DIREITOS SOCIAIS E ACESSO À JUSTIÇA: REFLEXÃO SOBRE O INTERESSE DE AGIR EM AÇÕES INDIVIDUAIS

DIREITOS SOCIAIS E ACESSO À JUSTIÇA: REFLEXÃO SOBRE O INTERESSE DE AGIR EM AÇÕES INDIVIDUAIS

1 de dezembro de 2021 Off Por Cognitio Juris

SOCIAL-ECONOMIC RIGHTS AND ACCESS TO JUSTICE: REFLECTION ON THE INTEREST IN ACTING IN INDIVIDUAL LAWSUITS

Cognitio Juris
Ano XI – Número 37 – Dezembro de 2021
ISSN 2236-3009
Autores:
Marcos Nassar[1]
Lídia Maria Ribas[2]

Resumo: O artigo objetiva verificar se o acesso individual à justiça é adequado à tutela de direitos sociais mediante alteração das respectivas políticas públicas. Utiliza-se o método hipotético-dedutivo, a partir de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial. A abordagem é pautada pela teoria tridimensional do Direito, de Miguel Reale. Parte-se da análise da complexa cognição judicial necessária à revisão de políticas públicas, que pressupõe a consideração, de um lado, do princípio da igualdade, que está à base dos direitos sociais, e, de outro, em nível macro, da limitação dos recursos públicos disponíveis e das demandas sociais e informações técnicas existentes, num quadro de prioridades orçamentárias cujo norte deve ser dado pelos objetivos constitucionais. Busca-se então demonstrar que o modelo processual individual não se tem mostrado, na prática forense, adequado à revisão de políticas públicas, tanto pela quebra da isonomia, quanto pela falta de estrutura e expertise do Judiciário para chegar, em cada um dos milhares de casos individuais, à necessária visão de conjunto quanto aos impactos na arrecadação e alocação de recursos públicos. Por fim, após apontar-se a adequação do sistema processual coletivo para tais casos, apresentam-se reflexões sobre o interesse processual em demandas individuais, a ser aferido caso a caso, ressalvando-se, todavia, a imposição de tutela individual para as hipóteses em que não há alteração de política pública, mas exigência de prestação delimitada no ordenamento jurídico. Com isso, intenta-se resguardar a inafastabilidade da jurisdição, sem, porém, os inúmeros problemas e distorções causados pela litigância individual em larga escala, em homenagem ao princípio do acesso efetivo à justiça, intrinsecamente ligado ao valor igualdade, promovendo-se prestação jurisdicional mais justa no contexto da sociedade contemporânea.

Palavras-chave: Revisão de políticas públicas. Acesso à justiça. Interesse processual.

Abstract: The article aims to verify whether individual access to justice is adequate for the protection of social-economic rights by changing the respective public policies. The deductive method is used, based on bibliographic and jurisprudential research. The approach is guided by Miguel Reale’s three-dimensional theory of Law. It starts from the analysis of the complex judicial cognition necessary for public policies’ revision, which presupposes the consideration, on the one hand, of the principle of equality, which is the basis of social-economic rights, and, on the other, at the macro level, of the limitation of available public resources, social demands and technical data, within a framework of budgetary priorities whose north must be given by constitutional objectives. Then, it seeks to demonstrate that the individual procedural model has not been shown, in legal practice, to be adequate for public policies’ revision, both because of the breach of isonomy, and due to the lack of structure and expertise of the Judiciary for reach, in each of the thousands of individual cases, the necessary overview of the impacts on public resources’ allocation. Finally, after pointing out the adequacy of the collective procedural system for such cases, reflections on the interest in acting in individual lawsuits are presented, which is an issue to be assessed on a case-by-case basis – with the exception, however, of imposing individual protection when there is no claim for change in public policy, but a requirement for provision defined in the legal system. So the intention is to safeguard the nonobviation of judiciary jurisdiction principle, without, however, the numerous problems and distortions caused by individual litigation on a large scale, in homage to the principle of effective access to justice, intrinsically linked to the equality value, promoting fairer judicial provisions in the context of contemporary society.

Keywords: Public policy review. Access to justice.  Interest in acting.

Sumário: 1 Introdução. 2 Limitação de recursos públicos e princípio da igualdade. 2.1 Reserva do possível. 2.2 Ônus da prova e mínimo existencial. 2.3 Litigância individual e isonomia. 3 Outros problemas da litigância individual em sede de revisão judicial de políticas públicas. 4 Inadequação da tutela individual. 4.1 Acesso à justiça e interesse processual. 4.2 Acesso à justiça na sociedade contemporânea.  5 Conclusão. Referências bibliográficas.

