“HATE SPEECH”, JUSTIÇA ARISTOTÉLICA E LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

“HATE SPEECH”, JUSTIÇA ARISTOTÉLICA E LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

10 de junho de 2023 Off Por Cognitio Juris

HATE SPEECH, ARISTOTELIAN JUSTICE AND LIMITS TO FREE SPEECH

Artigo submetido em 30 de maio de 2023
Artigo aprovado em 07 de junho de 2023
Artigo publicado em 10 de junho de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 47 – Junho de 2023
ISSN 2236-3009

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Autor:
Caroline Quadros da Silveira Pereira[1]
Guilherme Pires Mitidiero[2]

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Resumo: este trabalho busca trazer reflexões quanto ao fenômeno do “hate speech” e quais os limites possíveis à liberdade de expressão nesse cenário. Diante dos deletérios efeitos desse discurso para todo o corpo social há algumas consequências comuns em tal contexto: a ausência de um debate de ideias íntegro e plural, a violação à igualdade e, consequentemente, ofensa à democracia. Para a construção de soluções, parte-se neste estudo dos conceitos aristotélicos.  Por fim, almeja-se, a partir da compreensão do conceito aristotélico de justiça, contribuir para o debate deste tema que se mostra tão caro à democracia.

Palavras-chave: liberdade de expressão – justiça aristotélica – igualdade

Abstract: this work seeks to bring reflections on the phenomenon of “hate speech” and what are the possible limits to freedom speech in such a context. Faced with the deleterious effects of this discourse for the society, there are some common consequences in such a context: the absence of an integral and plural debate of ideas, the violation of equality and, consequently, an offense to democracy. For the construction of solutions, this study starts from Aristotelian concepts. Finally, from the understanding of the Aristotelian concept of justice, we aim to contribute to the debate of what is important to democracy.

Keywords: free speech – Aristotelian justice – equality

Sumário: 1. Introdução; 2. Aristóteles; 3. O hate speech; 4.O hate speech e a justiça aristotélica; 5. Conclusão; Referências Bibliográficas.

  1. Introdução

A liberdade de expressão é uma das bases da democracia. As condições necessárias para a construção de soluções para os complexos problemas sociais pressupõem liberdade de expressar ideias, ouvir o outro e debater. Além disso, a autodeterminação apenas é efetiva quando a liberdade de expressão individual é garantida.

Nada obstante, como qualquer direito, a liberdade de expressão possui limites. Nesse sentido, não há verdadeira liberdade quando esta somente é garantida à maioria. Nos discursos de ódio, essa é a realidade comumente verificada: a minoria alvo da manifestação é silenciada.

Embora o fenômeno do “hate speech” esteja presente há algum tempo na sociedade, a velocidade de sua propagação aumentou consideravelmente com a pluralização do acesso à internet. No momento atual, redes sociais e aplicativos de mensagens são terrenos férteis para a disseminação desse discurso. Consequentemente, há um aumento na segregação, no preconceito e nos estigmas sociais.

Esse contexto, evidentemente, traz danos para todo o corpo social. A minoria atingida pelo discurso tem sua dignidade lesada. De outro lado, os demais membros da sociedade perdem a oportunidade de ouvir o pensamento diferente e de participar de um debate plural e democrático.

Trata-se de fenômeno complexo e que ainda carece de respostas satisfatórias para as diversas indagações que dele decorrem. Nesse cenário de incerteza, as lições do filósofo Aristóteles podem indicar interessantes caminhos para o enfrentamento dessa questão.

Com efeito, a compreensão da ética e da justiça aristotélicas, bem como a tentativa de concretização dessas na sociedade atual, aliadas ao entendimento do meio termo ensinado pelo filósofo de Estagira, mostram-se extremamente atuais para a busca de respostas. Essas respostas passam necessariamente por garantir liberdade de expressão suficiente e por tutelar a igualdade de todo o corpo social.

Nesse contexto, o presente artigo busca responder a seguinte questão: como o conceito aristotélico de justiça pode contribuir para a construção de limites seguros à liberdade de expressão quando está presente o discurso de ódio?

Para percorrer tal itinerário, o ponto de partida escolhido é a obra “Ética a Nicômaco” e, em seguida, o exame de debates acadêmicos quanto ao tema.

Diante de inúmeras questões que emergem do discurso de ódio, nos limites desse trabalho, busca-se, a partir da compreensão e da adoção dos ensinamentos de Aristóteles, percorrer um caminho quiçá promissor para a salvaguarda da democracia e, por conseguinte, da dignidade daquele que é o centro dela, o ser humano.

  • Aristóteles

Incialmente, para uma melhor compreensão do tema, entende-se pertinente fazer uma breve introdução à vida e obra deste filósofo. Com efeito, conhecer o contexto histórico, político e pessoal do autor parece oportuno para um melhor entendimento de suas ideias.

Nesse sentido, quanto à sua biografia[3], destaca-se que Aristóteles nasceu em Estagira em 384-383 a.C. e entrou na escola de Platão aos dezessete anos[4]. Nessa escola, Aristóteles permaneceu por vinte anos – até a morte de seu mestre (348-347 a. C.). Com o óbito de Platão, Espeusipo assumiu a escola, este foi escolhido pelo próprio Platão para a atividade.

Diante dessa mudança, o filósofo de Estagira optou por deixar a academia platônica, pois discordava das orientações de Espeusipo – este buscava a transformação da filosofia em matemática -, pois o espírito de Platão havia sido abandonado. Aristóteles, acompanhado de Xenócrates, transferiu-se para Asso, onde pela primeira vez desenvolveu ensino autônomo, e lá permaneceu por três anos. Após essa experiência, passou a viver em Mitilene, na ilha de Lesbos. Segundo ABBAGNANO, foi entre o período de trabalho em Asso e em Mitilene que Aristóteles teria se afastado da doutrina platônica[5].  

