O PRINCÍPIO DA NÃO REGRESSÃO AMBIENTAL E A FLEXIBILIZAÇÃO DE LICENCIAMENTOS AMBIENTAIS EM LEGISLAÇÕES BRASILEIRAS

O PRINCÍPIO DA NÃO REGRESSÃO AMBIENTAL E A FLEXIBILIZAÇÃO DE LICENCIAMENTOS AMBIENTAIS EM LEGISLAÇÕES BRASILEIRAS

31 de maio de 2023 Off Por Cognitio Juris

THE PRINCIPLE OF ENVIRONMENTAL NON-REGRESSION AND THE FLEXIBILITY OF ENVIRONMENTAL LICENSING IN BRAZILIAN LEGISLATION

Artigo submetido em 21 de março de 2023
Artigo aprovado em 27 de março de 2023
Artigo publicado em 31 de maio de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 46 – Maio de 2023
ISSN 2236-3009

Autor:
Laíza Bezerra Maciel[1]
Berenice Miranda Batista[2]

RESUMO

A flexibilização do processo de licenciamento ambiental pode ter impactos significativos na sociedade. A discussão teve visibilidade com a tramitação do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 6.672 sobre a redução de requisitos e etapas no licenciamento ambiental de atividades de lavra de garimpo. A repercussão sobre o caso pode representar violação do princípio da proibição ao recuo em matéria de direito ambiental. Por isso, a pesquisa teve como objetivo relacionar o princípio da vedação ao retrocesso ambiental com as políticas de flexibilização do processo de licenciamento ambiental no que tange às atividades de garimpo no Estado de Roraima. Para a elaboração da pesquisa, utilizou-se o método dedutivo, o qual buscou compreender as contribuições do direito administrativo aplicadas na prática ambiental, a partir do estudo bibliográfico de obras, pesquisas interdisciplinares e entendimentos jurisprudenciais. Por fim, verificou-se a possibilidade de aplicação do princípio da vedação ao retrocesso ambiental em casos legislativos e administrativos que simplifiquem regras no processo de licenciamento ambiental.

PALAVRAS-CHAVE: flexibilização ambiental; legislações estaduais; violação de princípio.

ABSTRACT

The environmental licensing process flexibility can have significant impacts on society. The discussion had visibility with the processing of the Federal Supreme Court in the Direct Action of Unconstitutionality n° 6.672 on the reduction of requirements and steps in the environmental licensing of mining activities. The repercussions of the case may represent a violation of the principle of prohibition of retreat in matters of environmental law. Therefore, the research aimed to relate the principle of prohibition of environmental setbacks with policies to make the environmental licensing process more flexible with regard to mining activities in the State of Roraima. For the development of the research, the deductive method was used, which sought to understand the contributions of administrative law applied in environmental practice, from the bibliographic study of works, interdisciplinary research and jurisprudential understandings. Finally, it was verified the possibility of applying the principle of prohibition of environmental setbacks in legislative and administrative cases that simplify rules in the environmental licensing process.

KEY WORDS: environmental flexibility; state laws; breach of principle.

Considerações iniciais

A flexibilização do processo de licenciamento ambiental pode ter impactos significativos na sociedade. O licenciamento ambiental é um processo importante que visa garantir que as atividades humanas, como a construção de infraestrutura, a mineração e a agricultura, sejam realizadas de maneira sustentável e minimizem os impactos negativos ao meio ambiente. A discussão recebeu visibilidade, em razão das mudanças nas políticas ambientais que visam flexibilizar regras e regulamentações em relação à proteção ambiental.

Com isso, a redução das exigências de licenciamento ambiental para determinadas atividades econômicas e a limitação das multas ambientais são frequentemente justificadas como forma de estimular o crescimento econômico, proporcionar empregos e reduzir as atividades burocráticas. No entanto, essas políticas podem afetar a capacidade do país de cumprir seus compromissos internacionais relacionados ao meio ambiente e às mudanças climáticas.

Além disso, a redução de exigências legais no processo de licenciamento ambiental pode permitir que atividades potencialmente poluidoras sejam realizadas sem uma avaliação rigorosa dos seus impactos e sem a adoção de medidas de mitigação adequadas. Isso pode resultar em danos ambientais irreversíveis como a destruição de ecossistemas, a contaminação de solos e águas e o prejuízo à saúde das comunidades próximas às atividades. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal analisou a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 6.672 quanto à lei estadual que simplifica o licenciamento ambiental para atividades de lavra garimpeira, inclusive com o uso de mercúrio, no Estado de Roraima.

A flexibilização de licenciamentos ambientais, por meio de legislações estaduais, pode representar a violação do princípio da vedação ao retrocesso em matéria de direito ambiental. Ao reduzir os requisitos ou dispensar etapas no licenciamento, o Estado permite a realização de empreendimentos e atividades que possam causar danos e prejuízos irreversíveis, sem a devida análise e avaliação de possíveis impactos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

O caso representa um retrocesso em relação aos avanços já alcançados na proteção ambiental, comprometendo o direito das gerações presentes e futuras a um meio ambiente saudável. É necessário, dessa forma, que as leis estaduais as quais abordam a temática sobre licenciamento ambiental de atividades potencialmente poluidoras sejam analisadas cuidadosamente, avaliando também as repercussões sociais, para que não representem uma violação à proteção de direitos fundamentais.

O princípio da vedação ao retrocesso ambiental constitui uma das bases do direito ambiental moderno, de modo que é usado como uma ferramenta para avaliar a adequação das leis e políticas públicas em relação aos objetivos da proteção ambiental e do desenvolvimento sustentável. O estudo proposto expõe a relevância da temática nas diferentes áreas do direito, contribuindo para o avanço do conhecimento científico e para a discussão de políticas públicas promovidas a serem mais efetivas quanto à proteção do meio ambiente.

