LIMITES E POSSIBILIDADES DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO: UM ESTUDO À LUZ DA ACEPÇÃO SOBRE JUSTIÇA

LIMITES E POSSIBILIDADES DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO: UM ESTUDO À LUZ DA ACEPÇÃO SOBRE JUSTIÇA

10 de dezembro de 2022 Off Por Cognitio Juris

LIMITS AND POSSIBILITIES OF THE ECONOMIC ANALYSIS OF LAW: A STUDY IN THE LIGHT OF THE MEANING OF JUSTICE

Artigo submetido em 4 de novembro de 2022
Artigo aprovado em 19 de novembro de 2022
Artigo publicado em 10 de dezembro de 2022

Cognitio Juris
Ano XII – Número 44 – Dezembro de 2022
ISSN 2236-3009
Autores:
Susana Kelli Cabral de Aquino[1]

RESUMO: Este trabalho analisa a relação entre Economia e Direito existente na metodologia denominada Análise Econômica do Direito (AED), a partir da discussão sobre os limites e possibilidades da utilização desta técnica para determinados casos que podem permear o mundo jurídico, como questões morais, de direitos humanos, desigualdades sociais, etc. Também é feita a caraterização do que consiste a AED e explicitada sua relação com o debate sobre justiça. Por fim, com base nas leituras a respeito, é sugerida como alternativa o emprego na Análise Jurídica da Economia para assuntos imergidos por diferenças qualitativas, não suportados pela AED, devido suas limitações neste sentido.

PALAVRAS-CHAVE: Análise Econômica do Direito; Análise Jurídica da Economia; Justiça

ABSTRACT: This paper analyzes the relationship between Economics and Law existing in the methodology called Law and Economics (LAE), starting with the discussion about the limits and possibilities of using this technique for certain cases that may permeate the legal world, such as moral issues, human rights, social inequalities, etc. We also characterize what LAE consists of and explain its relation to the debate about justice. Finally, based on the readings on the subject, it is suggested as an alternative the use of the Legal Analysis of Economics for issues immersed by qualitative differences, not supported by the LAE, due to its limitations in this sense.

KEYWORDS: Law and Economics; Legal Economic Analysis; Justice

1. INTRODUÇÃO

Direito e Economia[2] são ciências sociais que, dentre outros aspectos, cada uma à sua maneira, estudam o comportamento das pessoas na sociedade. No Direito, percebe-se nítida a importância dos valores socialmente eleitos, em prol do que se chama de justiça, e sua interferência nas normas jurídicas que regulam os comportamentos humanos. A Economia analisa as escolhas/comportamentos das pessoas frente aos recursos escassos, intentando maximizar a eficiência dos resultados das decisões.

Tal compreensão incipiente e genérica sobre os objetos das duas ciências possibilita supor sobre a existência de uma inter-relação crível entre elas. A Análise Econômica do Direito (AED), também conhecida como Law and Economics, é um dos ramos de estudo nesta seara, cuja uma de suas características é aplicar instrumentais da economia, precipuamente da microeconomia, na análise do Direito.

Para emblemar ainda mais esta relação, tem-se que, em determinados aspectos, uma não pode prescindir da outra: É importante que a Economia se ocupe do estudo da produção e distribuição dos bens e serviços, sem desconsiderar o valor do ser humano; na mesma toada, não é ideal ao Direito, quando regular normativamente a distribuição da riqueza na sociedade, não considerar a análise da melhor eficiência na administração dos fatores ou bens aí envolvidos.

De certo, na possibilidade da Economia conseguir resolver todas as questões do Direito, apenas bastariam as resoluções das complexidades da primeira, uma vez que para a segunda simplificadamente a resolutividade de tais questões e sua aplicação à ciência das leis por si resolveriam suas querelas.

Não se pode aceitar cegamente como verdade uma conclusão do tipo que atribui à Economia a resolução de todas as questões do Direito. Afirmações desta natureza, simplificadas e inverossímeis, não permitem determinar como a Economia desvendará, com a certeza de seus números, discussões de caráter subjetivo e principiológico do Direito, como, por exemplo, a névoa ideológica da palavra “justiça”.

São evidentes as contribuições da Economia para o desenvolvimento dos Estados, apontando e colocando sobre a mesa alternativas para melhoria das condições de vida das pessoas. Não se deve de todo abandonar seus ensinamentos e implicações ao Direito, tendo em mente, no entanto, o entendimento sobre suas limitações neste campo.

Diante de tal reflexão, este artigo tem como objeto a discussão sobre possibilidades e limites da aplicação da Análise Econômica do Direito, tendo como cerne interrogativo a abordagem conceitual da justiça. Sob o manto de uma metodologia hipotético-dedutivo, trata-se de Pesquisa Bibliográfica, com vista a identificar os fatores subjacentes ao objeto de estudo, lançando mão primordialmente de levantamento bibliográfico.

Nas discussões onde não se adequa a AED, como as relacionadas ao que é ou não justo, pugna-se pela utilização de uma metodologia como alternativa, a chamada Análise Jurídica da Economia, pela qual se pode empregar métodos interdisciplinares para resolução de questões de conteúdo sensíveis à dialética humana, que os números por si só não conseguem explicitar.

2. A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO

Inicialmente, traz-se à baila que a Análise Econômica do Direito ou Law and Economics é uma forma de interpretação e resolução de problemas jurídicos, utilizando-se da teoria econômica, costumeiramente da microeconomia e da econometria.

Historicamente, traça-se o percurso desta maneira de assimilação do Direito sob o olhar do econômico da seguinte forma:

Apesar da compreensão do Direito por meio da Economia encontrar precedentes nos escritos de Beccaria (1767) sobre direito penal e, especialmente, em Bentham (1789) acerca das sanções legais desencorajarem más condutas, curiosamente, somente nas décadas de 1960 e 1970 surgiram os estudos de Coase (1960), Becker (1968), Calabresi (1970) e Posner (1972), os quais consolidariam o movimento da Análise Econômica do Direito. (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 184, com base em M.SHAVELL, 2004).

