O PAPEL DO JURADO NO SISTEMA JUDICIÁRIO BRASILEIRO
28 de novembro de 2023THE ROLE OF THE JURY IN THE BRAZILIAN JUDICIAL SYSTEM
Artigo submetido em 28 de setembro de 2023
Artigo aprovado em 7 de outubro de 2023
Artigo publicado em 28 de novembro de 2023
Cognitio Juris Volume 13 – Número 50 – Novembro de 2023 ISSN 2236-3009 |
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Autor(es): Bruno Magera Conceição [1] |
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RESUMO: Este estudo examina o papel singular desempenhado pelo Tribunal do Júri no sistema judiciário brasileiro, com foco na figura central do jurado. Ele inicia traçando as origens históricas do Tribunal do Júri, desde seus primórdios na Europa medieval até sua evolução e adaptação no Brasil. Através de uma análise profunda da literatura especializada, são discutidas as diversas facetas do jurado, abordando sua relevância, as expectativas de imparcialidade, bem como as possíveis influências que podem afetar suas decisões. Ampliando a perspectiva, a monografia também compara o sistema brasileiro de júri com seus equivalentes internacionais, incluindo os Estados Unidos, Reino Unido e França. Essa comparação destaca as nuances e particularidades de cada sistema, proporcionando um entendimento mais aprofundado sobre os desafios e potencialidades do Tribunal do Júri. O estudo conclui enfatizando a importância contínua dos jurados como guardiões dos valores democráticos e da justiça, ao mesmo tempo em que reconhece a necessidade de adaptar e evoluir o sistema para enfrentar os desafios do século 21. No geral, a monografia serve como um guia abrangente e reflexivo sobre o papel do jurado no contexto judiciário brasileiro.
Palavras-chave: Tribunal do Júri. Jurado. Sistema Judiciário Brasileiro. Princípios. Justiça Popular.
ABSTRACT: This study examines the unique role played by the Jury Court in the Brazilian judicial system, with a focus on the central figure of the juror. It begins by tracing the historical origins of the Jury Court, from its beginnings in medieval Europe to its evolution and adaptation in Brazil. Through a thorough analysis of specialized literature, the various facets of the juror are discussed, addressing their relevance, expectations of impartiality, as well as potential influences that may affect their decisions. Expanding the perspective, the monograph also compares the Brazilian jury system with its international counterparts, including the United States, United Kingdom, and France. This comparison highlights the nuances and peculiarities of each system, providing a deeper understanding of the challenges and potentialities of the Jury Court. The study concludes by emphasizing the ongoing importance of jurors as guardians of democratic values and justice, while recognizing the need to adapt and evolve the system to address the challenges of the 21st century. Overall, the monograph serves as a comprehensive and reflective guide on the role of the juror in the Brazilian judicial context.
Keywords: Jury Court. Juror. Brazilian Judicial System. Principles. Popular Justice.
Sumário
1. Introdução. 2. Revisão da Doutrina. 3. A Instituição do Júri no Brasil. 3.1. Princípio do Devido Processo Legal. 3.2. Princípio da Plenitude da Defesa. 3.3. Sigilo dos Vereditos. 3.4. Soberania dos Vereditos. 4. Competência do Tribunal do Júri. 5.O Papel do Jurado. 6. Juízo Rescisório do Tribunal do Júri. 7. Breve Análise Comparativa do Tribunal do Júri em Diferentes Contextos Jurídicos. Considerações Finais. Referências.
1 Introdução
A participação da sociedade na administração da justiça é um tema que atravessa a história do direito e suscita diversas reflexões. No Brasil, o Tribunal do Júri se destaca como uma expressão dessa participação, pois confere aos cidadãos comuns o poder de julgar os crimes dolosos contra a vida, que são considerados os mais graves pela Constituição Federal (BRASIL, 1988). Essa monografia tem como propósito analisar de maneira breve o tribunal do júri no contexto do sistema judiciário brasileiro, abordando a sua origem, a sua estrutura, o seu funcionamento e os seus principais desafios.
O objetivo geral desta monografia é, assim, investigar a relevância, as atribuições e os desafios que envolvem a figura do jurado na realidade brasileira atual. Para tanto, será realizada uma análise da legislação aplicável, da trajetória histórica e evolutiva do Tribunal do Júri no país e de estudos que avaliam os benefícios e as limitações deste instituto. Além disso, serão apresentados casos concretos que ilustram as principais controvérsias e dilemas que cercam o julgamento por júri popular.
O Tribunal do Júri apresenta uma dupla dimensão: de um lado, contribui para a democratização da justiça, ao possibilitar que pessoas leigas em direito possam exercer a função de juízes, manifestando a sua visão de mundo e os seus valores morais. De outro, enfrenta questionamentos sobre a sua eficiência, a sua capacidade de garantir um julgamento justo e imparcial e a sua vulnerabilidade a interferências externas, como a mídia e a opinião pública, que podem influenciar o veredicto dos jurados.
A escolha deste tema se justifica pela sua contemporaneidade e pertinência. Em um momento em que a sociedade brasileira passa por constantes mudanças e os debates sobre justiça se acirram, é imprescindível compreender a profundidade do impacto da participação popular na administração judiciária e pensar sobre os rumos futuros deste emblemático mecanismo de justiça. O Tribunal do Júri representa uma forma de exercício da cidadania e de controle social sobre o poder estatal, mas também implica em responsabilidades e riscos para os envolvidos no processo.
2 Revisão da Doutrina
O Tribunal do Júri é uma instituição singular e destacada no sistema judiciário brasileiro, que permite que os cidadãos participem diretamente da administração da justiça. Segundo Nucci (2008, p.41), a doutrina majoritária, o Tribunal do Júri como conhecemos advém da Magna Carta inglesa de 1215, que garantia uma série de direitos aos cidadãos perante o Estado. No entanto, há vestígios de um tribunal composto por cidadãos desde os primórdios, havia na Palestina um tribunal designado a julgar crimes puníveis com a pena capital, que era constituído por padres, levitas e chefes de família de maior importância em Israel. Tal ficou conhecido como Tribunal dos Vinte e Três, e ocorria em vilas de população excedente a 120 famílias, tendo atribuídos aos crimes julgados nesse tribunal a pena de morte.
Igor Alves Noberto Soares (2016) aduz que:
“A existência de um corpo de jurados na Antiguidade influenciaria a existência de tribunais populares a partir da Idade Média e muito contribuiria para perquirir os primórdios da persecução penal envolta em possível legitimidade popular no julgamento dos delitos de maior repercussão social, mas que, com a definição de novas bases jurídicas. (SOARES, 2016, p. 23)”
Por outro lado, a visão predominante argumenta que as raízes do Tribunal do Júri podem ser encontradas no Direito Inglês, especificamente na Magna Carta da Inglaterra de 1215. Conforme explicado pelo jurista Edilson Mougenot Bonfim (2012):
“É na Inglaterra que se pode buscar as origens do Júri moderno, uma vez que a instituição inglesa nasceu de um procedimento antigamente usado na Normandia (parte da França), levado a solo britânico após a tomada da Inglaterra por William, o Conquistador (1066). Assim, depois que o julgamento das ordálias foi proibido pelo Papa Inocêncio III, em 1215, por ocasião do 4º Concílio de Latrão, a Inglaterra se orientou no sentido de um então novo modelo de justiça, estabelecendo, para tanto, àquela época, o número de 12 jurados, em alusão aos 12 apóstolos do evangelho. (BONFIM, 2012, p. 704).”