Por esse motivo, a presente pesquisa tem como objetivo relacionar o princípio da vedação ao retrocesso ambiental com as políticas de flexibilização do processo de licenciamento ambiental no que tange às atividades de garimpo no Estado de Roraima. Para o desenvolvimento deste trabalho, utilizar-se-á a lógica dedutiva, visando compreender as importantes contribuições das ciências jurídicas para a elucidação de aspectos do direito administrativo aplicados na prática ambiental. A pesquisa bibliográfica será impulsionada pela leitura de diferentes obras e pesquisas interdisciplinares, além da interpretação jurídica de tribunais.

1 O princípio da vedação ao retrocesso ambiental

O princípio da vedação ao retrocesso é uma importante premissa do direito ambiental moderno que estabelece ser proibido retroceder em termos de proteção ambiental, ou seja, uma vez estabelecidas normas ou políticas públicas que visem à proteção do meio ambiente, não é permitido que sejam revogadas ou enfraquecidas, sob pena de prejudicar o direito das gerações presentes e futuras a um meio ambiente equilibrado e saudável.

Para Machado (2020, p. 147-148), compreende-se o conceito do princípio da não regressão como uma forma inovadora na França. O entendimento legal francês prevê que a ação de melhoria constante do meio ambiente, assegurada pelas disposições legislativas e regulamentares, deve ser fundada em conhecimentos técnicos e científicos atuais. Por consequência, tal princípio deve abranger, além dos direitos de interesse coletivo e difuso, direitos transindividuais como o direito à saúde e o direito à educação.

Embora não seja um tema de fácil conceituação, o princípio da não regressão deve ser visto como uma premissa prevista também em ordenamentos jurídicos internacionais. Por essa razão, torna-se uma importante ferramenta para que a evolução em matéria ambiental obtida ao longo do tempo seja preservada, impedindo, dessa forma, que haja a possibilidade de reversibilidade quanto aos avanços já alcançados.

Ao abordar sobre a principiologia do direito ambiental brasileiro, Amado (2020) propõe a seguinte definição para o referido princípio:

De acordo com este princípio, especialmente voltado ao Poder Legislativo, é defeso o recuo dos patamares legais de proteção ambiental, salvo temporariamente em situações calamitosas, pois a proteção ambiental deve ser crescente, não podendo retroagir, máxime quando os índices de poluição no Planeta Terra crescem a cada ano (AMADO, 2020, p. 103-104).

Diante disso, observa-se que decorre da natureza fundamental do direito ao meio ambiente equilibrado. Esse princípio tem como objetivo garantir a continuidade e aperfeiçoamento das legislações ambientais e das políticas públicas em busca de uma proteção cada vez mais eficiente da atuação do Poder Público e da sociedade civil. Em caráter excepcional, admite-se a possibilidade de se afastar tal premissa, considerando casos de situações calamitosas ou desde de que seja justificada pela proteção a outro direito fundamental.

O não retrocesso em matéria de direitos fundamentais não é uma temática nova e, segundo Milaré (2015), o princípio da vedação ao retrocesso tem o importante dever de amparar o progresso na proteção do meio ambiente:

A proibição do retrocesso em matéria ambiental vem exatamente no sentido de garantir que no evoluir do tempo, e da edição de novas normas e de sua aplicação, também se mantenha o piso de garantias constitucionalmente postas ou se avance na proteção do meio ambiente (MILARÉ, 2015, p. 277).

Os reflexos da premissa da proibição ao retrocesso ambiental pode ser observado em legislações brasileiras. A Constituição Federal Brasileira de 1988 no artigo 225, caput, estabelece o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental, o qual deve ser protegido pelo Poder Público e pela sociedade. Isso significa que o Estado e a coletividade devem atuar para a garantia de uma ambiente sadio e o desenvolvimento sustentável, assegurando o avanço nas políticas e práticas ambientais.

A partir desse dispositivo, é possível delinear alguns princípios que norteiam o direito ambiental brasileiro. Embora seja considerada uma premissa implícita com previsão no artigo 225, caput e seus parágrafos da Constituição Federal, a não regressão em matéria ambiental pode ser interpretada, a partir de uma representação lógica. Se ora o legislador constitucional incumbe ao Poder Público assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente saudável e, para isso, pode utilizar de políticas públicas e adotar medidas legislativas e administrativas adequadas, por consequência não se faz razoável empregar ações que prejudiquem a qualidade de vida das pessoas e meio ambiente.

Em análise de legislações infraconstitucionais, a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) tem como objetivo visar ao estabelecimento de critérios e padrões de qualidade ambiental e de normas relativas ao uso e manejo de recursos ambientais. Assim, o texto do artigo 4°, inciso III da Lei n° 6.938/81 prevê a obrigatoriedade da instituição de critérios necessários para se alcançar a preservação da biodiversidade, vedando qualquer prática que comprometa a qualidade dos recursos naturais.

Outro exemplo de fundamentação do princípio da proibição ao retrocesso que pode ser verificado está no Código Florestal. O artigo 4º da Lei n° 12.651/12 estabelece a proteção das áreas de preservação permanente, determinando que as áreas já existentes devem ser recuperadas quando degradadas. Tal dispositivo define o tamanho das áreas a serem protegidas, de modo que qualquer medida legislativa e administrativa estadual ou municipal que reduza o tamanho das áreas de preservação permanente, por exemplo, não teria aplicabilidade por força do princípio da proibição ao retrocesso.