Em 342 a.C., Aristóteles foi chamado pelo rei da Macedônia, Filipe, para ser professor de Alexandre. O filósofo de Estagira somente regressou à Atenas quando Alexandre tornou-se rei (335-334).

Nesse momento, Aristóteles fundou sua escola, o Liceu, permanecendo em Atenas até 323 a.C., quando Alexandre veio a óbito. Esse contexto permitiu a insurreição do partido nacionalista contra os partidários do rei. Em consequência disso, Aristóteles foi acusado de impiedade e passou a correr perigo. À vista disso, o filósofo entregou sua escola a Têofrastos e fugiu para Calcis, na Eibeia, país de sua genitora, local onde possuía uma propriedade fruto de herança. Aristóteles ali viveu até a sua morte – em decorrência de uma doença no estômago – , aos 63 anos, em 322 a.C. – 321 a. C[6].

Quanto às obras do filósofo, aquelas que se tornaram conhecidas do grande público compreendem os acroamáticos e os esotéricos. Os acroamáticos destinavam-se aos ouvintes e adotavam um formato literário. Os esotéricos, por sua vez, compreendiam os apontamentos utilizados pelo filósofo para ensinar[7], tendo características de notas de aula.  Neste último grupo, encontram-se os escritos de ética: Ética a Nicômaco, Ética a Êudemos e Ética Maior (ou Magna Moralia).

No presente trabalho, adota-se Ética a Nicômaco como base para a compreensão do pensamento aristotélico. Tal escolha fundamenta-se no fato de que essa é tida pela maioria dos estudiosos como a obra moral por excelência de Aristóteles[8].

Ética a Nicômaco consiste em um compilado das anotações de aula do filho de Aristóteles, Nicômaco, devidamente editadas. Para a maioria dos pesquisadores, esta obra corresponde a mais completa, representativa e amadurecida visão do pensamento aristotélico.

Quanto à sua divisão, nos pontos que interessam a este artigo, destaca-se que nos livros II, III e IV são examinadas as formas de excelência moral. No livro V, por sua vez, Aristóteles reflete sobre a justiça.

Após essas considerações quanto à vida e à obra do filósofo de Estagira, passa-se ao exame das ideias que possuem maior relação com o presente estudo.

Inicia-se essas reflexões pela excelência. Para Aristóteles, o ser humano pode possuir duas espécies de excelência, a intelectual e a moral. A primeira é adquirida pela instrução e a segunda é fruto do hábito. Desse modo, a excelência moral exige atividade, prática, pois o homem nasce apenas com potencialidades[9].

Logo, entende-se que a natureza das ações, isto é, como devem ser praticadas, é de extrema importância. Isso se deve ao fato de que essas condutas determinam a natureza das disposições morais que serão criadas. Por isso, o “agir de acordo com a reta razão” é sempre necessário. Além disso, a excelência moral é destruída pelo excesso e pela falta e preservada pelo meio termo.

Assim, a excelência moral deve ser entendida como a: “(…) disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão (a razão graças à qual um homem dotado de discernimento o determinaria)”[10].

Por conseguinte, a excelência moral é conquistada ao se observar o meio termo no agir, ou seja, quando há moderação[11]. Esta excelência existe quando o agir se submete a boas finalidades, que exigem bons meios[12] para serem alcançadas[13].

Nesse contexto, a excelência moral refere-se a ações e emoções voluntárias[14]. As ações voluntárias têm sua origem no próprio indivíduo, que conhece as circunstâncias particulares da sua conduta. Já as ações involuntárias são aquelas que decorrem da compulsão ou da ignorância, sua origem é externa ao agente.

Como a excelência moral diz respeito ao hábito e ao agir, está ao alcance do ser humano, por meio de suas condutas, escolher ser bom ou mau. Esta escolha será consequência da prática de atos nobilitantes ou ignóbeis[15].

A resposta quanto aquilo que deve ser entendido como bom é dada pela ética[16]. Esta possui relação direta com as ações cotidianas, as quais mostram os valores e o caráter de cada indivíduo[17]. Logo, o ser humano somente age de acordo com o meio termo – com excelência moral e adotando um comportamento ético – quando há equilíbrio[18].

Outro ponto de extrema importância para este estudo é a justiça no pensamento de Aristóteles. O primeiro sentido de justiça trazido pelo filósofo, em Ética a Nicômaco, identifica-a como o cumprimento da lei e a forma de excelência moral perfeita. Desse modo, as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não apenas em relação a si, mas também em relação ao outro[19].

As pessoas justas são aquelas que cumprem a lei e são corretas. As pessoas injustas, por sua vez, infringem a lei ou são ambiciosas e iníquas[20]. Assim, todos os atos conforme a lei seriam justos, considerando-se o sentido de justiça exposto.

Sendo assim, a justiça é uma definição da alma em fazer o bem ao próximo e, quando essa disposição é perene, há excelência moral[21]. Para Aristóteles: “(…) a justiça, e somente ela entre todas as formas de excelência moral, é o ‘bem dos outros’”[22].

Além desse sentido de justiça, que é sinônimo do cumprimento da lei e que corresponde à excelência moral em seu todo, há duas espécies de justiça em sentido estrito. Para a primeira, a justiça refere-se à distribuição de funções elevadas de governo, ou de dinheiro ou de outras coisas que devem ser divididas entre os cidadãos. Para a segunda espécie de justiça, esta deve ser entendida como o desempenho de uma função corretiva nas relações entre as pessoas.

Para a justiça distributiva, encontrar o justo também significa encontrar o meio termo, que é a igualdade[23]. Além disso, embora todos sejam iguais, a distribuição deve ocorrer de acordo com o mérito individual. Logo, o justo nesse sentido, é o proporcional.

