O CONTRATO ENTRE OS CIVIS EM HOBBES

O CONTRATO ENTRE OS CIVIS EM HOBBES

18 de maio de 2025 Off Por Cognitio Juris

THE CONTRACT BETWEEN CIVILIANS IN HOBBES

EL CONTRATO ENTRE CIVILES EN HOBBES

Artigo submetido em 26 de abril de 2025
Artigo aprovado em 08 de maio de 2025
Artigo publicado em 18 de maio de 2025

Cognitio Juris
Volume 15 – Número 58 – 2025
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Ricardo Nascimento Fernandes[1]

RESUMO: O presente trabalho vem abordar o contrato entre os civis em Hobbes, e como ele descreve em suas obras esse tema. A configuração do argumento contratualista de Hobbes remete-se diretamente à necessidade da instauração de uma instância representativa, isto é, o Estado (Commonwealth), pelo qual são suprimidas efetivamente as condições insuficientes de preservação da vida e da manutenção da paz entre os homens, em troca do estabelecimento da obrigação política. O principal objetivo deste trabalho é demonstrar como Hobbes relata as relações de contrato em suas obras. A metodologia adotada será uma análise bibliográfica de literatura, com ênfase em livros e artigos mais atuais e relevantes sobre o tema. Conclui-se que é absolutamente necessário para uma correta interpretação dos propósitos de Hobbes, um exame acerca da configuração e da articulação teórica do seu argumento contratualista evidenciando, sobretudo, por um lado, a transferência ou renúncia do direito e do poder natural dos homens e, por outro, a transferência e a autorização das ações para um representante legítimo.

Palavras-chave: Contrato; Hobbes; Estado; Obrigação Política; Direito.

ABSTRACT: This paper addresses the contract between civilians in Hobbes, and how he describes this theme in his works. The configuration of Hobbes’ contractualist argument refers directly to the need to establish a representative body, that is, the State (Commonwealth), by which the insufficient conditions for preserving life and maintaining peace among men are effectively suppressed, in exchange for the establishment of political obligation. The main objective of this paper is to demonstrate how Hobbes describes contractual relations in his works. The methodology adopted will be a bibliographical analysis of literature, with emphasis on the most current and relevant books and articles on the subject. It is concluded that it is absolutely necessary for a correct interpretation of Hobbes’ purposes to examine the configuration and theoretical articulation of his contractualist argument, highlighting, above all, on the one hand, the transfer or renunciation of the natural right and power of men and, on the other, the transfer and authorization of actions to a legitimate representative.

Keywords: Contract; Hobbes; State; Political Obligation; Law.

RESUMEN: Este trabajo aborda el contrato entre civiles en Hobbes, y cómo describe este tema en sus obras. La configuración del argumento contractualista de Hobbes remite directamente a la necesidad de establecer una instancia representativa, es decir, el Estado (Commonwealth), a través del cual se supriman efectivamente las condiciones insuficientes para preservar la vida y mantener la paz entre los hombres, a cambio del establecimiento de la obligación política. El objetivo principal de este trabajo es demostrar cómo Hobbes informa sobre las relaciones contractuales en sus obras. La metodología adoptada será un análisis bibliográfico de la literatura, con énfasis en los libros y artículos más actuales y relevantes sobre el tema. Se concluye que es absolutamente necesario para una correcta interpretación de los propósitos de Hobbes examinar la configuración y articulación teórica de su argumento contractualista, destacando, sobre todo, por una parte, la cesión o renuncia del derecho y poder natural de los hombres y, por otra, la cesión y autorización de acciones a un representante legítimo.

Palavras Clave: Contrato; Hobbes. Estado; Obligación política; Bien.

1 INTRODUÇÃO

Na perspectiva hobbesiana, os pactos, na verdade, representam acordos da livre vontade de cada homem efetuados num tempo futuro, pois, segundo o filósofo, nenhum homem está obrigado a cumprir a palavra dada pelo fato de se caracterizar como uma promessa futura e de nenhum poder externo obrigá-lo. Por sua vez, em relação aos acordos, ninguém está obrigado e, embora eles sejam derivados da vontade, a simples desconfiança recíproca pode simplesmente anulá-los, menciona Hobbes. Em todo caso, o contrato representa um acordo firmado no tempo presente, mas necessita de determinados elementos externos para validá-lo (Frateschi, 2023).

Tais elementos explicitam uma premissa fundamental: ao contrário do que Aristóteles afirmara na Política, para quem o homem é um animal político e a constituição da pólis se deve a um processo puramente natural, para Hobbes este processo de associação não é natural e a base do seu argumento está intimamente relacionada às noções de deliberação e vontade e, por outro lado, a de transferência e autorização de ações. Estas noções são descritas pelo filósofo a partir de uma fórmula fundamental que perpassa todas as definições tratadas por ele em suas principais obras acerca do contrato como elemento fundante do Estado moderno (Popper, 2024).

O principal objetivo deste trabalho é demonstrar como Hobbes relata as relações de contrato em suas obras. A metodologia adotada será uma análise bibliográfica de literatura, com ênfase em livros e artigos mais atuais e relevantes sobre o tema.

Para compreender exatamente o conteúdo de tal fórmula, é necessário percorrer toda uma discussão de níveis e distinções que a constitui. Neste sentido, cabe impreterivelmente explicitar, no caso, de forma breve, que o conteúdo da fórmula do contrato social hobbesiano caracteriza-se, sobretudo, pela noção de renúncia ou transferência da liberdade e do direito natural, pois, tanto um quanto o outro, são os fatores determinantes para o quadro de hostilidade generalizado que configura o estado de natureza, descrito por Hobbes no Leviathan. Mas o que significa propriamente a noção de renúncia e transferência? Quais são os níveis e distinções que constituem o contrato social em Hobbes na constituição do Leviathan? Essas indagações são relevantes para evidenciar a relevância do artifício do contrato político para a eficácia do empreendimento filosófico e político de Hobbes que o tornou um dos principais representantes do pensamento político moderno (Matos, 2023).

