O MEDO EM HOBBES
4 de janeiro de 2025FEAR IN HOBBES
MIEDO EN HOBBES
Artigo submetido em 28 de dezembro de 2024
Artigo aprovado em 03 de janeiro de 2025
Artigo publicado em 04 de janeiro de 2025
Cognitio Juris Volume 15 – Número 58 – 2025 ISSN 2236-3009 |
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Autor(es): Ricardo Nascimento Fernandes[1] |
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RESUMO: O presente trabalho vem abordar o medo em Hobbes. É sabido que os homens são iguais por natureza. Essa igualdade também é uma igualdade no medo, uma vez um indivíduo não pode ser caracterizado como mais forte do que os outros e isso os torna temerosos. Este medo, não é um medo qualquer, mas o medo de perder a vida, seu maior bem, de forma violenta. O principal objetivo deste trabalho é investigar o papel do medo no desdobramento da teoria política de Thomas Hobbes. A metodologia adotada será uma análise bibliográfica de literatura, com ênfase em livros e artigos mais atuais e relevantes sobre o tema. Conclui-se que os homens vêem-se desprotegidos e inseguros e buscam na formação do corpo político a solução para o seu problema de insegurança. O objetivo aqui é demonstrar que o medo da morte violenta é uma das principais causas da instituição do Estado, ou seja, uma paixão política motivadora que tem no Estado também um papel muito importante: ser uma aliada do poder soberano na aplicação das leis e educação dos súditos.
Palavras-Chave: Hobbes; Medo; Natureza; Política; Estado.
ABSTRACT: This paper addresses fear in Hobbes. It is known that men are equal by nature. This equality is also an equality in fear, since an individual cannot be characterized as stronger than others and this makes them fearful. This fear is not just any fear, but the fear of losing one’s life, one’s greatest asset, in a violent manner. The main objective of this paper is to investigate the role of fear in the development of Thomas Hobbes’ political theory. The methodology adopted will be a bibliographical analysis of literature, with emphasis on the most current and relevant books and articles on the subject. It is concluded that men see themselves as unprotected and insecure and seek in the formation of the political body the solution to their problem of insecurity. The objective here is to demonstrate that the fear of violent death is one of the main causes of the institution of the State, that is, a motivating political passion that also has a very important role in the State: to be an ally of the sovereign power in the application of laws and education of subjects.
Keywords: Hobbes; Fear; Nature; Politics; State.
RESUMEN: Este trabajo aborda el miedo en Hobbes. Se sabe que los hombres son iguales por naturaleza. Esta igualdad es también una igualdad en el miedo, ya que un individuo no puede caracterizarse como más fuerte que otros y esto les hace temerosos. Este miedo no es un miedo cualquiera, sino el miedo a perder la vida, tu mayor bien, de forma violenta. El principal objetivo de este trabajo es investigar el papel del miedo en el desarrollo de la teoría política de Thomas Hobbes. La metodología adoptada será un análisis bibliográfico de la literatura, con énfasis en los libros y artículos más actuales y relevantes sobre el tema. Se concluye que los hombres se ven desprotegidos e inseguros y buscan la solución a su problema de inseguridad en la formación del cuerpo político. El objetivo aquí es demostrar que el miedo a la muerte violenta es una de las principales causas de la institución del Estado, es decir, una pasión política motivadora que también tiene un papel muy importante en el Estado: ser aliado del poder soberano en la aplicación de las leyes y la educación de los sujetos.
Palabras clave: Hobbes; Miedo; Naturaleza; Política; Estado.
1 INTRODUÇÃO
Sabe-se que Hobbes trabalha a hipótese de estado natural a partir do raciocínio lógico, quando os homens são capazes de retornarem (ou imaginarem) uma condição onde não há um poder político comum, essa hipótese serve para o filósofo explicar a existência não do estado natural, mas do Estado civil como veremos no decorrer deste trabalho (Polin, 2020). O estado natural, no entanto, é uma condição que pode também existir realmente (quando os homens encontram-se em guerra civil, ou quando levamos em consideração as relações entre Estados).
As relações entre os homens neste estado natural são fundamentadas na desconfiança e no medo, pois os outros sempre serão inimigos em potencial, uma vez que não há um poder comum a todos com força capaz de fazer os indivíduos viverem de forma ordenada e pacífica. Uma troca de promessas entre homens que se encontrem nesta situação é inválida quando existe um justo motivo de medo, já que o risco de que o outro não cumpra a sua parte na promessa pode ser presumido desde o início. Isto não impede que o pacto seja firmado, mas proíbe o homem de cumprí-lo, pois fere o direito natural que lhe determina salvar sua vida e a integridade física (Angoulvent, 2024).
O principal objetivo deste trabalho é investigar o papel do medo no desdobramento da teoria política de Thomas Hobbes. A metodologia adotada será uma análise bibliográfica de literatura, com ênfase em livros e artigos mais atuais e relevantes sobre o tema.
Não é possível se opor ao poder da lei e do soberano, mas não se pode esquecer que a função do pacto é eliminar o medo da morte violenta e que o homem aceita se submeter porque este medo era insuperável, se ele reaparece, não há motivo para que o seu compromisso continue. Apesar de o medo continuar presente após a instituição do Estado, ele se torna um mal menor: antes estar submetido a um poder que usa o medo da punição para garantir a segurança e a paz do que estar em um estado de guerra permanente, onde a vida está sempre em risco. Outro aspecto a ser desenvolvido neste capítulo será o papel do medo na religião dentro do Estado civil e o uso que o soberano faz disso para garantir que as leis sejam obedecidas por todos.
2 O MEDO E A INSTITUIÇÃO DO ESTADO CIVIL
Ao estudar o estado de natureza hobbesiano é necessário estar ciente de que embora se trate de uma situação hipotética, é também possível encontrar essa condição como sendo uma condição real mesmo dentro de um Estado, ou ainda como uma condição pré-política. O filósofo inglês apresenta-o fundamentalmente como resultado de um raciocínio lógico-mecanicista, de como os homens viveriam na hipótese da ausência de um poder comum que os governasse. Agindo dessa forma, Hobbes constrói ao mesmo tempo as bases que fundamentam o Estado civil e que justificam a necessidade de um contrato social para este fim. O estado natural, portanto, é uma situação pré-política porque ocorre antes da instituição da República (Eisenberg, 2022).