Conforme Luan Cristianismo de Azevedo (2018) ao se inspirar em Edilson Mougenot Bonfim:
“Aliás, a participação de cidadão no julgamento dos crimes mais graves é um princípio recorrente nos diversos modelos de sociedade ao longo da história, desde a Grécia antiga, que concebeu a forma primitiva do Júri, o Tribunal da Heliléia – os heliastas, originalmente em números de 6.000, distribuídos em dez seções de 600 membros cada, designados anualmente por sorteio em meio aos cidadãos com mais de 30 anos, de reputação ilibada e não devedores do Estado. (AZEVEDO, 2018, p. 5).”
Segundo Lênio Luiz Streck (2001), baseando-se em Edmundo Oliveira:
“Os antigos gregos tiveram a sabedoria de criar o princípio da Justiça Popular que floresceu e se consolidou nos sistemas legais através das gerações. A título de ilustração, é oportuno lembrar que a Heliéia, de 2501 a 201 a.C., foi o tribunal popular da Grécia Antiga que inspirou a fórmula inglesa do Tribunal do Júri, introduzida na Commom Law a partir de 1066 pelo Rei Guilherme, o conquistador normando. (STRECK, 2001, p. 57).”
Para Maximiliano apud Tucci (1993, p.12): “As origens do instituto, vagas e indefinidas, perdem-se na noite dos tempos, entretanto, a propagação do Tribunal Popular pelo mundo ocidental teve início, perdurando até hoje, em 1215”. Essa ideia tão bem difundiu-se e se adaptou ao longo do tempo em diferentes contextos sociais e políticos. Prevalece que no Brasil, o Tribunal do Júri, estabelecido pela Lei de 18 de junho de 1822, teve sua competência inicialmente definida não para julgar crimes graves contra a vida, mas sim para julgar casos relacionados a crimes de imprensa.
Marcos Bandeira (2010) nesse sentido definiu:
“O Tribunal do Júri foi instituído no Brasil pela Lei de 18 de julho de 1822, com competência para julgar exclusivamente os crimes de imprensa. A sua composição inicial era de vinte e quatro jurados escolhidos “dentre os 27 homens bons, honrados, inteligentes e patriotas”. O réu poderia recusar até dezesseis jurados e só poderia recorrer à clemência do príncipe regente. Posteriormente, a Constituição do Brasil imperial previu o Tribunal do Júri como órgão do poder judiciário com competência para se pronunciar sobre os fatos. (MARCOS BANDEIRA, 2010, p. 27-28)”
Igor Alves Noberto Soares (2016) definiu os crimes de imprensa:
“Consideram-se abusos de imprensa, segundo o Decreto de 18 de julho 1822, toda publicação, ainda que verbal, de atos contra a ordem e a tranquilidade da União, das doutrinas incendiárias e subversivas ou qualquer outra com principiologia desorganizadora, capaz de promover a anarquia e a destruição do sistema do reino. (SOARES, 2016, p. 46).”
Para Denys Regis Vieira de Lima:
“No Brasil, o Tribunal do Júri teve sua origem em 18 de junho de 1822, através de um decreto proclamado pelo Príncipe Dom Pedro, com a criação da primeira Lei de Imprensa, e teve participação efetiva do então ministro do reino, José Bonifácio de Andrada e Silva. O papel do referido Decreto no surgimento da nossa atual estrutura de Tribunal do Júri está na forma de julgamento preceituado para os crimes de abuso contra a liberdade de imprensa. O Corregedor de Crimes da Corte e Casa nomeava vinte e quatro cidadãos que seriam escolhidos dentre “os homens bons, honrados, inteligentes e patriotas, com o direito de recusação de dezesseis, por parte dos réus”. Os restantes participariam da averiguação do fato e, chegando à conclusão sobre a culpa do réu, era imposta a pena que só poderia ser revista em face de apelação pelo então Príncipe Dom Pedro I.”
Ao longo deste capítulo, buscou-se traçar um panorama histórico e jurídico sobre as origens do Tribunal do Júri, tanto em cenários internacionais quanto no contexto brasileiro, apresentando posicionamentos doutrinários. Da Magna Carta inglesa de 1215 à legislação brasileira de 1822, percebe-se a constante evolução e adaptação deste instituto ao longo dos séculos, refletindo as necessidades e transformações sociais. As diversas perspectivas apresentadas revelam a complexidade e riqueza do Tribunal do Júri, uma instituição que, apesar de suas origens antigas, ainda se mostra essencial e relevante no atual sistema judiciário. O compromisso do Brasil com a manutenção e valorização do Tribunal do Júri demonstra a importância de garantir a participação popular na administração da justiça, assegurando assim uma maior legitimidade nas decisões tomadas.
2.1. A Instituição do Júri no Brasil
No texto da Constituição Federal de 1988, o Tribunal do Júri é reconhecido como uma garantia fundamental dos cidadãos, incumbido de julgar os crimes dolosos contra a vida, de forma que os réus sejam avaliados por um corpo de jurados, que são seus pares. Está inserido no capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais, configurando-se como um direito individual. Portanto, o Júri é uma cláusula pétrea em nosso ordenamento jurídico, conforme resguardado pelo artigo 60, § 4º da CF/1988, que estabelece que os direitos e garantias individuais são núcleos constitucionais intocáveis, não podendo ser suprimidos nem por emenda à Constituição. “[…] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais”. (BRASIL, 1988).
Renato Brasileiro Lima (2016) bem define o Júri:
“Como todo e qualquer órgão do poder judiciário, o Tribunal do Júri está previsto na Constituição Federal. Todavia, diversamente dos demais órgãos do Poder judiciário, que estão inseridos no Capitulo do Poder Judiciário – arts. 92 a 126 da Constituição Federal-, o Júri é colocado no rol dos Direitos e Garantias Individuais e Coletivos (art, 5º, XXXVIII), o que não afasta sua verdadeira natureza jurídica de órgão especial da Justiça Comum (Estadual ou Federal). Na verdade, a justificativa para a colocação do Júri no art.5º da Constituição Federal guarda relação com a ideia de funcionar o Tribunal Leigo como uma garantia de defesa do cidadão contra as arbitrariedades dos representantes do poder, ao permitir a ele ser julgado por seus pares. Além disso, não se pode perder de vista o cunho democrático inerente ao Júri, que funciona como importante instrumento de participação direta do povo na administração da Justiça. Afinal. Se o cidadão participa do poder Legislativo e do Poder Executivo, escolhendo seus representantes, a Constituição também haveria de assegurar mecanismos de participação popular junto ao Poder Judiciário. (LIMA, 2016, p. 1337)”
O Júri é composto por um juiz de direito e vinte e cinco membros da comunidade, todos acima de 18 anos e conhecidos por sua boa reputação. Anualmente, até 10 de outubro, uma lista com os nomes desses jurados é divulgada através de meios de comunicação e através de anúncios localizados nas entradas dos tribunais. Esse registro pode ser modificado até o dia 10 de novembro, e alterações são permitidas através de comunicações formais ou pedidos direcionados ao magistrado responsável, como estabelecido no art. 426, § 1º do Código de Processo Penal. Depois da confirmação da lista final, não há mais espaço para contestações ou recursos (CAPEZ, 2011).
“Art. 426. A lista geral dos jurados, com indicação das respectivas profissões, será publicada pela imprensa até o dia 10 de outubro de cada ano e divulgada em editais afixados à porta do Tribunal do Júri.
§ 1o A lista poderá ser alterada, de ofício ou mediante reclamação de qualquer do povo ao juiz presidente até o dia 10 de novembro, data de sua publicação definitiva.
§ 2o Juntamente com a lista, serão transcritos os arts. 436 a 446 deste Código.
