IMPOSSIBILIDADE DE QUALIFICAÇÃO DA MULTA DE OFÍCIO (ART. 44, §1º, DA LEI 9.430/96) EM QUESTÕES DE RELEVANTE CONTROVÉRSIA JURÍDICA
1 de dezembro de 2023IMPOSSIBILITY OF IMPOSITION OF THE QUALIFIED PENALTY (ARTICLE 44, §1º, OF LAW 9,430/96) TO MATTERS OF RELEVANT LEGAL CONTROVERSY
Artigo submetido em 5 de novembro de 2023
Artigo aprovado em 16 de novembro de 2023
Artigo publicado em 1 de dezembro de 2023
Cognitio Juris Volume 13 – Número 51 – Dezembro de 2023 ISSN 2236-3009 |
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Autor(es): Afonso Augusto Bersan de Andrade[1] |
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RESUMO: Este artigo aborda duas questões centrais: (i) se a existência de controvérsia sobre a ilicitude de uma conduta impede a aplicação de multa qualificada e (ii) qual é a natureza dessa controvérsia. O presente estudo faz incursão no Direito Penal e no Direito Tributário e analisa os conceitos de “dolo” incorporados por cada um desses ramos do direito. Conclui, enfim, que a aplicação da penalidade qualificada prevista pelo art. 44, §1º, da Lei 9.430/96 exige que o agente tenha ciência da ilicitude de sua conduta. Além disso, demonstra-se que, em caso de relevante controvérsia jurídica sobre a matéria, a aplicação da referida penalidade é indevida.
Palavras-chave: fraude, sonegação, dolo.
ABSTRACT: This article addresses two central questions: (i) whether the existence of controversy regarding the unlawfulness of an act prevents the application of the qualified penalty, and (ii) what is the nature of this controversy. The present study delves into Criminal Law and Tax Law, examining the concepts of “willful misconduct” incorporated by each of these legal branches. It ultimately concludes that the application of the qualified penalty provided for in Article 44, §1, of Law 9,430/96 requires the agent to be aware of the unlawfulness of their conduct. Furthermore, it demonstrates that in the case of significant legal controversy on the matter, the application of the aforementioned penalty is inappropriate.
Key-words: fraud, sham, willful misconduct.
I. INTRODUÇÃO
Não há novidade em afirmar que a interpretação da legislação tributária brasileira é desafiadora. A grande litigiosidade do sistema, porém, tem como vantagem a existência de precedentes administrativos e judiciais que, embora muitas vezes não representem entendimentos consolidados, são capazes de proporcionar orientação aos contribuintes quanto à interpretação dessa complexa legislação tributária.
Contudo, a jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”) passou por mudança significativa em sua postura na análise de planejamentos tributários levados a cabo pelos contribuintes. De uma postura bastante formalista, que se voltava à verificação da regularidade formal dos atos praticados pelos contribuintes, passou a corte a adotar postura que se pode dizer substancialista. Operações que nas décadas de 2000 e 2010 eram reiteradamente validadas pelo CARF passaram a ser, sobretudo nos últimos anos, objeto de posicionamentos mais restritivos e que, por uma abordagem assim dita substancialista, tendem a rejeitar os efeitos fiscais de negócios jurídicos validamente celebrados pelos contribuintes.
Os planejamentos tributários são frequentemente elaborados e implementados para que funcionem e gerem economias fiscais no longo prazo. Assim, não é incomum que proporcionem reduções de tributos em lustros ou décadas subsequentes. Além disso, dispõe o fisco de prazo de cinco (ou seis) anos para realização do lançamento de ofício, o que, combinado com o próprio tempo para julgamento de processos administrativos e judiciais, protrai no tempo a exposição dos contribuintes ao risco de lavratura de Auto de Infração.
O resultado dessa mecânica é que planejamentos tributários elaborados e implementados quando a jurisprudência adotava abordagem mais permissiva vêm sendo julgados, sobretudo em esfera administrativa, sob abordagem mais restritiva. Os contribuintes são verdadeiramente surpreendidos pelas cobranças e, evidentemente, pelos julgamentos a eles desfavoráveis no âmbito do CARF quanto a matérias que, quando da implementação das estruturas planejadas, eram unanimemente referendadas pelo tribunal administrativo.
A temática do planejamento tributário caminha lado a lado com os conceitos de elisão, elusão e evasão. Quando o fisco considera ter havido “evasão”, não raro aplica a multa qualificada prevista pelo art. 44, §1º, da Lei 9.430/96, com sua gravosa alíquota de 150% – reduzida para 100% Lei 14.689/2023. Em síntese, não bastasse a surpresa de receber a cobrança do tributo, vê-se o contribuinte diante de penalidade que excede o próprio valor do tributo cobrado; e, mais grave, quanto a operações que ocorreram há muitos anos, quando a orientação geral dos tribunais era diversa. Não é de se descartar a possibilidade de que isso ocorra, também, quanto a operações que hoje são admitidas pelas autoridades fiscais e pelos precedentes administrativos e judiciais. É urgente, portanto, que se discuta a possibilidade de aplicação da multa qualificada em casos como esses.
O Direito brasileiro contempla princípios e regras que servem ao afastamento das penalidades em casos como esses. Dentre eles, destaca-se os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança; a vedação à cobrança de multas quando o contribuinte segue norma complementar (art. 100, parágrafo único, do Código Tributário Nacional – “CTN”), a regra de interpretação in dubio pro reo quanto à cominação de penalidades nos termos do art. 112 do CTN e, ainda, o recém introduzido art. 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Contudo, esses princípios e regras, ainda que suficientes ao afastamento da aplicação de penalidades em muitos casos, não serão objeto deste artigo.
