A JUSTIÇA EM HOBBES
6 de janeiro de 2025JUSTICE IN HOBBES
JUSTICIA EN HOBBES
Artigo submetido em 28 de dezembro de 2024
Artigo aprovado em 04 de janeiro de 2025
Artigo publicado em 06 de janeiro de 2025
Cognitio Juris Volume 15 – Número 58 – 2025 ISSN 2236-3009 |
.
Autor(es): Ricardo Nascimento Fernandes[1] |
.
RESUMO: O presente trabalho vem abordar a justiça em Hobbes. Neste artigo, avalia-se o método proposto por Hobbes, para a formação do Estado civil e a relação com as noções de lei natural e de lei civil. Busca-se compreender o papel desses conceitos na formação do estado hobbesiano e se este iria de encontro com a tese do positivismo jurídico, na qual alguns autores enquadram Hobbes como um dos precursores modernos. O principal objetivo deste trabalho é proporcionar uma reflexão acerca da reviravolta positivista do conceito de justiça, tendo como um de seus principais expoentes o filósofo Thomas Hobbes, que de forma brilhante conseguiu defender uma lei positiva com a própria lei natural, fazendo de certa forma, uma compreensão jusnaturalista da lei civil, uma vez que para o filósofo a lei civil é uma necessidade derivada da lei natural. A metodologia adotada será uma análise bibliográfica de literatura, com ênfase em livros e artigos mais atuais e relevantes sobre o tema abordado. Conclui-se que as leis naturais e civis em Hobbes, tendo como foco o conceito de justiça e todo subsidio que esta concepção trará na governamentalidade, legitimidade de governo, relações entre Estado e súditos e entre eles próprios, dentre demais aspectos, os quais foram se modificando após a obra hobbesiana.
Palavras-Chave: Hobbes; Justiça; Lei civil; Estado.
ABSTRACT: This paper addresses justice in Hobbes. This article evaluates the method proposed by Hobbes for the formation of the civil state and its relationship with the notions of natural law and civil law. The aim is to understand the role of these concepts in the formation of the Hobbesian state and whether this would go against the thesis of legal positivism, in which some authors classify Hobbes as one of the modern precursors. The main objective of this paper is to provide a reflection on the positivist turnaround in the concept of justice, having as one of its main exponents the philosopher Thomas Hobbes, who brilliantly managed to defend a positive law with natural law itself, making, in a certain way, a natural law understanding of civil law, since for the philosopher, civil law is a necessity derived from natural law. The methodology adopted will be a bibliographical analysis of literature, with emphasis on the most current and relevant books and articles on the topic addressed. It is concluded that natural and civil laws in Hobbes, focusing on the concept of justice and all the support that this conception will bring in governmentality, legitimacy of government, relations between State and subjects and between themselves, among other aspects, which were modified after Hobbes’ work.
Keywords: Hobbes; Justice; Civil law; State.
RESUMEN: Este trabajo aborda la justicia en Hobbes. En este artículo se evalúa el método propuesto por Hobbes para la formación del Estado civil y la relación con las nociones de derecho natural y derecho civil. El objetivo es comprender el papel de estos conceptos en la formación del Estado hobbesiano y si se cumpliría con la tesis del positivismo jurídico, en la que algunos autores catalogan a Hobbes como uno de los precursores modernos. El principal objetivo de este trabajo es brindar una reflexión sobre el giro positivista del concepto de justicia, teniendo como uno de sus principales exponentes al filósofo Thomas Hobbes, quien brillantemente logró defender un derecho positivo con el propio derecho natural, haciendo, en un En cierto modo, una comprensión iusnaturalista del derecho civil, ya que para el filósofo el derecho civil es una necesidad derivada del derecho natural. La metodología adoptada será un análisis bibliográfico de la literatura, con énfasis en los libros y artículos más actuales y relevantes sobre el tema tratado. Se concluye que las leyes naturales y civiles en Hobbes, centrándose en el concepto de justicia y todo el apoyo que esta concepción traerá a la gubernamentalidad, legitimidad del gobierno, relaciones entre Estado y súbditos y entre ellos mismos, entre otros aspectos, que fueron cambiando después de la obra hobbesiana.
Palabras clave: Hobbes; Justicia; Derecho civil; Estado.
1 INTRODUÇÃO
O modelo hobbesiano de formação do Estado civil teve grande impacto no pensamento moderno, tanto no campo da filosofia, quanto no do direito. São muitos os aspectos dignos de nota, desde a noção de contrato, a formação do estado como ente artificial, a pregação de não haver um direito divino dos reis e até questões acerca da natureza humana. Foca-se na concepção de justiça para Hobbes dentro da relação tratada pelo autor entre as leis naturais e as leis civis na obra Leviatã. Busca-se compreender o papel da lei natural e da lei civil na formação do estado hobbesiano e se esse papel, por sua vez, iria de encontro com a tese do positivismo jurídico que diversos autores, como Kayser (2022), atribuem a Hobbes a sua fundação.
Como afirma Angoulvent (2024), é certo que analisar Hobbes sob um viés histórico torna explícitos alguns aspectos da teoria e os problemas que o autor buscava resolver. Entretanto, não é absurdo utilizar ferramentas extemporâneas na análise do argumento hobbesiano. Afinal, ainda que se tenha apreço pela obra historicamente contextualizada, o autor escreveu Leviatã como um argumento filosófico acerca da soberania e não “uma exposição num museu de crenças políticas do século dezessete”. Além disso, compreender adequadamente Hobbes também é entender a própria estrutura conceitual do positivismo contemporâneo e seus eventuais desvios.
O principal objetivo deste trabalho é proporcionar uma reflexão acerca da reviravolta positivista do conceito de justiça, tendo como um de seus principais expoentes o filósofo Thomas Hobbes, que de forma brilhante conseguiu defender uma lei positiva com a própria lei natural, fazendo de certa forma, uma compreensão jusnaturalista da lei civil, uma vez que para o filósofo a lei civil é uma necessidade derivada da lei natural. A metodologia adotada será uma análise bibliográfica de literatura, com ênfase em livros e artigos mais atuais e relevantes sobre o tema abordado.