Para tanto, dois pontos fundamentais: primeiramente, com base na fórmula do contrato, examina-se o modo como a argumentação de Hobbes delineia a constituição da multidão em uma unidade, isto é, a pessoa artificial. Em seguida, discute-se a relação entre renúncia de direitos e a constituição do poder soberano, ressaltando que este nada mais é do a unidade da multidão.

2 CONTRATO HOBBESIANO: UNIDADE, VONTADE E REPRESENTAÇÃO

No Leviathan, capítulo XVII, Hobbes fornece os indícios em direção a uma resposta plausível a tais indagações por meio do vínculo que faz entre o elemento central da sua argumentação contratualista denominada de “fórmula elementar básica do contrato”. O conteúdo desta fórmula é expresso através da seguinte sentença (Popper, 2024).

Quando se refere ao contrato, no contexto político de Hobbes, sinaliza-se para instrumentos ou dispositivos artificiais que se baseiam na transferência ou renúncia mútua de direitos, ou seja, da liberdade natural pertencente aos homens. Esta renúncia ou transferência desemboca numa limitação da liberdade que, por sua vez, é consequência direta da expressão da vontade de cada um para realizar interesses que demonstram, acima de tudo, a preservação da vida e a sua manutenção confortável e digna. Sobre isto, Hobbes se expressa do seguinte modo (Frateschi, 2023, p.228):

A única maneira de instituir um poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros (Forraigners) e das injúrias uns dos outros, garantido-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a força e poder a um homem, ou uma assembleia de homens, a uma só vontade.

Esta passagem do Leviathan está relacionada à fórmula geral do conteúdo do contrato social e pressupõe o primeiro estágio da consecução do pacto ou acordo que cada homem estabelece consigo mesmo e pelo qual se obrigam a obedecer às ordens de “um certo homem ou conselho”, dispondo a sua própria força e todos os seus meios a este em vista a sua proteção e segurança. Este primeiro estágio é deduzido a partir da percepção dos homens da inviabilidade e hostilidade presente no estado de natureza, resultando, assim, uma necessidade de “auxílio mútuo” como a primeira medida viável para ultrapassar o medo da morte violenta vigente no “estado de guerra”. Nestes termos, o ponto de partida da efetivação deste “auxílio mútuo” deve pressupor a vontade ou o consentimento de cada um dos homens, conforme evidencia-se a eficácia de que uma união entre eles será tanto mais possível quanto maior for o número daqueles que dirigirem as suas ações para um fim comum (Popper, 2024).

Conforme essa pressuposição, torna-se possível vislumbrar que a possibilidade do contrato em Hobbes reside, sobretudo, no consentimento ou na vontade de cada homem unir-se. O resultado dessa ação pressupõe como requisito final para a segurança daqueles que estabelecem tal união é a necessidade de um poder comum ou absoluto, por meio do qual “cada homem possa conservar a paz entre si mesmo e a unirem suas forças quando necessário contra um inimigo comum”, segundo Hobbes (Matos, 2023, p.223):

O fim último [isto é] a causa final e designo dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com a própria conservação e com uma vida mais satisfeita.

Com efeito, a forma pela qual Hobbes expressa o consentimento é aquela relacionada à possibilidade de que as “vontades de muitos” concorram para uma e a mesma ação ou efeito, ou seja, que por vontade todas as ações humanas sejam dirigidas a um mesmo fim. Não obstante, uma vez que a “vontade de muitos” seja dirigida a um fim comum, diz Hobbes: “(…) isto é mais do que consentimento ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem como todos os homens (…)” (Popper, 2024).

Sendo assim, a unidade expressa como uma “vontade de muitos” possibilita que a vontade de um determinado número de homens seja compreendida como a vontade de um “único homem”. Por sua vez, a vontade desse “único homem” subentende-se como a expressão da vontade de cada homem que a consentiu a agir em seu benefício. Dito isto, é possível afirmar que, segundo Hobbes, uma multidão de homens transforma-se numa “pessoa artificial” a partir do momento em que é representada consentidamente por uma assembleia ou unicamente um homem (Frateschi, 2023).

No entanto, a única forma de se conceber a unidade daquela multidão é mediante a sua representação constituída em uma “pessoa artificial”, pois, segundo Hobbes, é a unidade do representante e não a unidade do representado que possibilita que uma pessoa seja una (Popper, 2024). Nestes termos, designar um homem ou uma assembleia de homens como representante legítimo é o mesmo que dizer que esta representação é capaz de reduzir as diversas vontades contidas na multidão em uma única vontade expressa na pessoa representante do poder soberano.

2.1 Transferência de direitos e a constituição do Commonwealth

Conforme Matos (2023), a questão relativa ao processo de autorização de ações e, consequentemente, a transferência de direitos e poderes de cada homem no contexto do estado de natureza são preponderantes na caracterização do que representa a instauração do Estado na teoria política de Hobbes. O contrato corresponde exatamente ao modo como Hobbes entende a “transferência mútua de direitos”. Este direito nada mais é do que a liberdade natural, assim, renunciar direitos, para o filósofo, consiste em ao mesmo tempo em renunciar a liberdade natural que por direito cada homem possui. Ora, renunciar ou transferir o seu direito e a sua liberdade natural os homens restringem ou limitam o seu “poder natural” ou a sua “potência natural” em favor da sua segurança e a preservação da vida, longe da situação insustentável do “estado de guerra”.