§ 3o Os nomes e endereços dos alistados, em cartões iguais, após serem verificados na presença do Ministério Público, de advogado indicado pela Seção local da Ordem dos Advogados do Brasil e de defensor indicado pelas Defensorias Públicas competentes, permanecerão guardados em urna fechada a chave, sob a responsabilidade do juiz presidente.
§ 4o O jurado que tiver integrado o Conselho de Sentença nos 12 (doze) meses que antecederem à publicação da lista geral fica dela excluído.
§ 5o Anualmente, a lista geral de jurados será, obrigatoriamente, completada.”
Marcos Antônio Santos Bandeira (2010) explica:
“O Tribunal do Júri, com o advento da nova lei, passa a ser constituído por um juiz togado e vinte e cinco jurados escolhidos dentre aqueles constantes da lista geral e que devem ser recrutados junto às associações de classes, associações de bairros, entidades associativas e culturais, instituições de ensino, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros grupos comunitários, nos termos exigidos pelo § 2º do art. 425 do CPP, devendo a primeira lista geral ser publicada até o dia 10 de outubro, e a definitiva até o dia 10 de novembro, mediante editais afixados no átrio do Fórum, podendo também ser publicada no DPJ. (BANDEIRA, 2010, p. 117).”
Quanto a sessão de realização do Júri, em circunstâncias especiais, pode ser necessário recorrer a jurados reservas, se for observada uma quantidade insuficiente do número padrão de quinze jurados para iniciar o processo. Neste contexto, será vital realizar um sorteio de membros adicionais até atingir o limite total de vinte e cinco jurados, e, se necessário, estabelecer uma nova data para a audiência (NUCCI, 2014). Importante ressaltar que a participação no júri é um dever legal e a ausência sem uma justificação válida é considerada crime de desobediência. No entanto, o art. 437 do Código de Processo Penal enumera certas categorias de pessoas que estão isentas dessa obrigação.
“Art. 437. Estão isentos do serviço do júri:
I – o Presidente da República e os Ministros de Estado;
II – os Governadores e seus respectivos Secretários;
III – os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Distrital e Municipais;
V – os Magistrados e membros do Ministério Público e da Defensoria Pública;
VI – os servidores do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública;
VII – as autoridades e os servidores da polícia e da segurança pública;
VIII – os militares em serviço ativo;
IX – os cidadãos maiores de 70 (setenta) anos que requeiram sua dispensa;
X – aqueles que o requererem, demonstrando justo impedimento”
Badaró preceitua (2014, p. 495) que:
“[…]a recusa ao serviço do júri, motivada por convicção religiosa, filosófica ou política, importará o dever de prestar serviço alternativo, sob pena de suspensão dos direitos políticos, enquanto o serviço não for prestado.”
Segundo Rangel (2014, p. 3-4), no que tange aos princípios regentes do processo penal:
“[…] os princípios que regem o direito processual (penal) constituem o marco inicial de construção de toda a dogmática jurídico-processual (penal), sem desmerecer e reconhecer os princípios gerais do direito que lhe antecedem. Porém, nosso escopo são aqueles. As respostas para determinados problemas que surgem no curso de um processo criminal estão muitas vezes nos princípios que o informa, porém, o intérprete ou aplicador da norma não os visualiza, dando interpretação ou aplicando normas em contraposições aos elementos primários de constituição do processo.”
Ao definir o que é um princípio jurídico, Nucci (2014) sugere que tais princípios atuam como fundamentos que se difundem através das normas, facilitando a interpretação, o entendimento e a aplicação do direito. O autor enfatiza que, para uma visão mais aprofundada do conjunto de garantias criminais, é essencial examinar dois princípios governantes que se conectam a outros princípios no âmbito penal e processual penal.
Nesse contexto, o Art. 5º da Constituição Federal reitera que todos são iguais perante a lei, sem qualquer distinção, garantindo uma série de direitos fundamentais aos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil. Dentre esses direitos, o inciso XXXVIII destaca a instituição do júri, uma forma de participação popular no Poder Judiciário.
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…] XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;”
Este inciso estabelece princípios basilares para o funcionamento do júri, como a garantia da plenitude de defesa, a preservação do sigilo nas votações, a soberania dos veredictos e sua competência exclusiva para julgar crimes dolosos contra a vida. Tais princípios são considerados de suma importância, uma vez que decorrem de preceitos constitucionais que devem ser observados por todas as legislações pertinente.
2.1.1 Princípio do Devido Processo Legal
O art. 5º, LIV da Constituição Federal de 1988 destaca que:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal […]”
Esse princípio constitucional, embora não específico do Júri, sublinha a importância de seguir os procedimentos legais antes de se restringir a liberdade de um indivíduo ou de se expropriar seus bens. Ele sinaliza que a liberdade é o padrão, enquanto sua limitação é a situação excepcional. De acordo com Rangel (2014), a “liberdade” mencionada nesse contexto refere-se a todas as formas de liberdade presentes no sistema jurídico, não limitando-se apenas à liberdade de movimento.
Com base no devido processo legal e no respeito à dignidade da pessoa humana, originam-se outros princípios fundamentais:
“O devido processo legal guarda suas raízes no princípio da legalidade, garantindo ao indivíduo que somente seja processado e punido se houver lei penal anterior definindo determinada conduta como crime, cominando-lhe pena. Além disso, modernamente, representa a união de todos os princípios penais e processuais penais, indicativo da regularidade ímpar do processo criminal (NUCCI, 2014, p. 33).”
Assim, o princípio constitucional do devido processo legal assegura que um acusado não será destituído de sua liberdade ou propriedade sem um processo adequado, no qual tenha oportunidade de se defender.
2.1.2 Princípio da Plenitude da Defesa
O artigo 5º, LV, da CF, garante a defesa abrangente, destacando os recursos próprios da plenitude de defesa, inerente ao júri. Isso parece uma repetição do direito à ampla defesa. Contudo, são conceitos distintos delineados pelo constituinte. (MARCÃO, 2018 p.967).
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”
Sem garantir o contraditório e a ampla defesa aos acusados, não há um devido processo legal autêntico. No âmbito penal, sobretudo quando envolve a liberdade individual, é crucial garantir tais direitos. (NUCCI,2015, P.24).
Para Fernando Capez (2006):
“A plenitude da defesa implica no exercício da defesa em um grau ainda maior do que a ampla defesa. Defesa plena, sem dúvida, é uma expressão mais intensa e mais abrangente do que defesa ampla. Compreende dois aspectos: primeiro, o pleno exercício da defesa técnica, por parte do profissional habilitado, o qual não precisará restringir-se a uma atuação exclusivamente técnica, podendo também servir-se de argumentação extrajurídica, invocando razões de ordem social, emocional, de política criminal, etc. Esta defesa deve ser fiscalizada pelo juiz presidente, o qual poderá até dissolver o Conselho de Sentença e declarar o réu indefeso (art. 497, V), quando entender ineficiente a atuação do defensor. (CAPEZ, 2006, p. 632-633).”
Para sua defesa técnica, réu pode constituir sua defesa ou receber um defensor nomeado pelo juiz. Se for o último caso, este será o advogado dativo, usualmente sendo atribuído a algum profissional do quadro da defensoria pública ou advogado indicado pelo convênio OAB e Defensoria.
Por fim, ao Réu também assiste a autodefesa, sendo a possibilidade pontual de exercer manifestações a seu favor, sem a intermediação direta de seu advogado. Esta é uma oportunidade em que o acusado pode dar sua versão dos fatos, respondendo às perguntas que lhe são feitas. A autodefesa é um direito do réu, e não uma obrigação, ou seja, ele pode escolher permanecer em silêncio sem que isso seja interpretado em seu prejuízo. É importante destacar que o réu não faz juramento de dizer a verdade ao exercer sua autodefesa, diferentemente das testemunhas por exemplo.