Seguindo ainda a linha temporal de nascimento e desenvolvimento da Análise Econômica do Direito, percebe-se que o movimento teórico não é homogêneo, mas reúne diversas vertentes. Além da tradicional Escola de Chicago da Law and Economics, há, ainda, por exemplo, a Public Choice Theory, Institucional Law and Economics e a New Institucional Economics. De qualquer forma, “a Escola de Chicago é a mais importante vertente do pensamento da Análise Econômica do Direito, forte no pensamento de Ronald Coase e de Richard Posner”. (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 185).

A mola propulsora inicial e pujante da AED foi o artigo de Ronald Coase:

The Problem of the social cost, publicado no The Journal of Law and Economics, n. 3, da Universidade de Chicago, em 1960, permitiu a George Stigler desenvolver o “Teorema de Coase”. O teorema iguala os custos sociais e privados, quando existe uma situação de custos de transação zero, a alocação de um bem que foi negociado pelas partes sempre será eficiente. Os custos de transação zero devem ser sempre uma situação de informação completa e acessível. Um exemplo comumente utilizado pelo próprio Coase é o da fábrica que gera poluição por uma de suas chaminés causando transtornos para o condomínio vizinho. Defende que a fábrica não deve ser analisada sob uma perspectiva de externalidades negativas, pois se os custos de mudança geográfica do condomínio forem menores que os custos de diminuição da poluição, a externalidade negativa será do condomínio e a fábrica deverá pagar para que se mudem. (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 185 – 186, com base em COELHO, 2007. p. 6).

Em continuação à exposição das linhagens teóricas em destaque na procedência da AED, tem-se que:  

A origem da discussão contemporânea de Direito e Economia encontra-se nos trabalhos pioneiros de Ronald Coase, Guido Calabresi e Trimarcchi, que apontaram novos aspectos e questões para o tratamento da relação entre Direito e Economia, e, mais recentemente, na Teoria das Organizações. O primeiro ganhador do Nobel de Economia demonstrou como a introdução de custos de transação na análise econômica determina as formas organizacionais e as instituições do ambiente social. Coase explicou que a inserção dos custos de transação na Economia e na Teoria das Organizações implica a importância do Direito na determinação de resultados econômicos.

Segundo o Teorema de Coase, em um mundo hipotético sem custos de transação (pressuposto da Economia Neoclássica), os agentes negociarão os direitos, independentemente da sua distribuição inicial, de modo a chegar à sua alocação eficiente. Nesse mundo, as instituições não exercem influência no desempenho econômico. Ocorre que, como asseverou Coase, esse é o mundo da blackboard economics. Ao criticar a análise econômica ortodoxa, Coase enfatizou que, no mundo real, os custos de transação são positivos e, ao contrário do que inferem os neoclássicos tradicionais, as instituições legais impactam significativamente o comportamento dos agentes econômicos. (SZTAJN; ZYLBERSZTAJN, 2005).

Assim, de acordo com os ensinamentos de Sztajn e Zylbersztajn (2005), depreende-se que fator primordial são os pressupostos para os custos de transação na determinação e na própria ordem basilar da origem da AED. Eles significam os gastos com planejamento, elaboração, negociação em transações de manutenção do funcionamento de um negócio ou oriundos da captação de recursos, logo, representam os dispêndios que não dizem respeito diretamente aos custos de produção. Assim, representam os gastos ligados à manutenção de contratos, que garantirão seu cumprimento. De modo geral, são exemplificados como as despesas com elaboração e negociação dos contratos; mensuração e fiscalização de direitos de propriedade; monitoramento do desempenho; organização de atividades; etc.

Dos excertos acima, depreende-se que o expoente da Análise Econômica do Direito e primeiro ganhador do Nobel de Economia, Ronald Coase, critica a análise econômica ortodoxa (baseada em pressupostos neoclássicos), no ponto em que esta base teórica tem como premissa os custos de transição zerados, caracterizando-a, inclusive, como o “mundo da blackboard economics”, concluindo contrariamente à corrente teórica quando assevera que as instituições legais impactam significativamente os agentes econômicos. Apesar disso, utiliza-se da proposição refutada (a de que os custos de transação são iguais a zero) para concluir contra a abordagem das externalidades negativas geradas pelas fábricas poluidoras, em seu próprio exemplo.

Estas visões contraditórias se devem, possivelmente, à complexidade das questões envolvidas na discussão. Sobreleve-se, inclusive, a conclusão de Coase segundo a qual as instituições legais impactam significativamente os agentes econômicos corrobora fortemente os ideais negatórios ou incisivamente críticos à corrente que ajudou a criar (a AED). Tais ideais circunscrevem-se na Análise Jurídica da Economia que, ao invés que interpretar o Direito com base na Economia, inverte a ordem, pugna pela humanização da Economia, pontuando a importância dos princípios jurídicos influenciarem as questões econômicas. Mais adiante, a Análise Jurídica da Economia será explanada com maiores informações.

Continuando a caracterização da metodologia em apreço, é importante salientar a tríade das premissas fundamentais a ela subjacentes:

  1. Individualismo metodológico: Segundo qual “toda norma coletiva é a soma das respostas individuais, portanto, a ação humana individual é o ponto de partida.” (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 186).
  2. Maximização das escolhas racionais: “Quando o indivíduo vai escolher, analisa todas as características do negócio, observa as informações e considera os custos de transação aferindo os benefícios.” (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 186). Diz-se que se dá em decorrência do individualismo, pois as condutas individuais são medidas pela a diferença entre benefícios e custos delas provenientes.
  3. Eficiência: Baseada no critério econômico, denominado “Ótimo de Pareto”, de Vilfredo Pareto, segundo o qual, economicamente, não é possível melhorar a situação de um agente econômico sem piorar a de outrem(ns). Por outro lado, na situação de “Pareto Superior”, há a possibilidade de melhoria de uma situação individual, sem ocasionar piora na situação dos demais. Frequentemente utilizado por Richard Posner, que concretizou a Análise Econômica do Direito, com Economic Analysis of law, em 1973, tem-se ainda o critério de Kaldor-Hicks, conhecido também como “maximização do bem-estar”. De acordo com tal perspectiva, “os agentes econômicos devem estar interessados na concretização da melhoria, mesmo que tiverem que pagar compensação para conseguir o assentimento dos prejudicados.” (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 187).