A filosofia hobbesiana foi abordada e comparada com diversas outras, inclusive tendo forte influência sobre autores importantes no positivismo jurídico. Assim, ainda que fosse talvez incorreto e anacrônico aduzir que o autor se considerava um positivista no sentido atual da palavra, é plenamente possível analisar o modelo de Hobbes como precursor das características atribuídas ao positivismo jurídico atual. A análise é, na verdade, necessária e de notória importância para a compreensão tanto do Leviatã de Hobbes, quanto das próprias teorias contemporâneas do positivismo jurídico.
Assim, analisa-se o papel da justiça, da lei natural e da lei civil na obra Leviatã de Hobbes, para verificar se a lei civil funciona como critério autossuficiente de identificação da justiça mesmo com a existência da lei natural. Para compreender o objeto determinado, inicia-se fazendo uma contextualização do pensamento moderno e da influência das mudanças de paradigma filosófico no Direito e em Hobbes. Passa-se, então, para um estudo da justiça no estado de natureza e dos seus fundamentos na formação do Estado civil, considerando o papel das leis naturais e das leis civis nesse processo. Analisa-se, por fim, a força das leis naturais em relação às leis civis e os dilemas da interpretação desses conceitos.
2 PENSAMENTO MODERNO
A modernidade, então, simboliza a transformação desse horizonte de pensamento, que se elaborou durante a Antiguidade até o fim da Idade Média. Desde então, por muitos motivos, tornou-se tendência durante os séculos seguintes. Muda-se a referência no pensamento, não sendo mais a ordem imutável, o “cosmos”, mas o homem enquanto subjetividade. Isso significa dizer que “o homem não se vê mais como uma parte no grande Todo do kosmos (…), mas se revela como algo radicalmente diferente de tudo mais, ou seja, se revela como subjetividade, como sujeito de seu conhecimento e de sua ação no mundo” (Monteiro, 2023).
Dessa forma, o traço característico do pensamento político que surgiu na modernidade é que o conceito e os fins do político não se mostram mais à ordem imutável, mas ao homem como único ser do político. Há uma “antropologização” do pensar e do realizar do político, o saber deixa de ser uma revelação do Todo imanente, para se tornar em algo manipulável. Enquanto, na Antiguidade, o saber era justificado por si mesmo, pelo qual se atingia a plena realização da vida, na Modernidade, “o saber adquire um caráter eminentemente instrumental, operatório: ele não tem sentido em si mesmo, mas está em função do processo de imposição do sujeito sobre o mundo” (Polin, 2020).
Como demonstra Bobbio (2023), o mundo deixa de ser aquele das essências inteligíveis em si, no qual o homem deve se submeter à ordem universal, passando a se tornar uma realidade na qual o inteligível passa a ser construído, de certo modo, pela própria ciência. A verdade, assim, se torna aquela verificável segundo determinado tipo de procedimentos: os experimentais de caráter hipotético-dedutivo, os quais constituem a estrutura empírico-formal da ciência.
No âmbito jurídico – a partir do Renascimento – o direito perde o seu caráter sagrado, o que acaba por significar a sua tecnicização e a perda do seu caráter ético, típico do período medieval. Os juristas modernos não questionam mais a respeito do bem para pólis, mas se preocupam com as condições efetivas e racionais de manutenção da sua sobrevivência no contexto de uma natureza ameaçadora (Kayser, 2022).
Bobbio (2023) trata essa mudança especificamente dentro da tese de Hobbes, trazendo a diferença do conceito de razão do autor, tanto em relação aos os conceitos tradicionais de razão, quanto às teses de outros teóricos do direito natural. O autor afirma que Hobbes concebe a razão como um cálculo por meio do qual se tira consequências de nomes sobre os quais se entrou em acordo para que seja possível que se expressem os pensamentos. Isso significa dizer que a razão não é vista mais como a faculdade de conhecer a essência das coisas, mas como a capacidade mediante a qual é possível extrair necessariamente determinadas conclusões a partir de certas premissas. Em outras palavras, para Hobbes, ser racional é ser capaz de descobrir os meios para alcançar os fins desejados.
Teoriza-se que a razão de Hobbes teria um significado mais metodológico do que ontológico, sendo apenas um valor formal e não substancial. Como destaca Monteiro (2023), a ideia é a de que “Ela (a razão) não nos revela essências, mas nos permite estabelecer consequências de certos princípios. Razão não é a faculdade através da qual aprendemos a verdade evidente dos primeiros princípios, é a faculdade de raciocinar”. Assim, é destacado que, para Hobbes, a razão também não possui uma conceituação idealizada tal como na Antiguidade.
Kayser (2022) aborda que da mesma forma, também o político deixa de ser local da natural realização da essência humana para se tornar algo produzido pelo homem. E, nesse sentido de política, a questão que surge é: quais as condições necessárias de possibilidade de existência da comunidade enquanto tal? A resposta passa precisamente pela questão da soberania. Isso porque ela é vista “como condição de possibilidade da unificação dos indivíduos, sem o que não se pode falar de comunidade. O soberano é, então, esta espécie de depositário comum.
3 JUSTIÇA NO ESTADO DE NATUREZA
Para compreender o papel da justiça no estado de natureza hobbesiano, é necessário tratar da noção de “direito natural” do período. Bobbio (2023) faz uma análise da mudança na concepção de “Direito Natural” na passagem dos autores medievais para os modernos. Assevera que, no início da Idade Moderna, surge a figura do homem quase como puro animal, cuja principal preocupação seria a preservação da própria vida.