1 INTRODUÇÃO

Neste trabalho é abordado o acesso à justiça relativamente aos direitos  fundamentais sociais (em sentido amplo, abarcando os econômicos, sociais e culturais). Partindo-se do pressuposto de que se trata de verdadeiros direitos subjetivos, a serem efetivamente tutelados em juízo em caso de violação, o problema enfrentado consiste na seguinte questão: tais direitos devem sempre encontrar acesso à justiça por meio de demandas individuais, ainda que se busque a modificação da política pública respectiva? O objetivo é, pois, verificar se a via processual individual é adequada à proteção desses direitos quando a demanda reclame alteração de políticas públicas.

O estudo parte do método hipotético-dedutivo e vale-se de pesquisa bibliográfica e da jurisprudência dos tribunais de superposição.

É oportuna a pesquisa, pois são notórias tanto a ainda reduzida efetividade de boa parte dos direitos sociais, em boa medida relacionada à escassez e ao inadequado emprego de recursos públicos, como as dificuldades enfrentadas para sua tutela jurisdicional.

O pano de fundo teórico é dado pela abordagem à experiência jurídica proposta na teoria tridimensional do Direito, de Miguel Reale (1999, 2002), segundo a qual três aspectos básicos, que interagem de modo dinâmico entre si, são discerníveis nos fenômenos jurídicos: o aspecto normativo (o ordenamento jurídico e a ciência respectiva), o aspecto fático, que inclui a efetividade social do Direito, e o aspecto axiológico (o Direito como valor de justiça).

Assim, a seção 2 cuida da relação entre o princípio da igualdade, que está à base dos direitos sociais, e a limitação dos recursos públicos disponíveis para a satisfação desses direitos, e de como a análise respectiva dá-se e deve dar-se judicialmente. A seção 3 trata de algumas dificuldades da revisão judicial de políticas públicas. E a seção 4, da (in)adequação do modelo processual individual para tal revisão, à luz das noções de acesso à justiça e interesse processual.

2 LIMITAÇÃO DE RECURSOS PÚBLICOS E PRINCÍPIO DA IGUALDADE

            Os principais obstáculos enfrentados para a adequada tutela jurisdicional de direitos sociais por meio da revisão de políticas públicas[3] dizem respeito ao fato de que esses direitos têm como valor fonte a igualdade – a qual, portanto, deve ser preservada na efetivação de tais direitos entre seus titulares –, ao passo que os recursos públicos necessários a tal efetivação são finitos e não podem suportar, em dados casos, os gastos necessários à plena satisfação dos direitos de todos que estão na mesma situação no território nacional.

            O quadro fático cujo conhecimento é imprescindível à solução de casos tais é complexo e muitas vezes só pode ser razoavelmente apreendido a partir de dados técnicos de abrangência nacional (sobre orçamento público, demandas sociais, entre outros assuntos). E a análise desses dados, mais intimamente relacionados ao problema posto, não pode olvidar outros problemas (e os dados técnicos respectivos) que também exigem o dispêndio de recursos públicos para sua resolução. Sendo assim, problemas dessa espécie reclamam aproximação bem diversa daquela tradicionalmente empreendida em processos judiciais, em que é levada em consideração apenas a situação das partes da relação processual. É necessária uma abordagem mais peculiar às atividades dos Poderes Executivo e Legislativo, acostumados a lidar com questões em nível global, isto é, por meio de uma análise por assim dizer holística, que toma em conta os diversos aspectos da questão, assim como suas interações com outras questões circunvizinhas.    

2.1 RESERVA DO POSSÍVEL

Não só os direitos fundamentais de segunda geração (econômicos, sociais e culturais), mas todos os direitos, inclusive os de primeira geração (civis e políticos), requerem custos públicos para sua efetivação, pois todos demandam estrutura estatal para sua garantia. O direito de propriedade, por exemplo, tradicionalmente classificado como liberdade negativa, só pode ser protegido se houver estrutura de registro de imóveis, segurança pública, sistema judiciário, ou seja, prestações positivas estatais. Portanto, levar os direitos a sério implica que tais custos e a escassez de recursos, a qual naturalmente impõe escolhas, sejam considerados (HOLMES; SUNSTEIN, 1999).

Todavia, é quanto aos direitos sociais, cuja concretização exige mais clara e intensamente prestações estatais, que a necessidade de recursos públicos e sua escassez se faz mais sentir. Isso não pode ser ignorado sob a argumentação de que a justiciabilidade desses direitos e sua aplicabilidade imediata foram constitucionalmente garantidas. A realidade impõe-se: os recursos são finitos e escolhas precisam ser feitas para sua alocação e consequente materialização de direitos. “O grau de desenvolvimento sócio-econômico de cada país impõe limites, que o mero voluntarismo de bacharéis não tem como superar” (SARMENTO, 2010, p. 181). De fato, “[c]ada decisão explicitamente alocativa de recursos envolve também, necessariamente, uma dimensão implicitamente desalocativa” (SARMENTO, 2010, p. 182). Essa é também a lição de Ingo Sarlet:

Justamente pelo fato de os direitos sociais na sua condição (como vimos, não exclusiva!) de direitos a prestações terem por objeto prestações estatais vinculadas diretamente à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de bens materiais, aponta-se, com propriedade, para sua dimensão economicamente relevante (2008, p. 20).