O homem natural, como foi possível analisar no capítulo anterior, não deixa de ser um animal, embora faça uso da linguagem, o que não ocorre com os outros animais, de modo que a sua vida, assim como a dos outros animais, é movimento constante; o que diferencia o homem dos demais animais são a razão e a linguagem. Só com esta proposição, já é possível refutar a teoria daqueles que pensam ser o homem mau em sua essência, pois se o homem é um animal, não pode ser mau por natureza. Outro aspecto que deve se considerado no estudo do estado natural, é que Hobbes concebe o homem natural como um ser de interesses e desejos infinitos que, apesar de viverem em grupos, não encontram nesta condição espaço para harmonia ou paz (Polin, 2020).
O homem naturalmente busca a sua preservação, a conservação do seu corpo; isso ocorre em todos os momentos, mas principalmente na ausência de um poder comum que o obrigue a respeitar o espaço de domínio do outro. Sua natureza o leva a seguir regras particulares que apontam o caminho para a autopreservação e a autodefesa criando assim conflitos, já que os interesses particulares predominam. A essas regras particulares ou “ditames da reta razão”, Hobbes dá o nome de leis naturais. Se estes preceitos não são seguidos, surgem conflitos que dão origem à guerra generalizada, condição pela qual o estado de natureza hobbesiano é mais conhecido (Ribeiro, 2019).
O estado de natureza é concebido por Hobbes principalmente, como um estado de iguais condições para todos. Os homens têm iguais direitos sobre as coisas e liberdade incondicional para satisfazer esses direitos. Essa característica não se refere a uns poucos homens, mas a todos, sem exceção. Assim, temos assinalada uma situação não-política, onde cada um só tem a si mesmo para preservar-se e defender-se. O estado natural, portanto, caracteriza-se por ser uma situação na qual os homens têm igual condição de força e de espírito. A igualdade em Hobbes é entendida não como a semelhança precisa, mas como o fato de que as diferenças entre eles são muito pequenas para fazer nascerem diferenças duradouras. Assim ninguém é de tal modo superior a outro para alcançar um poder durável sobre ele (Eisenberg, 2022).
Deste modo, pode-se dizer que nenhum homem é superior a outro de tal maneira que possa contrair um poder durável sobre ele, por mais que o deseje. Diante dessa condição de igualdade e na busca pela preservação de seu bem maior, um homem pode atingir outro homem, sabendo que isso não lhe acarretará conseqüências punitivas, uma vez que na condição natural não existe quem exerça essa função (Ribeiro, 2019).
Segundo Hobbes, “é simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria, a qual quase todos os homens supõem possuir em maior grau do que o vulgo. Isso quer dizer em maior grau do que todos menos eles mesmos” (Angoulvent, 2024, p.106). A igualdade intelectual fica evidenciada a partir daquilo que a torna invisível, ou seja, através de uma presunção vaidosa que faz com que cada um aumente sua sabedoria diante dos outros. Não podemos conceber o estado natural hobbesiano sem essa noção de igualdade, ela é intrínseca a ele. As vantagens que ora um, ora outro detêm não são suficientes para garantirem a manutenção do poder sobre determinado objeto e freqüentemente são destruídas com facilidade.
A igualdade entre os homens acaba gerando uma concorrência, pois eles não possuem garantias de que não serão atacados pelos outros. Não há segurança nessas condições. Isso acaba por evidenciar ainda mais a possibilidade de uma luta violenta e isso dá vazão ao medo recíproco, pois cada um teme por sua vida nestas condições. A igualdade dos homens também é caracterizada por uma igualdade no medo, pois a vida de todos fica ameaçada, todos têm a capacidade de destruírem o outro e nem o mais forte está seguro já que o mais fraco é livre para usar todos os artifícios para garantir a sua vida (Polin, 2020).
Segundo Ribeiro (2019), a causa do medo recíproco tanto pode ser a igualdade dos homens como sujeitos com os mesmos direitos sobre as coisas, ou uma conseqüência disso: o desejo que todos têm por poder e mais poder. Ou seja, os homens tanto são iguais em força e espírito, como desejam se ferir uns aos outros. Esse desejo de ferir o próximo é explicado quando pensamos a introspecção de cada um, quando pensamos a forma como os homens avaliam a si mesmos e a partir disso inferem as ações dos outros.
Conforme Hobbes (Angoulvent, 2024, 129):
Se examinarmos os homens já adultos, e considerarmos como é frágil a moldura do nosso corpo humano (que, perecendo, também faz perecer toda a nossa força, vigor e mesmo sabedoria) e, como é fácil, até o mais fraco dos homens matar o mais forte, não há razão para que qualquer homem, confiando em sua própria força, deva se conceber por natureza feito superior a outrem. São iguais aqueles que podem fazer coisas iguais um contra o outro; e aqueles que podem fazer as coisas maiores (a saber: matar) podem fazer coisas iguais. Portanto, todos os homens são naturalmente iguais entre si.
Todos os indivíduos igualmente sentem medo, todos podem ser feridos e todos são frágeis quanto a isso. Embora os homens tenham características semelhantes (físicas e espirituais) os objetos de desejo são diferentes, nem sempre os homens desejam as mesmas coisas, isso se deve ao fato de que as constituições do seu corpo não são as mesmas. Nem todos os indivíduos sentem frio ao mesmo tempo, ou calor, ou fome. Os bens desejáveis não variam apenas de homem para homem, mas nele mesmo, em momentos diferentes. Isso é conseqüência do conatus de cada um, e são os princípios de movimentos que determinam nas faculdades da mente, as decisões que devem ser tomadas. A diferença, no entanto, que encontramos nos bens desejados não é encontrada na capacidade para satisfazê-los, todos são iguais nesse quesito. O desejo por mais poder ou por mais segurança pode não ser prioridade para todos os homens ao mesmo tempo, mas a capacidade que estes homens possuem para alcançá-lo é a mesma. O medo ou a esperança também irão variar conforme a situação em que se encontram. E é nisso que se encontra a igualdade no estado natural, uma igualdade de capacidades e de poderes, bem como uma igualdade de fragilidade (Eisenberg, 2022).