Segundo Monteiro (2023), haveria certo grau de desordem admitido pelos diversos sistemas de ius naturale et gentium dos autores do período. O que mudaria seria a intensidade dessa desordem. Conforme o autor, é possível fazer uma divisão entre dois extremos.
De um lado, havia autor como Kayser (2022), o qual rejeitava a ideia de uma “guerra como estado de natureza” e presumiam, contrariamente, que a condição original humana seria de paz. Entretanto, mesmo autor com este entendimento previam uma desordem posterior, afirmando que o conflito seria uma espécie de “acidente necessário”, que não corrompe a essência humana, mas restringe a validade da justiça. Para este autor, isto ocorreria porque os direitos naturais são imperfeitos e variam de acordo com a compreensão dos indivíduos, cuja falhas seriam um empecilho para a prática da justiça.
De outro lado, porém, Bobbio (2023) indica que estariam filósofos como Samuel Pufendorf e Thomas Hobbes, os quais previam um “estado natural” como uma condição de guerra de todos contra todos. O conflito estaria originado não pela desigualdade dos indivíduos, mas, porque o direito natural contraditoriamente daria a todos os direitos sobre os mesmos objetos. Pufendorf ia ainda mais longe no argumento de desordem, não observando apenas uma fragilidade intelectual da humanidade que deixa o direito incerto, mas também pressupondo um instinto, na própria alma humana, de machucar outros seres humanos. Hobbes, ao tratar da noção de estado de natureza e de direito natural, não traz o foco para algum tipo de intrínseca crueldade humana. Na verdade, explica que, no estado de natureza, diferentemente da desigualdade natural estabelecida pelos antigos, há uma igualdade natural. Essa igualdade se caracteriza tanto no âmbito corporal como intelectual. Assim, mesmo que alguém tenha mais força, no conjunto, a diferença não é destacada. Dessa forma, “o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, seja por meio de maquinações secretas ou aliando-se a outro que se ache no mesmo perigo em que ele se encontra”.
Nesse contexto de desconfiança entre os homens – para Hobbes – a melhor maneira de se proteger é antecipar as movimentações estratégicas de um provável inimigo. Pela força ou pela astúcia, a ideia é subjugar o máximo de pessoas possível durante o tempo necessário para garantir que nenhum outro poder seja uma ameaça. Neste sentido, “tal atitude nada mais é que a própria sobrevivência e, geralmente, é permitida” (Polin, 2020).
Nesse contexto, o motivo pelo qual os homens se motivam para buscar a paz é um ponto importante a ser destacado. A paixão, o medo da morte, a busca de uma vida confortável e a esperança de conseguir isso através do trabalho. Além disso, “a razão sugere normas de paz adequadas, que podem ser alcançadas pelos homens mediante comum acordo”. Portanto, nessa análise, como destaca Monteiro (2023), a paz seria o objetivo dos homens por decorrer da conclusão do estudo acerca da natureza humana, tendo em vista que, sendo o homem dominado por um instinto de autopreservação, a vida passa a ser considerada como um valor supremo.
Uma consequência do estado de natureza seria o fato de que nada poderia, propriamente, ser injusto. A tese de Hobbes é a de que onde não há um poder único, não há direito e, consequentemente, não há injustiça. Isso acontece também porque “justiça e injustiça não pertencem às faculdades do corpo e do espírito”. Sobre esse tema, Bobbio (2023) explica que “se todos, mesmo o tolo, são por natureza, juízes do que é necessário para a autopreservação, tudo pode ser legitimamente considerado com requerido para a autopreservação: tudo, por natureza, é justo”.
4 AS LEIS NATURAIS, AS LEIS CIVIS E O FUNDAMENTO DA JUSTIÇA
Para compreender a noção de justiça e a formação do Estado em Hobbes, é necessário abordar o papel das leis naturais nesse processo. Para isso, inicialmente, deve-se chamar atenção para uma distinção que o autor faz logo no início do capítulo XIV do Leviatã – inclusive criticando outros acadêmicos que não a fazem. É a diferença básica entre “direito natural” (aqui em um sentido objetivo do termo) e “lei natural” (Polin, 2020).
Conforme Ribeiro (2019) a lei natural (lex naturali) é, no geral, a norma ou regra, determinada pela razão, que proíbe o ser humano de agir contra a preservação de sua própria vida, seja destruindo-a ou abdicando dos meios necessários para a sobrevivência. A diferença entre direito natural e lei natural, seria, para o autor, a mesma que entre jus e lex. A primeira seria o direito à liberdade de agir ou omitir, enquanto a segunda, a obrigação de fazer ou deixar de fazer algo para a autopreservação. A diferença é, portanto, o contraponto entre liberdade e obrigação, não sendo as duas concepções compatíveis quando aplicadas ao mesmo tempo.
Cumpre ressaltar que, para Hobbes, o direito natural (jus naturale) consiste na liberdade que cada indivíduo teria de utilizar seu poder como gostaria, visando a preservar sua própria vida, de modo que estaria habilitado a praticar as ações que busquem este fim. A liberdade, por sua vez, é resumida a uma ausência de empecilhos externos, que não impedem a pessoa de usar o poder restante (não limitado) de acordo com o que lhe aprouver, seguindo sua razão e julgamento (Polin, 2020).
Santos (2022) comenta ainda outra forma de liberdade em Hobbes: a liberdade civil, aquela que se dá pela ausência de lei dentro da sociedade civil (e fora do estado de natureza), ou seja, a ausência de uma forma de constranger a deliberação e a vontade. Define-se, portanto, como uma ausência de coerção tanto física quanto legal. Neste sentido, haveria plena liberdade do súdito.
Ribeiro (2019) explica que as leis da natureza em Hobbes encontram sua base em dois principais preceitos “e o capítulo XIV do Leviatã expõe estas leis fundamentais e o capítulo XV mostra como as outras são, em algum sentido, consequência das primeiras duas”.