De outro lado, a justiça corretiva está presente nas relações interpessoais, tanto nas voluntárias como nas involuntárias. Nesses casos, não há necessariamente o interesse da comunidade como um todo. Na justiça corretiva, diante da atividade injusta, que se afasta do meio termo, o juiz atua como um árbitro, restabelecendo a igualdade.

Há, ainda, a justiça política, que é em parte natural e em parte legal[24]. Para essa concepção, só há paz social quando as relações entre os membros da sociedade sejam mediadas pela justiça.

Logo, o bem[25] apenas é atingido quando a ética orienta as ações públicas do Estado e as ações dos indivíduos[26]. Nessa toada, a vontade da norma deve prevalecer em detrimento dos anseios individuais daqueles que ocupam posições na esfera pública. Ademais, os cidadãos também devem orientar suas condutas pela adoção de uma postura ética e digna em seu agir comunitário[27].

Ainda falando sobre justiça aristotélica, é importante tecer algumas considerações quanto à equidade. Primeiramente, cumpre destacar que o equitativo, embora seja justo, é melhor do que uma espécie de justiça, mas não é melhor do que a justiça irrestrita.

O equitativo é um corretivo da justiça legal. Desse modo, a equidade é aplicada naqueles casos não previstos pela lei, ou seja, quando há uma regra legal geral e esta não se aplica a determinado caso. Nesta hipótese, a equidade deve ser aplicada com a finalidade de suprir a lacuna legislativa.

Para o filósofo de Estagira, diante de lacunas normativas, a equidade deveria ser utilizada da mesma forma como a régua de chumbo é utilizada pelos construtores em Lesbos: “a régua se adapta à forma da pedra e não é rígida, e o decreto se adapta aos fatos de maneira idêntica”[28].

            Sem dúvida, há diversos outros pontos na obra Ética a Nicômaco que mereceriam considerações. Contudo, diante do escopo desse trabalho, escolheu-se a abordagem daqueles conceitos que parecem contribuir de forma mais efetiva para a reflexão quanto aos limites da liberdade de expressão, quando se verifica o discurso de ódio.

  • O “hate speech”

Após a exposição de alguns conceitos aristotélicos, busca-se neste capítulo trazer algumas reflexões quanto ao “hate speech”, seus efeitos e à possibilidade de limitação à liberdade de expressão em tal contexto.

A primeira ideia que serve como ponto de partida para a discussão do tema refere-se à essencialidade da liberdade de expressão em qualquer sociedade pautada pelo respeito aos valores democráticos. Por conseguinte, a liberdade de expressão[29] é um dos pilares da democracia[30]. Logo, a efetividade desta liberdade pressupõe o acesso a informações fidedignas, a possibilidade de ouvir diversos posicionamentos quanto à mesma questão, de falar e ser ouvido e, ainda, um debate público íntegro. Quando algum desses elementos não está presente, não há verdadeira liberdade. Logo, a autodeterminação é violada[31].

Nesse cenário, parece incontestável que a liberdade de expressão[32] é fundamental para a salvaguarda da integridade do debate público. Contudo, nem todas as manifestações pluralizam o debate e vão ao encontro dos anseios democráticos. Este é o contexto do “hate speech”.

O “hate speech” ou discurso de ódio compreende qualquer manifestação ofensiva a grupos minoritários, que tem como resultado o aumento do preconceito, da exclusão, dos estigmas em relação à minoria-vítima, instigando o ódio. Esse discurso pode ocorrer de diversas maneiras: pelo uso de palavras abusivas, ameaçadoras ou inferiorizantes, por gestos, pela exibição de símbolos ou objetos etc.

Por conseguinte, no “hate speech” há uma conduta, pois este não se expressa exclusivamente pela fala, mas por qualquer forma de linguagem[33]. Além disso, o discurso de ódio não se limita a uma opinião[34]. Para além disso, trata-se de uma manifestação que viola a dignidade daqueles que são alvo do discurso. Ademais, como as vítimas diretas integram minorias historicamente subalternalizadas[35], é efeito comum dessa prática o silenciamento desses grupos vulneráveis. Todavia, a extensão dos danos do discurso irá depender do contexto em que ocorreu a manifestação.

Além disso, embora o “hate speech” tenha como alvo determinado grupo vulnerável, este não é o único prejudicado. Há uma pluralidade de vítimas do discurso de ódio: os integrantes da minoria-alvo; os demais membros do corpo social que de alguma forma tomam conhecimento da mensagem de ódio.

Indubitavelmente, a minoria-alvo do discurso é atingida em sua dignidade, pois a manifestação de ódio comumente caracteriza-se pelas formas abusiva, insultante, ameaçadora ou inferiorizante pelas quais é expressada. Ademais, a reputação dos indivíduos pertencentes a este grupo é manchada. Para tanto, é bastante comum a associação de características como etnia, raça ou religião etc. a condutas ou atributos que desqualificam aquele que pertence à minoria-alvo[36].

Nessas circunstâncias, observa-se também que esses ofendidos têm sua autoestima diminuída. Consequentemente, há redução da participação dessas pessoas nas atividades da sociedade civil[37].

Logo, nesse cenário de violação da dignidade, reforço de estigmas, segregação, destruição de reputações, ameaças, não há como pensar que o grupo vulnerável diretamente atingido pelo discurso de ódio ainda tenha voz, ou que os demais ainda tenham interesse em ouvi-lo. Como resultado dessa violência surge o efeito silenciador: as minorias são excluídas do debate público.

Todavia, os danos decorrentes do discurso de ódio possuem maior extensão, aqueles que não integram a minoria-alvo também são vítimas do “hate speech”. Com efeito, quando somente determinado grupo pode se manifestar, perde-se a oportunidade de ouvir aqueles que pensam diferente, debater ideias, refletir e decidir de forma consciente sobre temas relevantes. Desse modo, o direito à liberdade de expressão não está sendo salvaguardado e a autodeterminação do grupo majoritário também é violada.