Este artigo pretende analisar o elemento subjetivo da norma construída a partir do art. 44, §1º, da Lei 9.430/96 para verificar se a existência de controvérsia, sobretudo jurisprudencial, quanto à licitude da conduta praticada pelo contribuinte elide o dolo e, portanto, a aplicação da multa qualificada. Iniciaremos esse esforço pela construção da regra matriz de incidência da penalidade, para, em seguida, passar à investigação da natureza e de definição própria do “dolo” a que se refere, indiretamente, o art. 44, §1º, da Lei 9.430/96. Por fim, verificaremos se o “dolo” exige a consciência da ilicitude da conduta e, se não exigir, se se pode aplicar, em âmbito tributário, a doutrina do “erro de proibição”, desenvolvida na seara penal e finalmente cristalizada no art. 21 do atual Código Penal.
Ao fim, as conclusões alcançadas na análise empreendida serão confrontadas com as seguintes questões: (i) a existência de controvérsia sobre a ilicitude da conduta afasta a aplicação da multa qualificada? e (ii) se sim, o que se deve entender por controvérsia?
II. A REGRA MATRIZ DE INCIDÊNCIA DA MULTA QUALIFICADA
Em sua Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen descreve o Direito como uma ordem normativa que opera por meio de princípio análogo ao princípio da causalidade que opera nas ciências naturais[2]. Aduz o autor que as proposições jurídicas são aplicadas via princípio de “imputação”, que descreve uma relação de dever-ser entre uma hipótese abstrata e uma dada consequência jurídica[3]. A ocorrência da consequência jurídica não é causal, na medida em que não é automática como a queda dos corpos no mundo natural, mas, sim, dependente de um ato humano por meio do qual é aplicada[4]. Distingue-se, assim, o “ser” do “dever-ser”. O cientista do Direito é capaz apenas de dizer aquilo que deve ser, sendo incapaz de afirmar aquilo que é.
As normas jurídicas exprimem sempre um comando, permissão ou atribuição[5] e, nesse mister, adquirem sempre idêntica estrutura sintática. Para que isso se constate, é importante ter que texto e norma não se confundem: texto é apenas suporte físico a partir do qual o intérprete constrói norma jurídica[6]. Paulo de Barros Carvalho ressalta que forma e função da linguagem empregada podem não coincidir[7] e é o próprio Hans Kelsen quem dá o exemplo de lei penal de acordo com a qual “o furto será punido com pena de prisão”[8]. Embora assuma forma declarativa ou descritiva, empregando o verbo “ser”, a norma jurídica a ser construída com base nesse texto operará no plano deôntico, isto é, será um “dever-ser”: aquele que furta deve ser punido com pena de prisão. É em razão dessa natureza prescritiva da norma jurídica que sua sintaxe sempre repetirá a fórmula “se A, então deve ser B”. A essa característica repetitiva, Paulo de Barros Carvalho chama “homogeneidade sintática das regras do direito positivo”[9].
A homogeneidade sintática das regras de direito positivo permite a elaboração de “padrões” a serem preenchidos por proposições às quais se atribua normatividade. Justamente por serem estruturalmente idênticas é que se torna factível a formulação lógica do que se deve entender por norma jurídica. Tomando-se norma jurídica qualquer, é possível abstrair toda sua carga semântica, identificar seus sujeitos, verbos e predicados e, dessa forma, identificar com exatidão sua sintaxe.
A análise sintática da norma jurídica, por ignorar a semântica e a pragmática de sua aplicação, permite a visualização clara do fenômeno da incidência. Em matéria tributária, trata-se de assunto vastamente tratado por Paulo de Barros Carvalho, que identificou, na norma de incidência jurídico-tributária, um antecedente e um consequente[10]. O antecedente, composto por um elemento material, um elemento temporal e um elemento espacial, dá a hipótese de incidência do tributo[11]. Já o consequente, composto por um elemento quantitativo e um elemento pessoal, dá a relação jurídica que se instaura a partir da verificação do antecedente[12].
Mas a pretensão de descrever uma regra matriz de incidência não se esgota na norma jurídica que institui tributo. Ao contrário, é pretensão possível para qualquer norma jurídica, em vista da já citada homogeneidade sintática. Se toda norma jurídica se estrutura em torno de um “se” (antecedente) e um “então” (consequente), então se pode construir uma regra matriz de incidência para toda norma jurídica, inclusive das normas jurídicas secundárias. Como ensina Paulo de Barros Carvalho[13], são normas jurídicas secundárias aquelas que estabelecem sanções pelo descumprimento de uma outra norma, primária.
De acordo com Florence Haret[14], a “incidência das multas em nada difere das de quaisquer outras normas jurídicas tributárias”. Robson Maia Lins e Pablo Gurgel Fernandes apontam, porém, que a homogeneidade sintática diz respeito apenas à estrutura bimembre da norma jurídica[15], que possui um antecedente e um consequente. Nesse sentido, alertam que “nada impede, entretanto, que eventualmente sejam acrescidos, suprimidos, complementados e/ou reduzidos certos critérios de suas proposições”[16].
Em linha com o pensamento dos autores, a construção da norma jurídica secundária pode ter de colher outros elementos da realidade fática para, juridicizando-os, cominar a penalidade correta. A norma que institui a penalidade não necessariamente repete os elementos da norma primária. Diante disso, passamos a dissecar analiticamente a norma jurídica contida no art. 44, §1º, da Lei 9.430/96. Iniciaremos a análise pelos elementos mais simples para, ao fim, analisar o elemento material que é o verdadeiro escopo deste artigo.