Conforme Tuck (2021), manter os outros sob o seu domínio, é uma forma de garantir o poder, mas como vimos esta é uma linha tênue que pode facilmente ser rompida dentro do estado natural, essa fragilidade é causada exatamente pela igualdade e pela total liberdade a que todos se encontram. A liberdade e a igualdade nos remetem novamente ao movimento de que falamos no capítulo anterior, porque é dentro desse contexto que Hobbes trabalha a condição humana, relacionando-a a sua felicidade, que podemos denominar como a obtenção daquelas coisas que garantem a vida e a saúde do seu corpo. A sua miséria, é o oposto do que denominamos felicidade, ou seja, é a morte violenta ou mesmo a agressão contra qualquer parte do seu corpo.
Na leitura que Polin (2020, p.52) faz de Hobbes, é possível encontrar três características recíprocas na relação entre os homens: todos têm um desejo infinito de poder; todos têm direito sobre todas as coisas; e todos são livres. Essa igualdade é justamente o que os coloca em conflito porque os homens sabem que são iguais. Apesar de serem iguais, os indivíduos não se comportam de maneira igual ou parecida o tempo todo, porque os seus objetos de desejo variam de acordo com a sensação e a imaginação de cada um. Tudo é conseqüência da observação e do cálculo, enquanto alguns compreendem a igualdade com um encorajamento para a ação, outros a vêem como um desencorajamento, preferem sair do campo da batalha por medo de perderem a vida. A condição natural de total liberdade e igualdade comum levam o indivíduo ao conflito, deixando o homem em uma situação de perigo de morte constante.
3 O MEDO E O ESTADO DE GUERRA
As expressões “guerra de todos contra todos” e “homem lobo do homem” ficam explicadas em Hobbes com a caracterização do homem natural como sendo um ser de interesses e com a condição de que todos são iguais em força, espírito e direitos. Resta-nos agora investigar como o medo permeia as condições de guerra e como é possível que ele possa ser a força motivadora da instituição do Estado, “o medo é das principais experiências que temos de nossa condição. Revela ao homem no estado natural, que este é insustentável: por natureza cada indivíduo quer expandir-se; mas fazendo-o entra em guerra com os outros” (Tuck, 2021, p.245). O medo é a paixão capaz de melhor definir os indivíduos naturais, uma vez que a vida fica limitada pela condição iminente e recíproca de morte violenta. Encontramos o medo permeando todas as obras de Hobbes, e, ele é explicado pela igualdade de direitos. Em uma circunstância de medo recíproco, as garantias de que a sua vida, bem como de seus familiares e seus bens estão protegidos, só são possíveis pelo uso da força. A igualdade de direitos garante ao homem o poder de fazer o que achar melhor para preservar o que possui.
Ao analisar o estado de natureza, é primordial que se fale do papel do medo na condição de guerra generalizada, já que o mesmo é uma das motivações, se não a mais importante, a conduzir o homem também na instituição do Estado. Não se trata, no entanto, de qualquer medo, mas do maior medo que pode afligir um homem: o medo da morte violenta. O homem teme a morte naturalmente, mas este é um fato pelo qual todos devem passar independente de qual estado se encontrem, se na condição de natureza ou sob o Estado civil. Embora este assunto cause certo receio nas pessoas, ninguém entra em conflito apenas por este motivo. No entanto, o temor de perder o bem maior de forma violenta está sempre ligado às causas de guerra, visto que é da natureza do homem desejar para si o que é bom e evitar o que lhe é prejudicial (Angoulvent, 2024, p.69):
E na medida em que a necessidade da natureza faz os homens quererem e desejarem o que é bom para si mesmos (bonumsibi) e evitarem o que é danoso – sobretudo este terrível inimigo da natureza, a morte, de quem esperamos tanto a perda de todo poder, como também as maiores dores corporais que acompanham essa perda -, não é contra a razão que um homem faça tudo que puder para preservar a sua própria existência e o seu próprio corpo da morte e da dor.
É racional para o homem lutar e buscar sempre a conservação da sua vida e das partes do seu corpo. Hobbes não cogita a ideia de ter algo maior do que a vida, ela é o bem mais relevante de um homem. Se acontecer algum dano à vida, por mais insignificante que seja não será possível vivê-la em sua plenitude. A vivência fica comprometida. Por outro lado, o que é mais terrível do que a morte ou a dor corporal? Segundo Strauss, a morte é a negação de todos os bens que se pode ter, é o mal maior que pode atingir um homem. Ele vai além ao afirmar que “é pela morte que o homem tem um objetivo”. O objetivo justificado é o de se impor perante a morte e defender a própria conservação e que “tememos a morte infinitamente mais do que desejamos a vida” (Ribeiro, 2019, p.40).
De acordo com Tuck (2021), no estado natural é normal que os conflitos surjam devido à liberdade total e ao direito a tudo. Se em algum momento desse conflito o homem notar que pode vir a sofrer qualquer dano, isso causará nele o medo. E quando o perigo da morte é iminente, este indivíduo compreende que é necessário lutar pela sua vida. Para lutar pela sobrevivência o homem natural se dispõe a tudo, inclusive a matar seu concorrente, sem que isso lhe cause arrependimentos, uma vez que todos são inimigos em potencial.
O estado natural não corresponde exatamente a um momento histórico, mas Thomas Hobbes cita a guerra civil (e a guerra civil não é algo hipotético) como um exemplo em que esta condição pode ocorrer, uma vez que não existe nenhum poder garantindo a ordem e o cumprimento da lei. Ele também define a guerra não apenas como um tempo de batalha, mas todo o tempo em que uma vontade de lutar esteja evidente, ou seja, a guerra é entendida por ele como todo o tempo em que há um risco de que ela possa ocorrer. É esse risco permanente de uma possível luta que torna o estado de natureza uma condição tão imprópria para a paz. As características do homem natural como um ser de desejos por poder e mais poder, levam Hobbes a responsabilizar três causas para a guerra generalizada, causas estas, todas entremeadas pelo medo: “De modo que na natureza do homem encontram-se três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” (Tuck, 2021, p.108).