Disso resulta o conteúdo do contrato social concebido por Hobbes como uma transferência ou “renúncia mútua” de cada homem ao seu direito legítimo de utilizar irrestritamente o poder ou “potência natural” (potentia naturale) como meio de preservação do movimento natural, isto é, como meio de preservação da vida em nome de uma “entidade artificial” (Commonwealth) personificada no soberano (Frateschi, 2023).

No entanto, é preciso entender que, na verdade, é impossível a qualquer homem transferir ou renunciar realmente a sua própria força (potentia) para outro ou mesmo para este outro recebê-la. Sendo assim, deve-se entender que o significado de “transferência” ou “renúncia” da liberdade e do direito natural (como também a força e o “poder natural”) não é mais, para quem os transfere ou renúncia, do que se abdicar ou renunciar a seu próprio direito de resistir. Neste caso, afirmar que os homens transferem ou renunciam sua liberdade e direitos nada mais é do que um modo intuitivo de mostrar que a parte que transferiu o seu direito se abstém dele, ou seja, se abstém voluntariamente de uma ação (Sorell, 2020).

Através dessa metáfora, supõe-se que tal como a soma se constitui por suas parcelas, assim o poder comum ou absoluto é constituído pela renúncia da liberdade e do direito natural de cada homem. Então, pode-se deduzir, também, que cada homem que renunciou à sua liberdade e ao seu direito natural constitui tal poder comum ou absoluto. Em outras palavras, cada homem que renunciou tanto à sua liberdade e ao seu direito natural constitui a si próprio como possuindo um poder absoluto e soberano. Tal consideração torna-se ainda mais evidente se recorrermos à explicação hobbesiana acerca da gênese artificial do Estado. Como mencionamos anteriormente, esta gênese é deduzida por Hobbes pelos requisitos enunciados na fórmula que deduz a concepção de contrato social. Através daqueles requisitos, podemos inferir o ato que constitui a confecção do Estado, mediante a expressão da vontade daqueles que consentiram em delegar parte dos seus poderes e direitos em favor de uma “entidade artificial” (Commonwealth) personificada na pessoa do soberano (Sorell, 2020).

O escopo do acordo estabelecido entre os homens acaba por revelar a estreita relação entre o conteúdo do contrato e a noção de autorização. Através da exposição dessa relação, fica evidente o modo como Hobbes estabelece o intercâmbio entre autor e ator, entre representado e representante cuja expressão da “vontade do soberano” vem a ser a vontade de todos, pois, na medida em que cada homem confere a um representante comum sua própria autoridade particular, transforma esta particularidade em uma vontade comum onde “cada súdito é o autor das ações do soberano” (Matos, 2023).

3 CONTEXTO HISTÓRICO E CONTRATUALISMO HOBBESIANO

Na Inglaterra do século XVII, havia eclodido uma grande crise de cunho laico e religioso. As dissociações entre os adeptos do poder monárquico e os burgueses, assim como as influências das universidades e dos puritanos fomentaram um espírito de desobediência entre os homens que, não reconhecendo mais as autoridades incontestes, iniciaram um estado de guerra de todos contra todos (Frateschi, 2023, p.42).

Neste contexto de guerra civil, Hobbes viu seu país afundar-se num estado de natureza e escreveu o “Leviatã”, obra na qual ele desenvolveu toda a sua teoria contratualista a fim de demonstrar as vantagens de se ter uma autoridade soberana capaz de garantir segurança e respeito mútuo entre os homens (Sorell, 2020, p.19).

Até o século XVIII, o contratualismo hobbesiano visava dois objetivos principais. Em primeiro lugar, se opor à monarquia hereditária e romper com a ideia de que o direito de governo provinha de Deus; em segundo, propor uma nova forma de legitimar o poder absoluto por meio de um contrato social celebrado por todas as pessoas voluntariamente (Tuck, 2021, p.43).

Esse contrato social marcou o término de um período de guerra de todos contra todos e o início de um período de paz sob a vigilância do Estado soberano, representado pela figura do Leviatã. Eis que foram dadas, então, as condições para o surgimento da sociedade civil (Matos, 2023, p.15).

3.1 Estado de Natureza

Existe uma discussão por parte de alguns pensadores da filosofia política sobre a existência do estado de natureza. Locke, por exemplo, que viveu a mesma época de Hobbes, acreditava existir comunidades em estado de natureza vivendo bem. Outros, por outro lado, acreditavam que as pessoas sempre viveram em sociedade. Em Hobbes, no entanto, de acordo com sua definição de estado de natureza, não há como precisar se o mesmo existiu de fato, mas, para compreendermos o motivo pelo qual temos o Estado absoluto, considerar sua inexistência é uma boa forma de pensar uma alternativa de vida pré-sociedade (Frateschi, 2023, p.18).

Sendo assim Manent (2020), para melhor compreensão sobre o que consiste o contrato social e as condições que deram origem ao mesmo, faz-se necessário um entendimento mínimo a respeito de como viveram os homens em condições naturais, assim como as circunstâncias que os levaram a trocarem sua liberdade natural pela segurança proveniente do Estado soberano na sociedade civil.

O estado de natureza é um dos pilares da teoria contratualista de Hobbes, trata-se de uma hipótese lógico-negativa na qual se retira tudo o que é dado aos homens na sociedade atual, caracterizando o modo que eles viveram antes da concepção do estado civil por meio do estabelecimento do contrato social (Sorell, 2020, p.14).