Os princípios fundamentais que orbitam a Análise Econômica do Direito são o individualismo metodológico e as escolhas racionais, partindo do pressuposto que os indivíduos atuam sempre no objetivo de maximizar sua satisfação, “de acordo com os incentivos externos, visão semelhante ao utilitarismo de Jeremy Bentham”. (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 186, grifo nosso). Trata-se o utilitarismo da “mais influente explicação do ‘porquê’ e do ‘como’ maximizar o bem-estar ou (como definem o utilitaristas) procurar a máxima felicidade ou eficiência para o maior número de pessoas”. (SANDEL, 2012, p. 28).

Aproximando a utilização da AED à realidade brasileira, traz-se à baila o importante livro sobre a temática intitulado “Análise Econômica do Direito: Aplicação pelo Supremo Tribunal Federal”, do juiz federal Guilherme Maines Caon. Nesta obra, o magistrado faz análises de como o STF vem se utilizando da metodologia da AED em seus julgados. No delineamento da pesquisa, foi formulada a hipótese de que, a partir de 2015, houve um incremento qualitativo e quantitativo na aplicação da AED pelo STF. Para confirmação de sua hipótese, o autor identificou trinta e nove acórdãos da Egrégia Corte nos quais foi utilizado o raciocínio econômico como fundamento para as decisões, entre os anos de 1991 a 2019.

Desta feita, traz-se um dos julgados analisados no referido livro, para o qual o nível de indicador da densidade da AED foi classificado como “alto”. Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) Nº. 2.591, julgada em 07/06/2006, na qual consignou-se decisão favorável à incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC) às instituições financeiras, excluindo-se os custos e remunerações das operações financeiras, ativas e passivas, que estariam sujeitos apenas à regulação pelo Banco Central e ao controle pelo Poder Judiciário, nos termos do Código Civil. A leitura da análise deste julgado empreendida no citado livro faz entender que a densidade da AED considerada alta deveu-se à utilização de conceitos e lógicas da Economia como sustentáculo à decisão. No acórdão, foram tratados sobre temas como estabilidade econômica, oferta e demanda de moeda, relação entre taxas de juros e crescimento econômico e custo de oportunidade. Importante mencionar o voto do Ministro Eros Grau, pelo qual “as taxas de juros devem ser fixadas numa perspectiva macroeconômica. (…) a definição das taxas de juros não poderia advir de uma perspectiva microeconômica, de modo que a regulamentação dos custos e remunerações das operações financeiras deveria estar excluída da abrangência do CDC”. (CAON, 2021).

A utilização da AED neste julgado, em particular, deveu-se ao emprego de conceitos e temáticas fundamentalmente econômicos para sustentação das decisões dos ministros. A contenda em riste impregnava-se de questões de ordem técnica, de especificidade da Economia, o que possibilitou brilhantemente a imersão da AED aos votos dos ministros que a julgaram; escolha de difícil aplicação seria em casos de essência voltada a assuntos de ordem moral, religiosa ou mesmo de direitos humanos, para os quais se pugna pelo afastamento do uso de tal metodologia.

Assim, críticas à AED surgem incisivamente sob o caráter indelével de premissas e fundamentos que a balizam, como o princípio da utilidade ou racionalidade onipresente nas atividades e atitudes das pessoas. A continuação da leitura possibilitará que o leitor conheça alguns dos contrapontos envolvendo a refutação desta técnica no meio jurídico, o que servirá, espera-se, para o início de uma reflexão.

3. CRÍTICAS À ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO

Feita a aproximação conceitual entre a Análise Econômica do Direito e a visão utilitarista, a partir dos pressupostos e objetivos de ambas, passa-se a apresentar algumas visões de embate sobre estas perspectivas.

Exemplifiquemos com o seguinte episódio verídico narrado no livro “Justiça: O que é Fazer a Coisa Certa”, de Michael J. Sandel. Na década de 1970, a Ford comercializava o automóvel Ford Pinto, que era um dos compactos mais vendidos nos Estados Unidos, na época. O carro, no entanto, apresentava uma falha fatal: caso fosse colidido pela parte de trás, simplesmente explodia e pegava fogo. Foram muitos os usuários do veículo que perderam a vida, culminando em processos judiciais de suas famílias contra a Ford, pleiteando indenização.

Os executivos da empresa, então, empreenderam um estudo utilizando-se de dados da agência governamental dos Estados Unidos, pelo qual atribuíram à vida humana um valor de 200 mil dólares e de 67 mil dólares por queimaduras. Estipulou-se “que os benefícios de consertar as unidades (em vidas salvas e ferimentos evitados) não compensavam os 11 dólares por carro que custaria para equipar cada veículo com um dispositivo que tornasse o tanque de combustível mais seguro”. (SANDEL, 2012, p. 58). Tal resultado foi obtido pelo seguinte cálculo: “o custo de instalar um dispositivo de 11 dólares em 12,5 milhões de veículos seria de 137,5 milhões de dólares. Assim, a companhia chegou à conclusão de que o custo de consertar o tanque não compensaria o benefício de um carro mais seguro”. (SANDEL, 2012, p. 59).

Em um dos casos levados à justiça, após conhecimento do estudo, o júri acabou por condenar a Ford a pagar o valor de 2,5 milhões de dólares pelos prejuízos e 125 milhões de dólares por danos morais à parte autora, isto se deu pelo ínfimo valor atribuído à vida humana no citado estudo dos executivos da Ford, que foi de 200 mil dólares. Sobre este aspecto e correlacionando ao mecanismo utilitarista evidente na precificação da vida humana, avaliada em 200 mil dólares, pondera Sandel (2012):

Se a objeção do júri fosse quanto ao valor atribuído, e não ao princípio, um utilitarista poderia concordar. Poucas pessoas concordariam em morrer num acidente de carro por 200 mil dólares. A maioria teria escolhido viver. Para mensurar o efeito total de uma morte no trânsito sobre a utilidade, seria preciso incluir também a perda da futura felicidade da vítima, e não apenas o que ela deixaria de ganhar e os custos funerários. Qual seria, então, uma estimativa mais fiel do valor monetário de uma vida humana? (SANDEL, 2012, p. 58-59).