O princípio em discussão é admissível em todas as esferas da administração pública e do Poder Judiciário. Ele é uma garantia essencial para impedir que sejam adotadas medidas resultantes no enfraquecimento das normas e políticas ambientais já existentes. Dessa forma, os exemplos legais mencionados estabelecem parâmetros no direito ambiental brasileiro, aos quais não poderão sofrer limitações ou reduções ao longo do tempo, considerando a necessidade de continuidade na proteção de direitos transindividuais.

No atual panorama, são várias as ameaças que podem ensejar uma retração do Direito Ambiental, desde assuntos políticos, econômicos e psicológicos. Ao tratar sobre o tema em discussão, Prieur (2011) sustenta alguns apontamentos sobre as causas de um possível retrocesso na proteção ambiental em um contexto global:

No atual momento, são várias as ameaças que podem ensejar o recuo do Direito Ambiental: a) ameaças políticas: a vontade demagógica de simplificar o direito leva à desregulamentação e, mesmo, à “deslegislação” em matéria ambiental, visto o número crescente de normas jurídicas ambientais, tanto no plano internacional quanto no plano nacional; b) ameaças econômicas: a crise econômica mundial favorece os discursos que reclamam menos obrigações jurídicas no âmbito do meio ambiente, sendo que, dentre eles, alguns consideram que essas obrigações seriam um freio ao desenvolvimento e à luta contra a pobreza; c) ameaças psicológicas: a amplitude das normas em matéria ambiental constitui um conjunto complexo, dificilmente acessível aos não especialistas, o que favorece o discurso em favor de uma redução das obrigações do Direito Ambiental (PRIEUR, 2011, p. 12).

As modificações aportadas às regras procedimentais, o que inclui a redução de direitos à informação ou à participação do público, sob os argumentos de serem procedimentos dispendiosos e extremamente burocráticos são uma das formas de conduzir para um cenário propício a transformações que causam prejuízos às legislações protetivas atuais. No Brasil, tem-se utilizado outras medidas com o intuito de aliviar as obrigações em processos de licenciamento ambiental e de modificar ou abrandar as regras em vigor.

O princípio da proibição ao retrocesso institui sua importância nas ciências jurídicas, pois está relacionado com outras premissas, entre elas: a prevenção, a precaução, a participação democrática e a segurança jurídica. A prevenção estabelece a necessidade de medidas antecipadas para evitar danos ambientais, enquanto a precaução determina que, na ausência de certeza científica sobre os impactos de atividade potencialmente poluidora, é preciso agir previamente e com cautela para minimizar eventuais prejuízos ao meio ambiente. Assim, impede-se o recuo em matéria ambiental quanto às decisões judiciais, às legislações ou aos atos administrativos.

Por sua vez, a participação democrática indica que a sociedade deve participar, de forma efetiva, nas decisões que afetam o meio ambiente. A premissa do não retrocesso também estabelece relações com o princípio da participação democrática, pois admite a participação da sociedade civil em defesa dos interesses coletivos e difusos e impede que, sem a devida informação do público e a participação na tomada de decisões, sejam privados direitos ambientais já alcançados.

A segurança jurídica é outro aspecto de associação com o pressuposto de proibição ao retrocesso ambiental. Isso significa que as normas e decisões judiciais devem ser claras e coerentes ao longo tempo, considerando critérios razoáveis e proporcionais às circunstâncias do fato, a fim de garantir a estabilidade das relações jurídicas. Dessa forma, a segurança jurídica é fundamental para a confiabilidade na imparcialidade do sistema judicial e administrativo, o que impede as alterações, de forma arbitrária e com motivações políticas, em regulamentações ambientais.

Para corroborar com essa argumentação, Prieur (2011, p. 16) afirma que a não regressão se funda como um princípio fundamental no Direito Ambiental, em razão de três elementos: a própria finalidade do Direito Ambiental, a necessidade de afastar a premissa da mutabilidade do direito e a intangibilidade do direito ambiental. O direito ambiental possui um caráter finalista, uma vez que seu objetivo não é apenas a regulamentação, mas proporcionar uma reação ao esgotamento dos recursos naturais e à eventual degradação do meio ambiente para a melhoria da qualidade de vida das presentes e futuras gerações.

Ao conceber o direito ao meio ambiente como um direito humano fundamental por meio de tratados e convenções internacionais, inclusive no direito interno brasileiro, há o reconhecimento da necessidade de um desenvolvimento contínuo e progressivo do exercício do direito ao ambiente saudável, tal como se admite essa característica nos direitos humanos. Desse modo, afastar a possibilidade de mutabilidade do direito e assumir a intangibilidade do direito ambiental estão em sinergia com o caráter finalista desse direito, contribuindo para o desenvolvimento de uma sociedade justa e democrática.

2 A flexibilização do licenciamento ambiental em leis estaduais

A flexibilização ambiental é um termo utilizado para descrever as mudanças nas políticas ambientais que visam tornar menos rígidas as legislações em relação à proteção do meio ambiente. No cenário brasileiro, a flexibilização ambiental pode ser vista como uma tendência a incentivar o desenvolvimento econômico, a partir da mitigação de algumas regulamentações administrativas.

O movimento de flexibilização ambiental inclui a redução das obrigações exigidas em licenciamento ambiental para determinadas atividades econômicas, a redução de áreas protegidas ou a redução das multas ambientais. Essas medidas são frequentemente justificadas como forma de estimular o crescimento econômico, gerar empregos e sintetizar as exigências burocráticas. Recentemente, esse movimento recebeu visibilidade por resultarem de motivações de cunho político e econômico que, a longo prazo, podem gerar consequências graves e irreversíveis ao meio ambiente e à saúde pública.