De acordo com Hobbes, o estado de natureza é o estado de guerra de todos contra todos. Um ambiente onde não há juízes ou leis jurídicas a serem seguidas; uma situação onde todas as pessoas correm grande perigo de morte e vivem com medo constante, sem quaisquer garantias de preservação de suas vidas ou posses. Ainda segundo Hobbes (Tuck, 2021, p.76):

Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.

O instinto de autopreservação coloca os homens em permanente competição entre si. Hobbes aponta três causas principais de discórdia entre eles. Em primeiro lugar, lucro; em segundo, segurança e; em terceiro, reputação. Os primeiros usam da violência para subjugar uns aos outros e tomar posse dos bens. Os segundos antecipam o ataque contra possíveis agressores devido ao medo de serem atacados primeiro ou por julgarem ser a atitude mais racional para sua preservação ou para conquistar seus objetos de desejo. Os terceiros atacam aqueles que julgam mais fortes apenas para adquirir boa reputação e semear o medo contra outros agressores (Manent, 2020, p.75).

Nesta condição de guerra de todos contra todos, todos os homens são suficientemente iguais quanto às capacidades físicas e mentais. Alguns possuem maior força física do que outros, no entanto, aqueles com menor força podem eliminar os mais fortes aliando-se com outros ou utilizando-se de maquinação secreta. Embora exista uma diferença natural entre as capacidades físicas e mentais de um homem para outro, esta diferença não é grande o suficiente a ponto de beneficiar alguns mais do que outros. Conforme Hobbes (Tuck, 2021, p.255):

Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro. E disto se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros.

O auto-interesse do homem natural faz com este esteja em constante busca de poder, pois num estado de guerra onde os riscos de morte e desapossamento são eminentes, não há outra maneira de se proteger e manter os bens senão tornando-se mais poderoso (Monteiro, 2020, p.23).

Visto que, em condições naturais, todos os homens, independente de força física ou inteligência, estão vulneráveis a ataques por qualquer um ou mais motivos de discórdia citados. Para Tuck (2021, p.43):

Nessa guerra de todos contra todos em que a humanidade estava sempre prestes a cair, e que, por isso mesmo, era the natural condition of mankind, as piores ações não podiam ser consideradas como faltas ou pecados: numa situação em que a vida de cada um estava perpetuamente em perigo, todos os atos eram considerados como legítima defesa, até mesmo o ataque aparentemente mais gratuito, já que sempre poderia ser considerado preventivo.

Portanto, não sabendo como o outro pensa ou o que deseja, a atitude mais prudente e racional no estado de guerra é supor a atitude alheia e atacar um ao outro antecipadamente, ou por lucro, ou segurança, ou por reputação (Manent, 2020, p.55).

3.2 A Concepção do Contrato Social

No estado de natureza, todos os homens possuem o direito natural. Este consiste na liberdade de usar o próprio poder da maneira como bem entender para se preservar. Possuem também liberdade natural, que consiste na ausência de qualquer fator externo que possa impedir ou tirar parcialmente o poder de se fazer o que quiser e da maneira que for necessária para atingir os fins desejados. Todos têm liberdade para usufruir o direito de fazer o que quiserem se considerado prudente para sua autopreservação, pois não há espaço para moralidade no estado de guerra e todos os homens estão vulneráveis ao ataque mais gratuito a qualquer momento. Esta condição natural de morte constante conduz os homens a celebrarem contratos entre si, que consistem na renúncia e transferência mútua de direitos naturais entre os contratantes (Tuck, 2021, p.85).

Mas a criação de contratos não implica no estabelecimento de leis morais? No estado de natureza não há certo ou errado, portanto, o conceito de moralidade não se aplica. Contudo, há “leis da natureza”, que são frutos da razão humana cujo objetivo é contribuir para a conservação e defesa individuais (Monteiro, 2020). A primeira lei da natureza sugere “que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra”. A segunda lei natural, derivada da primeira, sugere Weffort (2023, p.558):

Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação ao outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.

E a terceira lei da natureza consiste no princípio da justiça. Enquanto não há pactos celebrados no estado de guerra, todos têm direitos sobre tudo e todos, porém, quanto se estabelece um contrato, o rompimento do mesmo é considerado injusto. Esta lei, portanto, sugere que os homens cumpram com os pactos que fizerem uns com os outros, do contrário, os contratos seriam apenas palavras vazias. Há outros teoremas da razão, contudo, para o propósito deste artigo, não é necessário referi-los (Manent, 2020, p.89).

Os contratos são celebrados através da renúncia ou transferência mútua de direitos. Um homem pode renunciar a um direito ou transferi-lo a outrem voluntariamente por meio da palavra ou por inferência de gestos ou sinais específicos. Vale frisar, no entanto, que, ao renunciar um direito, aquele que o faz não dá a outro homem nenhum direito do qual este já não tenha por natureza. E ao transferir um direito para alguém, aquele que o faz não deve impedir aquele que recebe de usá-lo ou anular a transferência que, a princípio foi voluntária, pois, segundo Hobbes, isto seria considerado uma injúria e um absurdo (Weffort, 2023, p.412).

A transferência mútua de direitos cria vínculos de obrigação entre os homens. Mas, diz Hobbes (Monteiro, 2020, p.238):

Quando se faz um pacto em que ninguém cumpre imediatamente sua parte e uns confiam nos outros, na condição de simples natureza (que é uma condição de guerra de todos os homens contra todos os homens), a menor suspeita razoável torna nulo esse pacto. Mas se houver um poder comum situado acima dos contratantes, com direito e força suficiente para impor seu cumprimento, ele não é nulo. Pois aquele que cumpre primeiro não tem qualquer garantia de que o outro também cumprirá depois, porque os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a ambição, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, se não houver o medo de algum poder coercitivo. O qual na condição de simples natureza, onde os homens são todos iguais, e juízes do acerto de seus próprios temores, é impossível ser suposto. Portanto aquele que cumpre primeiro não faz mais do que entregar-se a seu inimigo, contrariamente ao direito (que jamais pode abandonar) de defender sua vida e seus meios de vida.