A diversidade de motivos, que é acompanhada pela diversidade das constituições físicas, é uma característica intrínseca do gênero humano, mas não faz com que a competição deixe de existir. Essa primeira causa de guerra é responsabilizada por Hobbes, por muitos dos combates que ocorrem. É presumível que haja competição quando dois homens desejam a mesma coisa, ou quando um homem se apresenta como obstáculo à obtenção daquilo que é desejado por outrem (Villanova, 2019, p.130):
[…] muitos, ao mesmo tempo, têm um apetite pela mesma coisa; que, contudo, com muita freqüência, eles não podem nem desfrutar em comum, nem dividi; do que se segue que o mais forte há de tê-la, e necessariamente se decide pela espada quem é mais forte.
Diante disso ou o indivíduo submete o adversário ao seu poder, ou luta com ele para garantir a posse do seu objeto de desejo. Além dessas possibilidades, o homem ainda tem o potencial de poder enfraquecê-lo ao usar da sua capacidade de raciocínio ou ainda, aliando-se a outros, quando isso for vantajoso. Essa aliança, embora não seja segura, pode ocorrer: “quando os homens ingressam na vida social para se ajudarem uns aos outros, com ambas as partes consentindo sem qualquer coerção” (Weffort, 2021, p.35). Para submeter o outro ao seu poder, um homem pode fazer uso de tudo que estiver ao seu alcance – fica mais uma vez evidenciado o direito a tudo e a liberdade total -, isso inclui fazer uso do temor, forçando aquele que está sob o seu domínio obedecer-lhe por medo da morte ou pela ameaça de machucá-lo.
Villanova (2019) relata que os indivíduos naturais são possíveis inimigos e, disso, decorre a segunda causa da guerra; a desconfiança. Uma vez que é a introspecção que nos guia no conhecimento do que se passa no outro, compreendemos que tudo o que formos capazes de fazer para garantir a execução de um desejo, o outro também será capaz de fazer. A desconfiança leva os homens a se atacarem tendo em vista a segurança dos bens que possuem, bem como a sua própria segurança, já que ao atacar o outro evita que este o ataque primeiro; ou seja, no estado natural é necessário saber fazer uso das oportunidades quando elas surgem. Essa é uma ocorrência paradoxal: da mesma forma que eu faço uso das oportunidades que vão se apresentando, também o outro calcula qual é o melhor momento para efetuar o seu ataque.
Os homens não competem desejando apenas o lucro e a segurança, mas competem também visando serem reconhecidos, temidos e respeitados. Essa terceira causa de guerra, segundo Limongi, não necessariamente precisa do terreno da igualdade para se disseminar. Não é por serem iguais que os homens buscam a reputação. O desejo de ser reconhecido parece algo a parte na deflagração da guerra, destacando-se das outras causas de guerra pelo cálculo de expectativas que vamos criando em relação aos outros. Isso explica porque os homens não tendem à vida social de modo natural (Angoulvent, 2024, p.91):
Porque nos apraz tanto expor os outros ao ridículo senão porque, com isso, comparando-nos com os defeitos e deficiências dos outros, sentimos melhor nosso próprio valor? […] é que buscamos em toda associação sempre um proveito ou a glória e não o prazer na convivência. Além disso, tememos uns aos outros, e não fosse o medo recíproco nenhuma sociedade duradoura seria possível. Tal temor não se explica apenas por nossa igualdade natural de poder, mas também […] porque desejamos nos ferir: alguns para simples defesa, outros para se fazer respeitar e honrar.
De acordo com Weffort (2021, p.142), a igualdade de poder e o temor estão relacionados, assim como a insegurança geral. A igualdade de direitos e de liberdade justifica o desejo de poder, caracterizado nos homens do estado natural, que estão sempre em guerra. Segundo ele, o desejo de preservar a sua vida entra em contradição ao ir de encontro com a morte violenta, fator conseqüente da situação crítica de guerra iminente em que se encontram. É por este motivo que Hobbes diz que é contraditório desejar viver num estado como este, pois cada homem deseja por necessidade de natureza o seu próprio bem e isso se opõem ao estado de natureza, onde os homens são capazes de destruírem-se uns aos outros.
A condição de guerra não é, portanto, a luta real, mas toda aquela disposição ao conflito; é uma disposição de atacar que está sempre presente, mas este ataque só acontecerá na eventualidade de o agressor ter mais vantagens sobre a vítima e, mesmo que haja o medo de antecipar-se ao outro, ele não é capaz de muitas vezes dissuadir um homem de tomar iniciativas ofensivas. De acordo com Hobbes, quem sente medo, também desconfia, acautela-se e procura agir de tal maneira a não mais temer, seja fugindo do seu inimigo, seja armando-se para confrontá-lo. A fuga parece ser uma estratégia razoável na condição de guerra, quando se avalia racionalmente os poderes e a situação em que cada um se encontra. Mas a partir do momento que sentir uma superioridade em relação ao seu inimigo o mais provável é que se antecipe a ele, para defender-se ou atacar, visto que surgiram novas chances de melhorar sua condição ou eliminar finalmente a causa do seu medo (Villanova, 2019).
4 A INSUFIÊNCIA DAS LEIS NATURAIS
A necessidade de garantir a segurança faz com que o homem busque na razão certos preceitos a serem seguidos com o objetivo de garantir a paz: são as leis naturais. As leis naturais não são vontades, como erroneamente podemos julgar, as vontades são particulares de cada um e, portanto, não se configuram em leis. O medo da morte e do sofrimento é o que faz com que os homens busquem com a sua razão uma situação melhor, na qual possam se refugiar dessa circunstância indesejável. Hobbes define desta forma o que são as leis naturais: “Uma lei de natureza é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para a preservar” (Weffort, 2021, p.112). Ou seja, as leis de natureza prescrevem o modo como os indivíduos devem agir caso realmente desejam viver em paz com os outros homens. É necessário que demonstrar aos outros essa vontade, do contrário a paz não será possível.
A razão, por sua vez, é entendida em Hobbes como a faculdade de raciocinar, de calcular os fins mediante suas causas. Isso enuncia, segundo Villanova (2019, p.38), que:
[…] para Hobbes, dizer que um homem é dotado de razão equivale dizer que é capaz de cálculos racionais, o que é outro modo de dizer que é capaz de descobrir quais são os meios mais adequados para alcançar os fins desejados e, por conseguinte, de agir não só obedecendo a esta ou aquela paixão, mas também seguindo o próprio interesse.