O direito natural, para Hobbes, é “a liberdade que cada homem tem de utilizar seu poder como bem aprouver, para preservar sua própria natureza, isto é, sua vida”. Isso significa dizer que, pelo direito natural, o homem pode fazer tudo aquilo que ele mesmo achar necessário para a própria preservação (Villanova, 2019).
No mesmo raciocínio, lei da natureza é um preceito estabelecido pela razão, a qual diz que “proíbe o ser humano de agir de forma a destruir sua vida ou privar-se dos meios necessários à sua preservação”. Isso quer dizer que a lei da natureza proíbe o homem de fazer qualquer coisa que seja contra a sua sobrevivência (Ribeiro, 2019).
Dessa forma, como explica Santos (2022), Hobbes se opõe à tradição que afirma que a sociedade civil seria uma prioridade para o indivíduo, na medida em que o homem somente poderia alcançar a perfeição de sua natureza por meio da mesma. Para Hobbes, a sociedade não tem prioridade sobre o indivíduo, mas, na verdade, surge a partir do interesse de autopreservação dele. Desse modo, enquanto não surgir um estado forte, um soberano com o monopólio permanente do poder não haverá para nenhum homem a sensação de segurança necessária para desenvolver sua vida.
Da lei que ordena que os homens devem buscar a paz, deriva a segunda, que diz: “o homem deve concordar com a renúncia a seus direitos sobre todas as coisas, contentando-se com a mesma liberdade que permite aos demais, na medida em que considerar tal decisão necessária à manutenção da paz e de sua própria defesa”. Sem essa renúncia, para Hobbes, os homens sempre estarão em guerra, haja vista que, enquanto eles detiverem o direito a todas as coisas, não haverá paz (Ribeiro, 2019).
Villanova (2019) ilustra a tese de Hobbes sob o prisma da teoria dos jogos, especialmente tratando dos conflitos entre as pessoas diante do estado de natureza. Um dos exemplos dados seria o caso de duas pessoas, designadas como A e B. Com a liberdade do estado que se encontram, cada uma dessas pessoas almeja um número de bens e, assim, cobiça os buscados pelos outros. Assim, tanto A, quanto B teriam duas opções: a de invadir os territórios um do outro para buscar os bens alheios, ou escolher não invadir. Uma razão para não invadir seria o fato de ambos poderem manter os bens que já asseguraram no status quo. Entretanto, A também pode vislumbrar que, se não invadir e B invadir, poderá acabar escravizada e ficar sem, nem mesmo, seus bens iniciais. Por sua vez, se A invadir e B não, a pessoa A será vencedora e B perderá os bens (melhor situação para A). Se as duas pessoas escolhessem invadir, porém, haveria guerra, a qual abriria espaço para uma chance de vitória, ainda que com risco de perda total dos bens e de morte. Ademais, estando os dois em situação similar, as opções pensadas por A e B seriam também as mesmas.
Desse modo, como observa Santos (2022), a única saída hobbesiana para os “dilemas do prisioneiro” e do “caroneiro”, encontrados no estado de natureza, seria a instituição do soberano. Afinal, abdicando daquele estado de natureza e liberdade iniciais, poderia se chegar a uma estrutura em que é possível realizar contratos e ter maior segurança, diante da existência de uma autoridade.
Ainda sobre as leis naturais, Weffort (2021) destaca dois pontos, “Leis naturais não prescrevem ações que são boas em si mesmas, mas ações que são boas em relação a um fim específico. Este fim é a Paz ou a preservação da vida”. Aqui – mais uma vez – é importante destacar a diferença entre direito natural e lei natural. Enquanto o direito natural está relacionado à liberdade de fazer algo ou se omitir sem nenhum constrangimento externo, por outro lado as leis naturais prescrevem ações – ou obrigações – racionais que devem ser realizadas para o alcance de um fim, seja a paz ou a autopreservação.
Hobbes destaca também que há direitos que não são alienáveis, ou transferíveis. O primeiro deles é o direito de resistir a quem o ataca com o fim de lhe tirar a vida, já que não há como isso acontecer em benefício próprio. O mesmo se compreende em relação aos ferimentos e ao cárcere. Por fim, “o motivo e o fim pelos quais se verifica a transferência e a renúncia do direito nada mais são senão a certeza da segurança pessoal de um homem, quanto a sua vida e os meios de preservá-la, sem nunca se cansar” (Santos, 2022).
A terceira lei da natureza, por sua vez, está expressa no capítulo XV do Leviatã. Ela afirma que, já que somos obrigados a transferir os direitos que impedem a paz, os homens devem cumprir os seus contratos, uma vez que “se essa lei não vigorasse, os pactos seriam vãos, não passando de palavras vazias; uma vez que o direito de todos os homens a todas as coisas continuaria a vigorar e prevaleceria a condição de guerra”. A exigência de cumprimento dos contratos é essencial para a própria existência do soberano (Weffort, 2021).
Sobre esse tema, Villanova (2019) explica que Hobbes se opõe à tradição em que “o nobre e o justo são fundamentalmente distintos do agradável e são, por natureza, preferíveis a este; ou, há um direito natural que é completamente independente de qualquer pacto ou convenção humana”. Não há algo que seja injusto por não se adequar a uma lei universal e eterna.
Nesse sentido, a justiça e a propriedade começam propriamente com o Estado. Isso porque é necessário ter alguma espécie de poder coercitivo capaz de obrigar o cumprimento do acordo. Esse poder coercitivo – o do soberano – deve ter condições de causar um mal em caso de descumprimento do acordo que seja pior do que o benefício do cumprimento do pacto e “[…] esse poder não pode existir antes da constituição do Estado” (Weffort, 2021).
Assim, o único fato moral incondicional é a lei natural da autopreservação e todas as obrigações que se deduzem do contrato. Por isso, Tuck (2021) destaca que “justiça não consiste mais em estar de acordo com padrões que são independentes da vontade humana. Todos os princípios materiais da justiça – as regras de justiça comutativa e distributiva ou os dez mandamentos – perdem seu valor intrínseco”.