2.1.3 Sigilo dos Vereditos
O princípio do sigilo dos vereditos é fundamental para o tribunal do júri. Conforme o Código de Processo Penal, após a apresentação dos quesitos, todos os envolvidos se deslocam para uma sala especial para votação (art.485,caput,CPP). Se não houver tal sala, o público deve se retirar, mantendo-se apenas as autoridades citadas no artigo. (NUCCI,2015, p.29).
“Art. 485. Não havendo dúvida a ser esclarecida, o juiz presidente, os jurados, o Ministério Público, o assistente, o querelante, o defensor do acusado, o escrivão e o oficial de justiça dirigir-se-ão à sala especial a fim de ser procedida a votação.
§ 1o Na falta de sala especial, o juiz presidente determinará que o público se retire, permanecendo somente as pessoas mencionadas no caput deste artigo.
§ 2o O juiz presidente advertirá as partes de que não será permitida qualquer intervenção que possa perturbar a livre manifestação do Conselho e fará retirar da sala quem se portar inconvenientemente.”
Mirabete (2006, p.551) ressalta que o artigo 480 do CPP indica que após os quesitos serem apresentados, o júri deve se reunir, preferencialmente, em uma “sala secreta” para votar.
“Art. 480. A acusação, a defesa e os jurados poderão, a qualquer momento e por intermédio do juiz presidente, pedir ao orador que indique a folha dos autos onde se encontra a peça por ele lida ou citada, facultando-se, ainda, aos jurados solicitar-lhe, pelo mesmo meio, o esclarecimento de fato por ele alegado.
§ 1o Concluídos os debates, o presidente indagará dos jurados se estão habilitados a julgar ou se necessitam de outros esclarecimentos.
§ 2o Se houver dúvida sobre questão de fato, o presidente prestará esclarecimentos à vista dos autos.
§ 3o Os jurados, nesta fase do procedimento, terão acesso aos autos e aos instrumentos do crime se solicitarem ao juiz presidente.”
A privacidade das votações não interfere no princípio do julgamento público da Constituição, uma vez que a doutrina e a jurisprudência admitem certos momentos de restrição a atos públicos para proteger o interesse público e a integridade dos jurados.
O princípio do sigilo das votações, conforme estipulado na Constituição, refere-se ao processo de votação em si e não ao resultado da votação. Nucci (2008) esclarece esta posição ao afirmar:
“Em primeiro lugar, deve-se salientar ser do mais alto interesse público que os jurados sejam livres e isentos para proferir seu veredicto. Não se pode imaginar um julgamento tranquilo, longe de qualquer pressão, feito à vista do público, no plenário do júri. Nota-se que as pessoas presentes costumam manifestar-se durante a sessão, ao menor sinal de um argumento mais incisivo feito pela acusação ou pela defesa. (NUCCI, 2008, p. 30-31).”
Sendo proibida a divulgação do voto individual do jurado, o sigilo garante que os jurados possam votar sem serem pressionados por influências externas. Sobre isso, Porto (2005) comenta:
“Incomunicabilidade e sigilo são como proteção à formação e manifestação, livres e seguras, do convencimento pessoal dos jurados, pela incomunicabilidade protegidos de eventuais envolvimentos para arregimentação de opiniões favoráveis, ou desfavoráveis, ao réu, e pelo sigilo das votações, tendo garantia do resguardo da opinião pessoal das decisões do Júri (art. 448); tem, portanto, o cidadão sorteado para o exercício das relevantes funções de jurado, então na posição de integrante de um dos órgãos que exercem a Jurisdição Penal no País, garantias para a livre formação de seu convencimento e para a livre expressão de sua decisão. (PORTO, 2005, p. 42).”
Capez (2012) adiciona a essa discussão, ressaltando a singularidade do sigilo nas votações do Júri:
“O sigilo nas votações é princípio informador específico do Júri, a ele não se aplicando o disposto no art. 93, IX, da CF, que trata do princípio da publicidade das decisões do Poder Judiciário. Assim, conforme já decidiu o STF, não existe inconstitucionalidade alguma nos dispositivos que tratam da sala secreta (CPP, arts. 485, 486 e 487). Quando a decisão se dá por unanimidade de votos, quebra-se esse sigilo, pois todos sabem que os sete jurados votaram naquele sentido. Por esta razão, há quem sustente deva a votação do quesito ser interrompida assim que surgir o quarto voto idêntico (sendo apenas sete os jurados, não haveria como ser modificado o destino daquele quesito). (CAPEZ, 2012, p. 629)”
Concluindo, o sigilo nas votações emerge como um pilar essencial no processo do júri, garantindo a integridade e a imparcialidade do veredicto. O Código de Processo Penal, ao estipular procedimentos específicos e ambientes particulares para a votação, salvaguarda a liberdade e a confidencialidade do voto de cada jurado. Mesmo estando sob o manto do julgamento público da Constituição, é reconhecido pela doutrina e jurisprudência que certos momentos requerem restrições à publicidade para proteger o bem coletivo e a integridade dos envolvidos. Este sigilo, conforme debatido por diversos juristas, visa prevenir influências externas, permitindo que os jurados expressem seus julgamentos com a máxima autenticidade e imparcialidade. O equilíbrio entre a transparência das decisões judiciais e o sigilo das votações no júri é crucial para manter a confiança no sistema e garantir a realização da justiça.
2.2 Soberania dos Vereditos
Este é um princípio relativo, permitindo a contestação de suas decisões, mas mantendo o mérito da decisão e prevendo um novo julgamento se necessário (art.593, III, d, CPP).
“Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:
III – das decisões do Tribunal do Júri, quando:
a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia;
b) for a sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados;
c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança;
d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.
Ainda, tendo em vista a busca pela verdade e a totalidade da defesa, admite-se a revisão da decisão. (CAPEZ,2006, p.640). Nesse sentido:
“A soberania dos veredictos implica a impossibilidade de o tribunal técnico modificar a decisão dos jurados pelo mérito. Trata-se de princípio relativo, pois no caso da apelação das decisões do Júri pelo mérito (art. 593, III, d) o Tribunal pode anular o julgamento e determinar a realização de um novo, se entender que a decisão dos jurados afrontou manifestamente a prova dos autos. Além disso, na revisão criminal, a mitigação desse princípio é ainda maior, porque o réu condenado definitivamente pode ser até absolvido pelo tribunal revisor, caso a decisão seja arbitrária. Não há anulação nesse caso, mas absolvição, isto é, modificação direta do mérito da decisão dos jurados (CAPEZ, 2011, p. 633).”
Badaró (2015, p. 471-472) prevê:
“A soberania dos veredictos deve ser entendida como a impossibilidade de outro órgão judiciário substituir os jurados na decisão da causa. Não significa, portanto, poder absoluto ou ilimitado dos jurados, o que faria com que se tivesse que admitir como válido um julgamento que apresentasse resultado ilegal ou arbitrário. A possibilidade de o Tribunal de Justiça dar provimento à apelação, para cassar a decisão dos jurados, que foi “manifestamente contrária à prova dos autos” (CPP, art. 593, caput, III, d), não fere a soberania dos veredictos. A decisão dos jurados não é substituída pelo Tribunal de Justiça, que se limita a cassá-la, determinando que novo julgamento seja proferido. A soberania significa que o tribunal popular dará a última palavra quanto ao mérito dos crimes de competência do júri. Entretanto, não significa que haverá apenas um único veredicto.”