Para exemplificar esse movimento de flexibilização ambiental, o licenciamento ambiental foi objeto de interesse para a redução das condições impostas ao agente poluidor em processos de licenciamento ambiental. A Lei Ordinária n° 1.453 de 2021, de Roraima, que institui o licenciamento para atividade de lavra garimpeira no estado, teve a suspensão determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Trata-se de um caso concreto, objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 6.672 RR, ajuizada pelo Partido Rede Sustentabilidade, sobre a possibilidade de lei estadual instituir regras para o licenciamento ambiental de atividade de mineração, conforme observado na seguinte decisão:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL E AMBIENTAL. FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA. LEI ESTADUAL QUE SIMPLIFICA LICENCIAMENTO AMBIENTAL PARA ATIVIDADES DE LAVRA GARIMPEIRA, INCLUSIVE COM USO DE MERCÚRIO. INVASÃO DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA EDITAR NORMAS GERAIS SOBRE PROTEÇÃO AMBIENTAL. DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE JAZIDAS, MINAS E OUTROS RECURSOS MINERAIS. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A competência legislativa concorrente cria o denominado “condomínio legislativo” entre a União e os Estados-Membros, cabendo à primeira a edição de normas gerais sobre as matérias elencadas no art. 24 da Constituição Federal; e aos segundos o exercício da competência complementar – quando já existente norma geral a disciplinar determinada matéria (CF, art. 24, § 2º) – e da competência legislativa plena (supletiva) – quando inexistente norma federal a estabelecer normatização de caráter geral (CF, art. 24, § 3º). 2. A possibilidade de complementação da legislação federal para o atendimento de interesse regional (art. 24, § 2º, da CF) não permite que Estado-Membro simplifique o licenciamento ambiental para atividades de lavra garimpeira, esvaziando o procedimento previsto em legislação nacional. Precedentes. 3. Compete privativamente à União legislar sobre jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia (art. 22, XII, da CF), em razão do que incorre em inconstitucionalidade norma estadual que, a pretexto de regulamentar licenciamento ambiental, regulamenta aspectos da própria atividade de lavra garimpeira. Precedentes. 4. Medida cautelar confirmada. Ação julgada procedente. (ADI 6672, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 15/09/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-189 DIVULG 21-09-2021 PUBLIC 22-09-2021).

A medida, suspendendo os efeitos da Lei Ordinária n° 1.453 de fevereiro de 2021, foi concedida em caráter cautelar pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal. Isso porque a norma, a vigorar em todo o território roraimense, autorizava o aumento do limite máximo para concessão de licenciamento a cooperativas garimpeiras de 50 hectares para 200 hectares, a concessão de licença de operação única e a permissão do uso de mercúrio para extração do ouro nas lavras licenciadas para tal.

Além disso, a aprovação da lei e sanção pelo Governador do Estado se deu sem que fossem consultados órgãos técnicos relevantes e, em consequência, sem a realização de audiências públicas com a sociedade civil. Não fora concedido qualquer mecanismo que contribuísse para o debate público e transparente a respeito dos termos do projeto de lei, os possíveis danos ao meio ambiente e à qualidade de vida de comunidades indígenas e não indígenas.

A repercussão sobre a lide baseia-se em duas teses sobre a inconstitucionalidade: a criação de modalidade de licenciamento ambiental simplificado e a regulamentação de aspectos de atividade mineradora. A primeira situação trata da proibição dos Estados-membros divergirem da sistemática de caráter geral sobre licenciamento ambiental definida em pela Constituição Federal e Lei Complementar n° 140 de 2011. Já a segunda tese apresentada abrange os aspectos de formalidades quanto à competência privativa da União de legislar sobre assuntos que envolvam jazidas, minas e outros recursos minerais.

Para esclarecer o caso, é necessário preliminarmente discorrer sobre a organização político-administrativa a qual aborda, em específico, as competências legislativas comuns e concorrentes da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios. Apesar da repartição de competências possuir um rol extensivo, a distribuição das competências tem o intuito de evitar a concentração de atribuições de poder a apenas um ente federativo. Por essa razão, deve-se fazer algumas considerações sobre alguns dispositivos constitucionais e infraconstitucionais para a compreensão dos elementos materiais e formais de inconstitucionalidade argumentados na mencionada ADI.

O artigo 23, incisos VI, VII e parágrafo único da Constituição Federal dispõe sobre a competência comum dos entes federativos na proteção do meio ambiente e no combate a poluição em qualquer de suas formas, além do dever de preservação das florestas, da fauna e da flora. Busca-se, dessa forma, a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício dessas atribuições e, considerando a harmonia entre a atuação entre os entes federativos, a Lei Complementar irá fixar normas, observando o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.

O dispositivo do artigo 24, incisos VI, VII e VIII, por sua vez, abrange sobre a competência da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal legislar concorrentemente quanto a conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição, proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico e paisagístico, além de responsabilidade por dano ao meio ambiente. Ainda que seja atribuído à União estabelecer normas gerais, não se exclui a competência suplementar dos Estados-membros para legislar sobre tais assuntos, desde que seja para atender suas peculiaridades, nos moldes do artigo 24, § 1°, § 2° e § 3° da Constituição Federal.

Considerada a predominância do interesse na uniformidade de tratamento sobre assuntos ambientais em todo território nacional, a Lei Complementar n° 140 de 2011 dispõe também sobre as atribuições dos entes federativos no que tange às atuações administrativas e, especialmente, a promoção do licenciamento ambiental de empreendimentos, nos seguintes termos:

Art. 7o. São ações administrativas da União:

[…]

XIV – promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades:

a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe;

b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva;

c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas;

d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs);

e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados;

f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999;

g) destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen); ou

h) que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento;  

[…]

Art. 8o. São ações administrativas dos Estados:

[…]

XIV – promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7o e 9o;

XV – promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pelo Estado, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs);

Art. 9o. São ações administrativas dos Municípios:

[…]

XIV – observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos:

a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou

b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs);

Além disso, a Política Nacional do Meio Ambiente, Lei n° 6.938 de 1981, institui o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) e confere, nos termos do artigo 8°, inciso I da referida lei, a atribuição para estabelecer normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva e potencialmente poluidoras, a ser concedido pelos Estados. Por isso, a Resolução Conama n° 237 de 1997 surgiu com o objetivo de propiciar a utilização do instrumento do licenciamento ambiental como forma para uma gestão ambiental otimizada.