Também de acordo com Limongi (2022, p.117):
É verdade que para Hobbes a razão (reason) é sempre razão calculadora. Ao mesmo tempo, a palavra reason significa para ele também razão no sentido de fundamento. Portanto, o conceito de racionalidade permanece também, mais ou menos explicitamente, para oferecer os fundamentos de determinado argumento. Quem quer explicar racionalmente um fenômeno deve descobrir as razões ocultas – o que, no modelo mecanicista-causal de Hobbes, significa descobrir as causas. No caso das ações humanas, as causas ou razões são os motivos. Uma explicação racional do agir do homem consiste, pois, em individualizar os motivos que estimulam um certo indivíduo a agir de uma certa maneira.
Por este motivo que Hobbes julga as crianças como pessoas ainda sem razão, pois é necessário que possamos explicar os motivos que nos levam a agir e isso só ocorre através da linguagem. Como as crianças ainda não dominam a linguagem, não têm como expressar o que se passa em seu intelecto, sendo, portanto desprovidas de razão. Se conforme Hobbes, a razão aponta os caminhos para a paz, então esse desejo racional de sair do estado de guerra, onde a morte violenta pode atingir qualquer individuo a qualquer momento, é um desejo oriundo do cálculo racional e promulgado através da linguagem (Weffort, 2021).
Todas as regras que indicam o caminho para sair da guerra e, conseqüentemente, da condição temerosa de perder a vida a qualquer momento, estão subordinadas a uma primeira regra que ordena a busca pela paz como prioridade maior. Em um estado de guerra onde a vida dos homens está sempre em perigo, é primordial que a primeira regra, bem como as demais que a seguem, mostre para os homens o que é conveniente ou não para uma vida pacífica. As leis naturais não se aplicam à natureza em geral, mas à natureza humana. O objetivo é precisamente, fazer com que os homens deixem essa condição de guerra e estabeleçam um Estado. Uma vez que, para Hobbes (Weffort, 2021), não é contra a razão um homem fazer o que puder para preservar a sua existência, ou seja, não ir contra a própria razão, é um direito de natureza antes mesmo de ser uma lei natural.
Limongi (2022) afirma que, a característica principal do estado natural é que o homem é um ser que nunca está satisfeito com o que possui e essa insatisfação é o que o move continuamente. Dessa forma, o homem permanece em movimento ininterrupto e imaginá-lo como um ser não desejoso é imaginá-lo sem vida. Não existe para ele uma tranqüilidade de espírito, pois assim que satisfaz um de seus desejos, já tem outro para alcançar e deste modo a sua busca nunca termina. A natureza humana é de tal forma engendrada que, ao mesmo tempo o que é causa do movimento também se torna um impedimento. Os desejos e as paixões (como o medo e a esperança), que são o que movem os homens acabam se chocando com os desejos e as paixões de outros homens. A experiência que adquirimos com o tempo nos faz perceber que o nosso movimento não é o único e que, para que ele possa continuar, é necessário, muitas vezes, impedir o movimento dos outros. E o mesmo posso esperar de outrem: muitas vezes meu movimento será impedido pelo movimento dele.
A multiplicidade de movimentos e desejos, aliada à igualdade de direitos e à liberdade no estado natural fazem com que os homens não vivam harmoniosamente. Pelo contrário, essas condições fazem com que se impeçam mutuamente; por este motivo, é necessário procurar um meio de dirigi-los de forma a introduzir uma limitação a essas características que permita ao ser humano realizar ao máximo as suas potencialidades. A única maneira que o homem encontra para sair dessa situação de conflito iminente é acatar a sua razão que sugere adequadas normas de paz, “em torno das quais os homens podem chegar a um acordo” (Salgado, 2023, p.111).
As leis de natureza, de acordo com Limongi, não “prescrevem exatamente o dever de querer contratos e cumprí-los, ser grato, etc., mas, mais propriamente, o dever de nos comportarmos de maneira a significar aos outros que a nossa vontade é essa” (Portela, 2022, p.250). Ou seja, o ato em si não é tão importante quanto deixarmos os outros perceberem a nossa intenção, o nosso comportamento deve dar a entender que desejamos a paz, a intenção de cumprir os contratos e tratar os outros como iguais. Podemos encontrar isso também em Limongi (2022, p.160). Segundo ele, “a lei remete a uma relação de obrigação entre as pessoas”. Os indivíduos obrigam-se a cumprirem as suas partes do acordo para realizarem o seu desejo maior que é viver ordenadamente e em paz. Ora, viver ordenadamente e em paz significa manter-se longe da violência da morte dolorosa e este é um desejo que todos têm, portanto, é compreensível essa obrigação de uns com relação aos outros.
Na esperança de viverem em paz, os homens devem aceitar também os meios para se chegar até ela, o que corresponde segundo Hobbes, a obedecer aos contratos firmados. É primordial que eles sejam cumpridos para que a paz, a segurança e o conforto sejam alcançados. Os contratos ou pactos são instrumentos artificiais, através dos quais dois ou mais indivíduos buscam realizar seus interesses, o que os leva a utilizarem estes instrumentos é a esperança de alcançar certo benefício que sozinhos não alcançariam, a esperança de sempre alcançarem algo melhor. Hobbes faz uma diferenciação entre contrato e pacto (Salgado, 2023).
Os pactos envolvem promessa e toda promessa envolve confiança. Por isso, quando um homem pactua, sem ter a confiança de que o outro vai cumprir a sua parte no acordo, o faz assumindo o risco de não receber o bem desejado e isso vai contra o princípio de racionalidade. Como pactos são promessas, a sua realização ou não no futuro depende da ação voluntária daqueles que pactuam e por isso, quando são feitos tendo em vista o futuro devem ser acompanhados de outro sinal que realmente represente a outra parte a sua intenção de cumprir o acordo. Quanto aos contratos, estes ocorrem quando há a transferência mútua e imediata dos direitos, quando as duas partes concedem cada uma um direito na condição de que a outra parte sinta-se obrigada a fazer o mesmo. Portanto, ao estabelecerem contratos uns com os outros, os homens devem saber cumpri-los e não exigir mais liberdade para si do que aquela que concede aos outros. É necessário saber avaliar até que ponto é preciso desistir do direito natural de auto-conservação. Agir visando a conservação da vida, consentir na limitação mútua dos direitos e almejar a paz não são motivos suficientes para que ela seja alcançada, é preciso que não se torne nulo o ato voluntário que a torna possível (Portela, 2022).