Partindo dessa premissa, Villanova (2019) afirma que as leis naturais “não prescrevem ações boas em si mesmas, e de forma alguma nos submetem a sanções divinas, mas significam apenas o alcance a um fim específico e vital (Paz). Seria contraditório se a pessoa que se adequa a eles derivasse mais dano do que utilidade”. Sem as orientações da lei natural – compreendida aqui como orientações racionais com o fim de preservação da vida e manutenção da paz – não haveria condições ou motivações necessárias para a abdicação de direitos em torno de um soberano.
5 EQUIDADE E JUSTIÇA PARA HOBBES
Contudo, Salgado (2023) argumenta que Hobbes não é um positivista absoluto, eis que ele tinha uma concepção de justiça muito mais restrita do que a nossa, mas também uma ampla noção de equidade ou justiça, que forneceu uma base moral para criticar a lei, e talvez isso esteja mais perto de nossa noção de justiça do que o que Hobbes chamava justiça.
Segundo Tuck (2021), para Hobbes havia duas possíveis bases para limitar o poder legislativo soberano. Primeiro, uma vez que o soberano não tinha quaisquer deveres estritamente legais impostos a ele – porquanto ele não era parte no contrato constitucional que estabelece a soberania – suas funções deviam, em alguns sentidos, deveres naturais. O segundo tipo de dever origina-se dos ditames da razão (as leis da natureza) o que levou os homens a se submeterem ao governante. A primeira lei da natureza é a do patrimônio. A equidade coloca uma limitação no exercício do governante em vez de limitar o direito do governante; assim, o soberano está impedido de propor leis que sejam irracionais, supérfluas ou arbitrárias. Nesse sentido, aparentemente, a equidade nos fornece a cunha moral que podemos conduzir entre os termos visivelmente severos de Hobbes sobre o contrato constitucional.
É nesse sentido que Salgado (2023, p.88) indica que “este direito de natureza é humano: só o homem o limita”; o direito de natureza é a faculdade natural e ilimitada do agir humano. A limitação do direito de natureza é função das leis. Quais seriam estas leis? Aqui reside um ponto muito importante. Afinal, ao tratarmos de jusnaturalismo e juspositivismo, tratamos antes de tudo do Jus. No jusnaturalismo, o Jus é limitadopela lei natural e, no juspositivismo, o Jus é limitado pela lei civil.
Portela (2022, p.19) ressalta, ainda, que o poder soberano é de origem contratual e não divina, algo que para ele “é um modo de dizer que o governante tem direito à obediênciados súditos enquanto os protege e preserva a lei, mas perde esse direito se deixa de exercer o poder”. A extinção do Estado poderá ser, pois, decretada pelo desrespeito às suas leis. A eficácia da ordem legal está diretamente vinculada à legitimidade do representante.
Não segue de forma diversa Tuck (2021, p.136), pois, de acordo com ele, não há que se interpretar Hobbes como um pensador absolutista. Há, é claro, uma unidade legítima de poder que será respeitada pelos súditos somente enquanto suas vidas estiverem a salvo. O representante deste poder, seja um homem ou uma assembleia, deverá criar meios para que os súditos possam fazer uso pleno e tranquilo de suas faculdades racionais, algo que seria o mesmo que possibilitar a observância das lex naturalis. O soberano possui um poder que é legítimo na medida em que propicia aos homens o uso da razão. Ademais, segundo ele, “o grande Leviatã de Hobbes é um gigantesco mecanismo de disciplinamento que se implementa através da representação e a sua vidaé um sistema de palavras e ações normatizadas pela mediação do soberano”.
Não obstante isso, sabe-se que na época de Hobbes a equidade ganhava um escopo cada vez mais amplo, de modo que muitos filósofos praticamente igualavam justiça e equidade, muitas vezes ligando os dois conceitos como um par inseparável. Hobbes por sua vez, distinguiu os domínios da justiça e da equidade e, em sua filosofia moral, fez da equidade sua base (Perelman, 2022)
De acordo com essa definição, as ações do legislador soberano nunca podem ser consideradas injustas, pois ele não fez nenhum pacto com homem algum. Nesse sentido, Hobbes argumenta que “antes que os nomes justos e injustos possam ter lugar, deve haver algum poder coercitivo” (Salgado, 2023, p.243).
Na esfera da sociedade civil, os limites da liberdade do homem são chamados de leis. Hobbes faz a analogia entre cadeias naturais e cadeias artificiais que restringem a ação livre. A chave aqui é que os homens colocaram essas correntes sobre si mesmos por seu próprio ato de aliança; ou seja, eles escolheram restringir sua própria liberdade criando um soberano com o propósito expresso de propor essas correntes artificiais. Todavia, uma vez que impusemos voluntariamente essas barreiras às nossas próprias ações, não faz sentido alegar que devemos lutar contra elas (Portela, 2022).
Em geral, Hobbes não explica como a equidade passa a ser a lei da natureza preeminente na moralidade civil do Leviatã. Somente em sua obra Diálogo entre um filósofo e um jurista (Perelman, 2022), muito mais tarde na vida de Hobbes, isso é apresentado em detalhes.
Embora equidade, não a justiça, seja a categoria moral dominante na filosofia política e jurídica de Hobbes e a primeira lei da natureza para Tuck (2021), é, para ele, uma categoria que Hobbes acrescentou a seu sistema. Assim, de acordo com Salgado (2023), Hobbes seria culpado quando acusado de positivismo legal e relativismo moral se ele não tivesse adicionado esta categoria. A equidade é, de fato, uma cunha moral que Hobbes permite ser introduzida em seu esquema positivista.
Perelman (2022) aponta que pretende mostrar que a equidade é uma categoria fundamental no ensino de Hobbes por razões diferentes das fornecidas por Angoulvent (2024) e, além disso, que a equidade não é adicionada ao sistema de Hobbes, mas está tão relacionada à justiça que quase se pode falar da noção de justiça de Hobbes como derivado de seu ensino sobre a equidade.