Daí o surgimento da noção de “reserva do possível”, expressão de origem alemã[4] que ordinariamente é compreendida em três dimensões: (i) possibilidade fática da prestação, isto é, disponibilidade material de recursos financeiros; (ii) possibilidade jurídica, ligada à existência de previsão orçamentária (legalidade da despesa) e competência do ente político para sua execução; e (iii) razoabilidade da pretensão do titular do direito (SARLET, 2008; SARMENTO, 2010).

É dizer, questões relacionadas ao orçamento público precisam ser levadas em conta na efetivação jurisdicional de direitos. Convém, todavia, observar que a “ausência de previsão orçamentária é um elemento que deve comparecer na ponderação de interesses […], mas que está longe de ser definitivo, podendo ser eventualmente superado de acordo com as peculiaridades do caso” (SARMENTO, 2010, p. 202). A possibilidade de superação da lacuna orçamentária é também frisada por Ada Pellegrini Grinover: o Judiciário pode determinar “ao Poder Público que faça constar da próxima proposta orçamentária a verba necessária à implementação da política pública”, bem como “a obrigação de aplicar a verba para o adimplemento da obrigação” (2013, p. 138).

Já a insuficiência material, real, de recursos constitui limite insuperável. É que, como enfaticamente aponta Flávio Galdino já no subtítulo de seu livro sobre os custos dos direitos, “direitos não nascem em árvores” (2005). A inexistência de dinheiro público suficiente à realização de dada prestação estatal não pode ser elidida por uma “canetada”.[5]

2.2 ÔNUS DA PROVA E MÍNIMO EXISTENCIAL

Tendo em vista não só a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais e sua centralidade na ordem constitucional, mas também por se tratar de fato impeditivo do direito alegado (art. 373, II, do CPC), incumbe ao Poder Público o ônus da prova relativamente à alegação da reserva do possível, até porque, de resto, tal comprovação é muito mais fácil para o Poder Público, que detém todas as informações a respeito, do que para o demandante (SARLET, 2008; SARMENTO, 2010; GRINOVER, 2013). Essa compreensão foi reforçada pelo novo CPC, que generalizou a possibilidade da chamada distribuição dinâmica do ônus probatório  (art. 373, § 1º).[6]

Vale observar que a reserva do possível é situação fática objeto de alegação pelo Poder Público, com relevância para o deslinde da causa. Não é norma jurídica (princípio ou regra), pois nada prescreve. Não estabelece suporte fático (hipótese de incidência) e tampouco consequência jurídica, ou seja, não ostenta estrutura deôntica (PEREIRA; GIOVANINI, 2017).

Há controvérsia sobre a possibilidade ou não de essa alegação de insuficiência de recursos apresentar-se com sucesso em face do chamado “mínimo existencial”.

O Projeto de Lei n. 8058/2014, em tramitação na Câmara dos Deputados, com o propósito de instituir “processo especial para o controle e intervenção em políticas públicas pelo Poder Judiciário” (BRASIL, 2014a)[7], define mínimo existencial em seu art. 7º, parágrafo único, como “o núcleo duro, essencial, dos direitos fundamentais sociais garantidos pela Constituição Federal, em relação ao específico direito fundamental invocado, destinado a assegurar a dignidade humana”. Essa definição é suficiente à análise da questão ora posta, sobre a (im)possibilidade de a reserva do possível ser exitosamente oposta ao mínimo existencial, isto é, ao núcleo duro, essencial, do direito fundamental social invocado, independentemente de a definição desse núcleo dar-se a priori (teoria absoluta) ou a posteriori (teoria relativa).[8]

Antes, porém, de enfrentar essa questão, importa fazer pequena digressão sobre outra implicação derivada por parte relevante da doutrina do conceito de mínimo existencial, derivação com a qual não se concorda.

Como se sabe, a aplicabilidade imediata das normas constitucionais de direitos fundamentais está estabelecida no art. 5º, § 1º, da Constituição da República. Para alguns, a exemplo de Dirley da Cunha Júnior (2004), por força dessa previsão constitucional, todas as normas que preveem direitos fundamentais têm aplicabilidade imediata, independentemente de concretização ou detalhamento legislativo, gerando posições subjetivas que, uma vez violadas, devem ser protegidas judicialmente. Outros, entretanto, vinculam a justiciabilidade[9] imediata – diretamente a partir de preceito constitucional, sem arcabouço infraconstitucional que confira maior densidade normativa ao direito, isto é, sem necessidade de interposição do Legislativo ou Executivo por meio de política pública específica – ao mínimo existencial que se extrai do direito social invocado, em face do princípio da dignidade humana (cf., p. ex., BARCELLOS, 2011; WATANABE, 2013a; e GRINOVER, 2013; COSTA, 2013).[10] [11] A tese defendida por Ricardo Lobo Torres (2009) aprofunda-se nessa última direção. Para ele, os direitos sociais caracterizam-se como direitos fundamentais apenas no que se circunscreve ao mínimo existencial. Como decorrência disso, ele defende a possibilidade de judicialização apenas quanto a esse núcleo básico. Já os direitos sociais em sua plenitude não são, para ele, judicializáveis; seu alcance e efetivação somente seriam perseguíveis pelo exercício da cidadania no processo democrático.