Nucci (2015, p.31) destaca que os jurados tomam decisões baseados em suas convicções, não necessariamente na letra da lei. Quando traduzimos isso para o júri, significa que a decisão dos jurados é final, não podendo ser alterada pelos juízes de direito. Assim, a decisão tomada pelo colegiado popular deve ser respeitada pela magistratura. (MOSSIN,1999, p.213).
José Marques (1997) bem define a soberania do Júri:
“[…] Soberania do júri, no entender da communis opinio doctorum, significa a impossibilidade de outro órgão judiciário substituir ao júri na decisão de uma causa por ele proferida, soberania dos veredictos traduz, mutatis mutandis, a impossibilidade de uma decisão calcada em veredictos dos jurados ser substituída por outra sentença sem esta base. Os veredictos são soberanos, porque só os veredictos é que dizem se é procedente ou não a pretensão punitiva. (MARQUES, 1997. p. 80).”
Nucci (2014) reconhece a possibilidade de absolvição do Réu ou minoração da pena sem ferir o princípio constitucional da soberania dos vereditos, o autor cita inclusive diversos argumentos a favor da possibilidade de alteração da decisão dos jurados:
“[…]. a) a revisão é uma garantia individual mais importante, podendo superar outra, que é a soberania dos veredictos do tribunal Popular, porque preserva o direito à liberdade;
b) a soberania não pode afrontar os direitos de defesa do réu, devendo prevalecer sempre a ampla defesa;
c) a soberania do júri não pode sustentar-se na condenação de um inocente, pois o direito à liberdade, como se disse, é superior;
d) a soberania dos veredictos cinge-se apenas ao processo, até que a relação jurídico-processual seja decidida em definitivo;
e) a soberania dos veredictos e o júri constituem garantias do direito de liberdade do réu, razão pela qual a absolvição pela revisão criminal estaria de acordo com tais finalidades;
f) já existem outras possibilidades pelais de revisão da decisão do júri, como a apelação.”
A respeito do caráter não absoluto desse princípio, Alexandre de Moraes bem preconiza:
“Certamente, estamos diante de um princípio basilar, justamente por ser a soberania dos veredictos a ferramenta que resguarda todo o procedimento do Tribunal do Júri, impossibilitando que a decisão dos pares que expressa à vontade puramente popular seja mudada por juízes togados. Especialmente, a soberania dos veredictos não deve ser entendida como uma decisão inalterável e incabível de revisão, porém, tal possibilidade, diga-se bem, restrita, segundo o próprio Código de Processo Penal, será oportunizada também por um Tribunal do Júri em um novo julgamento. (MORAES, 2015, p. 92).
[…]
A possibilidade de recurso de apelação, prevista no Código de Processo Penal, quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos, não afeta a soberania dos veredictos, uma vez que a nova decisão também será dada pelo tribunal do júri. Assim entende o Supremo Tribunal Federal, que declarou que a garantia constitucional da soberania do veredicto do júri não exclui a recorribilidade de suas decisões. Assegurase tal soberania com retorno dos autos ao Tribunal do Júri para novo julgamento. (MORAES, 2015, p. 94).”
Júlio Fabbrini Mirabete (2006) por sua vez define:
“A soberania dos veredictos dos jurados, afirmada pela Carta Política, não exclui a recorribilidade de suas decisões, sendo assegurada com a devolução dos autos ao Tribunal do Júri para que profira novo julgamento, se cassada a decisão recorrida pelo princípio do duplo grau de jurisdição. Também não fere o referido princípio a possibilidade da revisão criminal do julgado do Júri, (LXXXI) a comutação de penas etc. Ainda que se altere a decisão sobre o mérito da causa, é admissível que se faça em favor do condenado, mesmo porque a soberania dos veredictos é uma “garantia constitucional individual” e a reforma ou alteração da decisão em benefício do condenado não lhe lesa qualquer direito, ao contrário beneficia. (MIRABETE, 2006, p. 496).”
No desfecho da análise sobre a soberania dos veredictos, torna-se evidente a complexidade e relevância deste princípio no sistema judiciário brasileiro. Ainda que se alicerce na convicção popular expressa pelos jurados, sua natureza não é absoluta, admitindo revisões e apelações que visam preservar o direito à verdade e a totalidade da defesa. Afinal, a soberania do júri, ancorada na Constituição Federal, deve andar lado a lado com as garantias fundamentais do réu, garantindo um equilíbrio que preserve tanto a confiança na decisão popular quanto os direitos fundamentais daqueles que são julgados. O debate entre a imutabilidade das decisões do júri e as garantias individuais, como destacado por Capez (2006) e Nucci (2015), ressalta o compromisso do sistema jurídico em buscar justiça, ponderando entre a força do veredicto popular e as garantias constitucionais inerentes ao Estado Democrático de Direito.
2.3 Competência do Tribunal do Júri
A natureza e extensão da competência do Tribunal do Júri representam tópicos de significativa importância no contexto jurídico brasileiro. Através da análise das normas constitucionais, busca-se compreender o escopo e as limitações desta competência, especialmente quando confrontada com prerrogativas especiais de determinadas autoridades. Dando ênfase ao julgamento de crimes dolosos contra a vida, este capítulo esclarece a dinâmica e a aplicabilidade da competência do Júri.
A Constituição Federal, no art.5º, XXXVIII, d, confere ao júri a competência para julgar crimes contra a vida. Alguns argumentam que essa competência é imutável, porém, não há fundamentação sólida para tal afirmação. (NUCCI,2015, p.35).
A competência do júri, sendo uma cláusula pétrea, não pode ser diminuída, mas pode ser expandida sem contrariar a Constituição. (NUCCI,2015, p.35).
Ademais a própria competência do Júri pode ser excepcionada, como em casos de foro por prerrogativa de função. Luiz Flávio Gomes (2008) nesse sentido:
“Resta observar que a competência do Tribunal do Júri para julgamento dos crimes dolosos contra a vida não tem caráter absoluto, admitindo exceções, como aquela que se verifica nas hipóteses de prerrogativa de foro ou foro especial por prerrogativa de função. De sorte que, se o Presidente da República pratica um homicídio doloso, ele não será julgado pelo Júri, mas pelo STF (art. 102, I, b, da CF). Ou, se um Governador de Estado se vê na mesma situação, o processo será julgado pelo STJ (art.105, I, a, da CF). Também o prefeito municipal deve ser julgado pelo Tribunal de Justiça do respectivo Estado e não pelo Júri (art. 29, X, da CF). Os juízes e membros do Ministério Público, que atuam em 1º grau de jurisdição perante a justiça estadual, gozam da mesma prerrogativa e, por força de expressa disposição constitucional (art. 96, III, da CF), serão julgados perante o Tribunal de Justiça. Tratando-se de procuradores de Justiça ou Desembargadores, a competência é do STJ (art. 105, I, a, da CF). Já se for Juiz Federal ou membro do Ministério Público Federal, a competência será do respectivo Tribunal Regional Federal. (GOMES; CUNHA; PINTO, 2008, p. 25-26).”
Alexandre de Moraes (2006) é em igual sentido:
“[…] todas as autoridades com foro de processo e julgamento previsto diretamente pela Constituição Federal, mesmo que cometam crimes dolosos contra a vida, estarão excluídas da competência do Tribunal do Júri, pois no conflito aparente de normas da mesma hierarquia, a de natureza especial prevalecerá sobre a de caráter geral definida no art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal. (MORAES, 2006, p. 96).”