O consequente da norma construída a partir do art. 44, §1º, da Lei 9.430/96 contempla um elemento pessoal e um elemento quantitativo. Seu elemento pessoal revela que há um sujeito ativo, a União Federal, e um sujeito passivo, o contribuinte ou responsável[17], do vínculo jurídico instalado a partir da realização do antecedente. Já no elemento quantitativo, há uma base de cálculo, que corresponde ao valor do tributo lançado de ofício, e uma alíquota de 150%.
Em seu antecedente, identifica-se necessariamente um elemento material, um elemento temporal e um elemento espacial.
Na lição de Paulo de Barros Carvalho, distinguem-se tempo do fato e tempo no fato[18]. Tempo do fato é o átimo em que o fato ingressa no mundo jurídico, inclusive por via de ato administrativo[19]. Tempo no fato é a “marca de tempo a que se refere o enunciado fático”[20]. Não obstante, trata-se de distinção de difícil aplicação à norma construída a partir do art. 44, §1º, da Lei 9.430/96 porque, no caso, o “enunciado fático” se refere ao próprio ato administrativo por meio do qual o fato ingressa no mundo jurídico: o lançamento de ofício. Contudo, a fim de se preservar a utilidade da distinção, pode-se aplicá-la da seguinte forma: é tempo do fato o lançamento de ofício e é tempo no fato o átimo em que realizada a conduta do contribuinte pela qual é penalizado.
O autor aplica a mesma distinção ao elemento espacial[21], do que resulta o mesmo inconveniente acima mencionado quando se analisa a penalidade instituída pelo art. 44, §1º, da Lei 9.430/96. Adotamos, portanto, solução similar e referimo-nos a lugar do fato quando tratando do lançamento de ofício e lugar no fato quando tratamos da conduta apenada. Assim, o lugar do fato será sempre o território brasileiro e o lugar no fato será irrelevante. Com efeito, pode o contribuinte realizar as condutas previstas no art. 71, 72 e 73 da Lei 4.502/64 em qualquer lugar, embora seja natural esperar que essa conduta se realize em território brasileiro.
Quanto ao elemento material, ensina Paulo de Barros Carvalho que se trata sempre de uma “ação humana expressa por verbo no tempo pretérito, indicando um comportamento passado, que já se consolidou no tempo e, portanto, imutável ficou” [22]. Continua afirmando que o verbo deve ter “predicação incompleta”, com isso indicando que o verbo deve exigir complemento[23].
A análise do art. 44, §1º, da Lei 9.430/96 sob essa definição incorre em problemática similar àquela acima analisada porquanto há um elemento material imediato, que é o lançamento de ofício, e um elemento material mediato, que é a conduta do contribuinte apenado. Interessa, para o presente artigo, esse elemento material mediato.
Mesmo com a distinção entre elementos materiais imediato e mediato, permanece a problemática quanto ao conteúdo jurídico do núcleo de significação do elemento material mediato. O art. 44, §1º, da Lei 9.430/96, via remissão aos arts. 71, 72 e 73 da Lei 4.502/64, elege a sonegação, a fraude e o conluio como elementos materiais mediatos. Considerando que o conluio é a simples associação para cometimento da sonegação ou da fraude, ele não será objeto de análise neste artigo.
O art. 71 da Lei 4.502/64 define a sonegação como (grifos nossos):
(…) tôda (sic) ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, o conhecimento por parte da autoridade fazendária:
I – da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias materiais;
II – das condições pessoais de contribuinte, suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente.
Por sua vez, o art. 72 da mesma lei define a fraude como (grifos nossos):
(…) toda (sic) ação ou omissão dolosa tendente a impedir ou retardar, total ou parcialmente, a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária principal, ou a excluir ou modificar as suas características essenciais, de modo a reduzir o montante do impôsto devido a evitar ou diferir o seu pagamento.
Tanto a fraude quanto a sonegação, portanto, apenas restam caracterizadas se há ação ou omissão dolosa por parte do contribuinte. Há aí um elemento subjetivo que não se faz presente na norma de incidência tributária. Como aponta Luís Eduardo Schoueri, o tributo é compulsório e independe da vontade do particular[24]. Verificando-se o “fato gerador” da obrigação tributária, há obrigação de pagar o tributo. Assim é que, como explica o autor, a incidência tributária se baseia em elementos exclusivamente objetivos[25]. Quando se trata de fraude ou sonegação, porém, os arts. 71 e 72 evidenciam a necessidade de que a conduta seja dolosa para que restem caracterizadas.
Em análise da regra matriz da norma de incidência penal do crime de sonegação fiscal, Robson Maia Lins e Pablo Gurgel Fernandes, tomando o já citado escólio de Paulo de Barros Carvalho[26], acrescentam elemento subjetivo – o dolo – ao critério material da norma[27]. Assim, passa o critério material a conter um verbo, um complemento e um advérbio que o qualifica: deve a conduta descrita pelo verbo ser dolosa, não bastando que dela decorra resultado ilícito. Assim como a regra matriz de incidência penal de que tratam os autores, a regra matriz de incidência da penalidade prevista pelo art. 44, §1º, da Lei 9.430/96 também contempla, em seu elemento material, um elemento subjetivo, que é o dolo. E é o dolo, enquanto elemento subjetivo, que permite a qualificação da multa de ofício que ora se analisa.
Dolo não é, porém, conceito de acepção única no Direito brasileiro. O tópico a seguir investiga a acepção incorporada pelos arts. 71 e 72 da Lei 4.502/64.