Não se pode concordar com essas posições que atam a justiciabilidade dos direitos sociais ao mínimo existencial. Tanto a incidência de regras quanto a de princípios, dada a reprodução do respectivo suporte fático na realidade – ainda que o exame de incidência de princípios seja substancialmente mais complexo, via de regra, que o de regras –, são aptas a dar surgimento a direitos subjetivos, inclusive os de natureza social, jurisdicionalmente tuteláveis. Em tais situações, nem a incidência normativa nem sua consequência jurídica dependem da noção de mínimo existencial para operarem. A ideia de mínimo existencial pode certamente exercer influência na solução de colisões de princípios, da qual se extrairá no caso concreto conclusão sobre a existência de um direito subjetivo. Mas isso não significa que os efeitos dos princípios constitucionais consagradores de direitos fundamentais sociais limitem-se ao perímetro de prestações traçado pelo mínimo existencial.

Feito esse esclarecimento, volte-se à questão sobre a oponibilidade ou não da reserva do possível ao mínimo existencial. Apesar de relevante doutrina[12], com significativo eco na jurisprudência[13], no sentido da inoponibilidade, parece que a falta real de recursos pode constituir, em tese, obstáculo do mundo dos fatos insuperável também à materialização do mínimo existencial relacionado a dado direito social.

Não se pode, consequentemente, concordar no particular com Ada Pellegrini Grinover, para quem, “nos casos de urgência e violação ao mínimo existencial, o princípio [sic] da reserva do possível não deverá constituir obstáculo para a imediata satisfação do direito”.[14] Ora, segundo essa interpretação, todo e qualquer caso individual grave de saúde atropelaria sempre a reserva de possível – que, recorde-se, não é princípio, mas um obstáculo fático –, ainda que a medida judicial imposta não possa absolutamente ser universalizada para contemplar todos os que apresentam o mesmo quadro clínico, o que violaria mortalmente o princípio da igualdade, como se buscará demonstrar em item à frente.

A oposição exitosa dessa matéria de defesa pelo Poder Público, porém, em se tratando de demanda voltada à proteção do núcleo essencial de um direito social, requer demonstração de que os recursos públicos estão sendo utilizados para prestações de igual ou maior relevância constitucional. Essa é a conclusão extraída dos objetivos da Constituição da República, que por certo devem nortear a arrecadação e despesas do Poder Público[15], como bem indicou o Ministro Celso de Mello na decisão da ADPF 45 MC (BRASIL, 2004).

É também essa a posição de Daniel Sarmento:

não me parece que o mínimo existencial possa ser assegurado judicialmente de forma incondicional, independentemente de considerações acerca do custo de universalização das prestações demandadas. Porém, entendo que quanto mais indispensável se afigurar uma determinada prestação estatal para a garantia da vida digna do jurisdicionado, maior deve ser o ônus argumentativo imposto ao Estado para superar o direito prima facie garantido. Será praticamente impossível, por exemplo, justificar a não extensão do saneamento básico para uma determinada comunidade carente, quando o Poder Público estiver gastando maciçamente com publicidade ou obras faraônicas (SARMENTO, 2010, p. 207, sem grifo no original).

Em síntese, é do Poder Público o ônus de provar sua alegação de insuficiência de recursos, ônus qualificado, nos termos expostos, ao deparar com pretensão incluída na noção de mínimo existencial.

2.3 LITIGÂNCIA INDIVIDUAL E ISONOMIA

A exposição até aqui realizada já indicou a complexidade sensivelmente superior que envolve o controle jurisdicional de políticas públicas, em comparação às causas tradicionais que contrapõem os interesses e alegações apenas de duas partes. Nesse contexto, cumpre enfrentar dramático problema decorrente da judicialização de políticas públicas no Brasil: em se tratando de direitos sociais, econômicos e culturais, que surgiram historicamente para a efetivação do princípio da igualdade (BONAVIDES, 2008), sua indiscriminada judicialização em processos individuais tende a, paradoxalmente, violar a isonomia. É que, como muitas vezes se dá em relação ao direito à saúde, por exemplo, determina-se ao Estado, em processos judiciais, dada prestação dirigida a uma única pessoa beneficiada, cujos custos não permitiriam, entretanto, sua universalização.