A Resolução Conama n° 237 prevê, no artigo 8°, três tipos de licenças ambientais que o Poder Público, no exercício de sua função de controle, poderá conceder, entre elas: a Licença Prévia (LP), a Licença de Instalação (LI) e a Licença de Operação (LO). São licenças ambientais que observam a natureza e as especificidades da atividade, bem como compreendem as etapas de planejamento, implantação e operação.

A Licença Prévia (LP) pode ser admitida na fase preliminar do planejamento do empreendimento, com aprovação da localização e concepção, além de atestar a viabilidade ambiental e estabelecer requisitos condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de implementação da atividade. A Licença de Instalação (LI) autoriza a instalação do empreendimento, de acordo com as especificações dos projetos e estudos aprovados, incluindo medidas de controle ambiental e demais condicionantes. E, por último, a Licença de Operação (LO) autoriza a operação da atividade, após a verificação do efetivo cumprimento dos requisitos das licenças anteriores, com medidas de controle ambiental e condicionantes determinados para cada tipo de operação.

Embora os dispositivos sobre o processo de licenciamento ambiental estejam ordenados em legislações esparsas, verifica-se que estão devidamente fundamentadas a competência e as modalidades de licenças ambientais em leis, decretos e resoluções existentes. Por isso, não se admite a criação de uma nova modalidade de licença ambiental, assim como fora proposto nos moldes do artigo 3° da Lei Ordinária n° 1.453 de 2021, do Estado de Roraima:

Art. 3º. O Licenciamento Ambiental para Atividade de Lavra Garimpeira far-se-á por meio de Licença de Operação Direta, a ser expedida pela Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos – FEMARH, devendo ser apresentado estudo ambiental para análise técnica, conforme Termo de Referência constante no Anexo II desta Lei e que dela é parte integrante.

Apesar da possibilidade de complementação da legislação federal em prol de interesses regionais, conforme previsão constitucional mencionada, não se admite que o Estado-membro tenha uma atuação legislativa ou administrativa, a qual flexibiliza o processo de licenciamento ambiental para atividades potencialmente poluidores e de grande impacto a coletividade, tal como a atividade de lavra garimpeira com o uso de mercúrio.

Em princípio, a Resolução Conama n° 237 de 1997 não estabeleceu a possibilidade de estipulação de novos tipos de licença ambiental, pelos demais entes federativos, para qualquer tipo de empreendimento, em substituição às modalidades já previstas ou com a dispensa da obtenção da Licença Prévia, da Licença de Instalação e da Licença de Operação. Compreende-se, a partir da denominação de Licença de Operação Direta, na Lei Ordinária n° 1.453 de 2021, do Estado de Roraima, que se propõe uma simplificação do licenciamento ambiental, exaurindo as etapas do procedimento previsto em legislação nacional.

Ademais, a lei estadual versou sobre assuntos de competência privativa da União,  conforme o artigo 22, inciso XII da Constituição Federal. Jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia são matérias que apenas a União pode propor legislações, o que, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), não cabe ao Estado de Roraima estipular normas sobre o uso de mercúrio na exploração de ouro, nos seguintes termos da referida lei em análise:

Art. 8°. Na lavra de ouro, só será permitido o uso de azougue (mercúrio) para a concentração caso seja apresentado projeto de solução técnica que contemple a utilização do mercúrio em circuito fechado de concentração e amalgamação do minério de ouro e a utilização de retortas e capelas na separação do amálgama e purificação do ouro, respectivamente, com todas as instalações necessárias para a eficiência técnica e ambiental do processo; caso o empreendedor opte por implementar outras técnicas para realizar a concentração do produto, por exemplo, concentração gravítica, concentração por mesa oscilatória, concentrador centrífugo, deverá apresentar a declaração do interessado de não uso de mercúrio e cianeto na atividade de garimpagem de ouro, conforme determina o Decreto nº 97.507/1989.

A Lei Ordinária n° 1.453 de 2021, do Estado de Roraima, tem evidente caráter regressivo do ponto de vista institucional, na medida que se contrapõe as marcas mínimas esperadas para a tutela do meio ambiente. Aos cidadãos roraimenses, é impossibilitado o exercício do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, atentando contra a proteção à saúde e à vida. O uso de mercúrio em mineração de ouro impacta diretamente a qualidade dos recursos hídricos e do solo na região, especialmente concedido por uma licença simplificada, o que como resultado pode causar prejuízos irreversíveis à saúde das populações locais.

Há, dessa forma, a ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso ambiental ou também chamado de efeito cliquet. Uma vez alcançada a concretização de normas e regulamentos acerca do licenciamento ambiental, não se admite qualquer medida legislativa ou administrativa que recue as medidas de proteção ambiental, sendo permitindo apenas acréscimos no âmbito da tutela existente.

Sob essa perspectiva, o caso concreto esclarecido constitui um exemplo recente de flexibilização do processo de licenciamento ambiental. A partir disso, pode-se verificar que legislações sobre as atividades com impactos ambientais significativos, sem a adequada adoção de medidas de mitigação de danos, afetam a sociedade de diversas maneiras, desde a perda de patrimônio ambiental até prejuízos à saúde pública. Outrossim, as políticas de flexibilização ambiental ensejam reflexos na atuação da administração pública.