III. O CONCEITO DE DOLO INCORPORADO PELOS ARTS. 71 E 72 DA LEI 4.502/64: DOLO CIVIL OU DOLO PENAL
Os arts. 71 e 72 da Lei 4.502/64 se referem ao dolo como elemento necessário para caracterização da fraude e da sonegação. Não se trata do único caso em que a palavra é empregada pela legislação tributária: o próprio CTN, em seu art. 149, VII, determina a realização de lançamento de ofício quando constatado que o contribuinte, ou terceiro em benefício dele, agiu com dolo, fraude ou simulação.
A legislação tributária, porém, não traz definição expressa do que seja dolo, fraude ou simulação. Eduardo Madeira e Luiz Carlos de Andrade Jr. analisam o dispositivo e verificam que, no caso da simulação, não há qualquer “pista” de que o legislador tributário tenha adotado conceito diverso daquele presente na lei civil[28]. Assim, amparando-se em lições interpretativas de Karl Larenz, concluem os autores que o conceito de simulação a que se refere o art. 149, VII, do CTN deve ser investigado no âmbito do Direito Privado[29].
Quando se passa à análise do “dolo”, porém, a equivocidade de sentidos em que o termo é empregado no Direito brasileiro impede a incorporação prima facie do conceito advindo seja do Direito Privado seja do Direito Penal. Daí a necessidade de, primeiramente, verificar-se os conceitos de dolo em um e outro ramo do Direito para somente então investigar a qual deles faz referência a legislação tributária – não se descartando, inclusive, a possibilidade de a legislação tributária empregá-los com sentidos diferentes em diferentes contextos.
Em âmbito civil, Pontes de Miranda define o dolo como o “ato, positivo ou negativo, com que, conscientemente, se induz, se mantém, ou se confirma outrem em representação errônea” [30]. Em complemento, aduz o autor que “o engano [causado pelo dolo] deve ter sido tal que, se não tivesse havido, a manifestação de vontade da outra pessoa não teria ocorrido” [31]. Trata-se de malícia, portanto, por meio da qual se induz outra pessoa a exprimir vontade que de outro modo não exprimiria. Daí a constatação de Paulo Ayres Barreto de que o dolo se distingue da fraude porque esta se consuma “sem intervenção pessoal do prejudicado” [32].
Da lição de Paulo Ayres Barreto, depreende-se que o dolo de que trata o art. 149, VII, do CTN é o “dolo civil” [33]. Essa leitura se confirma por interpretação sistemática da legislação. Nos termos do art. 147 do Código Civil de 1916, em vigor quando da elaboração do CTN, eram anuláveis os negócios jurídicos por vício resultante de erro, dolo, coação, simulação ou fraude. O art. 149, VII, do CTN simplesmente incorporou as figuras mencionadas no art. 147 do Código Civil à época vigente e que indicavam malícia (o que exclui o erro) e que eram de ocorrência possível em âmbito tributário (o que exclui a coação).
O “dolo penal”, por sua vez, encontra definição indireta no próprio Código Penal brasileiro, cujo art. 18 estatui estar caracterizado o crime doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.
Em análise dos arts. 71 e 72 da Lei 4.502/64, João Francisco Bianco[34] conclui que o dolo a que se referem os dispositivos é o “dolo penal”. Em relação ao art. 71, afirma o autor que “dolo” e “fraude” são institutos diversos em suas acepções de Direito Privado, de modo que um não serviria à qualificação do outro. Já quanto ao art. 72, afirma que a sonegação já concentra em si a malícia e a má-fé próprias do dolo em sua acepção civil, de modo que qualificá-la como dolosa, sob a ótica do Direito Privado, seria redundante[35]. Em sentido semelhante, Robson Maia Lins e Maria Ângela Lopes Paulino Padilha afirmam que a multa qualificada pune apenas “condutas que exigem a vontade consciente (dolo) na prática da ilicitude” [36], também reconhecendo que os arts. 71 e 72 da Lei 4.502/64 se referem ao dolo em seu sentido penal e não em seu sentido civil.
A natureza penal do dolo a que se referem os arts. 71 e 72 da Lei 4.502/64 pode ser também verificada por meio de procedimento similar àquele empregado quando verificamos a natureza civil do dolo a que se refere o art. 149, VII, do CTN. Pode-se investigar os demais termos empregados pelos arts. 71 e 72 da Lei 4.502/64 para, com base no contexto por eles criado, identificar se se está a tratar de matéria penal ou civil.
A sonegação fiscal é figura de direito penal, como se observa do art. 1º da Lei 4.729/65, que a define como crime. Muito embora o Código Civil trate da “fraude contra credores”, a fraude em si é instituto tipicamente criminal, como se depreende do Capítulo VI do Código Penal, intitulado “do estelionato e outras fraudes”. A natureza dolosa da sonegação e fraude fiscais é, assim, integrante do tipo penal que descreve as condutas criminalizadas. Daí os arts. 71 e 72 da Lei 4.502/64 exigirem o dolo para configuração da sonegação e da fraude.
Fixada a origem do dolo a que se referem os dispositivos, passamos a analisar o conceito de dolo em seu sentido penal.
IV. O DOLO PENAL E SUA APLICAÇÃO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA
Como já exposto acima, a figura do dolo é definida pelo art. 18 do Código Penal: é dolosa uma conduta “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. A definição é posta em termos simples, mas esconde enorme complexidade – que não será esgotada neste breve artigo. Pretende-se, aqui, ressaltar seus aspectos que se relacionem ao objeto deste artigo: o afastamento da qualificação da multa de ofício quando há dúvidas sobre a licitude de determinado comportamento.