5 O MEDO E A VALIDADE DOS PACTOS
Conforme Limongi (2022), os homens são seres de interesses que ora tendem a um objetivo, ora a outro conforme as necessidades de preservação e o medo de perder a vida os movimentem, assim como as suas constituições, costumes e opiniões. Por todos serem igualmente assim, surge entre eles a discórdia e a guerra generalizada. Diante de uma situação de luta, onde pode perder a vida é natural que eles busquem a paz; isso é possível através da razão. Para saírem dessa condição os homens firmam pactos entre si, mas isso não se dá apenas porque a razão aponta qual é o caminho, mas também porque os indivíduos são capazes de reconhecer os prejuízos que uma guerra é capaz de trazer. Neste sentido, podemos dizer que o medo da morte violenta e a esperança de um futuro melhor, são agentes ativos para que a razão perceba as ações que cada um deve tomar. Todos os homens que se encontram em uma condição de guerra, o reconhecem como uma condição ruim e a paz, que é o seu contrário como uma condição boa, por isso, segundo Hobbes, mesmo que os homens não concordam com um bem presente, concordam com um bem futuro e para isso, devem aceitar e cumprir os pactos firmados.
No estado natural um justo motivo de medo pode extinguir a obrigação de cumprir o pacto quando nenhuma das partes o cumpriu ainda. Um motivo só é justo se for uma ocorrência surgida depois do pacto já estabelecido. Na condição de guerra em que os indivíduos se encontram o temor de ver a outra parte não cumprir com a sua palavra já é prenunciado, isso não impede que os pactos sejam firmados, mas pode impedir o seu cumprimento. Hobbes distingue duas modalidades de pactos firmados por medo mútuo: a primeira determina querer a paz e os contratos, motivada principalmente pelo medo da morte violenta e pelo cálculo que os homens inferem desse medo. A segunda nasce do pacto firmado e da incapacidade de prever se a outra parte irá manter sua palavra, ou seja, da insegurança de que os indivíduos realmente estão se obrigando com relação aos outros homens. Apenas a segunda causa invalida os pactos firmados por medo mútuo. Portanto, são inválidos os pactos feitos em contrato de confiança recíproca, quando nenhuma das partes contratantes cumpre de imediato o que prometeu, pois falar que vai transferir um direito amanhã é sinal insuficiente para se tornar uma obrigação; é apenas uma promessa, e promessas, não são obrigatórias. Um novo motivo de medo também pode surgir e, no estado natural, onde cada um é responsável por sua segurança, fazer cessar a obrigação (Salgado, 2023).
Segundo Hobbes, os indivíduos não podem firmar pactos quando estes demandam dele algo que está fora do seu alcance e isso implica que cumprir ou não a promessa feita, depende apenas da vontade daqueles que estão envolvidos. Assim, embora Hobbes aconselhe que se cumpram os pactos, ele parece abrir algumas exceções: torna-se nulo um pacto que implica na renúncia ao direito de autodefesa, porque quando um contrato é estabelecido, ambas as partes esperam dele um beneficio futuro. Num contrato em que se promete não defender-se vai contra a racionalidade, pois a vida e a preservação dos membros do corpo são o maior interesse para um homem. No Leviatã, Hobbes explica seu argumento afirmando que se um inimigo ou bandido deixam a vida de outro indivíduo salva em troca de uma promessa de resgate, a relação de forças é desigual porque ao deixá-lo com vida, o bandido não se entrega sem defesa, pelo contrário ele exerce o seu direito natural de agir do melhor modo visando os seus interesses. Não interessa neste caso qual é o contexto da situação, ninguém dotado de razão seria capaz de aceitar um pacto deste tipo (Bobbio, 2023, p.148):
Ninguém está obrigado, por qualquer contrato que seja, a não resistir a quem vier matá-lo, ou ferir ou de qualquer outro modo machucar o seu corpo. Pois em todo homem existe um certo grau, sempre elevado, de medo, através do qual ele concebe o mal que venha sofrer como sendo o maior de todos. E assim, por uma necessidade natural, ele o esquiva o mais possível, e supomos que de outro modo não possa agir. Ora, quando alguém chega a esse grau de medo, tudo o que dele podemos esperar é que se salve pela luta ou pela fuga. Ninguém está obrigado ao que é impossível; portanto, quem se vê ameaçado pela morte, que é o maior de todos os males que possa afetar a natureza, ou por um ferimento ou ainda por danos físicos de qualquer espécie, e não é corajoso o bastante para suportá-los, não está obrigado a sofrê-los.
Os pactos nada mais são do que trocas de direitos, quando um indivíduo renuncia um direito que tem sobre algo qualquer em troca de receber o direito sobre outro objetivo ou desejo. Isso é uma promessa que envolve vontade, liberdade, esperança e confiança. Promessa no sentido de que todo pactuante se compromete a abdicar de algo para outro pactuante, seja imediata ou futuramente; essa promessa só vai ocorrer se for da vontade de ambas as partes, o que também envolve a liberdade uma vez que todos são livres para realizarem as suas vontades. Não é possível falarmos de pactos que não envolvam a vontade dos pactuantes e a sua liberdade de pactuar (ou não). Quando pactuam, os indivíduos têm a esperança de alcançarem seus objetivos futuros, por isso os pactos que envolvam promessas futuras devem ser bem estabelecidos no presente, segundo Hobbes, com palavras que assegurem que o pactuante está abdicando do seu direito ainda no presente, pois somente palavras no tempo presente transferem um direito. Se isso não for possível, o pactuante deve apresentar outros sinais presentemente de que irá cumprir a sua promessa no futuro. Os pactos também envolvem confiança, apesar disso ser quase impossível de ocorrer em uma situação de guerra imediata ou proeminente. Se um dos pactuantes se envolve em uma promessa desse tipo, onde não há confiança de que a outra parte cumpra sua parte no acordo, acaba assumindo um risco sem esperar um benefício certo vindo dele (Salgado, 2023).