Em “Justiça: O que é Fazer a Coisa Certa”, Sandel oferece uma série de situações hipotéticas e expõe reflexões sobre aspectos morais que podem ser subjugados quando da aplicação indiscriminada da AED, sem as devidas ponderações que o caso concreto pode requerer. Algumas são trazidas como abstração da realidade, o que não tira o mérito da abordagem, mas, pelo contrário, mostram perspectivas com chances potenciais de impacto e ineditismo na reflexão do leitor. Merecedora de destaque é o caso da criança torturada, em prol do que seria a felicidade de todos, conceito aproximado de um dos cernes do utilitarismo. Veja-se:

A história (“The Ones Who Walked Away from Omelas”) fala de uma cidade chamada Omelas — uma cidade de felicidade e celebração cívica, um lugar sem reis ou escravos, sem propaganda ou bolsa de valores, sem bomba atômica. Embora tal lugar seja difícil de imaginar, a autora nos conta mais uma coisa sobre ele: “Em um porão sob um dos belos prédios públicos de Omelas, ou talvez na adega de uma das suas espaçosas residências particulares, existe um quarto com uma porta trancada e sem janelas.” E nesse quarto há uma criança. A criança é oligofrênica, está malnutrida e abandonada. Ela passa os dias em extremo sofrimento. (SANDEL, 2012, p. 54-55).

Todos sabem que ela está lá, todas as pessoas de Omelas (…) sabem que ela tem que estar lá (…) Todos acreditam que a própria felicidade, a beleza da cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de seus filhos (…) até mesmo a abundância de suas colheitas e o clima agradável de seus céus dependem inteiramente do sofrimento abominável da criança (…). Se ela for retirada daquele local horrível e levada para a luz do dia, se for limpa, alimentada e confortada, toda a prosperidade, a beleza e o encanto de Omelas definharão e serão destruídos. São essas as condições. (URSULA LE GUIN, 2000 apud SANDEL, 2012, p. 55).

Essas condições são moralmente aceitáveis? A primeira objeção ao utilitarismo de Bentham, aquela que apela para os direitos humanos fundamentais, diz que não — mesmo que disso dependa a felicidade de uma cidade. Seria errado violar os direitos de uma criança inocente, ainda que fosse pela felicidade de uma população. (SANDEL, 2012, p. 55, grifo nosso).

Partem daqui alguns problemas ao se tentar aplicar indiscriminadamente a AED nas resoluções de conflitos enfrentados pelo Direito. Nestas linhas, mais à frente, continua Sandel (2012, p. 135): “Se você acredita em direitos humanos universais, provavelmente não é um utilitarista. Se todos os seres humanos são merecedores de respeito, não importa quem sejam ou onde vivam, então é errado tratá-los como meros instrumentos da felicidade coletiva”. Assim, nota-se claramente a impetuosa dissonância entre direitos humanos e a Análises Econômica do Direito balizada pelos pilares do utilitarismo. Não é porque uma solução se mostra mais eficiente em termos de bem-estar geral, que se deve abandonar ou suplantar direitos de dignidade de um indivíduo, por exemplo. Há questões de ordem moral e de justiça que devem imperar em determinadas escolhas, às expensas da maior felicidade comum por ventura experimentada em assim não fazê-lo.

Outra forma de se perceber alguns complicadores da utilização leviana da Análise Econômica do Direito é que, como baseada nos pressupostos do utilitarismo, e, consequentemente, no liberalismo econômico, e balizada na supremacia do mercado e do liberalismo econômico, acaba por prescindir de questões sociais e morais relevantes para o Direito e que não são para o mercado. Pela ótica utilitarista “o mercado é analisado pelos resultados que ele produz, pouco importando se os meios são éticos ou morais.” (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 195). Neste aspecto, as palavras de Amartya Sen vão no seguinte sentido:

O papel desempenhado pelos mercados tem de depender não só do que eles podem fazer, mas também do que é permitido fazer. Existem muitas pessoas cujos interesses são bem atendidos por um funcionamento desimpedido do mercado, porém há grupos cujos interesses estabelecidos podem ser prejudicados por esse funcionamento. (SEN, 2010, p. 19).

Em complementação, cita-se a seguinte reflexão: “Infelizmente, com a crescente desigualdade econômica, o mercado necessita de regulação para que não ocorram os exemplos citados, para que pelo menos a dignidade humana seja preservada”. (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 195, com base em SEN, 2010, p. 37). Como se vê, questões relacionadas aos direitos humanos, desigualdade social, ao que é ou não ético e discussões principiológicas são prescindidas pela Análise Econômica do Direito. Assim, resta-se necessário tecer considerações sobre a presença de tais aspectos na conceituação e discussão da palavra “justiça”.

4. A QUESTÃO DA JUSTIÇA

Tratar-se-á neste tópico sobre a discussão envolvendo a conceituação de justiça, utilizando-se como parâmetro as reflexões e ensinamentos encontrados no livro “Justiça: o que é fazer a coisa certa”, de Michael Sandel, para, a seguir, relacioná-los à discussão já iniciada sobre a Análise Econômica do Direito.

O livro, com maestria, busca responder como pode se dar um raciocínio claro “no disputado terreno da justiça e da injustiça, da igualdade e da desigualdade, dos direitos individuais e do bem comum”. (SANDEL, 2012, p. 37). A seguir, evidenciam-se alguns dos conflitos analisados na obra, que podem deixar intrigados, curiosos ou até reflexivos os seres mais apáticos ao tema abordado:

A vida em sociedades democráticas é cheia de divergências entre o certo e o errado, entre justiça e injustiça. Algumas pessoas defendem o direito ao aborto, outras o consideram um crime. Algumas acreditam que a justiça requer que o rico seja taxado para ajudar o pobre, enquanto outras acham que não é justo cobrar taxas sobre o dinheiro recebido por alguém como resultado do próprio esforço. Algumas defendem o sistema de cotas na admissão ao ensino superior como uma forma de remediar erros do passado, enquanto outras consideram esse sistema uma forma injusta de discriminação invertida contra as pessoas que merecem ser admitidas pelos próprios méritos. Algumas rejeitam a tortura de suspeitos de terrorismo por a considerarem um ato moralmente abominável e indigno de uma sociedade livre, enquanto outras a defendem como um recurso extremo para evitar futuros ataques. (SANDEL, 2012, p. 36-37).