Portanto, embora a Constituição Federal embora estabeleça que o Tribunal do Júri é competente para julgar crimes contra a vida, é essencial reconhecer as exceções e nuances associadas a essa competência. A presença de prerrogativas de função e as disposições de foro especial para determinadas autoridades evidenciam a complexidade desse tema. A compreensão dessas peculiaridades, respaldada pelas interpretações dos juristas, é fundamental para a aplicação correta e justa do direito, assegurando a integridade do sistema judicial e respeitando os preceitos constitucionais.
3 O Papel do Jurado
No âmbito acadêmico, diversos juristas e estudiosos têm se dedicado a compreender e analisar o papel do jurado no processo penal brasileiro, abordando questões como a imparcialidade, as influências externas, as estratégias de persuasão e a relação entre jurados, advogados e juízes.
Nesse contexto, define-se o papel do juiz jurado como multifacetado, pois ele não apenas decide sobre a culpabilidade ou inocência de um réu em um processo criminal, mas também expressa os valores, crenças e normas de uma sociedade. Fernando da Costa Tourinho Filho, bem definiu o júri como:
“… É um órgão especial de primeiro grau da Justiça Comum Estadual e Federal, colegiado, heterogêneo e temporário. Heterogêneo, porque constituído de pessoas das mais diversas camadas da sociedade, sendo presidido por um Juiz togado; temporário, porque pode não se reunir todos os dias ou todos os meses.” (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 2003, p. 406)”
No entanto, essa função também implica uma grande responsabilidade, já que as decisões dos jurados podem mudar drasticamente a vida de um indivíduo, resultando em sua condenação ou absolvição.Nesse sentido Badaró (2014,p. 521) preconiza:
“O quesito sobre absolvição é obrigatório, que deverá ser formulado, mesmo que as teses defendidas em plenário envolvam apenas a materialidade e a autoria, e já tenham sido refutadas pelos jurados, nas respostas positivas aos quesitos anteriores.”
Almeida (2005, p.11), prevê que:
“O Conselho de Sentença é a alma mestre que não somente manifesta seu mais profundo conhecimento, após a apresentação dos fatos, como também busca de uma forma muito consciente integralizar-se na sociedade, à medida que esta; colaborando de forma decisiva com esta; busca justificar procedimentos humanos, ou não os aceitar, como forma de um verdadeiro ajuste de contas de um réu que se apresenta à sua frente com o eventual crime praticado, no qual esta mesma sociedade pode figurar como principal vítima.”
Por isso, a doutrina também apresenta críticas e desafios ao sistema do júri, como a seleção dos jurados, os possíveis vieses e preconceitos que podem afetar suas decisões e a influência da mídia e da opinião pública. Esses debates são fundamentais para garantir que o Tribunal do Júri continue a se aperfeiçoar e a buscar uma justiça mais equitativa e representativa.
No artigo “A escolha dos jurados no Tribunal do Júri”, Parentoni (2014) destaca que a formação do corpo de jurados é crucial para assegurar o princípio da plenitude de defesa. Segundo o autor, a seleção dos jurados pelas partes envolvidas ocorre mediante uma série de critérios, tais como: profissão, crenças religiosas, vinculação partidária, local de residência, idade, gênero, vestimenta e comportamento, entre outros. Tal metodologia visa identificar aqueles jurados mais inclinados a aceitar a tese proposta tanto pela defesa quanto pela acusação.
Nesse sentido, o Código de Processo Penal (CPP) estabelece que o Tribunal do Júri é composto por um juiz togado, que preside a sessão, e vinte e cinco jurados sorteados de uma lista prévia, dos quais sete serão escolhidos para integrar o Conselho de Sentença em cada julgamento (art. 447).
“Art. 447. O Tribunal do Júri é composto por 1 (um) juiz togado, seu presidente e por 25 (vinte e cinco) jurados que serão sorteados dentre os alistados, 7 (sete) dos quais constituirão o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento.”
A defesa e a acusação têm o direito de recusar três jurados sem justificativa e outros com justificativa, que será apreciada pelo juiz presidente (art. 468).
“Art. 468. À medida que as cédulas forem sendo retiradas da urna, o juiz presidente as lerá, e a defesa e, depois dela, o Ministério Público poderão recusar os jurados sorteados, até 3 (três) cada parte, sem motivar a recusa.”
Badaró (2014, p. 488-489) sintetizou o processo de julgamento do júri como:
“[…] (1) verificação da presença das partes e testemunhas; (2) recolhimento das testemunhas; (3) verificação das cédulas; (4) chamada dos jurados; (5) instalação do júri; (6) pregão; (7) advertências dos impedimentos, suspeição e incompatibilidade dos jurados; (8) abertura da urna e verificação das cédulas dos jurados presentes; (9) sorteio, um a um, dos sete jurados que irão compor o Conselho de Sentença, com possibilidade de três recusas peremptórias, primeiro manifestando-se a defesa e, depois, a acusação; (10) compromisso dos jurados; (11) oitiva da vítima, se possível; (12) oitiva de testemunhas de acusação; (13) oitiva de testemunhas de defesa; (14) possibilidade de acareações, reconhecimentos de pessoas ou coisas e esclarecimentos dos peritos; (15) interrogatório do acusado; (16) debates: uma hora e meia pela acusação e uma hora e meia pela defesa; (17) eventual réplica; (18) eventual tréplica; (19) indagação aos jurados se estão habilitados a julga ou necessitam de algum esclarecimento; (20) leitura e explicação dos quesitos; (21) juiz anuncia que vai proceder ao julgamento e os jurados se reúnem na “sala secreta”; (22) votação de cada um dos quesitos pelos jurados; (23) juiz profere a sentença, que é lida em plenário.”
A escolha dos jurados deve levar em conta a notória idoneidade dos cidadãos, sendo excluídos aqueles que tenham antecedentes criminais, por exemplo (art. 436). Além disso, os jurados em tese devem representar a diversidade da sociedade, refletindo diferentes planos de fundos, idades, profissões e visões de mundo. Essa diversidade é crucial para que o julgamento seja equilibrado e plural.
“Art. 436. O serviço do júri é obrigatório. O alistamento compreenderá os cidadãos maiores de 18 (dezoito) anos de notória idoneidade.
§ 1o Nenhum cidadão poderá ser excluído dos trabalhos do júri ou deixar de ser alistado em razão de cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe social ou econômica, origem ou grau de instrução.
§ 2o A recusa injustificada ao serviço do júri acarretará multa no valor de 1 (um) a 10 (dez) salários mínimos, a critério do juiz, de acordo com a condição econômica do jurado.”
Uma vez empossados, os jurados assumem uma série de responsabilidades. Eles são os representantes da voz popular no sistema judiciário e devem avaliar as evidências apresentadas, ouvir as argumentações da defesa e da acusação e proferir um veredicto baseado em sua consciência e no ordenamento jurídico (art. 472).
“Art. 472. Formado o Conselho de Sentença, o presidente, levantando-se, e, com ele, todos os presentes, fará aos jurados a seguinte exortação:
Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça.
Os jurados, nominalmente chamados pelo presidente, responderão:
Assim o prometo.
Parágrafo único. O jurado, em seguida, receberá cópias da pronúncia ou, se for o caso, das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação e do relatório do processo.”
Os jurados devem manter o sigilo das deliberações, atuar com imparcialidade, abster-se de buscar informações externas ao que é apresentado em tribunal e evitar discussões sobre o caso fora da sala de julgamento (art. 466).
“Art. 466. Antes do sorteio dos membros do Conselho de Sentença, o juiz presidente esclarecerá sobre os impedimentos, a suspeição e as incompatibilidades constantes dos arts. 448 e 449 deste Código.