Outrossim, como não há debate público efetivo, a própria democracia encontra-se em risco. Nesse contexto, a maioria pode perder a sua legitimidade[38]. Quanto a este tema, a lição de DAHL é de extrema pertinência: “Cidadãos silenciosos podem ser perfeitos para um governante autoritário, mas seriam desastrosos para uma democracia”[39].

Esses efeitos deletérios do “hate speech” mostram-se mais acentuados em um ambiente no qual qualquer mensagem pode ser disseminada instantaneamente para um número incalculável de indivíduos por meio da internet. Hodiernamente, não há fronteiras geográficas para o discurso de ódio. Além disso, a manifestação sai do controle daquele que a emitiu, não havendo como estimar o período em que a mensagem permanecerá surtindo efeitos e atingindo novas vítimas.

Nesse cenário, a busca por caminhos que tutelem de forma efetiva a liberdade de expressão e a dignidade das minorias parece ainda mais urgente. A resposta suficiente a esta celeuma hoje mostra-se fundamental à democracia.

Com efeito, embora alguns estudiosos defendam a impossibilidade de limitação à liberdade de expressão no “hate speech”, não há um mero pensar diferente nesse discurso, mas verdadeira agressão à parcela da sociedade[40]. Assim, é necessário analisar com cautela a assertiva comum de que no discurso de ódio há um dilema entre igualdade e liberdade.

Muitos pesquisadores, partindo do pensamento de John Stuart Mill[41] entendem que a liberdade de expressão não pode sofrer qualquer limitação, pois só assim se encontrará a verdade[42]. Para eles, esta pressupõe que determinada proposição seja confrontada e resista[43].

Contudo, a liberdade existente no “hate speech” é exclusivamente do grupo majoritário. Este se manifesta de forma livre e ilimitada. Infelizmente, o mesmo não ocorre com a minoria-alvo: esta é segregada e calada.

Evidentemente, a resposta a esta questão não é simples, exigindo reflexão e amadurecimento do debate. Com efeito, é incontestável que a liberdade de expressão deve ser garantida. Todavia, é necessário tutelar a liberdade de expressão de todos os membros da sociedade. Garantir liberdade apenas para determinado grupo não satisfaz a democracia.

Por conseguinte, assegurar a liberdade de todos pode exigir a restrição da liberdade de expressão da maioria. Obviamente, tal remédio deve ser ministrado na dose estritamente necessária, a fim de que atinja a sua finalidade e não se torne nefasto para o Estado Constitucional[44].

Assim, preservar a liberdade de expressão de forma suficiente e a igualdade[45] de toda a sociedade são imperativos de qualquer sociedade democrática. Contudo, não é tarefa simples a tutela efetiva de ambos os direitos fundamentais quando o operador do Direito se defronta com determinada manifestação.

Nesse cenário, verifica-se que diversas indagações surgem do exame do “hate speech”. Diante de incertezas quanto às possíveis soluções, entende-se que o pensamento aristotélico pode contribuir para o desenvolvimento de soluções que atendam aos valores democráticos e à dignidade humana.  

  • O hate speech e a justiça aristotélica

Como foi exposto no capítulo anterior, no “hate speech” é verificada uma violência contra a minoria-alvo, que tem sua dignidade violada. Logo, ao pensar nesta manifestação, a partir das premissas aristotélicas, percebe-se que não há excelência moral[46].

Com efeito, o ato justo é aquele moderado, ou seja, que observa o meio termo. Logo, o fato de a maioria se expressar de forma ilimitada, de modo a silenciar a minoria, revela excesso. Entretanto, se toda a sociedade é impedida de se manifestar, há falta. Assim, nenhuma dessas hipóteses concretiza o meio termo aristotélico.

À vista disso, a busca do meio termo, do agir ético, em que há excelência moral e, por consequência, do agir justo, são urgentes. Nesse contexto, o primeiro questionamento seria: como identificá-los, quando há incerteza quanto aos caminhos que devem ser trilhados?      

Quanto à justiça, verifica-se que no ordenamento jurídico pátrio não há qualquer norma limitadora do “hate speech” fora do âmbito penal. Assim, entende-se que poderia ser aplicada a equidade, para que se supra a lacuna legislativa. O equitativo corrige a justiça legal naquilo em que ela é omissa, de modo a observar as peculiaridades do caso concreto. Desse modo, traz respostas indicativas daqueles caminhos que satisfazem à democracia.

Nessa perspectiva, a equidade corrige os desequilíbrios decorrentes de ações injustas, as quais no caso em estudo seriam as manifestações de “hate speech”. As respostas dadas pela equidade passariam evidentemente pela tutela integral da dignidade humana, condição inafastável de qualquer sociedade comprometida com a tutela dos valores democráticos.

A dignidade da pessoa humana deve ser compreendida como a garantia de um mínimo para existir, preservação da sua identidade, integridade, e plena capacidade de viver o presente e conceber o futuro livremente, isto é, ter autonomia, ser tratado como sujeito e não como objeto. Nessa perspectiva, a liberdade significa deter “o poder de determinar qual projeto de vida pretende construir, quais atos deseja praticar[47]” e “quais consequências quer e aceita suportar[48].” Para isso, “é indispensável estar bem-informado a respeito das alternativas de ação de que dispõe[49]” e poder determinar “que consequências cada uma delas irá futuramente desencadear[50].”

Ainda, segundo ÁVILA: “O princípio da dignidade humana serve de instrumento para o indivíduo, tendo assegurado sua incolumidade física e os meios mínimos para sua subsistência, para poder, com autonomia e independência, plasmar sua vida e definir seu curso, sendo tratado como sujeito de direitos capaz de saber sobre o que decidir, de querer conscientemente decidir em determinado sentido e de arcar responsavelmente com as consequências de sua decisão[51].”