João Victor Santos Guedes afirma que, em âmbito penal, “dolo é a consciência e vontade de realização dos elementos objetivos do tipo”[37]. Prossegue o autor explicando ser necessária a presença de um “elemento cognitivo (conhecimento da ação típica)” e um “elemento volitivo (vontade de realizar a ação típica)”[38]. Em idêntico sentido, Leonardo Aguirra Andrade identifica o dolo como “consciência e vontade que conduz a linha de raciocínio do indivíduo que realiza a conduta descrita no tipo penal”[39].
Em relação ao elemento cognitivo, Paulo César Busato explica que a caracterização do dolo exige que o sujeito tenha ciência de que se realiza determinado tipo de ação ou omissão[40]. Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli afirmam que esse conhecimento deve se dar com relação ao resultado pretendido[41]. De acordo com os autores, o conhecimento não necessariamente deve abranger a antijuridicidade da conduta[42]. Já com relação ao elemento volitivo, destaca Luiz Regis Prado tratar-se de um “resultado querido”, devendo haver determinadas consequências desejadas pelo agente quando da prática da conduta[43].
Assim, o dolo, segundo a moderna doutrina[44], resta caracterizado quando o agente tem conhecimento de que sua conduta tem como consequência o resultado ilícito – ainda que não saiba dessa ilicitude – e, ainda, deseja o resultado ilícito. Emprega, portanto, os meios que entende necessários ao alcance desse resultado, visto que conhece o nexo causal entre sua conduta e o resultado vedado pela norma.
A adoção dessa definição de dolo associada a uma interpretação literal do art. 71 e, em especial, do art. 72 da Lei 4.502/64 resulta, porém, em inafastável inconstitucionalidade. Com efeito, os dispositivos tornariam ilícita toda ação ou omissão tendente a reduzir ou diferir o pagamento de tributo, seja por meio da burla ao fato gerador da obrigação tributária, seja por meio da colocação de obstáculos ao conhecimento desse fato gerador pela autoridade fazendária.
Se o dolo restar caracterizado sempre que os contribuintes desejarem e agirem em prol desses resultados (que sequer precisam se materializar, visto que as normas falam em comportamento a eles “tendente”), impõe-se grave e inconstitucional limite à liberdade de auto-organização dos particulares. O planejamento tributário é, por sua própria natureza, acompanhado de dolo se este é definido pelo conhecimento e vontade do resultado da conduta. Quando planeja, o contribuinte tem em mente um resultado desejado (a economia fiscal) e elege os meios para que seja ele alcançado.
O direito dos particulares ao planejamento tributário, no que se inclui a busca deliberada pela economia fiscal, é unanimemente reconhecido na doutrina. Nesse sentido, Gerd Willi Rothmann afirma que “o planejamento tributário constitui uma reação legítima e obrigatória do contribuinte em face à legislação caótica e carga fiscal escorchante”[45]. Além disso, o Supremo Tribunal Federal já decidiu em favor do direito constitucional dos contribuintes de buscar a economia tributária, como se lê do voto da Min. Cármen Lúcia na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.446/DF[46]. Os arts. 71 e 72 da Lei 4.502/64 não podem, portanto, proibir toda e qualquer conduta praticada com finalidade de economia fiscal, devendo seus comandos ser interpretados com ponderação.
A ponderação necessária à adequação constitucional do dispositivo advém, precisamente, do advérbio dolosamente. É ele que incorpora às definições de fraude e sonegação dadas pelos arts. 71 e 72 da Lei 4.502/64 seu elemento de ilicitude consciente. A mera atuação do particular para reduzir sua carga tributária, ainda que conduzida única e exclusivamente com essa intenção, não pode ser considerada “dolosa” para fins de aplicação desses dispositivos. Não pode, portanto, ser considerada fraude ou sonegação. Entendimento contrário, como já dito, conduziria à inconstitucional vedação absoluta do planejamento tributário.
Como já dito, a moderna doutrina penal considera o dolo como integrante do tipo e, sob perspectiva finalista, remove de seu âmago a consciência da ilicitude da conduta. Basta, para a moderna doutrina, que o agente conheça o nexo causal entre sua conduta e o resultado ilícito e que aja deliberadamente nesse sentido. A Lei 4.502/64, porém, data de 1964, de modo que é possível que o conceito de dolo empregado pela norma não corresponda àquele hodiernamente empregado pelos estudiosos do Direito Penal – o que de fato ocorre.
Escrevendo em 1967, Aníbal Bruno afirmava que “no dolo, o indivíduo sabe o que quer e decide realizá-lo, consciente de que seu querer é ilícito”[47]. Prossegue, então, afirmando que o dolo é característica de “um fato punível, que o agente pratica sabendo ser o mesmo ilícito”[48]. Mais adiante, assim escreve (grifos nossos)[49]:
No dolo devem reunir-se os dois momentos, da consciência e da vontade: a) consciência do ato e do resultado; b) consciência da relação causal entre ambos, isto é, da relação que prende o resultado como efeito ao ato como a sua causa; c) consciência da ilicitude do comportamento do agente e, finalmente, d) vontade de praticar o ato e alcançar o resultado.
Embora traga, em nota de rodapé, a existência de discussão acerca da integração do dolo ao tipo, nota-se que o autor, à época da edição da Lei 4.502/64, não via dolo onde não houvesse também consciência da ilicitude. Em sentido semelhante caminha Nelson Hungria, para quem “o dolo não é só representação e vontade do resultado antijurídico: é, também, consciência de que se age contrariamente ao direito, ou, mais concisamente, consciência da injuridicidade” [50].