Conforme Weffort (2023, p.44), o estado de natureza obriga os homens a terem liberdade e direito sobre todas as coisas e até sobre os corpos uns dos outros. Tal situação é, ao mesmo tempo, a própria força geradora da guerra. Portanto, somente a renúncia e a transferência dos direitos a um poder soberano capaz de punir qualquer violação poderiam cessar a condição de guerra e garantir que todos os homens cumprissem suas obrigações ao celebrarem pactos. “O príncipe dessa nova ordem não seria o bem procurado, mas o mal de que se foge”.

A escolha deste poder soberano, por sua vez, dar-se-á por meio de um contrato social celebrado por todos ou pela maioria dos homens que irão, voluntariamente, renunciar e transferir seus direitos individuais a esse novo príncipe. Transferir os direitos ao soberano implica em abrir mão do direito e da liberdade natural de governar a si próprio em troca de ser governado e protegido pelo Leviatã, cujo poder há de ser grande o suficiente para não ser subjugado e ser capaz de garantir o respeito mútuo entre os homens, punindo adequadamente qualquer violação dos direitos e leis que forem determinadas por essa nova ordem. Implica também que, os homens tornar-se iam autores de toda e qualquer ação tomada pelo poder soberano (Monteiro, 2020, p.46).

4 O MODELO CONTRATUAL DO ESTADO-ZERO

Há um ponto de convergência entre o cenário da ilicitude civil brasileira e o estado de natureza hobbesiano. Comete ato ilícito aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral (art. 186, Código Civil Brasileiro). No estado de natureza, segundo Hobbes, os indivíduos também praticam regularmente atos ilícitos, embora não haja entre as pessoas que vivem nessa condição, o critério e a consciência do que seja bom ou ruim; justo ou injusto; lícito ou ilícito, legal ou ilegal. Esse tipo de situação decorre do fato principal de que não existem limites públicos coordenando a convivência dos indivíduos. Encontra-se no estado de natureza o reino da permissividade, pois tudo pode dentro do livre arbítrio de cada um. Não existindo regras oficiais, domina o individualismo possessivo, onde o indivíduo privatiza tudo aquilo que lhe interessa (Weffort, 2023).

Montesquieu, na obra O Espírito das Leis, mais tarde, vai admitir que o estado de natureza faz a sociedade viver de maneira tímida, reacionária, amedrontada, porque os indivíduos temem ampliar os laços sociais e contratuais. No estado de natureza, completa Hobbes, o homem se comporta como o lobo do próprio homem. A desconfiança predomina entre as pessoas. Na ausência do poder público, domina, então, o poder privado (Manent, 2020).

Para os indivíduos, a convivência com o outro é sempre desconfortável, o homem é um animal anti-social e egoísta. Por isso mesmo, surge uma tendência coletiva para a impessoalidade, a objetividade e o formalismo jurídico no contrato civil. Quanto mais perto do Leviatã, maior a segurança jurídica, maior, então, a sensação de segurança. No modelo hobbesiano, há uma forte expectativa institucional, um otimismo generalizado entre as partes de que o Leviatã, não sendo uma criatura humana, mas pessoa artificial, desumana, poderá cumprir melhor as demandas sociais, trabalhando, ininterruptamente, com firmeza, eficácia, justiça, imparcialidade e universalidade. O contrato deve ser uma miniatura da máquina do Leviatã, uma réplica em menor proporção no cotidiano (Monteiro, 2020).

Para o indivíduo comum, a subjetividade é porta de entrada da anarquia ilícita, entenda-se, bagunça e prenúncio do caos. No cenário da ilicitude do Código Civil, dominam, da mesma maneira, as regras informais da malandragem e da coação física. A vivência no estado de natureza, pré-político, pré-jurídico, é traumática, constitui um mal público que os indivíduos querem evitar no futuro do contrato. Por essa razão, os indivíduos preferem obedecer, automaticamente, ao que está escrito no Código Civil, na Lei, não desejando flexibilizar qualquer cláusula, deste modo, não aceitam fazer contratos atípicos, nem ajustar as regras usando critérios morais como instrumentos de diálogo e de produção do bem coletivo. Exemplo moderno: – na hora de resolver um contrato de aluguel, o indivíduo prefere reproduzir as determinações pré-fabricadas do Leviatã. Nesse contexto, os indivíduos não reivindicam a subjetividade porque é um problema, gera desconfortos institucionais, aumenta a incerteza, é prenúncio da anarquia do estado de natureza. Por efeito, o contrato deve possuir uma dinâmica maquínica, configurando-se como tecnologia da informação ajustada ao volume, mais alto, da obediência e do castigo. O não cumprimento do acordo legal deve acarretar, por conseqüência, sanções, multas, taxas, nulidades, prisões, retaliações jurídicas diversas, o que na contabilidade racional, como assim postula Bernardes (2022), serão avaliadas como externalidades negativas, portanto, prejuízos indesejáveis para o cidadão hobbesiano.