Logo, o meio termo e o agir ético também estão definidos: antes de tudo, deve-se assegurar a dignidade humana de todos. Este caminho só é trilhado quando é garantida a igualdade daqueles que se encontram em um mesmo contexto. Por conseguinte, é necessário que todos aqueles que integram determinada comunidade possam participar dos debates públicos em igualdade de condições, ou seja, incluídos, respeitados e detentores de estima social.

Nesse contexto, a limitação da liberdade expressão é alternativa adotada por muitos Estados, para que o ordenamento jurídico não ampare os discursos de ódio. Tal limitação, desde que utilizada com parcimônia, aproxima-se do meio termo e, consequentemente, pode ser uma resposta consentânea com a justiça aristotélica.

Sabe-se que parcela dos estudiosos se manifestam de forma contrária a qualquer limitação à liberdade de expressão, como anteriormente exposto. Contudo, o emprego da “régua de chumbo, utilizada pelos construtores de Lesbos”, permite ao operador do Direito encontrar o meio termo, ou seja, o agir moderado. Consequentemente, haverá tutela suficiente da liberdade de expressão e uma sociedade em que todos terão voz, isto é, um corpo social dotado de dignidade.

  • Conclusão

Ao longo deste artigo buscou-se trazer considerações quanto à possibilidade de limitação à liberdade de expressão quando há discursos de ódio. Para tanto, partiu-se do pensamento aristotélico. Tal caminho foi escolhido em face da atualidade das lições de Aristóteles, as quais trazem reflexões necessárias à construção de respostas para as mais diversas indagações jurídicas e sociais.

Nesse sentido, o meio termo aristotélico nos ensina a buscar prudência no agir. O excesso e a falta nunca são as melhores resoluções. É justamente esta a questão no “hate speech”. Quando se fala em liberdade de expressão, é inadmissível a sua falta; contudo, o excesso também é nocivo, pois enquanto um grupo fala e outro é calado.

Evidentemente, não há agir ético no “hate speech”, tampouco há excelência moral. Com efeito, quando há discurso de ódio, há violência contra um grupo minoritário. Isso gera o aumento do preconceito, da segregação e dos estigmas sociais.

Por conseguinte, alcançar o meio termo passa por permitir que todos possam se manifestar e, assim, sejam tratados com igual respeito e consideração. Para tanto, o excesso deve ser substituído pela prudência e pela moderação. Indubitavelmente, este itinerário levará a uma sociedade comprometida com a efetiva tutela dos valores democráticos e o respeito à dignidade humana.

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[1] Mestranda em Direito Constitucional pela PUC-SP; Juíza de Direito do TJSP.

[2] Especialista em Direito Processual Civil pela UFRGS; Advogado.

[3] De acordo com Marcio Gama Cury: “A principal fonte para a biografia de Aristóteles é o livro V da Vidas dos Filósofos de Diogênes Laêrtios, que viveu na metade do século III d. C., mas usou fontes muito mais antigas, hoje perdidas”(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Mario da Gama Kury. Prefácio de José Reinaldo de Lima Lopes. São Paulo: Madamu, 2020, p. 16)

[4] De acordo com ABBAGNANO (ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Volume 1. 7ª. ed. Lisboa: Editorial Presença, 2006, p. 144). Contudo, segundo Mario da Gama Cury, Aristóteles ingressou na escola de Platão aos 18 anos (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Mario da Gama Kury. Prefácio de José Reinaldo de Lima Lopes. São Paulo: Madamu, 2020, p. 15)

[5]  ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Volume 1. 7ª. ed. Lisboa: Editorial Presença, 2006, p. 145.

[6] Ibidem.

[7] Contudo, segundo ABBAGNANO: “Aristóteles compôs outros segundo a tradição platónica, em forma dialógica, a que ele mesmo chamou exotéricos, isto é, destinados ao público, nos quais empregava mitos e outros ornamentos vivazes e se mostrava tão eloquente quanto era enxuto e severo nos escritos escolares. Mas destes escritos exotéricos mais não restam que poucos fragmentos, de cujo valor para compreender a personalidade de Aristóteles a critica recentemente se deu conta” (Op. cit, p. 146).

[8]Essa é a conclusão de Marcio Gama Cury (ARISTÓTELES. Op. cit., p. 20)

[9] “(…) tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente” (Idem, p. 52).

[10] ARISTÓTELES. Op. cit., p. 60.

[11] Quanto ao meio termo, ANTISERI e REALE esclarecem que: “É evidente que a mediedade não é uma espécie de mediocridade, mas ‘um cume’, um valor, pois é a vitória da razão sobre os instintos. Há, aqui, uma síntese de toda a sabedoria grega que encontrara expressão típica nos poetas gnômicos, nos Setes Sábios, que no ‘caminho intermediário’, no ‘nada demasiado’, na ‘justa medida’ tinham indicado a regra suprema do agir, assim como há aquisição da lição pitagórica que indicava ‘no limite’ a perfeição, e há igualmente um desfrute do conceito de ‘justa medida’ que desempenha função importante em Platão” (REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: Antiguidade e Idade Média. Vol. 1. Tradução José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2017, p. 219-220).

[12] Segundo ARISTÓTELES: “Sendo os fins, então, aquilo a que nós aspiramos, e os meios aquilo sobre que deliberamos e que escolhemos, as ações relativas aos meios devem estar de acordo com a escolha e ser voluntárias. Ora: o exercício da excelência moral também está ao nosso alcance, da mesma forma que a deficiência moral” (Op. cit., p. 78).