O autor também apresenta ao leitor três abordagens possíveis na conceituação da palavra “justiça”, quais sejam:

Uma delas, a dos utilitaristas, diz que devemos definir a justiça e determinar a coisa certa a fazer perguntando-nos o que maximizará o bem-estar ou a felicidade da sociedade como um todo. Uma segunda abordagem associa justiça a liberdade. O pensamento libertário é um exemplo dessa abordagem. Segundo os libertários, a distribuição justa de renda e riqueza é aquela que tem origem na livre troca de bens e serviços, em um mercado sem restrições. Regular esse mercado é injusto, dizem eles, porque viola a liberdade individual de escolha. De acordo com uma terceira abordagem, justiça é dar às pessoas o que elas moralmente merecem, alocando bens para recompensar e promover a equidade. (…) a abordagem fundamentada na virtude relaciona a justiça à reflexão sobre o que deve ser considerado uma boa vida. (SANDEL, 2012, p. 138).

O trecho é autoexplicativo, demonstra a visão do autor quanto às perspectivas classificatórias das teorias sobre a justiça. Ao longo do livro, Sandel discute, não raramente demonstrando por meio de exemplos, os pontos particulares de cada uma das abordagens. Ao final, expõe a perspectiva de justiça que considera a mais certeira, com a qual sentimo-nos impelidos à concordância, principalmente pela brilhante e convincente forma que o autor empregou no seu livro para argumentar seu ponto de vista.

Para demonstrar o raciocínio do autor quanto às duas primeiras abordagens sobre a justiça, a que a considera como a forma de proporcionar o maior bem-estar a um maior número de pessoas e a que a enxerga como um espelho da liberdade, tem-se:

Se a justiça for apenas uma questão de maximizar o peso do prazer sobre o do sofrimento, precisamos de uma forma única e uniforme para pesar e avaliar todas as mercadorias e o prazer ou a dor que elas possam nos proporcionar. Bentham criou o conceito de utilidade exatamente com esse objetivo. Mas Anderson alega que avaliar tudo de acordo com a utilidade (ou o dinheiro) degrada os bens e as práticas sociais — incluindo crianças, gravidez e criação dos filhos — que são devidamente avaliados de acordo com padrões mais elevados.

Quais são, no entanto, esses padrões mais elevados e como poderemos saber quais modalidades de avaliação são adequadas a quais bens e práticas sociais? Uma abordagem dessa questão começa com a ideia da liberdade. Considerando que os seres humanos são livres, não deveríamos ser usados como se fôssemos meros objetos; ao contrário, deveríamos ser tratados com dignidade e respeito. Essa abordagem enfatiza a distinção entre pessoas (merecedoras de respeito) e meros objetos ou coisas (para uso) como a distinção fundamental da moralidade. O maior defensor dessa noção é Immanuel Kant, de quem trataremos no próximo capítulo. (SANDEL, 2012, p. 123-124).

Numa passagem do livro, ao fazer um contraponto à teoria do maior bem-estar ou felicidade geral como objetivo da justiça, Sandel (2012) articula-se sob o prisma ideológico de Kant:

Diferentemente de Aristóteles, Bentham e Mill, Kant não escreveu um trabalho importante sobre teoria política, apenas alguns ensaios. Ainda assim, a concepção de moralidade e liberdade que emerge de seus escritos sobre ética contém poderosas implicações para a justiça. Embora Kant não tenha detalhado tais implicações, a teoria política que ele defende repudia o utilitarismo em favor de uma teoria de justiça fundamentada em um contrato social.

Primeiramente, Kant repudia o utilitarismo não apenas como uma base para a moralidade pessoal, mas também como uma base para a lei. Em seu entender, uma Constituição justa tem como objetivo harmonizar a liberdade de cada indivíduo com a liberdade de todos os demais. Isso nada tem a ver com a maximização da utilidade, que “não deve, em hipótese alguma, interferir” na determinação dos direitos básicos. Já que as pessoas “têm visões diferentes da finalidade empírica da felicidade e em que ela consiste”, a utilidade não pode ser a base da justiça e dos direitos. Por que não? Porque basear os direitos na utilidade exigiria que a sociedade afirmasse ou endossasse uma concepção de felicidade em detrimento de outras. Basear a Constituição em uma determinada concepção de felicidade (como a concepção da maioria) imporia a algumas pessoas os valores de outras e não respeitaria o direito que cada um tem de lutar pelos próprios objetivos. “Ninguém pode obrigar-me a ser feliz segundo sua concepção do bem-estar alheio”, escreve Kant, “porque cada um deve buscar sua felicidade da maneira que achar conveniente, desde que não infrinja a liberdade dos outros” de fazer o mesmo. (SANDEL, 2012).

Sobre a segunda teoria da justiça, que tem como mola mestra a realização da liberdade, ocorre que se utiliza da premissa de neutralidade sob diversos aspectos, como econômicos e morais, por exemplo. Neste ponto, Sandel tece a seguinte crítica:

Sejam elas igualitárias sejam libertárias, as teorias de justiça que defendem a neutralidade têm um grande apelo. Elas mostram que é possível evitar que a política e a lei acabem por se enredar nas controvérsias morais e religiosas muito frequentes nas sociedades pluralistas. E expressam uma inovadora concepção da liberdade humana que nos transforma em autores das únicas obrigações morais que nos restringem.

Ainda que atraente, no entanto, essa concepção de liberdade é falha. Assim como a aspiração de encontrar princípios de justiça que se mantenham neutros em relação às diferentes concepções da vida boa.

Depois de debater comigo mesmo os argumentos filosóficos que apresentei a vocês, e tendo observado como esses argumentos são postos em prática na vida pública, não acredito que a liberdade de escolha — mesmo a liberdade de escolha em condições justas — seja uma base adequada para uma sociedade justa. Além disso, a tentativa de encontrar princípios de justiça neutros parece-me um equívoco. Nem sempre é possível definir nossos direitos e deveres sem se aprofundar em alguns questionamentos morais; e mesmo quando isso é possível, pode não ser desejável. (SANDEL, 2012).