4.1 O Modelo Contratual do Estado-Máximo

Diante da possibilidade negativa da ilicitude, os indivíduos hobbesianos avaliam a importância positiva da ordem público-estatal. De fato, o diagnóstico sobre o estado de natureza no cotidiano é feito através de uma reflexão filosófica, onde o tema da ordem aparece ligado com a garantia dos direitos naturais (vida e liberdade, inicialmente). O Leviatã, figura gigantesca e monstruosa na mitologia, desempenha novamente importante função, assumindo a função de uma supermáquina da obediência pública. Os indivíduos são criaturas anti-sociais (contrariando o que pensa Durkheim, por exemplo, no século XIX), por isso mesmo, o Leviatã deve ser absoluto, onisciente e onipresente, com capacidade para amedrontar todos aqueles que não querem obedecer ao novo jogo da ordem contratual (Manent, 2020).

Mas seria realmente vantajoso passar do estado de natureza ilícito para o estado civil do Leviatã‽ A solução desse dilema, segundo Hobbes, vai representar o cálculo racional do indivíduo. Ele reconhece, inicialmente, que vai pagar um preço, internalizar o custo subjetivo ou de oportunidade, como assim descreve, modernamente. Esses custos contratuais são derivados da abdicação do poder de julgar o outro e também decorrem da redução da autonomia pessoal. Com a expectativa de que o Estado será eficiente no seu papel civilizatório, os indivíduos pagam esses preços, aguardando em troca algumas compensações institucionais estratégicas que afetam seus negócios particulares. Delegam, portanto, todos os poderes ao Estado (entenda-se, ao Estado-Máximo), esperando adquirir bens públicos, como ordem, justiça, previsibilidade, informação, fiscalização dos contratos e objetividade jurídica. Fica preservado, nesse contexto, o mandamento que diz: – todos os conflitos futuros do contrato serão dirimidos no Poder Judiciário do município (Mattos da Silva, 2022).

No ordenamento hobbesiano, os direitos individuais devem ser preservados, porém, a fórmula consiste no rigor da máquina pública: o contrato é transformado em tecnologia da obediência. O Leviatã, pessoa jurídica, é artificial, um autômato que vai pensar, comer, viver, planejar, decretar, cunhar moedas etc, podendo, inclusive, sofrer de doenças e morrer, se faltarem recursos, se for desobedecido, se for mal governado, etc. Para ser superior ao estado de anarquia ilícita, o contrato do tipo Leviatã deve admitir, portanto, a possibilidade do uso da força e da violência, apresentar coercibilidade. O contrato positivo deve receber a obediência absoluta de todos os participantes para funcionar bem. O Estado produzirá leis, e os indivíduos vão aceitá-las, positivamente, em seu cotidiano, visto que as regras são bens públicos que todos desejam consumir a fim de melhorar e garantir o fluxo das relações inter individuais na sociedade moderna e heterogênea. Na teoria contratual hobbesiana, conforme destaca Bermardes (2022), as normas serão expressivamente de conduta, ou seja, do tipo manda-obedece. Aqui, novamente, o Leviatã é um bem público, tem poder e autoridade civilizatória. Sua função é construir Leis rígidas e protegê-las da anarquia. Para o indivíduo hobbesiano, a rigidez não é uma tragédia porque reflete o contexto e o desejo dos próprios contratantes que já viveram, ou receiam viver, os incômodos do estado da anarquia ilícita.

Dois efeitos colaterais aparecem no momento da celebração do contrato do tipo hobbesiano. Sabe-se, inicialmente, que os indivíduos fazem um contrato para fundar o Leviatã como fiscalizador formal de seus interesses, delegando, assim, plenos poderes para o Judiciário. A obediência ao Direito escrito, em detrimento da autonomia moral e da cooperação entre os indivíduos, implica não somente o uso de uma filosofia institucional do público como fenômeno estatal, mas também a prática de uma cultura jurídica positivista. Nesse contexto, o Leviatã reforça a incapacidade e a irresponsabilidade dos indivíduos comuns sobre a ordem pública, até mesmo sobre o gerenciamento dos conflitos mais particulares e próximos dos contratantes. Ou seja, como já assinalou Michel Foucault, na obra Microfísica do Poder, o Leviatã retira do povo a capacidade de fazer justiça popular com suas próprias mãos e monopoliza o poder da Justiça, que se torna um produto burocrático-estatal. Com a ajuda do Leviatã, passamos a perceber o poder como algo fora de nós, centralizado no Estado, em algum palácio, no Forum, na superestrutura do Poder Judiciário, ou nas regras frias, impessoais e calculistas do contrato civil. Na implantação dessa filosofia jurídica, o contrato é transformado em máquina inteligente e repressiva, controlando o que foi prometido, voluntariamente, pelas partes. Apenas tem valor a sentença do grande Leviatã, através dos juízes togados e experts que contam, a seu favor, com o monopólio das forças repressivas. O indivíduo sozinho não é capaz de administrar a coisa coletiva que ele próprio instituiu através do contrato social do tipo Leviatã. Como já conceituou Émile Durkheim, na obra Regras do Método Sociológico, o Estado, aqui, em nosso modo de ver, torna-se igualmente um fato social, determinando toda maneira de pensar, agir e sentir, exterior ao indivíduo e com poder exterior de coerção (Weffort, 2023).

Paradoxalmente, o modelo contratual do Leviatã não consegue realizar todas as promessas institucionais e ele próprio se converte em fonte de males públicos, de anarquia ilícita, como adverte Buchanan, em seu livro Os Limites da Liberdade (1975). O Estado produz injustiça social, totalitarismo, burocratismo, incompetência administrativa, lentidão, guerras políticas e abusos contra os direitos constitucionais e humanos. Segundo o Leviatã ainda permanecerá vivo por muitas gerações, entretanto, podemos e devemos domesticá-lo, do ponto de vista democrático, humanista e constitucional. Ou seja, é preciso reavaliar a construção da ordem pública, incluindo novos atores, Mercado, Sociedade Civil e Indivíduos singulares. De acordo com Mattos da Silva (2022), o Leviatã assumiu a forma de vários governos: Bem-Estar Social, Utilitarismo, Socialismo, Fascismo, etc.