Segundo ele, Portela (2022) pensa que a filosofia política e jurídica de Hobbes se torna muito mais palatável quando reconhecemos o lugar da equidade nela, sugerindo que Hobbes seria corretamente considerado um positivista jurídico estrito, absoluto ou mesmo absolutista, não fosse o fato de que ele tem uma conta de equidade, bem como um ensinamento sobre justiça. Essa sugestão deve falhar se, como o autor argumenta, as noções de justiça e equidade são conceitualmente inseparáveis, contudo, ele entende que se pode questionar a identificação de Hobbes como um positivista jurídico puro, mesmo sem referência explícita à equidade. A posição de Hobbes, mesmo como Angoulvent (2024) a declara, pode ser distinguida da de John Austin – se a autoridade do legislador é legítima, não pode haver leis injustas feitas por esse legislador. Para Hobbes, por outro lado, tendo distinguido o comando do conselho, devemos continuar a considerar a fonte do comando e a legitimidade dessa fonte. Leis são leis e devemos obedecê-las desde que sejam reconhecidas como mandamentos do soberano, mas é uma relação moral já constituída entre súditos e soberanos que o faz, e não a mera posse pelo soberano da capacidade para punir nossa desobediência.
Conforme explana Eisenberg (2022) fala da justiça de Hobbes como tendo um papel fraco, e equitativo muito mais amplo. Isso, segundo ele, é irrepreensível na medida em que a distinção aponta para o conteúdo restrito da noção de justiça de Hobbes, também conecta essa fraqueza à visão relativista da moralidade de Hobbes. Para Portela (2022), ao que parece, a teoria da justiça é fraca porque desenvolvida dentro do argumento de Hobbes de que o bem e o mal são apenas nomes que significam nossos apetites e aversões que diferem entre os homens e até mesmo para o mesmo indivíduo ao longo do tempo, e essa razão não leva a uma definição comum do bem.
Em qualquer caso, a equidade tem um papel muito mais amplo no ensino de Hobbes, de acordo com Perelman (2022). Se a equidade, ao contrário da justiça, é dirigida ao soberano, o mesmo ocorre com as leis que exigem gratidão e proíbem a vingança. Não está claro que esta lei seja peculiarmente aplicável apenas na sociedade civil; o mesmo pode ser dito, pelo menos igualmente, da justiça.
Angoulvent (2024) aponta que pretende mostrar que a equidade é uma categoria fundamental no ensino de Hobbes por razões diferentes, além disso, que a equidade não é adicionada ao sistema de Hobbes, mas está tão relacionada à justiça que quase se pode falar da noção de justiça de Hobbes como derivado de seu ensino sobre a equidade.
Essa relação talvez seja esboçada pela maneira como Hobbes ordena as leis da natureza no Leviatã, pois aqui a regra de que devemos reconhecer a igualdade de direitos precede a regra de guardar os pactos. Equidade, na presente análise de Eisenberg (2022), é um nome para aquela qualidade da qual Hobbes fala, ao concluir seu tratamento das leis da natureza, como um estado de espírito em que os homens podem saber tudo o que é exigido deles pelas leis da natureza.
Finalmente, Limongi (2022) consigna que a importância da equidade na interpretação judicial das leis é novamente subestimada. A equidade exige, em sua opinião, apenas que a lei, conforme é interpretada e aplicada, seja consistente com a intenção original do legislador e que as leis sejam igualmente administradas. Deve-se observar, entretanto, que de acordo com Hobbes todas as leis precisam de interpretação e que o legislador não é necessariamente aquele que originalmente concebeu ou fez a lei ao ordená-la, mas o atual soberano que pode ser entendido para comandá-lo agora.
6 A MODERNIDADE DE HOBBES
Hobbes estabelece a noção de estado de Natureza para ilustrar como seria a condição humana em período anterior ao da formação do Estado como órgão regulador dos conflitos sociais intrínsecos ao da vida humana. O estado de natureza é desprovido de segurança, ordem, paz, pois inexiste um conjunto de leis que regulem as contraditórias ações humanas, categorizadas por Hobbes como uma “guerra de todos contra todos”. Na ausência de freio coercitivo para a expansão da violência inata do indivíduo, tal como enunciado no De Cive, “o homem é um lobo para o homem” (Angoulvent, 2024, p.275), pois é visto como o inimigo em potencial que ameaça a conservação da vida individual. Nessa conjuntura, a liberdade é uma experiência paradoxal, pois ao mesmo tempo em que o indivíduo tudo pode fazer, também nada pode fazer, pois assim como é capaz de roubar ou matar, é também passível de ser roubado ou morto. A liberdade para Hobbes é uma experiência privativa, pois somente quando o homem abre mão de sua violência intrínseca em prol da organização soberana do Estado é que ele garantiria as condições de paz e segurança para a efetivação da sua existência. Mediante a transferência do poder individual da força física ao soberano, este se torna absoluto e inquestionável, legitimandose assim todas as ações que este realizar em prol da conservação da ordem pública. Para Hobbes o medo da morte violenta é o motor que impulsiona os indivíduos a se associarem em prol da construção do Estado como o mantenedor da paz, pois ao temerem a ação destrutiva de indivíduos ou grupos de rapina mais fortes eles se associam visando unir forças contra as agressões externas, de modo a conservarem assim suas existências.
Hobbes analisa as causas e a definição do Estado, o direito dos soberanos, a liberdade dos súditos e as leis civis. Em sua teoria buscou compreender a formação da sociedade moderna, bem como propor uma organização política e jurídica, contribuindo para reconstruir a ideia de um estado de natureza, num estágio pré-social individualista, que foi a base da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776). As revoluções dos séculos XVII e XVIII foram desencadeadas em nome do povo, contra as pretensões divinas do absolutismo real. A teoria do contrato social, que terminou por triunfar sobre a teoria dos direitos divinos dos reis, baseava-se principalmente sobre a ideia de que o Estado tinha sido originalmente criado por uma deliberação dos humanos, através de um contrato social, ao qual cada indivíduo tinha dado o seu consentimento (Limongi, 2022).