Hobbes afirma ainda que ninguém fica obrigado ao que é impossível e uma situação como essa onde o homem se vê ameaçado de morte, que é o maior de todos os males, ou mesmo ameaçado de ser ferido por outro, é uma situação impossível de ser aceita por qualquer pessoa capaz de raciocinar. Existe uma grande diferença entre estar submetido ao poder de um homem e quando isso, a submissão é confirmada por grades ou correntes, evidenciando que a submissão é contra a sua vontade. A confiança no que o outro promete é o que move os contratos, uma vez que não há um poder externo superior ao pactuante que os faça serem cumpridos, por este motivo esse tipo de contrato onde um homem promete deixar-se ferir não é válido (Kayser, 2022).
No entanto, os pactos firmados por medo da morte são lícitos. Explica-se: se um homem promete dar a um assaltante, todo o seu dinheiro em troca do beneficio de continuar vivendo, este pacto é válido, pois pactua em troca do benefício da vida. Não importa a motivação para o cumprimento do pacto, se é por medo ou outra coisa, se for para garantir a conservação da vida o pacto é válido. Nenhuma ação é sem causa, cabe ao homem saber avaliar a causa em questão e agir perante isso. Por isso, prometer por medo entregar o dinheiro ao assaltante em troca da preservação vida não anula o pacto. Assim também como um governante mais fraco, se comprometer desvantajosamente com outro mais forte. As causas que invalidam um pacto são: a) um justo motivo de medo de que a outra parte não cumpra o pactuado; b) prometer matar-se ou ferir-se e c) prometer algo que já foi prometido a outro anteriormente (Kayser, 2022).
6 O MEDO COMO INSTITUIÇÃO DO ESTADO CIVIL
O medo torna-se a principal causa instituidora do Estado quando a morte violenta se torna iminente e insuportável fazendo com que os homens decidam-se pelo mal menor. De acordo Hobbes, “o medo é a origem das sociedades grandes e duradouras” (Portela, 2022, p.28) por ser uma antecipação de males futuros, “o medo alarga a visão, faz com que antecipem o mal futuro e leva os homens à precaução” (Bobbio, 2023, p.146). Pode até ser difícil compreender que o medo faça o homem pensar em uma situação assim, uma vez que o homem não deixa de sentir medo quando quer, no entanto, é de compreensão de todos que ao passar por uma situação que lhe cause temor, o homem passará a evitá-la no futuro. Os temores pelos quais um homem passa quando se encontra na condição de guerra já são suficientemente fortes para levá-lo a desejar uma situação melhor do que essa.
Se as relações contratuais que se estabelecem no estado natural fossem realmente efetivas, não seria necessária a instituição do Estado, pois os homens respeitariam a palavra dada. Se, por outro lado, todos os pactos fossem inválidos, o contrato social não seria possível, uma vez que também é um contrato. Num estado onde a igualdade prevalece qualquer novo motivo de medo que surja tem força suficiente para paralisar toda vontade de cumprir o pacto primeiro, Hobbes considera isso bem imprudente e tolo quem o faz. Por este motivo, as leis naturais são insuficientes para garantirem sozinhas que a paz seja estabelecida, pois não tem quem obrigue os homens a segui-las, tornando-se desnecessário se comprometer salvo imaginando um pacto que cria imediatamente a segurança de que os pactuantes cumprirão suas promessas (Kayser, 2022).
É pelo medo da morte, da invasão e dos ferimentos que os homens buscam o Estado, essa é uma segurança que eles não podem ter no estado natural. Hobbes continua seu raciocínio dizendo em nota que é “tão improvável que os homens chegassem à sociedade civil devido ao medo que, tivessem eles medo, nem mesmo suportariam o olhar uns dos outros. Mas quem assim pensa presume, creio eu, que temer é exatamente o mesmo que apavorar-se” (Bobbio, 2023, p.359). Medo e pavor não é a mesma coisa. O medo é a aversão ligada à crença de dano, já o pavor é o medo sem saber de quê ou por que. O pavor não é algo que os homens suportem com facilidade, mas isso se apresenta com um caráter muito psicológico, não concernente ao presente e estudo. Não que o caráter psicológico não seja importante para a instituição do Estado, ou para o estudo do medo como uma paixão política, apenas este não é o melhor lugar para tratar dele. O medo é visto por Hobbes como “a antevisão de um mal futuro”, a sociedade civil provêm do medo e este medo se origina da igualdade, característica que anula qualquer garantia de que está protegido no estado natural, salvo pela sua própria força e inteligência.
Conforme Hobbes, quando os homens mostram-se uns aos outros conseguem observar melhor as suas disponibilidades; assim, se a luta for inevitável, a sociedade civil nasce do confronto, se, de outra forma, eles concordarem, a sociedade nascerá de um acordo. De acordo com o pensador, é mais fácil que os homens consigam os seus benefícios pela dominação do que pela associação, embora os mesmos possam ser ampliados pela cooperação recíproca. Segundo Pinzani, este último caso pressupõe um alto grau de racionalidade, enquanto o primeiro segue a lógica do medo e da esperança, pois são estas paixões que levam os homens a acreditar que todos os outros são potencialmente inimigos e que transferindo seus direitos a uma pessoa em comum, estarão protegidos da violência dos outros mesmo que não estejam protegidos de soberano. Essa não proteção parece ser contraditória, mas é explicável; o soberano tem poder absoluto sobre os direitos e bens daqueles que o estabeleceram como tal, mas só vai interferir contra eles se estes não cumprirem as leis estabelecidas pelo Estado. O poder do Estado é legítimo e absoluto porque garante a segurança e a paz que estavam ausentes na condição natural. Os homens podem desejar o mesmo fim: preservar e garantir a vida, mas as opiniões de como devem fazer para atingir isso são diferentes de um para outro. Isso justifica porque Hobbes defende o poder absoluto de um Estado; uma vez que é impossível apenas por meio da cooperação espontânea de todos sair do estado natural seguindo as leis de natureza, pois embora os interesses sejam os mesmo, as opiniões de como consegui-los são diferentes e isso sempre causará divergências (Salgado, 2023).