Afora isso, o acesso individual à justiça muitas vezes não se concretiza para os mais pobres e menos instruídos. Deveras, “o acesso à justiça no Brasil está longe de ser igualitário. Por diversas razões, os segmentos mais excluídos da população dificilmente recorrem ao Judiciário para proteger seus direitos”, de sorte que decisões individuais equivocadas podem “criar privilégios não universalizáveis” (SARMENTO, 2010, p. 182-183).[16] 

Portanto, é de todo conveniente e até necessária a coletivização dessa tutela judicial, pois, à luz do princípio da igualdade, a reserva do possível deve ser apreciada em face da possibilidade de universalização do direito social discutido, ou seja, de atendimento a todos que estão na mesma situação (COSTA, 2013).

Nesse sentido, Daniel Sarmento salienta que a análise da reserva do possível não pode pautar-se no “custo representado apenas pela prestação concedida ao autor da ação” (2010, p. 182). É que:

por mais custosa que seja esta prestação, dificilmente ela será muito significativa quando cotejada com a magnitude dos recursos e orçamentos das entidades federativas. Assim, se o parâmetro for este, praticamente toda pretensão formulada em ações individuais será acolhida, ainda quando seja economicamente impossível para o Estado estender o mesmo benefício a todas as pessoas em idêntica situação. Ocorre que o Estado não deve conceder a um indivíduo aquilo que ele não tiver condições de dar a todos os que se encontrarem na mesma posição. Esta é uma exigência fundamental imposta pelo princípio da igualdade, que não pode ser postergada (SARMENTO, 2010, p. 199).

 Especificamente sobre o direito à saúde, Luís Roberto Barroso segue idêntica linha de raciocínio:

As políticas públicas de saúde devem seguir a diretriz de reduzir as desigualdades econômicas e sociais. Contudo, quando o Judiciário assume o papel de protagonista na implementação dessas políticas, privilegia aqueles que possuem acesso qualificado à Justiça, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com os custos do processo judicial. Por isso, a possibilidade de o Judiciário determinar a entrega gratuita de medicamentos mais serviria à classe média que aos pobres. Inclusive, a exclusão destes se aprofundaria pela circunstância de o Governo transferir os recursos que lhes dispensaria, em programas institucionalizados, para o cumprimento de decisões judiciais, proferidas, em sua grande maioria, em benefício da classe média (2011, p. 27).

A tutela jurisdicional individual por certo deve ser prestada nos casos em que o arcabouço jurídico da política pública relacionada ao direito social vindicado estiver suficientemente delineado e a demanda não se dirigir a sua modificação. Em tais casos, o titular do direito apenas exige o cumprimento das normas que lhe garantem especificamente determinada prestação estatal descumprida – por exemplo, não fornecimento pelo SUS de dado medicamento que deveria fornecer, conforme sua Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME). Não há aí propriamente revisão judicial da política pública, que permanece intacta, e tampouco qualquer ofensa à isonomia. Há apenas tutela do direito subjetivo a prestação estatal cabalmente definida no ordenamento jurídico. Genuíno controle judicial de política pública, no entanto, sucede, por exemplo, com a determinação de fornecimento de medicamento não incluído na RENAME, pois aí há alteração da política. É para esse último tipo de situação que o controle judicial individual mostra-se inadequado, não apenas à luz do princípio da igualdade, que inspirou o surgimento dos direitos sociais, mas também por outros motivos abaixo expostos.

3 OUTROS PROBLEMAS DA LITIGÂNCIA INDIVIDUAL EM SEDE DE REVISÃO JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Além da incompatibilidade do modelo de litigância individual com o princípio da igualdade, a criação ou alteração de políticas pública na via judicial apresenta outros problemas. As críticas a respeito são sintetizadas por Diogo Rosenthal Coutinho (2013): (a) o Judiciário não está estruturado para promover mudanças sociais abrangentes e corrigir adequadamente o rumo de políticas públicas desde uma óptica substantiva ou distributiva; (b) essas políticas requerem medidas legislativas e complexas ações administrativas que dependem, em última instância, de combinação de ações políticas e expertise técnica para as quais o Judiciário não é capacitado, vocacionado ou legitimado; (c) decisões sobre políticas públicas demandam arrecadação e alocação de volumes de recursos significativos e de decisões alocativas baseadas num visão alargada do universo das políticas públicas, que o Judiciário não possui; e (d) as decisões judiciais isoladas sobre políticas públicas podem minar sua racionalidade.

Em sentido semelhante, mas especificamente quanto à judicialização da saúde, Maria Tereza Aina Sadek (2013a, 2013b) aponta as críticas que comumente lhe são direcionadas: interferência no planejamento e nas finanças governamentais, com alteração inesperada e inevitável de prioridades estabelecidas e prometidas aos eleitores; favorecimento de quem tem acesso à justiça em detrimento da sociedade em geral; e o grande número de ações judiciais e quantias envolvidas.