Para o autor, “a forma como um homem simplesmente renuncia ou transfere seu direito é uma declaração mediante sinais voluntários e suficientes de que renuncia ou transfere, renunciou ou transferiu seu direito àquele que o aceitou” (Limongi, 2022, p.109). Neste citado capítulo Hobbes esboça a definição de contrato como sendo a transferência mútua de direitos, possível de ser cumprido no futuro por aquele que realiza o pacto, fazendo menção à força da palavra dos contratantes:
Sendo a força das palavras muito fraca para obrigar os homens a cumprirem pactos (como eu disse antes), é possível, pela própria natureza dos homens, reforçá-la de duas maneiras: por medo das consequências advindas do não cumprimento da palavra ou por orgulho de não ser necessário faltar a ela. Esta última é uma generosidade rara, não sendo encontrada entre aqueles que ambicionam riquezas, autoridade e prazeres sensuais, ou seja, a maioria dos homens.
O Estado-Leviatã foi defendido por Hobbes como a única maneira de evitar a anarquia social, pois “o homem é o lobo do homem”. Leviatã, nome de um monstro bíblico que Hobbes usou para definir o Estado que zela pelo bem-estar e proteção do ser humano natural como se fosse um ser humano artificial. A definição de Estado para Hobbes é “uma pessoa instituída pelos atos de uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, como autor, de modo a poder usar a força e os meios de todos, da maneira que achar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. O titular dessa pessoa chama-se soberano”. Diante disso, Hobbes enfrenta a fase contratual ao reconhecer a liberdade a todos os indivíduos por razões de humanidade. No Capítulo XXVI que trata das leis civis, Hobbes afirma serem as leis civis aquelas que os indivíduos são obrigados a respeitar por serem membros de um Estado. São aquelas impostas pelo soberano. Para o autor cabe à lei civil conter as leis naturais com o poder repressivo do Estado. Hobbes (Angoulvent, 2024, p.216) destaca que:
A lei, de modo geral, não é um conselho, mas uma ordem (…). A lei civil é constituída, para todo súdito, pelas regras que o Estado lhe impõe, oralmente ou por escrito, ou por qualquer outro sinal suficiente de sua vontade, empregando tais regras para diferenciar o que é certo do que é errado, isto é, para identificar o que é contrário ou não é contrário à regra (…). O legislador, em todos os Estados, é unicamente o soberano, seja ele um homem, como numa monarquia, seja uma assembleia de homens, numa democracia ou numa aristocracia. Legislador é aquele que faz a lei. Somente o Estado prescreve e ordena a observância das regras a que chamamos leis; logo, o Estado é o único legislador. O Estado não é uma pessoa, só tendo capacidade para fazer seja lá o que for, portanto, por intermédio do representante (isto é, o soberano); assim, o único legislador passa a ser o soberano (…) O que faz a lei é a razão desse homem artificial, o Estado, e suas ordens (…). A lei é uma ordem e que consiste na declaração ou manifestação da vontade de quem ordena.
Segundo Eisenberg (2022, p.213), “ninguém pode fazer leis, a não ser o Estado, pois estamos sujeitos unicamente ao Estado; e as ordens devem ser expressas por sinais suficientes, pois, de outro modo, ninguém saberia como obedecer a elas”. Outra figura que Hobbes menciona em sua obra é o do legislador. Conhecido o legislador este não deve ser como o poeta, que busca a pluralidade e a diversidade em suas palavras; deve ser direto, buscando reduzir qualquer interpretação com duplo sentido. Entretanto, a lei não pode ser nem muito curta, nem muito longa. Além disso, o legislador não deve usar palavras da moda, uma vez que estas poderão cair no esquecimento. A intenção do legislador é sempre a equidade (justiça distributiva). Por sua vez, Hobbes aduz que a fonte do direito deve ser o soberano e reage à common law, porque entende que cabe apenas ao soberano dizer o direito. Segundo o autor, nem os juízes nem as práticas sociais devem ser fontes do Direito, uma vez que o soberano dá conteúdo à lei formal que ele considera a lei natural.
Hobbes verificou que o ser humano é um ser antissocial e para superar essa situação deveria abrir mão de seus direitos e colocar seu destino nas mãos do soberano que exerce plenos poderes (o Estado como poder absoluto), pois entendia não ser possível alcançar a paz e a segurança social no Estado da natureza ante a essência humana. Dizia que as leis da natureza não eram suficientes para constituir a sociedade, sendo importante a existência de um poder que obrigasse os seres humanos. Sem dúvida essa posição conduziu ao positivismo, tendo no Estado o emissor de todas as leis. Hobbes era um absolutista libera para sua época. Mas o seu pensamento era o da soberania, vez que a ideia que tinha de Estado baseava-se em autoridade legal suprema, porque qualquer que fossem as forças que determinassem o conteúdo de um direito, só o poder soberano do Estado poderia proclamá-lo como um direito, investi-lo de dignidade e prestígio, protegê-lo de sanções tendentes a garantir-lhes a observância. Hobbes, “claramente, contribuiu para a formulação do principio do monopólio estatal da produção jurídica” (Limongi, 2022, p.32).
Igualmente, observa-se que não há, no Leviatã, a figura de um Poder Judiciário autônomo e independente. “Em todos os tribunais de justiça quem julga é o soberano (que é pessoa do Estado)” (Angoulvent, 2024, p.216). O juiz singular não julga conforme seus sentimentos. Como a lei é bem escrita, de modo a evitar qualquer dúvida, julgará conforme o escrito. Afirma Hobbes que, caso exista alguma lacuna, o juiz deverá se por no lugar do Leviatã e julgar conforme este pensaria. A interpretação feita pelo juiz deve ser mecânica, atentando-se para a “intenção do legislador”. Para Hobbes “as aptidões exigidas de um bom intérprete da lei, ou seja, de um bom juiz, não são as mesmas que exigimos de um advogado, especialmente no que se refere ao estudo das leis”.