3 Os reflexos da flexibilização do licenciamento ambiental no direito administrativo

Para esclarecer as repercussões de legislações que possibilitam a flexibilização da política ambiental no direito administrativo brasileiro, deve-se realizar considerações sobre o conceito de licença ambiental e sua importância, bem como as motivações para as mudanças nas regulamentações sobre o meio ambiente. As alterações legislativas podem trazer efeitos na atuação do Estado em relação à gestão ambiental eficiente e ao desenvolvimento sustentável, principais conceitos adotados na atuação administrativa.

Do ponto de vista dos ensinamentos administrativos, Meirelles (2016) propõe a seguinte definição de licença:

Licença é o ato administrativo vinculado e definitivo pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas as exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a realização de fatos materiais antes vedados ao particular, como, p. ex., o exercício de uma profissão, a construção de um edifício em terreno próprio. A licença resulta de um direito subjetivo do interessado, razão pela qual a Administração não pode negá-la quando o requerente satisfaz todos os requisitos legais para sua obtenção, e, uma vez expedida, traz a presunção de definitividade. Sua invalidação só pode ocorrer por ilegalidade na expedição do alvará, por descumprimento do titular na execução da atividade ou por interesse público superveniente, caso em que se impõe a correspondente indenização. A licença não se confunde com a autorização, nem com a admissão, nem com a permissão (MEIRELLES, 2016, p. 213).

Sob a perspectiva do direito ambiental, Freitas e Freitas (2014, p. 96) consideram que o termo licença certamente não é o mais apropriado, pois pressupõe ato administrativo definitivo e, quanto à Licença Prévia e a Licença de Instalação, os atos são precários. Mais adequado seria utilizar a denominação autorização, pois possui caráter discricionário e precário. No entanto, o uso do termo licença fora adotado pelo legislador e, para evitar compreensão equivocada sobre o assunto, é preferível reconhecer o termo licença.

Ao delinear um conceito de licenciamento ambiental, Milaré (2015) apresenta o processo administrativo indicado como uma importante ferramenta capaz de conciliar o interesse do desenvolvimento econômico e a preservação do equilíbrio ecológico:

Como ação típica e indelegável do Poder Executivo, o licenciamento constitui importante instrumento de gestão do ambiente, na medida em que, por meio dele, a Administração Pública busca exercer o necessário controle sobre as atividades humanas que interferem nas condições ambientais, de forma a compatibilizar o desenvolvimento econômico com a preservação do equilíbrio ecológico. Isto é, como prática do poder de polícia administrativa, não deve ser considerado um obstáculo teimoso ao desenvolvimento, como, infelizmente, muitos assim o enxergam (MILARÉ, 2015, p. 789).

Com isso, a licença ambiental tem como propósito a avaliação dos possíveis impactos ambientais, a definição de medidas de controle e a mitigação de danos, caso necessário. O licenciamento é ato administrativo é regulamentado por normas próprias no âmbito federal e, de modo subsidiário, a fim de atender os interesses regionais e locais, por legislações estaduais e municipais. O processo administrativo deve ser conduzido por órgãos públicos responsáveis, de acordo com as competências das ações administrativas descritas nos artigos 7°, 8° e 9° da Lei Complementar n° 140 de 2011.

No que tange às atividades de mineração, adota-se também o mesmo procedimento previsto na Resolução Conama n° 237, além da aplicação da Resolução Conama n° 009 de 1990 e das demais leis específicas para instituir exigências conforme as necessidades locais e as circunstâncias da atividade de garimpo. As explorações de minério são consideradas atividades de alto impacto ambiental, por isso Farias e Ataíde (2019) explicam como é realizado o controle da atividade minerária: 

Entre os instrumentos de controle sobre a atividade minerária, duas anuências estatais são destacadas: uma em virtude da utilização do bem público (processo minerário) e a outra em decorrência da utilização de recursos ambientais (licenciamento ambiental). A primeira está concentrada na União, por meio do Ministério de Minas e Energia – MME, e da Agência Nacional de Mineração (ANM), que substituiu o Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM. A ANM é autarquia federal em regime especial (agência reguladora) e vinculada ao MME. De acordo com o Código de Mineração, o aproveitamento das substâncias minerais pode ser realizado por meio dos regimes de (i) concessão, (ii) autorização, (iii) licenciamento, (iv) permissão de lavra garimpeira e (v) monopolização. Em tais regimes, o título minerário é concedido ou pela ANM ou pelo MME, com exceção do regime de licenciamento, no qual a licença é exarada pelo poder local (município) e posteriormente registrada na ANM. A escolha do regime minerário irá depender da substância mineral e das possibilidades de aproveitamento. (FARIAS; ATAÍDE, 2019, p. 358).

As regras e condições do processo de licenciamento ambiental não são objetos apenas de medidas legislativas estaduais, tal como analisado o caso de inconstitucionalidade de lei ordinária no Estado de Roraima. Há vários anos projetos de leis são propostos, com o intuito de consolidar as normas sobre licenciamento ambiental e proporcionar mais celeridade nos processos administrativos. Pode-se mencionar o Projeto de Lei n° 2.159 de 2021, proposta de autoria da Câmara dos Deputados em 2004, que recentemente está sob apreciação do Senado Federal.

O referido Projeto de Lei, com fundamento no artigo 225, § 1°, inciso IV da Constituição Federal, também é conhecido como Lei Geral do Licenciamento. Dado o contexto de 2021, com a repercussão da lei estadual de Roraima regulamentando a licença ambiental para atividades de garimpo, o Projeto de Lei n° 2.159 recebeu críticas por apresentar trechos divergentes com as exigências atuais de licença ambiental.