Pois bem, afora a já tratada ofensa à isonomia, é séria a objeção relativa à falta de estrutura e expertise do Judiciário para o trato dos casos que implicam revisão de políticas públicas. É o que também assinala com propriedade Daniel Sarmento:

A realização dos direitos sociais pelo Estado dá-se através de políticas públicas, cuja elaboração e implementação dependem, para seu êxito, do emprego de conhecimentos específicos. Os poderes Executivo e Legislativo (mais o primeiro que o segundo) possuem em seus quadros pessoas com a necessária formação especializada para assessorá-los na tomada das complexas decisões requeridas nesta área, que frequentemente envolvem aspectos técnicos, econômicos e políticos diversificados. O mesmo não ocorre no Judiciário (2010, p. 208).

São significativas, outrossim, as dificuldades do sistema de justiça para, a partir de uma visão de conjunto, tomar decisões com impactos na arrecadação e alocação de volumosos recursos públicos:

“[o] processo judicial foi pensado com foco nas questões bilaterais da justiça comutativa […]. Contudo, a problemática subjacente aos direitos sociais envolve sobretudo questões de justiça distributiva, de natureza multilateral, já que, diante da escassez, garantir prestações a alguns significa retirar recursos do bolo que serve aos demais. Boas decisões nesta área pressupõem a capacidade de formar uma adequada visão de conjunto, o que é muito difícil de se obter no âmbito de um processo judicial (COUTINHO, 2013, p. 210).

Quanto ao ponto, a fim de ilustrar o problema, considere-se o caso da saúde pública. Para ter-se ideia do impacto da chamada “judicialização da saúde” sobre os recursos públicos disponíveis, tomem-se em conta alguns dados disponíveis: em requerimento de realização de audiência pública, formulado pelos Deputados Esperidião Amin e Paulo Teixeira, para debater o já referido Projeto de Lei n. 8058/2014 – que “institui processo especial para o controle e intervenção em políticas públicas pelo Poder Judiciário” –, informa-se que decisões judiciais individuais consumiram cerca de 25% do orçamento catarinense disponível para área da saúde (excluídas as despesas com pessoal) em 2015.[17] E, para 2016, o Ministério da Saúde estimava que esse tipo de decisões demandaria do SUS entre R$ 5 e R$ 7 bilhões, nos três níveis federativos (BRASIL, 2014a).[18] Em adição, há informação do Ministério da Saúde de que, entre 2010 e 2016, foram destinados somente pela União R$ 4,5 bilhões para atender a determinações judiciais de compra de medicamentos, dietas, suplementos alimentares, além de depósitos judiciais. Houve, pois, um aumento no gasto de 1.010% nesses sete anos. A estimativa para as despesas derivadas de decisões judiciais na área de saúde, abarcando todos os entes federativos para 2017, era, como em 2016, de R$ 7 bilhões (BRASIL, 2017a, 2017b).

4 INADEQUAÇÃO DA TUTELA INDIVIDUAL

Consideradas as apresentadas distorções decorrentes da revisão judicial (criação ou modificação) de políticas públicas, resta claro que o modelo processual individual não se mostra adequado. A quebra da isonomia, a falta de estrutura e expertise do Judiciário e a ausência de visão de conjunto quanto aos impactos na arrecadação e alocação de recursos públicos geram disfunções insuperáveis num modelo de litigância individual desenfreada. “[N]ão é possível resolver questões de justiça distributiva em um modelo processual individualista, que trabalha com questões de justiça cumutativa” (COSTA, 2013, p. 355).

Há mais de vinte anos, Fábio Konder Comparato já havia assim concluído: “não faz sentido que o litígio a respeito da constitucionalidade de uma política pública possa ser decidido incidentalmente, no curso de outro processo judicial, tendente à solução de uma lide particular” (1998, p. 47).[19]

Essa conclusão é corroborada pela realidade atual: nosso já grande e dispendioso sistema de justiça não tem dado conta de tratar adequadamente da avalanche desses casos individuais que se lhe apresentam todos os dias, com a complexa análise que cada um deles requer. Basta lembrar, para confirmar essa assertiva, dos casos sobre vagas em creches e sobre prestações de saúde. Tais casos envolvem necessariamente custos públicos, como já explicado, de modo que sua solução em prol do demandante implica consequências para muito além da esfera jurídica individual deste; antes, atinge inúmeras outras pessoas que poderiam beneficiar-se do incremento equivalente de recursos públicos na mesma ou em outra política pública.