O contrato social é um tanto quanto linguístico, posto que define um sistema unitário de comunicação no novo sistema político. Entretanto, o poder legislativo é uma razão pública definidora do certo ou do errado, do justo ou do injusto, através do princípio da legalidade e da letra adequada. Em suma, o pensamento político de Hobbes analisa exaustivamente à questão sobre a vida jurídica do ser humano, que é ao mesmo tempo a questão da ordem jurídica da sociedade. O próprio autor descreve em sua obra no tange ao conjunto da doutrina: “seus princípios são verdadeiros e adequados e seus raciocínios sólidos”. Eisenberg (2022, p.562) ao encerrar seu discurso na obra Leviatã aduz para tanto que sua proposta principal era a de colocar diante dos olhos da humanidade “a mútua relação entre proteção e obediência, cujo cumprimento inviolável é exigido tanto pela condição da natureza humana quanto pelas leis divinas, naturais ou positivas”.
CONCLUSÃO
Verifica-seque a justiça hobbesiana está diretamente ligada com a noção de pacto e obediência à lei, lei está que nada mais é do que a ordem daquele que tem o direito de mando sobre os outros, ou seja, o soberano. A concepção da existência de uma lei natural superior, como tanto se discutiu em clássicos como Antígona, em Hobbes nada mais é do que ditames da razão, não sendo leis obrigatórias, portanto, não sendo pecado transgredi-las, até o surgimento de uma ordem imperativa daquele que tem o poder para tanto.
As Lexnaturalis em Hobbes, são um conjunto de regras pertencentes à própria natureza humana, são inatas ao homem, e guiam-no na direção de obter a paz e a auto-preservação, jáas leis civis são ordens do soberano, as quais cada homem quando da pactuação pelo Estado, se submeteu livremente e racionalmente, atitude esta procedida, em decorrência da obediência às leis naturais supracitadas.
Este homem artificial, o Estado, com poder e força superior aos demais homens, governará a sociedade impondo um conjunto de leis positivas, fundamentadas na lei natural, surgindo-se assim, com o conjunto destas leis positivas, o que atualmente conhecemos por direito positivo. Neste sentido, somente com o estrito cumprimento deste direito positivo imposto pelo estado, é que toda acoletividade de indivíduos cumprirão os ditames da lei natural e conseguirão alcançar individualmente sua finalidade natural como homem.
Desta forma, este sistema jurídico nasce para limitar através das leis, as liberdades que os homens possuíam no estado de natureza, passando-se de liberdade plena e absoluta das atitudes, para um mundo de ações convergentes com a vontade do Estado.
A partir do momento da opção pelos homens em viver sob a guarda do Estado, todo o direito natural é deixando de lado, não havendo mais a possibilidade de discussões entre moralidade, atitudes, leis superiores ou demais argumentações, sendo, portanto, a justiça uma fórmula muito simples, clara, objetiva, eficaz e de conhecimento de todos, qual seja: os pactos devem ser cumpridos, a lei deve ser cumprida.
REFERÊNCIAS
ANGOULVENT, Anne Laure. Hobbes e a moral política. ed.9. Editora Papirus. Campinas, 2024.
BOBBIO, Norberto. O problema da guerra e as vias para a paz. Tradução de Álvaro Lorencini. ed.6. Editora UNESP. São Paulo, 2023.
EISENBERG, José. O político do medo e o medo da política. ed.5. Editora Lua Nova. São Paulo, 2022.
HOBBES, Thomas. Os Elementos da Lei Natural e Política. Tradução de Bruno Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
KAYSER, Marcos. A mecânica do desejo no desencadeamento da ação no Leviatã de Thomas Hobbes. ed.4. Editora Atlas. São Paulo, 2022.
LIMONGI, Maria Isabel. Hobbes. ed.6. Editora Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2022.
MONTEIRO, João Paulo. A ideologia do Leviatã hobbesiano. ed.2. Editora Saraiva. São Paulo, 2023.
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. ed.8. Editora Martins Fontes. São Paulo, 2022.
POLIN, Raymond. O Indivíduo e o Estado. O Pensamento Político Clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. ed.12. Editora Queiroz. São Paulo, 2020.
PORTELA, Luis César Yanzer. Natureza humana e ciência política em Thomas Hobbes. Ensaios de Ética e Política. ed.4. Editora Edunioeste. Cascavel, 2022.
RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo. ed.9. Editora UFMG. Belo Horizonte, 2019.
SALGADO, Gisele M. Contrato como transferência de direitos em Thomas Hobbes. ed.4. Editora Juruá. Curitiba, 2023.
SANTOS, Murilo Angeli Dias dos. O conceito de justiça em Thomas Hobbes e suas consequências jusfilosóficas. ed.4. Editora USJT. São Paulo, 2022.
TUCK, Richard. Hobbes. Tradução de Udail Ubirajara e Maria Stela Gonçalves. ed.6. Editora Loyola. São Paulo, 2021.
VILLANOVA, Marcelo Gross. Hobbes: Natureza, história e política. Marcelo Gross Villanova e Douglas Ferreira Barros. ed.3. Editora Discurso. São Paulo, 2019.
WEFFORT, Francisco C. Os Clássicos da Política. ed.9. Editora Ática. São Paulo, 2021.
[1] Militar da Reserva, Professor Doutorando em Filosofia do Direito, Advogado Especialista em Direito Processual Civil, Direito Administrativo, Direito da Pessoa com Deficiência e Concurso Público, Escritor e Palestrante. E-mail: ricardonfernandes@hotmail.com