O principal aspecto controverso da proposta legislativa refere-se ao licenciamento ambiental simplificado pela modalidade adesão e compromisso, que atesta a viabilidade da instalação, da ampliação e da operação de atividade ou empreendimento, observando as condições previstas no projeto de lei e mediante a declaração de adesão e compromisso do empreendedor aos requisitos preestabelecidos pela autoridade licenciadora, a serem analisados e disponibilizados em sistema de informações.

De acordo com Barcelos (2020, p. 284), desde o início dos anos 2000, as entidades patronais e empresariais têm reivindicado maior agilidade nos processos administrativos, simplificação de regras e acordos mais flexíveis e conclusivos no licenciamento de obras estratégicas. Dessa forma, exige-se um ambiente regulatório mais estável, procedimentos menos burocráticos para os empreendimentos e maior liberdade de investimento e segurança jurídica nos contratos. Para ele, as entidades empresariais ligadas ao agronegócio e à indústria extrativa (mineração, energia, petróleo) contestam o tempo de execução do licenciamento e, por isso, sentem-se em desvantagem nos acordos que pretendem disputar.

A justificativa de todas as propostas legislativas as quais buscam estabelecer regras para o licenciamento ambiental está na morosidade do processo administrativo e no excesso de condicionantes ambientais. Esse contexto político é propício a aprovação de projetos de lei que buscam a flexibilização do licenciamento ambiental, ao invés do aperfeiçoamento das regras e condicionantes para o alcance de um desenvolvimento sustentável. Desse modo, predomina a ilusão de que é possível atingir a celeridade e a segurança jurídica almejada pelos agentes empreendedores, a partir do retrocesso ambiental.

A simplificação dos procedimentos de licenciamento podem impactar a forma como o Estado realiza a análise dos projetos e atividades que envolvem impactos ambientais. Os critérios de avaliação, as exigências técnicas e as condições para a concessão das licenças devem ser apreciados sob a imparcialidade do agente público. Os órgãos públicos não devem contrariar ou violar os princípios previstos no artigo 37 da Constituição Federal, o que significa que a atuação da Administração Pública deve ser de acordo com a impessoalidade, a moralidade, a publicidade, a legalidade e a eficiência.

Nessa perspectiva, não é admissível que o Poder Público tenha uma atuação visando o interesse econômico de alguns setores sociais. A licença ambiental possui caráter preventivo da atuação estatal, cuja a idoneidade dos agentes públicos envolvidos se faz importante. Em relação a isso, Machado (2020) afirma que:

Os comportamentos de todos os Poderes Públicos não podem ser faculdades, possibilidades ou atos ditados pelo oportunismo ou por ocorrências ocasionais. Os comportamentos constitucionais determinados aos Poderes Públicos – do Executivo, do Legislativo e do Judiciário – visam especialmente à eficiência e a impessoalidade (MACHADO, 2020, p. 345).

A redução do controle estatal é outra consequência das políticas de flexibilização do licenciamento ambiental. A licença por adesão ou autolicenciamento, como a expressão ficou conhecida, prevista no Projeto de Lei n° 2.159 de 2021, por exemplo, é uma das alternativas que podem ser adotadas para reduzir os custos decorrentes das exigências ambientais dos órgãos fiscalizadores, caso aprovada e em vigência a mencionada lei. Além de expor um recuo nos entendimentos de matéria ambiental firmados em tratados internacionais e no direito interno, essa medida pode apresentar reflexos no controle estatal de forma preventiva e repressiva.

Embora a competência para o licenciamento ambiental não se confunda com a atribuição para exercer a fiscalização ambiental, as alterações legislativas afetam diretamente a atuação dos órgãos federais, estaduais ou municipais responsáveis, limitando a atuação de controle estatal. Por isso, destaca-se a importância do poder de polícia ambiental como um conjunto de atividades da Administração Pública que inclui a fiscalização, a aplicação de sanções e a adoção de medidas preventivas, em razão do interesse público sobre a saúde, a conservação do meio ambiente, o exercício de atividades econômicas e outras atividades que dependem de concessão, permissão ou licença.

Nessa perspectiva, para Amado (2020, p. 156), o exercício do poder de polícia não é mera faculdade do Poder Público, e sim dever de ofício, pois é preciso evitar o abuso dos direitos individuais em prol da coletividade, considerando a transição do Estado Liberal ao Social, em que a inércia da Administração Pública foi substituída por uma atuação positiva, especialmente na efetivação dos direitos fundamentais sociais e coletivos, de caráter prestacional e transindividual.

Assim, as ações legislativas de flexibilização de licenças ambientais podem ter reflexos importantes no direito administrativo brasileiro, influenciando a forma como o Estado regula e controla as atividades que podem gerar impactos ao meio ambiente. É necessário que essas mudanças sejam avaliadas cuidadosamente nas casas legislativas para minimizar possíveis repercussões que possam suscitar a insegurança jurídica e a ineficácia na atuação da Administração Pública. Para tanto, faz-se essencial a participação da coletividade na discussão sobre as possíveis mudanças legislativas a fim de que haja a defesa dos direitos humanos fundamentais acima de intuitos econômicos.

Considerações Finais

O princípio da vedação ao retrocesso ambiental é uma importante ferramenta de proteção ao meio ambiente. Compreende-se como uma premissa que não admite a prática de atos os quais possam vulnerar direitos humanos fundamentais. Isso significa que, uma vez estabelecidas medidas de proteção ambiental, elas não podem ser enfraquecidas ou revogadas, sob pena de violação do princípio. Desse modo, impõe-se ao Estado e à sociedade a obrigação de aprimorar as normas e políticas ambientais já existentes, garantindo a promoção da qualidade de vida das presentes e futuras gerações.