[13] De acordo com CHALITA: “Agir segundo a excelência significa realizar completamente uma atividade, partindo das intenções existentes no início – e que colocaram a ação em movimento – até os seus fins, que devem ser bons. Em primeiro lugar, portanto, a excelência depende da submissão das ações a boas finalidades. Ter boas intenções, bons objetivos, é fundamental para um comportamento ético. Mas, além disso, é preciso que a atividade em si também seja boa. Queremos dizer que boas finalidades exigem bons meios para serem alcançadas. Por isso, as atividades que produzem boas realizações são aquelas executadas segundo a excelência, que diz respeito, acima, de tudo ao modo como as ações são levadas a cabo. A excelência é como um modelo para toda a atividade ética. E pode ser intelectual ou moral” (CHALITA, Gabriel. Os dez mandamentos da ética. São Paulo: Editora Loyola, 2017, p. 45-46)

[14] Para ARISTÓTELES: “A excelência moral se relaciona com as emoções e ações, e somente as emoções e ações voluntárias são louvadas e censuradas, enquanto as involuntárias são perdoadas, e às vezes inspiram piedade” (Op. cit., p. 69).

[15] Nesse sentido, ARISTÓTELES: “Se está ao nosso alcance, então praticar atos nobilitantes ou ignóbeis, e se isto era o que significava ser bom ou mau, está igualmente ao nosso alcance ser moralmente excelentes ou deficientes” (Op. cit., 79).

[16] Nesse sentido, leciona CHALITA (Op. cit., p. 50).

[17] Segundo CHALITA: “(…) a ética se relaciona intimamente com os costumes, com o cotidiano, com as ações que mostram o que e como somos, mostram os nossos valores, o nosso caráter, o nosso coração. Desse modo, para sermos bons e alcançarmos os objetivos da ética, ou seja, as boas finalidades temos de praticar os bons hábitos “(Idem, p. 51).

[18]Conforme ANTISERI e REALI: “A característica comum a todas as virtudes éticas, vale a pena esclarecer, consiste no justo meio, que é a superação do excessivo. E o ‘excessivo’ é tanto o ‘excessivamente muito’ quanto o ‘excessivamente pouco’, a virtude implica, pelo contrário, a justa proporção, que é o caminho intermediário entre dois excessos, ou seja, entre o muito e o muito pouco.

Platão dizia que esse justo meio em relação a nós consiste no conveniente, no oportuno, no obrigatório.

Naturalmente, ‘excesso’ ou ‘carência’ e ‘justo meio’ nas virtudes morais dizem respeito – esclarece Aristóteles – a sentimentos, paixões e ações” (Op. cit, p. 245).

“O imperativo de agir segundo o meio-termo, como chave para atingir a excelência moral, aponta para a realidade humana em que o comportamento ético só pode acontecer com um equilíbrio adequado entre razão e emoção, conhecimento e esperança, consciência e desejo” (CHALITA, Op. cit,, p. 59).

[19] Segundo ARISTÓTELES: “(…) a justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo. E por isto que se consideram que se bem ditas as palavras de Bias: ‘O exercício do poder revela o homem’, pois os governantes exercem necessariamente o seu poder em relação aos outros homens e ao mesmo tempos são membros da comunidade” (Op. cit., p. 123).

[20] “O termo ‘injusto’ se aplica tanto às pessoas que infringem a lei quanto às pessoas ambiciosas (no sentido de quererem mais do que aquilo a que tem direito) e iníquas, de tal forma que obviamente as pessoas cumpridoras da lei e as pessoas corretas serão justas. O justo, então é aquilo que é conforme a lei e o correto, e o injusto é o ilegal e iníquo” (Aristóteles, Op. cit., p. 122).

[21] Chalita, Op.cit, p. 93.

[22] Idem, p. 123.

[23] “Já que tanto o homem injusto quanto o ato injusto são iníquos, é óbvio que há também um meio termo entre as duas iniquidades existentes em cada caso. Este meio termo é o igual, pois em cada espécie de ação na qual há um ‘mais’ e um ‘menos’ há também um ‘igual’. (…) Ora: a igualdade pressupõe no mínimo dois elementos; o justo, então, deve ser um meio termo, igual e relativo (por exemplo, justo para certas pessoas), e na qualidade de meio termo ele deve estar entre determinados extremos (respectivamente ‘maior’ e ‘menor’); na qualidade de igual ele pressupõe duas participações iguais; na qualidade de justo ele o é para certas pessoas” (ARISTÓTELES, Op. cit.,  p. 126-127).

[24] Segundo ARISTÓTELES: “A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que em TODOS os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente” (Idem, p. 136).

[25] Quanto à relação entre política ética para Aristóteles, REALE e ANTISERI esclarecem que: “(…) à política compete uma função arquitetônica, de comando: a ela cabe determinar ‘quais ciências são necessárias na Cidade, e quais cada um deve apreender e até que ponto’. Porém, é verdade que, como revelou um estudioso, à medida que Aristóteles avança a sua Ética, a relação entre indivíduo e Estado ameaça inverter-se. Todavia, esse fato, que de per si é importantíssimo, não é levado por Aristóteles ao nível de consciência crítica, e menos que nunca são por ele abordadas aquelas consequências que, no máximo, teriam rompido a impostação geral da ‘filosofia do homem’. Os condicionamentos histórico-culturais pesaram mais que as conclusões especulativas, e a polis continuou sendo, para o Estagirita, fundamentalmente, o horizonte que encerra os valores do homem” (Op. cit, p. 217).

[26] CHALITA, Op. cit., p. 97.

[27] Quanto ao tema, são pertinentes os ensinamentos de CHALITA: “(…) como é importante a relação entre justiça e política, e como a redação de boas leis e a obediência a elas é fundamental para que a justiça política se traduza na forma de uma sociedade ética, de bem-estar social e econômico” (CHALITA, Op. cit., p. 99).