Pense-se, por exemplo, numa demanda individual ajuizada para que determinada criança seja imediatamente matriculada em creche. Não há dúvida sobre seu direito. Todavia, na prática, a mera determinação judicial para que se dê tal matrícula não criará nova vaga em creche, de forma que a solução do caso individual beneficiará o autor da ação em detrimento de outra criança com o mesmo direito. Isso porque a criança que logrou acesso individual à justiça entrou na creche no lugar de outra criança que, na fila de ingresso administrada pelo Poder Público, estava em sua frente e tinha, assim, preferência. Essa criança preterida pode, inclusive, pertencer a uma família mais pobre, menos informada e mais necessitada do serviço público prestado pela creche – porque, por hipótese, sua mãe trabalha fora de casa, ao passo que a mãe da criança vitoriosa judicialmente, não. Ambas as crianças tinham direito à vaga, mas a que estava esperando há mais tempo – e, por isso, estava mais adiantada na fila de espera – foi preterida, pois, por uma série de possíveis desvantagens (econômicas, informacionais…), não alcançou acesso à justiça individualmente. É justa a solução? É conforme o Direito? Certamente, não. 

De resto, seria impossível ao juiz, em cada um dos muitíssimos processos sobre a questão apresentada no parágrafo anterior, realizar toda a complexa coleta de elementos necessários e respectiva análise para a adequada decisão sobre a ampliação ou não do número de vagas em creche – decisão sobre realocação de recursos públicos. Se possível em cada um dos casos, essa solução, diferentemente da apresentada no parágrafo precedente, seria aceitável: determinar-se-ia o ingresso da criança na creche com a criação da vaga correspondente, sem prejudicar diretamente o direito de outra criança. Isso, porém, é faticamente impossível em todos e cada um dos casos que tratam do problema.

A mesma barreira é encontrada na área da saúde. O Fórum da Saúde, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça, em levantamento parcial da quantidade de processos relativos ao Sistema Único de Saúde (SUS) em tramitação, em junho de 2014, na Justiça Federal e nas Justiças Estaduais – sem computar os feitos no STF e STJ –, encontrou o significativo número de 392.921 processos (BRASIL, 2014b).[20] É patente a inviabilidade de, nessa miríade de processos individuais, o Judiciário fazer a contento, em cada caso, o complexo exame imanente ao controle de dada política pública, garantindo a necessária igualdade.

As novas técnicas de julgamento de casos repetitivos – recursos excepcionais repetitivos e incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 928 do novo CPC) – mitigam, mas não resolvem o problema, pois geram precedentes obrigatórios para o próprio Judiciário, mas não vinculam o Poder Executivo. Assim, caso este não se adéque espontaneamente ao precedente, novas ações judiciais inexoravelmente serão aforadas.

A esse respeito são esclarecedoras as lições de Aluisio Gonçalves de Castro Mendes (2013). Para o autor, o direito processual coletivo, como gênero, abrange três espécies: (i) as ações coletivas, em sentido amplo, para a tutela de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos; (ii) os processos-modelo ou incidentes-modelo, em que a decisão num determinado caso aplica-se a casos semelhantes, o que se dá, por exemplo, com os recursos repetitivos e incidentes de resolução de demandas repetitivas; e (iii) os meios de solução extrajudicial de conflitos coletivos, como, por exemplo, o compromisso de ajustamento de conduta. As três espécies buscam privilegiar a economia processual e a igualdade. Mas é a primeira delas, composta pelas ações coletivas, que se ocupa precipuamente ainda do cumprimento do direito material e da ampliação racional do acesso à justiça. Isso porque os processos-modelo ou incidentes-modelo dão solução apenas para as pessoas que ajuizaram ações sobre a questão, de sorte que não resolvem o problema para todos que estão na mesma situação. Por isso, as ações coletivas exercem papel central no direito processual coletivo. Ao passo que os processos-modelo ou incidentes-modelo exercem um papel complementar (MENDES, 2013).[21]

A ação coletiva amplia o acesso à justiça porque contempla todos os que estão em idêntica condição, enquanto, mesmo com os benefícios da justiça gratuita, o tempo e dinheiro necessários ao ajuizamento de demanda individual muitas vezes inviabilizam a busca por justiça por quem precisa trabalhar o dia todo para a subsistência própria e da família, situação comumente agravada pela carência de formação e informação jurídica. E favorece o cumprimento do direito material – e consequentemente a tutela mais ampla dos direitos subjetivos correspondentes – porquanto contumazes violadores de direitos soem basear suas decisões num cálculo de custo-benefício: como muitos lesados não buscam o Judiciário, dadas as dificuldades de acesso individual à justiça, pode valer a pena continuar as violações, em vez de alterar o comportamento (MENDES, 2013).

Como se sabe, o Poder Público é um violador contumaz de direitos sociais e, embora devesse sempre agir eticamente, muitas vezes as restrições orçamentárias e a escolha de prioridades eleitoreiras podem levar ao aludido raciocínio antiético de custo-benefício. As ações coletivas tendem a evitar esse problema, pois buscam solução para todos que estão na mesma situação.