Atualmente, a desordem constitucional é o grande problema da História Política, onde se constata que o próprio Leviatã é fonte do estado de guerra de todos contra todos, em pleno regime democrático. Os efeitos dessa desordem afetam o cidadão diretamente. Pesquisas de opinião no Brasil mostram que o descrédito é alto em relação ao Poder Judiciário. As instituições democráticas que deveriam promover proteção pública e justiça social, por exemplo, se apresentam gravemente afetadas pelo clientelismo, fisiologismo partidário, corrupção e pela desmoralização generalizada (Wolff, 2021).

No século XVIII, foram criados alguns mecanismos institucionais visando corrigir abusos, como assim propôs Montesquieu, em sua obra O Espírito das Leis, recomendando a divisão clássica dos Três Poderes; além dos Federalistas (Madison, entre outros) que sugeriram o sistema do tipo check and balance para evitar a tirania dos governantes. O problema histórico é que esses mecanismos foram corrompidos pela democracia representativa. Os freios institucionais deveriam desempenhar, virtuosamente, suas funções políticas, entretanto, diante do fracasso, é urgente a criação de um novo modelo de intervenção e de fiscalização governamental. O modelo dos clássicos acredita que os instrumentos intra-governamentais poderiam equilibrar sozinhos o próprio Estado. Bernardes (2022) propõe que se acrescente na Política novos mecanismos extragovernamentais, principalmente o direito do cidadão, que deve servir como contrapeso ao direito soberano do Leviatã.

Karl Popper, em seu livro Racionalismo Crítico na Política, questiona radicalmente o papel das utopias ao longo da História. Segundo ele, vem de Platão essa idéia de um governo ideal, composto por filósofos bem treinados, objetivando alcançar a felicidade para todos através de uma cidade perfeita e planejada. Maquiavel também em sua obra O Príncipe, anuncia boas intenções políticas, almejando construir um Estado-Nação, na Itália, que somente seria fato 300 anos depois. Nessa linha de pensamento, Maquiavel acredita que os fins justificam os meios, defendendo uma política animal, onde a virtude do Príncipe deve copiar a esperteza da raposa e a força do leão. Historicamente, porém, todas as utopias, segundo Karl Popper, resultaram em violência, intolerância e exclusão social. Assim é com Platão, que exclui os sofistas e os deficientes físicos; assim é com o Príncipe, que elimina os adversários através da humilhação e morte, assim é com o Leviatã, que decreta o mesmo padrão de conduta para todos os tipos e classes sociais, através do monismo jurídico. Para Mattos da Silva (2022), a utopia da ordem público-estatal, a ideologia do Estado-máximo, a ditadura do bem e da Lei acabam desestimulando a liberdade, a participação direta e a preferência legítima dos indivíduos democráticos. O Leviatã marginaliza a participação dos desiguais e das minorias no processo de produção de bens e serviços públicos.

Uma vez desmoralizada a utopia da ordem estatal por força da desordem; da limitação natural da burocracia; da escassez dos recursos financeiros e também devido ás crescentes demandas sociais, novas alternativas ganham popularidade, nas últimas cinco décadas. Para Wolff (2021), a solução para essa crise do Leviatã não seria derrubá-lo, mas domesticá-lo. Os remédios estão dentro do próprio sistema político-constitucional. Nesse aspecto, otimista, o autor acredita que através das reformas podemos alcançar um novo patamar político constitucional, reforçando a democracia direta em novos setores, como por exemplo, no interior das Leis contratuais.

A fim de consolidar uma nova matriz filosófica para as instituições modernas, Bernardes (2022) propõe um conceito inovador, a anarquia ordenada ou positivada, reivindicando livres relações entre homens livres, e a domesticação democrática do Leviatã. Esse meio-termo está, de acordo com Buchanan, na área de interseção do estado de natureza lockeano com o Leviatã. Segundo Mattos da Silva (2022) no estado de natureza as pessoas praticam a harmonia, a prudência, o respeito mútuo e a boa vontade, trabalhando e vivendo em uma comunidade moral específica. No exemplo da anarquia, todos se autogovernam do ponto de vista moral, baseado na tolerância e no limite do livre-arbítrio de cada um, dirigido pelo bom senso. No Código Civil Brasileiro, esse estado de natureza seria uma anarquia lícita. Mas, com adverte Wolff (2021), falta no estado de anarquia, em geral, a presença de um poder coercitivo capaz de fazer cumprir as promessas dos contratos. Embora seja facilmente constatada essa limitação institucional, podemos aproveitar algumas lições positivas da anarquia, diz o autor. A anarquia funciona em muitas situações do cotidiano. Vender fiado é um exemplo bem sucedido em muitas regiões do país. A palavra do indivíduo, a honra, a tradição, a tolerância, são alguns valores mínimos que funcionam no estado da anarquia.

A incorporação do estado de natureza lockeano no arcabouço jurídico-formal é, portanto, uma necessidade histórica para Wolff (2021), tendo em vista que Governos e Mercado falham na produção da ordem, da justiça social e de outros preciosos bens públicos. Esse meio-termo seria uma alternativa pública microssocial, onde o indivíduo poderia exercer o máximo de liberdade e subjetividade, com o mínimo de intromissão do Leviatã, dentro de uma Lei específica. No Contratualismo clássico, dominam, diferentemente, as tecnologias da força, repressão, castigo, censura e timidez. A trágica experiência histórica dessas tecnologias no espaço público foi revelada pelo regime nazista e pela Guerra Fria.