Em relação à terceira e última teoria da justiça, traz-se o seguinte excerto:

Discussões sobre justiça e direitos são, muitas vezes, inevitavelmente, discussões sobre o propósito das instituições sociais, sobre os bens por elas destinados e sobre as virtudes que elas valorizam e recompensam. Apesar das nossas tentativas de manter a neutralidade da lei em tais questões, talvez não seja possível determinar o que é justo sem discutir a natureza da vida boa. (SANDEL, 2012).

O autor acrescenta ainda o seguinte:

A ideia de que o governo deve tentar manter-se neutro quanto ao significado de uma vida boa diverge de antigas concepções de política. Para Aristóteles, o objetivo da política não é apenas facilitar o intercâmbio econômico e cuidar da defesa comum; a política também deve cultivar o bom caráter e formar bons cidadãos. Discussões sobre justiça são, portanto, inevitavelmente, discussões sobre a vida boa. “Antes de podermos [discutir sobre] a natureza de uma Constituição ideal”, escreveu Aristóteles, “é preciso que determinemos primeiramente a natureza do modo de vida mais desejável. Enquanto isso não for esclarecido, a natureza da Constituição ideal também permanecerá obscura.” (SANDEL, 2012).

Ainda seguindo as reflexões do autor de “Justiça: O que é fazer a coisa certa?”, é forçosa a explanação dos seguintes trechos:

(…) Se deliberar sobre o que é bom para mim envolve refletir sobre o que é bom para as comunidades às quais minha identidade está ligada, talvez a ideia de neutralidade seja equivocada. Pode não ser possível, nem mesmo desejável, deliberar sobre justiça sem deliberar sobre a vida boa.

A perspectiva de trazer as concepções da vida boa para o discurso público sobre justiça e direitos pode não soar muito atraente — pode parecer até mesmo assustadora. Afinal, os indivíduos em sociedades pluralistas como a nossa têm concepções diferentes sobre a melhor maneira de viver. A teoria política liberal nasceu de uma tentativa de poupar a política e a lei de se emaranharem em controvérsias morais e religiosas. As filosofias de Kant e Rawls são a expressão mais completa e clara dessa pretensão.

Essa pretensão, no entanto, não pode ser bem-sucedida. Muitas das questões mais ardentemente contestadas de justiça e direitos não podem ser discutidas sem que sejam consideradas controversas questões morais e religiosas. Ao decidir sobre como definir os direitos e deveres dos cidadãos, nem sempre podemos deixar de lado as concepções divergentes sobre o que seja a vida boa. E, mesmo quando isso é possível, talvez não seja desejável.

Pedir aos cidadãos democráticos que abandonem suas convicções morais e religiosas ao entrar na esfera pública pode parecer uma forma de garantir a tolerância e o respeito mútuo. Na prática, entretanto, pode acontecer justamente o contrário. Decidir sobre importantes questões públicas fingindo uma neutralidade que não pode ser alcançada é uma receita para o retrocesso e o ressentimento. Uma política sem um comprometimento moral substancial resulta em uma vida cívica pobre. É também um convite aberto a moralismos limitados e intolerantes. Os fundamentalistas ocupam rapidamente os espaços que os liberais têm receio de explorar. (SANDEL, 2012).

O desfecho ideológico do autor quanto às teorias envoltas à discussão da conceituação de “justiça” pode ser vislumbrado nos seguintes trechos:

No transcurso desta jornada, exploramos três abordagens da justiça. Uma delas diz que justiça significa maximizar a utilidade ou o bem-estar — a máxima felicidade para o maior número de pessoas. A segunda diz que justiça significa respeitar a liberdade de escolha — tanto as escolhas reais que as pessoas fazem em um livre mercado (visão libertária) quanto as escolhas hipotéticas que as pessoas deveriam fazer na posição original de equanimidade (visão igualitária liberal). A terceira diz que justiça envolve o cultivo da virtude e a preocupação com o bem comum. Como já deve ter ficado claro, sou a favor de uma versão da terceira abordagem. Deixem-me explicar por quê.

A abordagem utilitária contém dois defeitos: primeiramente, faz da justiça e dos direitos uma questão de cálculo, e não de princípio. Em segundo lugar, ao tentar traduzir todos os bens humanos em uma única e uniforme medida de valor, ela os nivela e não considera as diferenças qualitativas existentes entre eles.

As teorias baseadas na liberdade resolvem o primeiro problema, mas não o segundo. Elas levam a sério os direitos e insistem no fato de que justiça é mais do que um mero cálculo. Ainda que discordem entre si quanto a quais direitos devem ter maior peso do que as considerações utilitárias, elas concordam que certos direitos são fundamentais e devem ser respeitados. Mas, além de destacar determinados direitos como merecedores de respeito, elas aceitam as preferências dos indivíduos, quaisquer que sejam. Não exigem que questionemos ou contestemos as preferências e os desejos que levamos para a vida pública. De acordo com essas teorias, o valor moral dos objetivos que perseguimos, o sentido e o significado da vida que levamos e a qualidade e o caráter da vida comum que compartilhamos situam-se fora do domínio da justiça.

Isso me parece equivocado. Não se pode alcançar uma sociedade justa simplesmente maximizando a utilidade ou garantindo a liberdade de escolha. Para alcançar uma sociedade justa, precisamos raciocinar juntos sobre o significado da vida boa e criar uma cultura pública que aceite as divergências que inevitavelmente ocorrerão.

É tentador procurar um princípio ou procedimento capaz de justificar, de uma vez por todas, qualquer distribuição de renda, poder ou oportunidade dele resultante. Tal princípio, se conseguíssemos encontrá-lo, permitiria que evitássemos os tumultos e as disputas que as discussões sobre a vida boa invariavelmente ocasionam.

No entanto, é impossível evitar essas discussões. A justiça é invariavelmente crítica. Não importa se estamos discutindo bailouts ou Corações Púrpuras, barrigas de aluguel ou casamento entre pessoas do mesmo sexo, ação afirmativa ou serviço militar, os salários dos executivos ou o direito ao uso de um carrinho de golfe, questões de justiça são indissociáveis de concepções divergentes de honra e virtude, orgulho e reconhecimento. Justiça não é apenas a forma certa de distribuir as coisas. Ela também diz respeito à forma certa de avaliar as coisas. (SANDEL, 2012).