[28] Idem, p. 145.

[29] “A liberdade de expressão significa o direito de falar e ser ouvido, e na medida em que a razão humana não é infalível, tal liberdade permanecerá um pré-requisito para a liberdade de pensamento. Liberdade de pensamento sem liberdade de expressão é uma ilusão” (ARENDT, Hannah. Revolução e Liberdade. In: Ação e a Busca da Felicidade. Organização e notas Heloisa Starling; tradução Virgínia Starling. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018, p. 200).

[30] Quanto ao tema as lições DAHL são precisas: “Por que a democracia exige a liberdade de expressão? Para começar, a liberdade de expressão é um requisito para que os cidadãos realmente participem da vida política. Como poderão eles tornar conhecidos seus pontos de vista e persuadir seus camaradas e seus representantes a adotá-los, a não ser expressando-se livremente sobre todas as questões relacionadas à conduta do governo? Se tiverem de levar em conta as ideias de outros, será preciso escutar o que esses outros tenham a dizer. A livre expressão não significa apenas ter o direito de ser ouvido, mas ter também o direito de ouvir o que os outros têm a dizer.

Para se adquirir uma compreensão esclarecida de possíveis atos e políticas do governo, também é preciso liberdade de expressão.” (DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001, 2016 (2ª. Reimpressão), p. 110-111).

[31] Conforme ÁVILA: “(…) o indivíduo só tem liberdade quando tem capacidade de saber sobre o que decidir, de querer conscientemente decidir em determinado sentido e de arcar responsavelmente com as consequências de sua decisão”. (ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 29).

[32] Quanto à extensão do direito à liberdade de expressão adota-se aqui o entendimento externado por TAVARES: “(…) depreende-se que a liberdade de expressão é direito genérico que finda por abarcar um sem-número de formas e direitos conexos e que não pode ser restringido a um singelo externar sensações ou intuições, com a ausência da elementar atividade intelectual, na medida em que a compreende. Dentre os direitos conexos presentes no gênero liberdade de expressão podem ser mencionados, aqui, os seguintes: liberdade de manifestação do pensamento; de comunicação; de informação; de acesso à informação; de opinião de imprensa, de mídia, de divulgação e de radiodifusão” (TAVARES. André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 14ª. ed. São Pulo, Saraiva, 2016, p. 480). Contudo, não se trata de entendimento unânime, para NUNES JÚNIOR, no que se refere à liberdade de expressão: “(…) a expressão diz com a sublimação da forma das sensações humanas. Ou seja, por intermédio dela o indivíduo exterioriza suas sensações, seus sentimentos ou sua criatividade, independentemente da formulação de convicções, juízos de valor ou conceitos, como na hipótese já ventilada do direito de opinião” (NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Direito e Jornalismo. São Paulo: Editora Verbatim, 2011, p. 41).

[33] [33] SAUSURRE diferencia língua de linguagem: “Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É , ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem, é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e ao mínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade.

A língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de classificação. Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação” (SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 28ª. Ed, São Paulo: Editora Cultrix, 2012, p. 17).

[34] Segundo Valente: “Apesar das muitas disputas sobre os contornos do conceito, é relativamente assentado que o discurso de ódio é uma conduta, e não uma mera opinião – por isso faz sentido regulá-lo, ainda que a extensão dessa regulação seja objeto de importantes dissensos.

O efeito dessa conduta é intimidatório, e a intimidação em questão depende de muitos fatores contextuais. Quem diria que postar uma imagem de uma lâmpada fluorescente no perfil de uma pessoa nas redes sociais poderia ser uma mensagem intimidatória? Se a pessoa for LGBT e o post acontecer no Brasil, certamente é. Em 2010, na Avenida Paulista, em São Paulo, um jovem foi espancado por outros cinco jovens que portavam duas lâmpadas florescentes até ficar desacordado, em agressão com clara motivação homofóbica. A lâmpada virou um símbolo de resistência da comunidade LGBT na cidade – formou-se um grupo chamado “A revolta da Lâmpada”, que começou a organizar atos de rua anuais; enquanto isso usuários de redes sociais começaram a denunciar o recebimento de fotos de lâmpadas como resposta a postagens suas” (VALENTE, Mariana Giorgetti. Liberdade de expressão e discurso de ódio na internet. In: FARIA, José Eduardo (org). A liberdade de expressão e as novas mídias. São Paulo: Perspectiva, 2020, p.84-85).

[35] Como explica VALENTE: “O discurso de ódio não existe de forma dissociada dos fenômenos relacionados – racismo, sexismo, homofobia, transfobia – e faz, assim, parte de um sistema de dominação social, por influenciar muitos aspectos da vida dos indivíduos. Logados que estão a estratificações sociais, os discursos de ódio podem ser entendidos como tal quando são direcionados a grupos que se encontram em uma momentânea ou perene de desigualdade de status (e contribuem ara sua manutenção)” (Ibidem). O “hate speech” pode, ainda, direcionar-se a imigrantes ou indivíduos que professam determinada crença religiosa (Waldron, Jeremy. The harm in hate speech. Cambridge: Harvard University Press, 2014, p. 1-3).

[36] Segundo Waldron, o “hate speech” é calculado para minar a dignidade da minoria que é alvo do discurso. Este busca manchar a reputação desse grupo, ao associar determinadas características (como etnia, raça ou religião) a atributos ou condutas que irão desqualificar esse indivíduos diante do corpo social, de modo que não sejam vistos como membros da sociedade em boa posição (WALDRON, Jeremy. Idem, p. 5).

[37] Nesse contexto, FISS destaca que: “Mesmo quando essas vítimas falam, falta autoridade às suas palavras; é como se elas nada dissessem” (FISS, Owen. A ironia da liberdade de expressão: estado, regulação e diversidade na esfera pública. Tradução e prefácio de Gustavo Bienbojm e Caio Mario da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 47).