A partir dos anos de 1950, é impactante o desejo dos movimentos sociais em favor da adoção de novas tecnologias jurídicas fundadas na cooperação, autonomia, liberdade, coragem e responsabilidade das pessoas comuns, como tentativa de fuga dessas experiências desumanas, tragicamente amparadas pelo Direito Positivo. De acordo com Bernardes (2022), sempre estaremos sob controle, seja do acaso ou do planejamento de alguém, ou de alguma instituição. Na verdade, sugere o autor, precisamos de novos tipos de controle, de novas tecnologias comportamentais, democráticas e humanas. Esse desafio converge para o mesmo ponto que defende a proliferação de novas tecnologias jurídicas e institucionais, visando facilitar o diálogo democrático e o consenso racional. Segundo Mattos da Silva (2022), os indivíduos precisam ser motivados a entrar na ordem contratual, agindo como sujeitos capazes e responsáveis, mesmo quando estejam tratando de interesses privados. Especificamente, na filosofia contratual da anarquia ordenada ou positivada, tudo pode dentro da Lei. O estado de natureza lockeano, que é uma anarquia lícita, passa a compor o desenho legal de uma nova alternativa pública, evitando dois extremos indesejáveis: a guerra de todos contra todos (reino da anarquia ilícita) e o Leviatã (reino da racionalidade pública, caracterizado pelo excesso de formalismo jurídico).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora não existam provas concretas de que alguma vez os homens viveram num estado de natureza, pensar essa condição à maneira como Hobbes a descreve pode nos levar a concluir que, para cessar o estado de guerra de todos contra todos, não haveria solução melhor senão a transferência dos direitos naturais a um poder coercitivo e absoluto. Por esta razão, não podemos deixar de pensar nos papéis fundamentais desempenhados pelo medo e pela esperança humana.

O medo constante do estado de guerra tende a fazer com que o autointeresse humano, que é natural, aumente cada vez mais. Porém, o medo, somado à esperança, estimula os homens a buscarem a paz e, consequentemente, tornarem-se menos egoístas a ponto de unirem-se por um bem maior, celebrado por um contrato social onde se assentariam a legitimidade do Estado político absoluto e a origem da sociedade civil.

Do caos, Deus fez surgir à luz, assim como do medo e da guerra, os homens fizeram surgir o Estado, chamado Leviatã, a quem obedecer e prestar contas, na esperança de viver e manter seus bens em segurança. Mas, é possível que essa esperança que reside sobre o Estado, seja só uma projeção do abismo que permanece nos corações humanos por não serem capazes de saciar seu desejo de poder, e que agora também é de propriedade.

O contrato hobbesiano desvaloriza o autogoverno, a criatividade jurídica e a personalização da Lei, pois induz o indivíduo comum apenas a se comportar como criatura tutelada, fria, calculista e indiferente ao diálogo informal. No contrato de aluguel, por exemplo, as partes evitam introduzir cláusulas subjetivistas, negociais e atípicas. No contrato de solução de conflitos, as partes envolvidas preferem manter a intervenção futura do Poder Judiciário e descartam a arbitragem, mediação e conciliação como alternativas extrajudiciais.

O contrato jurídico hobbesiano possui vários problemas estruturais que afetam, politicamente, a democracia direta, mas para os indivíduos hobbesianos tais problemas seriam, na verdade, virtudes institucionais. Na prática: 1) não há meio-termo: ou se fica dentro ou fora da Lei no duplo sentido da palavra; 2) são valorizadas as tecnologias contratuais baseadas na obediência e no castigo; 3) o Estado é a única solução capaz de realizar a negociação e o consenso entre as partes perante os tribunais no momento do processo; 4- a ordem pública é sempre de natureza estatal e os indivíduos não estão motivados a assumir responsabilidades sociais porque os interesses particulares são determinantes e absolutos.

REFERÊNCIAS

BERNARDES, J. Hobbes e a Liberdade. ed.6. Editora Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2022.

FRATESCHI, Yara. A física da política: Hobbes contra Aristóteles. ed.5. Editora UNICAMP. Campinas, 2023.

HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção Os Pensadores. (1º volume). ed.4. Editora Nova Cultural, 1988.

MANENT, P. História intelectual do liberalismo: dez lições. ed.9. Editora Imago. Rio de Janeiro, 2020.

MATOS, Olgária C.F. Rousseau- uma arqueologia da desigualdade. ed.15. Editora Atlas. São Paulo, 2023.

MATTOS DA SILVA, Delmo. Rawls e os Princípios da Moral Secular de Hobbes. Revista Reflexões, vol. 6, p.117, 2022.

MONTEIRO, João Paulo. Ideologia e economia em Hobbes. ed.9. Editora LePM. Porto Alegre, 2020.

POPPER, Karl. O Racionalismo Crítico na Política. ed.9. Editora UNB. Brasília, 2024.

SORELL, Tom. Hobbes. ed.3. Editora Ideias e Letras. Aparecida, 2020.

TUCK, Richard. Hobbes. ed.6. Editora Loyola. São Paulo, 2021.

WEFFORT, F. C. Os clássicos da política. ed.13. Editora Ática. São Paulo, 2023.

WOLFF, J. Introdução à filosofia política. ed.5. Editora Atlas. São Paulo, 2021.


[1] Militar da Reserva, Professor Doutorando em Filosofia do Direito, Advogado Especialista em Direito Processual Civil, Direito Administrativo, Direito da Pessoa com Deficiência e Concurso Público, Escritor e Palestrante. E-mail: ricardonfernandes@hotmail.com