Pode-se concluir, logo, pela inclinação de Sandel em atribuir à terceira via entre as teorias da justiça um caráter mais próximo ao que acredita significar a essência de como se conduzir discussões sobre a justiça. Ela que não deve se limitar a um estado acrítico, de neutralidade aparente ou ainda a reduzir pautas genuinamente reflexivas ou sensíveis à ponderação a meros e frios cálculos, incapazes de transparecer as verdadeiras questões intrínsecas à sua própria natureza.

5. JUSTIÇA À LUZ DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO

Feita a concatenação dos pontos principais concernentes às teorias de justiça apresentadas por Sandel, passa-se a relacioná-los à discussão envolvendo a Análise Econômica do Direito, seguindo o prometido no início da seção imediatamente anterior. Como já enfatizado no tópico que apresentou tal método de análise no Direito, a teoria da utilidade serve como sustentáculo teórico às suas proposituras, o que, na visão apresentada por Sandel, tomando como referência o livro “Justiça: o que é fazer a coisa certa?”, pode culminar em desfechos de resultados dúbios para determinadas questões envolvendo justiça auferidos à luz da AED.

As pechas evidenciadas a partir da utilização da AED em situações envolvendo a justiça consubstanciam-se nas lacunas conceituais presentes na teoria da utilidade, quando inseridas no mundo complexo e subjetivo que envolve a discussão sobre o que é fazer justiça. Também assim pode ser assimilada a teoria da liberdade, baseada numa neutralidade não condizente com o caráter crítico e ponderado necessário à discussão do que seja a justiça.

Há potentes dificuldades em se utilizar a AED a pautas impregnadas de aspectos “de justiça”, se assim pode se dizer, ou para as quais há a necessidade de análise de qual seria o desfecho mais justo para a situação, podendo-se citar exemplos como questões morais, religiosas, de direitos humanos, de desigualdade social, etc.

Atento aos conflitos que podem envolver as desigualdades sociais e econômicas na discussão sobre a justiça, muitas vezes gerados pela própria dinâmica normalizada da economia mundial, Manuel Couret Branco expõe:

[…] Jean Paul Fitoussi afirmou num Seminário sobre a Europa Social que decorreu em Lisboa em maio de 1997 que, a manter-se o esquema de evolução da economia da altura, e que diga-se que em pouco ou nada se alterou de então para cá, a Europa só poderia continuar a enriquecer, isto é a aumentar o grau de eficácia de uma economia assente na racionalidade maximizadora do interesse pessoal, se uma parte não negligenciável da sua população consentisse em continuar a empobrecer. Feitas as contas no final, é possível que esta opção viesse a produzir maior utilidade social, sendo esta interpretada como a soma das utilidades individuais, isto é em rendimento médio por habitante. No entanto, e de acordo com o próprio Fitoussi, este aumento de desigualdade social seria, do ponto de vista da justiça, certamente, intolerável e, do ponto de vista da democracia, politicamente insustentável. (BRANCO, 2012, p. 46).

A partir deste ponto de vista, pode surgir a seguinte questão: “Será cabível a valoração econômica da vida humana, desprezando qualquer princípio? Esse raciocínio seria correto?” (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 191-192). Tais questionamentos fazem inferir que a desigualdade econômica e social, influenciadora direta da dignidade humana e da própria integridade da vida das pessoas, é fator crucial a ser encarado na reflexão sobre a justiça, de modo que pontuam os autores Parreira e Benacchio:

Economistas como Amartya Sen e Bernardo Kliksberg direcionam a Economia numa linha de maior preocupação com o bem estar das pessoas, demonstrando o quanto as desigualdades e a ausência de ética e liberdade é prejudicial, alertam para o crescente enriquecimento de uma minoria em contrapartida ao aumento do desemprego e da violência das classes menos favorecidas. A pobreza é a negação dos direitos humanos e do desenvolvimento equitativo e sustentável. (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 181).

Continuando, é inquestionável que a desigualdade social deve ser levada em consideração na discussão de que é a justiça. Fato é que a frieza dos cálculos embutidos nas conclusões que aplicam primordialmente um valor à maior utilidade para a maioria das pessoas, como preconiza a AED, não responde a questões principiólogicas, sociais e morais arraigadas fortemente em grandes questões que envolvem a discussão sobre a justiça, como é o caso da desigualdade social. Nesta esteira, tem-se, por exemplo, a elucubração seguinte:

A pouca atenção dada à desigualdade na política contemporânea não reflete o descaso dos filósofos políticos a respeito do tema. A distribuição justa de renda e riqueza tem sido uma constante nas discussões da filosofia política desde a década de 1970 até os dias atuais. Mas a tendência dos filósofos de estruturar a questão em termos de utilidade ou consentimento leva-os a desconsiderar os argumentos contra a desigualdade mais capazes de sensibilizar politicamente a população e mais relevantes para o projeto de renovação moral e cívica. (SANDEL, 2012).

Pensar num mundo em que não existam as chamadas desigualdades sociais, ou lançar mão de artifícios como atribuir valores numéricos não representativos da sua concretude e importância nos assuntos envolvendo a justiça, é experimentar um discurso vazio e irrelevante do ponto de vista fático-jurídico. Neste ponto, se verifica a validade da seguinte perspectiva: “A linha divisória entre ‘os que têm’ e ‘os que não têm’ não é apenas um clichê retórico ou slogan eloquente, mas sim, lamentavelmente, uma característica substancial do mundo em que vivemos.” (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 195, com base em SEN, 2010a, p. 37).

Sabendo que a desigualdade social está presente na realidade fática e não apenas imaginária ou teórica e dos contornos deletérios que ela pode representar nas situações envolvendo a justiça, traz-se, em complemento, uma perspectiva analítica que relaciona Direito e Economia, no entanto, invertendo-se a relação no estudo: é a chamada Análise Jurídica da Economia, conforme se pode ver:

Busca-se um caminho na Análise Jurídica da Economia como mecanismo para a concretização da sustentabilidade utilizando o método hipotético-dedutivo. A proposta é uma reflexão sobre como o Direito, por intermédio de uma visão multidisciplinar, aliado à Economia e à Filosofia pode traçar os contornos para uma justiça inclusiva e solidária. (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 181).