[38] “Daí a sempre atual lição de Hans Kelsen (1993, p. 69-70): ‘(…) Uma ditadura da maioria sobre a minoria não é possível, a longo prazo, pelo simples fato de que uma minoria, condenada a não exercer absolutamente influencia alguma, acabará por renunciar à participação – apenas formal e por isso, para ela, sem valor e até danosa – na formação da vontade geral, privando, com isso, a maioria – que, por definição, não é possível sem a minoria – de seu próprio caráter de maioria. (…)’” (AMARAL JÚNIOR, José Levi. O Poder Legislativo na democracia contemporânea. Brasília a. 42 n. 168 out./dez. 2005. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/42/168/ril_v42_n168_p7.pdf; Acesso em: 20.06.2022).

[39] DAHL, Robert A. Op. cit., p. 111.

[40] SARMENTO lembra que: “O fato de uma ideia ser considerada errada não é base suficiente para a sua supressão da arena de discussão. Este é o pilar fundamental da liberdade de expressão, que não deve ser ameaçado. Mais relevante do que o erro é a constatação de que as expressões de ódio, intolerância e preconceito manifestadas na esfera publica não só́ não contribuem para um debate racional, como comprometem a própria continuidade da discussão. Portanto, a busca da verdade e do conhecimento não justifica a proteção ao hate speech, mas, pelo contrário, recomenda a sua proibição” (SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do “hate speech”. Disponível em:

http://professor.pucgoias.edu.br/sitedocente/admin/arquivosUpload/4888/material/a-liberdade-de-expressao-e-o-problema-do-hate-speech-daniel-sarmento.pdf; acesso em 20.06.2022).

[41] De acordo com John Stuart Mill, se toda a humanidade tivesse uma opinião, e apenas uma pessoa tivesse a opinião contrária, os restantes seres humanos teriam tanta justificativa para silenciar aquela pessoa quanto esse indivíduo teria justificação para silenciar a humanidade, se tivesse poder para tal. Mas o mal peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é que isso constitui um roubo à raça humana; à posteridade, bem como à geração atual; aos que discordam da opinião, mais ainda do que aos que a defendem. Se a opinião for correta, eles serão privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade: se errados, perdem, o que é um benefício quase tão grande, a percepção mais clara e viva da verdade, produzida por sua colisão com o erro (MILL, John Stuart. On Liberty. Amazon Classics Edition, p. 18).

[42] Do pensamento de STUART MILL, adveio a concepção do “mercado de ideias, defendida por OLIVER HOLMES, no caso Abrams v. United States, 250 U.S. 616, 630-1 (1919). De acordo com SUNSTEIN, o “mercado de ideias” de Holmes constrói uma forte proteção para o discurso em duas bases: ceticismo sobre a compreensão prevalecente da verdade e a metáfora da “competição no mercado”. A própria verdade é definida por referência ao que surge por meio do “livre comércio de ideias”. A competição do mercado é a concepção que rege a liberdade de expressão. Para ele, a própria política é um mercado como qualquer outro. Holmes não parece dar valor à discussão política. Abrams envolveu um dissidente político, mas Holmes não enfatiza esse ponto. Seu raciocínio parece se aplicar a todos os discursos, sejam políticos ou não. Finalmente, o valor da fala é instrumental no sentido de que está relacionado com o surgimento da verdade. Holmes não sugere que a liberdade de expressão seja um bem em si. Esta é clara e conscientemente uma concepção de mercado de liberdade de expressão, que está intimamente ligada às teorias de mercado da política de Holmes.  (SUNSTEIN, Cass R. Democracy and the Problem of Free Speech. Free Press. Edição do Kindle, p. 25)

[43] Nesse sentido, é o entendimento de DWORKIN: “(…) não existe contradição nenhuma em insistir em que toda ideia deve ter a possibilidade de ser ouvida, mesmo aquela que tem por consequência fazer com que outras ideias sejam mal compreendidas, desconsideradas ou mesmo silenciadas, na medida em que os que poderiam expressá-las não controlam sua própria identidade pública e portanto não podem ser vistos pelos outros como gostariam de ser. Sem dúvida essas consequências são muito indesejáveis e devem ser combatidas por todos os meios autorizados por  nossa Constituição. Porém, nem por isso os atos que têm essas consequências negativas privam as pessoas de sua liberdade de expressar; e essa distinção, como insistia Berlin, está longe de ser arbitrária ou inconsequente” (DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla; revisão técnica: Alberto Alonso Muñoz. 2. Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019, p. 357-358)

[44]São pertinentes as advertências de Daniel Sarmento: “É preciso evitar a todo custo que este direito fundamental tão importante para a vitalidade da democracia e para a autorrealização individual torne-se refém das doutrinas morais majoritárias e das concepções sobre o ‘politicamente correto’, vigentes em cada momento histórico” (Ibidem).

[45] Nesse contexto, a igualdade deve ser entendida como primeiro princípio de justiça de John Rawls. Para este filósofo, há dois princípios de justiça, o primeiro deles é a igualdade, que deve ser entendida da seguinte forma: “(…) cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoas” (RAWLS, John. Uma teoria de justiça. Tradução Jussara Simões; revisão técnica e de tradução Álvaro de Vita. 4ª. ed. rev. São Paulo: Martins Fontes – Selo Martins, 2016, p. 73).

[46] Como lembra CHALITA: “(…) falar sobre o bem e discutir a excelência, no fundo, são apenas modos distintos de abordar a questão ética em todas as atividades que realizamos” (Op. cit., p. 45).

[47] ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 12.

[48] Ibidem.

[49] Ibidem.

[50] Ibidem.

[51] ÁVILA, Humberto. Constituição, liberdade e interpretação. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 75.