Disso decorre que a razão, movida pelo medo da morte e pela esperança de uma condição melhor busca motivações para instituir o Estado. A guerra traz aos homens muitos prejuízos, entre eles, o medo de perder a vida, então podemos dizer que o que motiva os homens a saírem dessa condição de desconfiança não é apenas a razão, mas o desejo de continuar a viver e desfrutar de uma vida mais longa e confortável (Portela, 2022).
É bem clara em Hobbes a ideia de que os homens não se associam naturalmente, mas movidos por interesses, buscando sempre a companhia dos outros por honra ou por qualquer outro motivo que julguem proveitoso. Isso fica evidente, segundo Hobbes, quando observamos uma reunião qualquer, não sendo raro que procurem ser os últimos a sair para evitar os comentários dos outros que ainda ficam. Assim como os pactos que sem uso da espada, não passam de palavras sem valor, uma vez que é preciso garantias de que eles sejam cumpridos pela outra parte e só o uso do poder é capaz de dar esta garantia. A simples união dos homens numa multidão não é suficiente para garantir a segurança e a preservação da vida dos indivíduos. Segundo o filósofo, não temos como precisar uma quantidade exata de homens como suficiente para garantir a segurança, pois sempre há a possibilidade de que outro grupo em maior número os ameace, ou ainda, os homens por estarem sempre buscando o que é melhor para si podem entrar em confronto dentro desse próprio grupo que formaram. É necessário que se institua um contrato artificial entre os homens, firmado de forma irreversível (Kayser, 2022).
No entanto, apenas o medo não é suficiente para fazer sozinho com que os indivíduos desejem sair do estado natural, por isso a esperança de melhorar a situação em que se encontram também tem um papel importante na instituição do Estado. E é isso, Bobbio (2023) que leva os homens a desejarem o Estado, pois a razão não aponta o fim (que é sair do estado de guerra) este é apontado pelo medo e pela esperança; a razão aponta os meios para que os indivíduos possam chegar até ele.
CONCLUSÃO
O medo, na filosofia de Hobbes, desempenha um papel que vai além de ser um simples coadjuvante na instituição do Estado. Ele surge como um conceito chave para o pensamento político moderno. A paixão do medo é capaz de mover os desejos dos homens tanto no estado natural como no Estado civil; no primeiro caso, ele existe no sentido de levar os homens a instituir um corpo político e no segundo caso, no sentido de ajudar na obediência dos súditos às leis estabelecidas pelo poder soberano.
O objetivo principal aqui foi saber qual o papel do medo na teoria política hobbesiana. Levando-se em consideração a concepção mecanicista de homem natural desenvolvida por Hobbes no decorrer de suas obras e que fundamentam toda a sua teoria política, é possível compreender o medo como uma paixão política que caminha tanto ao lado do homem natural como ao lado do homem artificial.
O medo tem um caráter de racionalidade, quando usado nas tomadas de decisões. Essa racionalidade do medo pode ser compreendida quando os indivíduos o utilizam para ponderar sobre acontecimentos futuros, levando em consideração a memória das coisas que aconteceram com ele no passado. Os homens naturais são movidos pelos seus desejos e aversões, tudo é movimento e não há nada que não esteja sujeito ao conatus. As paixões indicam algo que não acaba, pois os desejos assim que forem satisfeitos, dão lugar a novos desejos e assim sucessivamente até que o fim máximo (a morte) atinja o homem.
O medo também desempenha um papel importante na instituição do Estado, ele, no entanto, não é capaz de fazer isso sozinho, pois apesar de descrever o homem como um ser medroso, ele não o identifica como um ser sem esperança. O medo é uma das paixões que permanecerá sempre com o homem assim como a esperança e o desejo de alcançar os seus objetivos. Hobbes concebe o homem natural como um ser de interesses e desejos infinitos que, apesar de viverem em grupos, não encontram nesta condição espaço para harmonia ou paz.
As leis naturais como vimos no segundo capítulo, são estabelecidas na teoria política de Hobbes como as regras estabelecidas no sentido de conduzirem os homens para a paz. Como não existe um poder que garanta que todos as sigam, não é possível que apenas as leis naturais que obrigam in foro interno garantam a paz. É necessário um corpo político capaz de garantir que isso seja possível e o medo da morte violenta seja extinto.
O medo maior de perder a vida de forma violenta é removido, ficando os homens na segurança da proteção do soberano. Como o soberano detém um poder absoluto é a ele que cabem as funções (funções não são deveres) de bem conduzir o povo no caminho para a paz. Para que isso seja possível, muitas vezes ele irá usar de força e também do medo. O medo no Estado civil desempenha o papel de guiar os homens no cumprimento das leis civis estabelecidas pelo poder soberano, dado que se não cumprirem, os homens sofrem as punições determinadas pelo Estado.
REFERÊNCIAS
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HOBBES, Thomas. Os Elementos da Lei Natural e Política. Tradução de Bruno Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
KAYSER, Marcos. A mecânica do desejo no desencadeamento da ação no Leviatã de Thomas Hobbes. ed.4. Editora Atlas. São Paulo, 2022.
LIMONGI, Maria Isabel. Hobbes. ed.6. Editora Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2022.
POLIN, Raymond. O Indivíduo e o Estado. O Pensamento Político Clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. ed.12. Editora Queiroz. São Paulo, 2020.
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TUCK, Richard. Hobbes. Tradução de Udail Ubirajara e Maria Stela Gonçalves. ed.6. Editora Loyola. São Paulo, 2021.
VILLANOVA, Marcelo Gross. Hobbes: Natureza, história e política. Marcelo Gross Villanova e Douglas Ferreira Barros. ed.3. Editora Discurso. São Paulo, 2019.
WEFFORT, Francisco C. Os Clássicos da Política. ed.9. Editora Ática. São Paulo, 2021.
[1] Militar da Reserva, Professor Doutorando em Filosofia do Direito, Advogado Especialista em Direito Processual Civil, Direito Administrativo, Direito da Pessoa com Deficiência e Concurso Público, Escritor e Palestrante. E-mail: ricardonfernandes@hotmail.com