§ 1o O juiz presidente também advertirá os jurados de que, uma vez sorteados, não poderão comunicar-se entre si e com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do Conselho e multa, na forma do § 2o do art. 436 deste Código.
§ 2o A incomunicabilidade será certificada nos autos pelo oficial de justiça.”
Qualquer desvio desses deveres pode comprometer a integridade do julgamento e, em alguns casos, levar à anulação do mesmo, vide artigo 564 do Código de Processo Penal:
“Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:
I – por incompetência, suspeição ou suborno do juiz;
II – por ilegitimidade de parte;
III – por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:
a) a denúncia ou a queixa e a representação e, nos processos de contravenções penais, a portaria ou o auto de prisão em flagrante;
b) o exame do corpo de delito nos crimes que deixam vestígios, ressalvado o disposto no Art. 167;
c) a nomeação de defensor ao réu presente, que o não tiver, ou ao ausente, e de curador ao menor de 21 anos;
d) a intervenção do Ministério Público em todos os termos da ação por ele intentada e nos da intentada pela parte ofendida, quando se tratar de crime de ação pública;
e) a citação do réu para ver-se processar, o seu interrogatório, quando presente, e os prazos concedidos à acusação e à defesa;
f) a sentença de pronúncia, o libelo e a entrega da respectiva cópia, com o rol de testemunhas, nos processos perante o Tribunal do Júri;
g) a intimação do réu para a sessão de julgamento, pelo Tribunal do Júri, quando a lei não permitir o julgamento à revelia;
h) a intimação das testemunhas arroladas no libelo e na contrariedade, nos termos estabelecidos pela lei;
i) a presença pelo menos de 15 jurados para a constituição do júri;
j) o sorteio dos jurados do conselho de sentença em número legal e sua incomunicabilidade;
k) os quesitos e as respectivas respostas;
l) a acusação e a defesa, na sessão de julgamento;
n) o recurso de ofício, nos casos em que a lei o tenha estabelecido;
o) a intimação, nas condições estabelecidas pela lei, para ciência de sentenças e despachos de que caiba recurso;
p) no Supremo Tribunal Federal e nos Tribunais de Apelação, o quorum legal para o julgamento;
IV – por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato.
V – em decorrência de decisão carente de fundamentação.
Parágrafo único. Ocorrerá ainda a nulidade, por deficiência dos quesitos ou das suas respostas, e contradição entre estas.”
Ademais, os jurados nesse são equiparados a funcionários públicos para fins penais, podendo-se sujeitar a todos reflexos daí decorrentes, nos termos do art. 327, “caput”, do Código Penal.
“Art. 327 – Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.”
No entanto, os jurados não estão imunes a influências e pressões externas. A mídia, em particular, pode ter um papel significativo na formação da opinião pública sobre um caso, especialmente aqueles de grande repercussão. Assim, é um desafio constante garantir que o jurado decida com base unicamente nas informações fornecidas em julgamento.
Uma forma de evitar que os jurados sejam influenciados por fatores externos, como a mídia, é a possibilidade de desaforamento do júri, prevista no artigo 427 do Código de Processo Penal.
“Art. 427. Se o interesse da ordem pública o reclamar ou houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado, o Tribunal, a requerimento do Ministério Público, do assistente, do querelante ou do acusado ou mediante representação do juiz competente, poderá determinar o desaforamento do julgamento para outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferindo-se as mais próximas.
§ 1o O pedido de desaforamento será distribuído imediatamente e terá preferência de julgamento na Câmara ou Turma competente.
§ 2o Sendo relevantes os motivos alegados, o relator poderá determinar, fundamentadamente, a suspensão do julgamento pelo júri.
§ 3o Será ouvido o juiz presidente, quando a medida não tiver sido por ele solicitada.
§ 4o Na pendência de recurso contra a decisão de pronúncia ou quando efetivado o julgamento, não se admitirá o pedido de desaforamento, salvo, nesta última hipótese, quanto a fato ocorrido durante ou após a realização de julgamento anulado.”
Essa medida consiste na transferência do julgamento para outra comarca, quando houver dúvida sobre a imparcialidade do conselho de sentença ou sobre a segurança pessoal do acusado. Dessa forma, busca-se preservar o princípio da plenitude de defesa e o direito a um julgamento justo e isento.
Um exemplo de caso notório de desaforamento de júri foi o do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria-RS, que vitimou 242 pessoas em 2013. Os quatro réus que respondem criminalmente pelo caso tiveram seus julgamentos transferidos para Porto Alegre-RS, após alegarem que não teriam um julgamento imparcial na comarca de origem, em razão da comoção social e da pressão midiática geradas pelo fato. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acolheu os pedidos de desaforamento, entendendo que havia fundada dúvida sobre a imparcialidade do conselho de sentença e que a medida era necessária para preservar o direito à ampla defesa e ao contraditório dos acusados (MIGALHAS, 2020).
Além de entender os fatos e as provas apresentadas, os jurados também precisam ter noção dos conceitos e das regras jurídicas que se aplicam ao caso. Para isso, o juiz presidente deve explicar de forma clara e objetiva quais são os princípios e as normas que orientam o julgamento. Em dura crítica manifesta-se Aury Lopes Junior (2018):
“A falta de profissionalismo, de estrutura psicológica, aliados ao mais completo desconhecimento do processo e de processo, são graves inconvenientes do Tribunal do Júri. Não se trata de idolatrar o juiz togado, muito longe disso, senão de compreender a questão a partir de um mínimo de seriedade científica, imprescindível para o desempenho do ato de julgar.Os jurados carecem de conhecimento legal e dogmático mínimo para a realização dos diversos juízos axiológicos que envolvem a análise da norma penal e processual aplicável ao caso, bem como uma razoável valoração da prova.”
As partes, por sua vez, devem evitar usar termos técnicos ou expressões ambíguas que possam confundir ou induzir os jurados. Também devem se abster de fazer referências a elementos que não sejam relevantes para a decisão, como a aparência ou a situação do réu, ou que possam sugerir uma autoridade que não possuem, como citar opiniões de outros juízes ou juristas.
4 Juízo Rescisório do Tribunal Do Júri
A revisão criminal é um processo complexo que permeia as intricadas redes do sistema judicial. Dentro deste contexto, Lima (2014, p. 1726) argumenta que um réu deve ser submetido a um novo julgamento pelo Tribunal do Júri, principalmente quando há indícios de que a decisão condenatória possa ter sido fundamentada em testemunhos, exames ou documentos falseados. Segundo ele:
“De fato, é perfeitamente possível que o Tribunal de Justiça reconheça, por exemplo, que a decisão condenatória se baseou em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos, mas, a fim de não imiscuir-se na competência do juízo natural para os crimes dolosos contra a vida, determinar a submissão do acusado a novo julgamento pelo júri.”
Esta visão é reforçada pela posição do Supremo Tribunal Ferderal, que acredita que o tribunal não deve intervir em um veredicto condenatório emitido pelo júri no processo de revisão criminal. Tal intervenção, conforme Lima (2014) salienta, violaria a soberania dos veredictos, um pilar essencial do sistema judiciário. Por isso, a reavaliação de um réu deve ocorrer em um ambiente de tribunal popular.
A questão da revisão também traz à tona as limitações sobre o que pode ser alterado em uma sentença anterior. Nucci (2014, p. 879) explora profundamente essa questão ao destacar:
“[…] a importância da alteração da pena, no sistema de individualização previsto no Código Penal e legitimado pela Constituição Federal, faz crer que outra sanção, ao ser aplicada, leva o tribunal a proceder a uma minuciosa revisão do procedimento de aplicação da pena, o que não pode ser considerado simplesmente declaratório. Declara-se a inocência do réu (absolvição), bem como a mudança da classificação penal, mas, fixando-se nova pena, está-se alterando completamente a sanção cabível ao réu (NUCCI, 2014, p. 879).”