A citação acima de Nelson Hungria foi extraída de reedição de sua obra “Comentários ao Código Penal”, atualizada por Heleno Cláudio Fragoso em 1977. Em seus comentários, o atualizador reconhece que, já em 1977, o dolo se deslocara ao tipo e a consciência da injuridicidade da conduta restaria relegada à análise da culpabilidade do agente[51].
Disso se depreende que, na década de 1960, quando editada a Lei 4.506/64, o sentido técnico-jurídico do termo “dolo” abrangia, sim, a consciência da ilicitude do ato. Embora tenha se alterado na década seguinte, é esse o sentido técnico-jurídico incorporado pela Lei 4.502/64, de modo que fraude ou sonegação só comete aquele que age consciente da ilicitude de sua conduta.
Ainda que se sustente espécie de evolução semântica do termo “dolo” empregado pela Lei 4.506/64, em uma interpretação pretensamente “dinâmica”, o novo sentido a ele atribuído não pode se revelar incongruente com o restante do ordenamento jurídico. Na lição de Karl Larenz, “entre várias interpretações possíveis segundo o sentido literal, deve por isso ter prevalência aquela que possibilita a garantia de concordância material com outra disposição”[52]. Sendo possível entender-se dolo ou como a simples ação dirigida a uma finalidade ilícita ou como a ação dirigida a uma finalidade sabidamente ilícita, deve-se optar pela última opção, porque a primeira não é, como já demonstrado, compatível com a Constituição Federal.
Desse modo, ausente a consciência da ilicitude da conduta realizada pelo contribuinte, resta impossibilitada aplicação da multa prevista pelo art. 44, §1º, da Lei 9.430/96, por não agir o contribuinte de modo doloso, ainda que aja de forma dirigida à obtenção de uma vantagem tributária. Ausente, na hipótese, o elemento subjetivo do critério material de incidência da regra matriz que descreve a incidência da sanção.
V. A AUSÊNCIA DE CULPABILIDADE CAUSADA PELA IGNORÂNCIA DA ILICITUDE DA CONDUTA
No tópico acima, viu-se que os estudiosos do Direito Penal deixaram de considerar a consciência da ilicitude como integrante do dolo. Isso não significa, porém, que a consciência da ilicitude da conduta tenha deixado de ser levada em consideração na análise da configuração e da punibilidade do ilícito. Acompanhando desenvolvimento doutrinário a esse respeito, o Código Penal brasileiro foi alterado, em 1984, para que seu art. 21 passasse a prever que o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, pode diminui-la.
Como explica Guilherme de Souza Nucci, trata-se do erro de proibição, que atua como excludente de ilicitude[53]. Assim, demonstrado que o agente não tinha conhecimento da ilicitude de sua conduta, não há culpabilidade e, portanto, não há punição, desde que essa ignorância seja considerada escusável. O conceito de “escusável” é objeto de intensos debates que não serão objeto deste artigo; espera-se, aqui, apenas demonstrar que a moderna teoria do Direito Penal não deixa de “perdoar” aquele que comete ato merecedor de repúdio, mas que não o faz por mal. E, mais ainda, a legislação brasileira se adaptou para acompanhar o posicionamento doutrinário.
Não há previsão legal expressa para que se aplique a disciplina do “erro de proibição” também em matéria tributária. No entanto, a doutrina do “erro de proibição” deve ser aplicada à multa estabelecida pelo art. 44, §1º, da Lei 9.430/96 justamente porque a penalidade é intrinsicamente relacionada à seara penal. Como já demonstrado acima, o “dolo” incorporado pelo dispositivo é aquele advindo do Direito Penal e, portanto, sob essa ótica deve ser analisado.
Desse modo, mesmo que se considere que o “dolo” a que se referem os arts. 71 e 72 da Lei 4.502/64 não exige, para sua caracterização, a consciência da ilicitude da conduta, dada a aproximação entre o Direito Tributário Penal e o Direito Penal Tributário na hipótese, a doutrina do “erro de proibição” não pode ser ignorada. Como já demonstrado acima, o art. 44, §1º, da Lei 9.430/96 destoa do comando do art. 136 do CTN ao incluir, no critério material da regra de incidência da penalidade majorada, elemento subjetivo. Na ausência de culpabilidade do agente, não há satisfação do elemento subjetivo a disparar a imposição do consequente normativo do art. 44, §1º, da Lei 9.430/96.
João Victor Guedes Santos sustenta a aplicação da doutrina do erro de proibição em matéria tributária porque “não há que se falar em dolo quando (…) não se tem consciência de que a conduta adotada viola a correta interpretação que deve ser conferida a preceitos legais”[54]. O autor se orienta, nesse ponto, pelo entendimento em voga à época da edição da Lei 4.502/64.
Nesse sentido, o “dolo”, tal qual referenciado pela Lei 4.502/64, é figura que incorpora a moderna culpabilidade. Em outras palavras, o dolo de que trata a Lei 4.502/64 exige que o indivíduo que pratica a conduta seja efetivamente culpável pelo ilícito; não o sendo, não há dolo.
E é justamente aí que atua a doutrina do “erro de proibição”, que mutila a culpabilidade do indivíduo. Havendo erro de proibição, não pode ser culpável e, não sendo culpável, excluída está a ilicitude. É irrelevante, nessa seara, se os modernos estudiosos do “dolo”, da “culpabilidade” e do “erro de proibição” consideram que este elimina antijuridicidade da conduta ou o dolo. O que importa é que, qualquer que seja o caso, trata-se de conduta que não pode ser punida por lhe faltar um dos elementos subjetivos que enseja a imposição penal.