As mudanças legislativas no processo de licenciamento ambiental conduzem para uma discussão pertinente em relação à violação do princípio da vedação ao retrocesso em matéria ambiental. A Lei Ordinária n° 1.453, de fevereiro de 2021, do Estado de Roraima e o Projeto de Lei n° 2.159, de maio de 2021, são exemplos de propostas legislativas que buscam estabelecer a flexibilização da atual sistemática quanto ao licenciamento ambiental. Nessa perspectiva, observa-se que as alterações legislativas visam objetivos de desenvolvimento de alguns setores da economia, em especial a indústria extrativa.

As modificações no processo de licenciamento ambiental podem resultar em consequências no cenário internacional e no direito interno. No contexto global, o Estado brasileiro possui um histórico de firmar tratados internacionais e se comprometer na redução da poluição ambiental, ao passo que o enfraquecimento das normas ambientais atuais pode prejudicar a imagem do país e afetar negativamente as relações comerciais internacionais. O não cumprimento de exigências estabelecidas em acordos climáticos pode suceder a perda de investimentos estrangeiros e a restrição de exportação de produtos brasileiros.

Por outro lado, a flexibilização da legislação ambiental resulta em diversos reflexos para o direito administrativo brasileiro. A avaliação e os critérios exigidos nas licenças ambientais devem ser estabelecidos sob a ótica da imparcialidade e da legalidade pelos órgãos ambientais, por isso é necessário que as mudanças normativas sejam cautelosamente elaboradas e respeitando a participação democrática, para não gerarem divergências interpretativas ou oportunizarem atos dotados de parcialidade da Administração Pública.

A redução do poder de polícia ambiental é outro reflexo no direito interno, pois o Poder Público atua na adoção de instrumentos preventivos, na fiscalização e na aplicação de sanções aos agentes potencialmente poluidores. A possibilidade de simplificação dos critérios nas licenças ambientais gera dificuldades na atuação de controle e possível obstáculo na punição de violações ambientais.

Por fim, cabe acrescentar que o licenciamento não será célere e juridicamente seguro ou eficaz para garantir a proteção ambiental, caso não haja investimento na capacidade técnica dos órgãos licenciadores e na acessibilidade de informações ambientais. O fortalecimento da atuação dos órgãos ambientais e o adequado orçamento para suas funções são medidas tão importantes quanto possíveis alterações legislativas.

Referências

AMADO, Frederico. Direito ambiental. 11 ed. Salvador: Juspodivm, 2020.

BARCELOS, Eduardo Álvares da Silva. Desregulação ambiental e disputas políticas: Uma breve retrospectiva do desmonte do licenciamento ambiental no Brasil. AMBIENTES: Revista de Geografia e Ecologia Política, [S. l.], v. 2, n. 2, p. 278, 2020. DOI: 10.48075/amb.v2i2.26589. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/ambientes/article/view/26589. Acesso em: 8 mar. 2023.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília/DF, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 09 mar. 2023.

BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências, de 31 de agosto de 1981. Brasília, 2 set. 1981. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm. Acesso em: 09 mar. 2023.

BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis n°s 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nºs 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências, de 25 de maio de 2012. Brasília, 28 maio. 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm. Acesso em: 09 mar. 2023.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Resolução CONAMA Nº 009, de 06 de dezembro de 1990. Dispõe sobre normas específicas para o licenciamento ambiental de extração mineral, classes I, III a IX. Brasília, DF: Conselho Nacional de Meio Ambiente. Disponível em: http://conama.mma.gov.br/?option=com_sisconama&task=arquivo.download&id=106. Acesso em: 20 mar. 2023.

BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Resolução CONAMA Nº 237, de 19 de dezembro de 1997. Regulamenta os aspectos sobre licenciamento ambiental estabelecidos na Política Nacional do Meio Ambiente. Brasília, DF: Conselho Nacional de Meio Ambiente. Disponível em: http://conama.mma.gov.br/?option=com_sisconama&task=arquivo.download&id=237. Acesso em 13 mar. 2023.

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 2.159, de 18 de maio de 2021. Dispõe sobre o licenciamento ambiental; regulamenta o inciso IV do § 1º do art. 225 da Constituição Federal; altera as Leis nºs 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, e 9.985, de 18 de julho de 2000; revoga dispositivo da Lei nº 7.661, de 16 de maio de 1988; e dá outras providências. Brasília: Senado Federal, 2021. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8979282&ts=1678793419994&disposition=inline. Acesso em: 14 mar. 2023.

FARIAS, Talden; ATAÍDE Pedro. Mineração e meio ambiente. In: FARIAS, Talden; TRENNEPOHL, Terence. Direito ambiental brasileiro. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Mariana Almeida Passos de. Direito administrativo e meio ambiente. 5 ed. Curitiba: Juruá, 2014.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2020.

MEIRELLES, Hely Lopes; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 42 ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

PRIEUR, Michel. O Princípio da proibição do retrocesso ambiental. In: Senado Federal. Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (org.). O princípio da proibição do retrocesso ambiental. Brasília: Senado Federal, 2011. Disponível em:https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242559/000940398.pdf?sequence=2&isAllowed=y. Acesso em: 09 mar. 2023. RORAIMA. Lei Ordinária nº 1.453, de 8 de fevereiro de 2021. Dispõe sobre o Licenciamento para a Atividade de Lavra Garimpeira no Estado de Roraima, e dá outras providências. Boa vista, 8 fev. 2021. Disponível em: https://sapl.al.rr.leg.br/ta/2026/text?. Acesso em: 10 mar. 2023.


[1] Advogada. Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário UniDomBosco (2021). Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Endereço para acessar o CV: http://lattes.cnpq.br/5828910194615177;

[2] Advogada. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Damásio de Direito (2022). Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Endereço para acessar o CV: https://lattes.cnpq.br/6930779959483496