A questão sobre a revisão criminal e sua harmonização com o princípio da soberania dos veredictos foi abordada por diversos estudiosos. Lima (2014, p. 1725) salienta que:
“[…] há consenso acerca do cabimento de revisão criminal contra as decisões do júri, porquanto a soberania dos veredictos foi instituída como garantia do acusado. Logo, esta soberania pode ceder diante de norma que visa exatamente garantir os direitos de defesa e de liberdade.”
Da mesma forma, Badaró (2014, p. 695) argumenta:
“É possível a utilização da revisão criminal contra as decisões do júri. Mesmo diante da garantia constitucional da soberania dos veredictos, prevalece o entendimento de que o tribunal, ao julgar a revisão, deve exercer tanto o juízo rescindente (cassando a coisa julgada) quanto o juízo rescisório (alterando a decisão errônea, substituindo-a por outra). Em linhas gerais, o principal fundamento dessa corrente doutrinária é que a soberania dos veredictos não é violada quando o Tribunal de Justiça da provimento a uma revisão criminal, para alterar uma decisão do Tribunal do Júri, e absolver quem foi condenado pelos jurados, uma vez que, tanto a revisão criminal (que é garantia constitucional implícita) quanto a soberania dos veredictos são garantias da liberdade, que deverá prevalecer sempre.”
Por outro lado, Lima (2007, p. 848) apresenta uma perspectiva diferenciada, ressaltando:
“No tocante ao meritum causae, dado ser o julgamento efetuado pelo próprio povo, representado pelos juízes de fato, ou jurados, a legislação ordinária não pode desconhecer que, sendo soberano, até porque em nome de quem todo poder emana (cf., inclusive, a preceituação contida no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal), evidente mostra-se a sua intocabilidade. Só mesmo se houver alguma nulidade a ser declarada é que o órgão jurisdicional de segundo ou superior grau, por força de manifestação recursal do interessado, poderá anulá-lo.”
Ainda neste contexto, é crucial considerar as proteções legais em vigor. Uma das principais salvaguardas é que uma revisão de sentença não deve resultar em uma penalidade mais severa para o réu. O artigo 626 do Código de Processo Penal estabelece essa norma, conhecida como proibição da reformatio in pejus.
“Art. 626. Julgando procedente a revisão, o tribunal poderá alterar a classificação da infração, absolver o réu, modificar a pena ou anular o processo.
Parágrafo único. De qualquer maneira, não poderá ser agravada a pena imposta pela decisão revista.”
Rangel (2014, p. 1107), refletindo sobre esta normativa, reitera: “[…] o juiz que for proferir nova sentença não poderá condenar o réu a um quantum superior ao que condenou no primeiro julgamento”.Este ponto é igualmente enfatizado por Manzano (2013, p. 779) que diz: “[…] não poderá agravar a pena imposta pela decisão revista, mesmo em caso de anulação”.
Finalmente, é essencial reconhecer a existência dos dois juízos específicos que orientam a revisão criminal: o rescindente e o rescisório. Esses juízos têm suas funções distintas, sendo o primeiro encarregado de anular a sentença inicial e o segundo propondo uma substituição da decisão anterior. Esses juízos desempenham papéis cruciais, dependendo da natureza das mudanças propostas na revisão.
Concluindo, a revisão criminal, embora complexa, segue diretrizes bem definidas para garantir a justiça e a integridade do sistema judiciário. A doutrina dominante reforça a necessidade de um novo julgamento pelo Tribunal do Júri em certas circunstâncias, respeitando assim o princípio constitucional da soberania dos veredictos.
5 Breve Análise Comparativa do Tribunal do Júri em Diferentes Contextos Jurídicos
No Brasil, o júri é uma instituição popular e democrática, que existe desde antes da Independência e que resistiu aos períodos de ditadura (TUCCI, 1999, p.8). Nos Estados Unidos, o júri é considerado não apenas um instrumento judicial, mas também um direito cívico. O país possui dois tipos de júris: o “grand jury”, que examina as acusações, e o “petit jury”, que julga o mérito do caso. Um aspecto peculiar é o processo de seleção de jurados, chamado de “voir dire”, que permite um intenso escrutínio dos candidatos por parte da acusação e da defesa, podendo excluí-los por potenciais preconceitos ou vieses.
No Reino Unido, berço histórico do sistema de júri, a instituição se mantém fiel a certos princípios fundamentais. O júri é reservado para crimes graves, com uma seleção aleatória dos jurados, garantindo uma amostra representativa da sociedade. A relação entre os jurados e os juízes é rigorosamente definida, assegurando que as deliberações do júri sejam livres de influências externas.
A França apresenta uma interessante abordagem híbrida para o julgamento de crimes graves, que consiste na combinação de jurados leigos e profissionais do direito. Esse modelo busca harmonizar as vantagens da participação popular, que traz uma visão intuitiva e empática dos cidadãos comuns, com a competência técnica dos profissionais treinados. Essa forma de organização do Tribunal do Júri revela a diversidade de sistemas existentes no mundo, que partilham da ideia fundamental de envolver os cidadãos no processo judicial, mas que diferem na sua execução prática.
O Brasil, com sua própria história e cultura jurídicas, pode se inspirar e aprender com esses sistemas, ao mesmo tempo em que aperfeiçoa e adapta sua própria abordagem para atender às demandas e desafios específicos da nossa sociedade.
Considerações Finais
O Tribunal do Júri é uma instituição que busca harmonizar o conhecimento técnico-jurídico com a sensibilidade humana e social da coletividade. Sua origem histórica remonta a diferentes épocas e culturas, desde a Palestina, passando pela Grécia e Roma Antiga, até a Inglaterra, onde se consolidou como um mecanismo de participação popular na justiça. No Brasil, o Tribunal do Júri existe desde antes da Independência e resistiu aos momentos de autoritarismo, sendo considerado uma expressão da soberania popular (TUCCI, 1999). Ao analisar os sistemas judiciários de outros países, observamos que o Tribunal do Júri apresenta diversas modalidades e características, mas sempre com um elemento comum: o respeito e a valorização do jurado como representante da democracia e do envolvimento cívico.
O jurado, por sua vez, enfrenta diversos desafios em sua função, como a influência da mídia, a complexidade da linguagem jurídica e as pressões de um julgamento. Assim, o Tribunal do Júri revela-se uma instituição singular e importante, não só como instrumento de justiça, mas também como forma de expressão da vontade popular.
O Tribunal do Júri é uma instituição que expressa a cidadania e a democracia na sociedade, pois permite que o cidadão seja julgado por seus pares e assegura a participação popular direta nos julgamentos proferidos pelo Poder Judiciário. Para que esse sistema se mantenha vivo e atualizado, é preciso que ele se adapte às transformações sociais e culturais, sem perder de vista os princípios de justiça, equidade e representatividade que o norteiam. Essa é uma tarefa complexa, mas também fascinante, pois revela a essência e a beleza do Tribunal do Júri, que se situa na interseção entre tradição e inovação. Com essa compreensão e reverência ao passado, presente e futuro dessa instituição, concluímos nossa investigação, esperando que ela contribua para debates e reflexões futuras.
Referências
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[1] Bruno Magera Conceição, advogado OAB/SP 358637, pós-graduado em Direito Civil Processual Civil, pós-graduado em Execução Criminal e Tribunal do Jurí, mestrando em Direito Internacional.