VI. A EXISTÊNCIA DE RELEVANTE CONTROVÉRSIA COMO CAUSA DE AFASTAMENTO DA MULTA QUALIFICADA
Nos tópicos acima, demonstrou-se que a fraude e a sonegação somente se caracterizam se há, por parte do contribuinte, consciência acerca da ilicitude da conduta praticada. Caso contrário, falta-lhe dolo ou, como posto pelas mais modernas teorias dos penalistas, há erro de proibição que justifica o afastamento da punibilidade. Cumpre, então, ver o que significa ter “consciência da ilicitude” da conduta para, então, concluir se a existência de relevante controvérsia sobre o tema é capaz de afastar essa ilicitude.
Vale, para tanto, consultar o entendimento de Alaor Leite:
Consciência do injusto é a consciência que possui o agente, antes ou durante o seu atuar, de que o fato que pretende realizar é certamente proibido pela ordem jurídica. Consciência do injusto é consciência segura do injusto.[55]
O elemento definidor da consciência, portanto, é a certeza de que o comportamento é proibido pela ordem jurídica. É, no dizer do autor, “consciência segura do injusto”. Na mesma obra, afirma o autor que quando parece pouco clara a situação jurídica, surge “norma secundária de conteúdo ‘informe-se’”. Isso significa que, havendo dúvida na interpretação da norma jurídica, surge, para o agente, o dever de buscar informação acerca da existência ou não de uma proibição. Se o autor busca a informação, identifica a existência de uma proibição e ainda assim pratica o ato ilícito, há dolo e não há qualquer excludente de ilicitude. Por outro lado, se não se informar e praticar a conduta, continuaria a haver dolo (na moderna teoria do Direito Penal), mas haveria erro de proibição não escusável, porquanto violada a norma secundária mencionada pelo autor.
Mas é certo que haverá o caso em que a busca pela informação não será suficiente para eliminar a dúvida sobre a proibição. Não haverá aí a certeza exigida para descaracterização do erro de proibição ou para caracterização do dolo no sentido em que empregado pelos arts. 71 e 72 da Lei 4.502/64. Ainda que, em âmbito penal, se considere que o agente assume risco de incorrer no ilícito, deve-se lembrar da advertência de Maria Ângela Lopes Paulino[56], de que não há espaço, em matéria tributária, para o “dolo eventual”. Assim, a mera assunção de risco não é suficiente para caracterização do dolo.
Nesse sentido, a incerteza sobre a proibição deve afastar a aplicação da multa qualificada de que trata o art. 44, §1º, da Lei 9.430/96.
A existência de um dever de informação na forma como tradicionalmente posta pela doutrina penalista ou por Alaor Leite, no artigo citado acima, é disputável sob a ótica tributária. Contudo, assumindo-a como verdadeira, tem-se que o contribuinte pode, por si próprio ou por meio de assessores especializados, consultar: (i) orientações do fisco sobre o tema; (ii) precedentes judiciais; (iii) precedentes administrativos e (iv) trabalhos científicos publicados.
Na hipótese de o contribuinte realizar essa consulta e identificar opiniões divergentes, demonstrada está a existência de dúvida. Isso não significa que as opiniões identificadas serão necessariamente corretas; mas, havendo divergência interpretativa – sobretudo quando por meio da chamada “interpretação autêntica” – elide-se a certeza necessária à existência de uma “consciência da ilicitude” da conduta.
Especificamente em matéria tributária, há manifestação doutrinária de Leonardo Aguirra de Andrade no sentido de que (i) a existência de dúvida razoável acerca da ilicitude da conduta afasta a caracterização do dolo e (ii) a razoabilidade da dúvida se verifica pela existência de precedentes jurisprudenciais ou manifestações do fisco que considerem lícita a conduta[57].
É importante, nesse sentido, a posição de Alaor Leite quando afirma que é “o Estado quem define o limite da proibição através da legislação e da jurisprudência, e caso o próprio Estado não consiga emitir ex ante uma ordem clara de comportamento ao sujeito, tampouco pode puni-lo ex post”[58]. As manifestações do fisco e jurisprudenciais são manifestações do Estado. Se o Estado ainda não se decidiu acerca da licitude ou ilicitude de determinada conduta, não pode ele exigir a posteriori que o contribuinte tome por si essa decisão.
VII. CONCLUSÃO
Duas questões orientaram este artigo: (i) a existência de controvérsia sobre a ilicitude da conduta afasta a aplicação da multa qualificada? e (ii) se sim, o que se deve entender por controvérsia?
Demonstrou-se acima que a fraude e a sonegação exigem o dolo em seu sentido penal e que, na conceituação do dolo incorporada pela Lei 4.502/64, exige-se a consciência da ilicitude da conduta para que reste caracterizado. Além disso, concluiu-se que a doutrina do “erro de proibição” tem aplicação em matéria tributária quando esta incorpora elemento subjetivo que legitima a imposição de penalidade. O desconhecimento quanto à ilicitude da conduta, portanto, é causa que mutila o dolo ou, ao menos, elide a culpabilidade do agente.
Se o agente tem dúvida acerca da ilicitude da conduta, busca confirmá-la pelos meios adequados e não identifica resposta conclusiva sobre a questão, só se pode concluir que a dúvida permanece. Se há dúvida, não há consciência da ilicitude e, portanto, não há dolo ou culpabilidade. Afasta-se, com isso, a imposição da multa qualificada de que trata o art. 44, §1º, da Lei 9.430/96. A resposta à primeira questão é, portanto, sim: a existência de controvérsia sobre a ilicitude de dada conduta afasta a aplicação da multa qualificada.