Em complementação ao raciocínio, acrescentam-se fatores a corroborar tanto mais incisivamente à discussão: “(…) a atual hipercomplexidade da sociedade contemporânea exige visões plurais, guiadas pelos valores estabelecidos pelo Direito na consecução da condição humana em sua dignidade, assim, o Direito efetua a mediação entre os valores antagônicos contidos no sistema jurídico a partir da Constituição.” (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 195, com base em ZAGREBELSKY, 1992).

Diante dos argumentos aqui elencados, é possível concluir pelo seguinte: “A Economia é um meio para a realização dos mandamentos do Direito, assim, propomos a inversão da metodologia da Análise Econômica do Direito, ou seja, defendemos a Análise Jurídica da Economia ou, na expressão de Pietro Perlingieri (…) a leitura jurídica da economia.” (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 197).

A Análise Jurídica da Economia serve, então, para tentar desvencilhar a boa aplicação e junção destas ciências dos obstáculos envolvendo a sua união, alguns deles tratados ao longo deste artigo, como as dificuldades de envolver a AED em questões precipuamente sobre justiça. É certo que em algumas situações, a escolha mais eficiente ou mais útil, como propugna a AED, pode não ser a mais justa. A escolha mais eficiente pode deixar de lado a atenção necessária ao respeito pelos direitos humanos, por exemplo; “daí a necessidade da análise jurídica da economia para realização da justiça distributiva e da solidariedade por meio da aplicação do regramento jurídico de forma a realizar uma economia que respeite o meio ambiente e os direitos humanos”. (PARREIRA, L.; BENACCHIO, 2018, p. 195, com base em PERLINGIERI, 2003, p. 278).

6. CONCLUSÃO

Se a racionalidade humana fosse utilizada primordialmente com objetivos de desenvolvimento humano holístico e cooperativo, muito provavelmente não ter-se-ia cabimento qualquer discussão para refletir os rumos da nação humana na sustentação saudável e pujante de sua espécie. Seriam desnecessários esforços neste sentido, uma vez translúcido que a luta genuína de todos em prol deste bem geral e harmônico não deixaria espaço para tanto.

É cristalino que tal racionalidade, quando aplicada de maneira individual e buscando os próprios interesses, não propicia tamanhas benesses; é nesta perspectiva micro onde se prenominam as capacidades mais eloquentes da AED mostrar seu valor. De fato, não são todas as questões inerentes ao Direito que carecem de uma análise elevada ao nível macro, mas são para estas que se faz profícua e salutar a utilização da AED, efetivamente e quando factível.

Tal não é possível de se admitir para questões sensíveis à própria dignidade da vida, relacionadas, por exemplo, aos direitos humanos, às desigualdades sociais, a questões religiosas e morais, que atingem o âmago da existência social ou que nos caracteriza como humanos, numa coletividade desejada para ser harmônica, e por que não dizer, feliz.

A felicidade também pode ser ligada a sensações de se ver e de se fazer justiça. E o que seria a justiça? A justiça é o olhar ponderado, crítico e benevolente ao humano, é medir os pesos e as medidas das decisões e fazer o certo, ou pelo menos, tentar fazê-lo, num esforço para utilização de princípios zelosos e afincos à solidariedade e benevolência.

Neste contexto, a Análise Jurídica da Economia surge como alternativa metodológica para a discussão e resolutividade das questões do Direito envolvendo assuntos de necessária ponderação e subjetividade ligada, por exemplo, à atual e hipercomplexa sociedade, multifacetada por natureza. Por meio deste método, pode-se chegar a soluções plurais, arraigadas nos valores estabelecidos pelo Direito e na própria condição humana em suas multifaces.

Por fim, somente o desenvolvimento humano construído sob bases inclusivas, multidimensionais e elevadas ao bem comum ou à chamada “vida boa” é congruente com a justiça, na sua forma mais límpida e abrangente de manifestação.

REFERÊNCIAS

Ajugergs. Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul. Disponível em: <https://www.ajufergs.org.br/noticia_det.php?id=1170>. Acesso em 18/09/2021.

Associação dos Juízes Federais do Brasil. Disponível em: <https://www.ajufe.org.br/imprensa/artigos/14616-analise-economica-do-direito-aplicacao-pelo-supremo-tribunal-federal>. Acesso em 18/09/2021.  

BRANCO, Manuel Couret. Economia política dos direitos humanos: os direitos humanos na era dos mercados. Lisboa, Sílabo, 2012.

CAON, Guilherme Maines. Análise Econômica do Direito: aplicação pelo Supremo Tribunal Federal. 1ª ed. São Paulo: Editora Dialética, 2021.

FGV. Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: <https://dej.fgv.br/noticias/pesquisa-destaca-o-uso-crescente-da-analise-economica-do-direito-pelo-stf>. Acesso em 19/09/2021.

PARREIRA, L.; BENACCHIO, M. Da análise econômica do Direito para a análise jurídica da Economia: a concretização da sustentabilidade. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 179-206, jan./jun. 2012.

SANDEL, Michael J. Justiça: O que é fazer a coisa certa. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SZTAJN, Rachel; ZYLBERSZTAJN, Décio. Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. 6ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

TRF4. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Disponível em <https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=1454>. Acesso em 18/09/2021. ______. Disponível em <https://www2.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/rlp08_cresce-uso-do-consequencialismo-no-supremo-_-politica-_-valor-economico.pdf>. Acesso em   18/09/2021.


[1] Mestre em Gestão de Políticas Públicas e Segurança Social, pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, graduada em Direito, pela Faculdade de Petrolina e em Ciências Econômicas, pela Universidade Estadual de Feira de Santana.

[2] Destaca-se: neste artigo, ao lê-se “Economia”, na verdade, está-se a falar sobre o segmento da ciência que prescinde da Economia Política, ou seja, da análise das relações sociais de produção, distribuição e acumulação de riqueza. É na “Economia” que se sustenta a Análise Econômica do Direito, em consonância com a visão neoclássica da ciência. Ao alijar-se dos aspectos sociais existentes na administração dos recursos escassos, a Economia trabalha detidamente com a frieza dos números e com pressupostos algumas vezes difíceis de ser comprovados na prática. Exemplo de um destes pressupostos: a racionalidade plena dos agentes econômicos ao fazer escolhas no mercado, premissa da Teoria Neoclássica.