apenas discriminar arbitrariamente, mas também promover a igualdade de oportunidades, adotando políticas que apoiem e incentivem determinados grupos socialmente vulneráveis. 

A igualdade, na sua acepção material, prega que, em determinadas situações, o tratamento isonômico deve considerar as condições que envolvem o caso concreto, assim, fundamenta-se na máxima: tratar igualmente pessoas que estejam nas mesmas condições e, da mesma forma, estabelecer um tratamento desigual para pessoas que estejam em situações diferentes.

Tratando sobre a igualdade na sua acepção material, Antônio Leandro da Silva Filho (2005) dispõe que:

Dessa maneira, para cada situação encontrada na sociedade como injusta e discriminatória, deve o Direito, por meio da lei, promover a equiparação dos desiguais atendendo dessa forma o princípio constitucional da igualdade. Percebe-se, portanto, a dinamicidade com que atua o princípio da isonomia para a concretização do preceito de igualdade, não mais se limitando à forma estática de outrora. Sendo que agora é aplicado e elaborado para transformar a sociedade, para promover o bem de todos visando à consecução dos ideais de justiça que permeiam a sociedade.

Com base nessa acepção do princípio da igualdade, foi criado o sistema de cotas, o qual permite um tratamento diferenciado entre as pessoas, tendo em vista uma particularidade que a coloque em situação desfavorável quando comparada aos demais. Vale ressaltar que o que gera a exaustiva discussão acerca do tema é a dificuldade em definir quem são os iguais, quem são os desiguais e qual a medida dessa desigualdade, para que seja justa qualquer forma de tratamento diferenciado.

Nesse sentido, o doutrinador Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999, p. 275) afirma:

O princípio da igualdade não proíbe de modo absoluto as diferenciações de tratamento. Veda apenas aquelas diferenciações arbitrárias, as discriminações. Na verdade, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência do próprio conceito de Justiça. Assim, o princípio da igualdade no fundo comanda que só se façam distinções com critérios objetivos e racionais adequados ao fim visado pela diferenciação.

O princípio da proporcionalidade não se encontra expressamente previsto no texto constitucional vigente em nosso país, trata-se, portanto, de princípio constitucional implícito. A doutrina aborda o princípio da proporcionalidade subdividido em três subprincípios ou elementos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

O subprincípio da adequação prega que qualquer medida restritiva de direito deve ser adequada à consecução da finalidade objetivada. Portanto, o meio escolhido para restringir o direito tem de ser apto a atingir o objetivo pretendido.

O subprincípio da necessidade visa a examinar se a medida restritiva de direito é indispensável para a manutenção do próprio direito ou de outro direito, e, ainda, sua aplicação é importante para averiguar se à medida que está sendo adotada é a menos gravosa e a mais eficaz.

O subprincípio da proporcionalidade em sentido restrito busca verificar se os resultados positivos obtidos com a aplicação da medida restritiva superam as desvantagens decorrentes da restrição a um ou a outro direito. Quanto à relevância do princípio da proporcionalidade, o Professor Vicente de Paulo (apud Maia, 2006, p. 124), conclui:

Portanto, a essência do princípio da razoabilidade consiste em que, ao se analisar uma lei restritiva de direitos, deve-se ter em vista estes critérios: o fim a que ela se destina e os meios necessários e adequados para atingi-los. Significa dizer que os meios devem ser, simultaneamente, adequados à finalidade visada na norma e necessários para seu atingimento. Se os meios porventura não forem adequados ao fim colimado, ou se sua utilização acarretar cerceamento de direitos num grau maior que o necessário, devem ser tidos por ilegítimos, por violação ao requisito proporcionalidade, e o dispositivo de lei em que se encontram inseridos deve ser invalidado por ofensa a Constituição.

A adoção do sistema de cotas para acesso a universidade pública traz à baila o conflito na aplicação das duas acepções do princípio da igualdade no caso concreto, que pode ser resolvido com a aplicação do princípio da proporcionalidade, pois o tratamento diferenciado pode existir quando houver uma justificativa objetiva e razoável.

Segundo Alexandre de Moraes (2017, p. 48):

A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos.

Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado. É importante observar que a adoção do sistema de cotas para acesso à universidade pública deve ser realizada de forma criteriosa, sendo necessário demonstrar que a discriminação contra o grupo alvo desta ação afirmativa atua de maneira poderosa e decisiva, impedindo ou dificultando visivelmente seu acesso aos direitos fundamentais do cidadão, definidos no texto constitucional.

É indispensável agir de modo cauteloso na sua execução, pois só assim será combatido seu foco principal de críticas, a temida discriminação reversa, uma vez que tal mecanismo de inclusão da minoria desfavorecida pode acarretar a exclusão de membros pertencentes a grupos não minoritários. Deve-se, portanto, ao implementar o sistema de cotas, constatar sua eficácia, verificando se as medidas tomadas para atenuar a discriminação em questão são necessárias e se estão realmente alcançando resultados positivos.

Vale ressaltar ainda que, no caso das cotas, outros fatores merecem atenção, como a temporalidade e a comprovação da raça. A temporalidade refere-se ao prazo em que a adoção da medida será suficiente para beneficiar os desfavorecidos a ponto de atenuar as desigualdades alvo da ação sem culminar em discriminação reversa.

A comprovação de que o sujeito beneficiado pertence à raça desfavorecida também deve obedecer a critérios objetivos, para que a reserva de vagas seja destinada a quem realmente sofre discriminação.

Por fim, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se favoravelmente ao sistema de cotas em 26 de abril de 2012, através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 186, proposta pelo Partido Político Democrata contra os atos administrativos da Universidade de Brasília que instituiu o programa de cotas raciais para ingresso na universidade, bem como no dia 9 de maio de 2012, através do Recurso Extraordinário 597285, reafirmou a constitucionalidade do sistema de cotas adotada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

4 CONCLUSÃO

No campo educacional, as políticas que buscam transformar o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico raciais e sociais em nosso país devem ser analisadas sob a ótica de sua conformidade com à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro e dispositivos constitucionais.

Entre os princípios fundamentais que embasam o sistema de cotas, encontramos, inicialmente, o da dignidade da pessoa humana, maior direito fundamental regulamentado pela Carta Magna, pois ele engloba todos os outros direitos fundamentais, inclusive a igualdade e a educação, que se encontram em destaque na discussão do sistema de cotas. Além desse, encontramos também o princípio da proporcionalidade (limitada no tempo) e razoabilidade (questão numérica) e o princípio da igualdade (art. 5º, caput, da Constituição do Brasil), o qual garante a todos os brasileiros tratamento igualitário, contudo este deve ser analisado em seu aspecto material, no sentindo de oferecer tratamento diferenciado àqueles que se encontrem em situação peculiar.

Isso porque uma sociedade que se intitula democrática precisa ponderar e reconhecer as disparidades entre os grupos existentes nela, levando em consideração suas particularidades e deficiências.

O sistema de cotas está garantindo através das normas constitucionais e possui extrema importância, contudo, paralelamente a ela, deve ser garantida uma educação básica de qualidade a todos os brasileiros, o que consequentemente acarretará, a longo prazo, o acesso à universidade pública sem que haja necessidade de reserva de vagas.

Isso posto, concluiu-se que o sistema de cotas, assim como qualquer ação afirmativa, encontra abrigo no ordenamento constitucional brasileiro, sendo que, na implementação de suas políticas, deverão ser observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de qualquer excesso configurar violação à ordem constitucional.

REFERÊNCIAS

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[1] Bacharela em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade do Estado do Amazonas. Advogada. E-mail: anniecaroline.lima@hotmail.com