A controvérsia precisa ser relevante para que possa haver afastamento da penalidade pelos fundamentos acima. A existência de intepretação divergente por parte do próprio Estado, por meio da administração pública ou em sua função judicante, exprime relevância suficiente para esse fim. Se nem o próprio Estado tem posição firme sobre o tema, não se pode exigi-la do contribuinte.
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[1] Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (2018). Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2022-2024).
[2] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998, 6ª ed., p. 54.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem, p. 51.
[6] IVO, Gabriel. O Direito e a Inevitabilidade do Cerco da Linguagem. In: CARVALHO, Paulo de Barros (Coord.); CARVALHO, Aurora Tomazini de (Org.). Constructivismo lógico-semântico. São Paulo: Editora Noeses, 2014, p. 73.
[7] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. 6ª ed. São Paulo: Noeses, 2015.
[8] Op. Cit., pp. 5-6. (nota 1)
[9] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. São Paulo: Editora Saraiva, 2012, 9ª ed., p. 109.
[10] Ibidem, p. 116.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem.
[13] Ibidem, p. 47.
[14] HARET, Florence. Fenomenologia de incidência das multas fiscais. In: Revista Tributária das Américas, vol. 10, jul/dez de 2014, p. 171.
[15] LINS, Robson Maia. FERNANDES, Pablo Gurgel. Reflexões acerca da justa causa nos crimes de sonegação fiscal. In Construtivismo lógico-semântico e os diálogos entre teoria e prática. Paulo de Barros Carvalho (Coord.). Priscila de Souza (Org.). São Paulo: Noeses, 2019, p. 1.130.
[16] Ibidem.
[17] A responsabilidade pela multa qualificada é objeto de debates doutrinários relevantes que fogem do escopo deste artigo. Vide: PAULINO, Maria Ângela Lopes. A responsabilidade por infrações no Código Tributário Nacional. In: Revista de Direito Tributário, n. 18. São Paulo: Malheiros e SILVA, Paulo Roberto Coimbra. A responsabilidade pelas infrações tributárias. In: Interesse Público, n. 39, 2006.
[18] Op. Cit., p. 163. (nota 6).
[19] Ibidem.
[20] Ibidem.
[21] Ibidem, p. 164.
[22] Ibidem, p. 161.
[23] Ibidem.
[24] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 142.
[25] Ibidem.
[26] Vide notas 21 e 22.
[27] Op. Cit., p. 1.130 (nota 14).
[28] MADEIRA, Eduardo Santos Arruda; Luiz Carlos de Andrade Jr. Caso Klabin: o “casa e separa” revisto à luz da “técnica da simulação”. In: Revista de Direito Tributário Atual, n. 28. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Tributário, 2012, p. 52.
[29] Ibidem.
[30] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado: Parte Geral. Atual. Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 443, Tomo IV.
[31] Ibidem, p. 446.
[32] BARRETO, Paulo Ayres. Planejamento tributário: limites normativos. São Paulo: Noeses, 2016, p. 170.
[33] Ibidem.
[34] BIANCO, João Francisco. Sonegação, fraude e conluio como hipóteses de agravamento da multa na legislação tributária federal. In: Revista Dialética de Direito Tributário, n. 133. São Paulo: Dialética, 2006, p. 40.
[35] Ibidem, p. 41.
[36] LINS, Robson Maia; PADILHA, Maria Ângela Lopes Paulino. As multas fiscais e a sua graduação à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: Revista de Direito Tributário Contemporâneo, vol. 1, 2016.
[37] GUEDES, João Victor Santos. Em busca de uma civilidade fiscal: a interpretação de dispositivos penais num caos tributário. In: Revista Direito Tributário Atual, n. 23. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Tributário, 2009, p. 254.
[38] Ibidem, p. 255.
[39] ANDRADE, Leonardo Aguirra. A impossibilidade de a Receita Federal aplicar a multa qualificada de 150%. In: Revista Direito Tributário Atual, n. 37. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Tributário, 2017, p. 291.
[40] BUSATO, Paulo Cesar. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 3ª ed., 2017, p. 400.
[41] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 14ª ed., 2021, p. 574.
[42] Ibidem.
[43] PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral (Arts. 1º a 120). Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 886.
[44] SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2021, vol. 1, p. 403.
[45] ROTHMANN, Gerd Willi. Afinal, o planejamento tributário pode ser criminoso? In: PRETO, Raquel Elita Alves (coord. e org.). Tributação brasileira em evolução: estudos em homenagem ao professor Alcides Jorge Costa. São Paulo: IASP, 2015, p. 697.
[46] “A norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada”.
[47] ANÍBAL, Bruno. Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1967, Tomo 2, p. 60.
[48] Ibidem.545
[49] Ibidem, p. 65.
[50] HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978, vol. 1, Tomo 2, p. 143.
[51] Ibidem, pp. 545-546.
[52] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 6ª ed., 1991, p. 458.
[53] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 476.
[54] Op. Cit., p. 256 (nota 36).
[55] LEITE, Alaor. Existem deveres gerais de informação no Direito Penal? Violação de um dever, culpabilidade e evitabilidade do erro de proibição. In: Revista dos Tribunais, vol. 922, 2012, p. 337.
[56] PAULINO, Maria Ângela Lopes. A responsabilidade por infrações no Código Tributário Nacional. In: Revista de Direito Tributário, n. 18. São Paulo: Malheiros, p. 114.
[57] Op. Cit., p. 292 (nota 38).
[58] Op. Cit. (nota 53).