Com relação ao ganho em economia judicial e processual, vale lembrar que o direito processual instrumentaliza a realização do direito material. Assim, como meio para um fim, deve ser eficiente e econômico. Ademais, o aumento da estrutura judiciária não se harmoniza  com o atual contexto mundial de diminuição do tamanho do Estado em razão do déficit e endividamento público. Em tal contexto, um sistema processual coletivo eficiente certamente oferece relevante contribuição para solucionar a sobrecarga hoje suportada pelo Poder Judiciário, decorrente do aumento vertiginoso do volume de processos civis havido nas últimas décadas – como resultado, em âmbito global, das chamadas “ondas” de acesso à justiça (abordadas no tópico subsequente), o que se aprofundou, no Brasil e restante da América Latina, após o fim da década de 80, com a redemocratização e o fortalecimento do sistema de justiça (MENDES, 2013).

Por fim, nem seria preciso insistir em que decisões díspares para casos iguais violam a igualdade perante a lei e geram insegurança jurídica, com descrédito para o sistema de justiça, de molde a conferir caráter determinante ao direito processual civil, e não – como deve ser – apenas instrumental.

4.1 ACESSO À JUSTIÇA E INTERESSE PROCESSUAL

Como adverte Maria Tereza Aina Sadek, o problema ora enfrentado neste trabalho impõe-se hoje no quotidiano real e reclama soluções normativo-interpretavas que não olvidem essa realidade:

É incontestável que o tema entrou na agenda de debates e que se tornou urgente a busca de soluções de natureza institucional. O embate entre o direito à saúde e a reserva do possível ou entre direitos individuais e bem-estar social não encontrará respostas satisfatórias se confinado a uma vara ou mesmo um único colegiado. A questão é, sem dúvida, grave e complexa. O problema possui muitas dimensões. Qualquer tentativa de solução não poderá ignorar nem os direitos constitucionalmente estabelecidos nem a realidade fática.

[…]

[…] a universalidade das críticas ao ativismo judicial não foi capaz de interromper nem a sua manifestação, nem a sua expansão. Como apontamos, esse fenômeno está presente na maioria dos atuais Estados constitucionais. E tudo indica que veio para ficar (2013a, p. 311-312).

Busca-se aqui precisamente isto, sugerir soluções amparadas no sistema jurídico, em vista da realidade atual e dos efeitos reais decorrentes das interpretações das normas jurídicas, sempre à luz dos valores nestas subjacentes. Para tanto, impende analisar se a interpretação hoje em voga que conclui pelo acesso individual amplo à justiça para o controle de políticas públicas está de acordo com o Direito em sua tripla dimensão (normativa, fática e axiológica).

A menção no último parágrafo a “acesso individual amplo à justiça” refere-se à ideia de que a norma constitucional do art. 5º, XXXV, que prevê a inafastabilidade da jurisdição, imporia a análise, inclusive de mérito, de todo e qualquer demanda individual direcionada à criação ou modificação de política pública, independentemente de todas os problemas, dificuldades e mesmo impossibilidades apontadas neste trabalho.

Todavia, a ideia de acesso à justiça, muito embora relacionada à inafastabilidade jurisdicional, com ela não se confunde, mas a transcende largamente. De resto, a própria norma da inafastabilidade não impõe obviamente que todas as ações judiciais sejam apreciadas em seu mérito. Há requisitos engendrados pela processualística e inseridos no sistema legal para que se conheça o mérito de uma demanda; são, como se sabe, os pressupostos processuais e as condições da ação.

Em obra de referência sobre o assunto, Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988)[22] explicam que o direito de acesso à justiça no Estado liberal era compreendido em sentido formal, como direito de ingressar com ação judicial. Com o Estado social, passou-se a conceber um direito de acesso efetivo à justiça, isto é, de acesso real, consideradas as circunstâncias da realidade, enquanto um direito fundamental social imprescindível à garantia de efetividade de todos os direitos proclamados no ordenamento jurídico.

Os autores indicam as principais barreiras então identificadas ao acesso efetivo à justiça em diversos países: (i) elevadas despesas processuais, ainda mais pesadas em pequenas causas, cujos custos não justificavam a busca pelos possíveis benefícios, e agravadas pelo tempo do processo, que pressionava o necessitado; (ii) desvantagens pessoais, notadamente as financeiras e as informacionais (falta de conhecimentos suficientes para reconhecer a existência de um direito a ser exigido judicialmente, para saber que providências tomar para ajuizar uma demanda; receio do diferente, do ambiente jurídico intimidador para a pessoa simples); e (iii) as dificuldades para a tutela jurisdicional de interesses difusos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).

Soluções práticas para essas barreiras foram pensadas e levadas a efeito. Trata-se de movimentos que a obra divide cronológica e qualitativamente em três “ondas” de acesso à justiça no Ocidente: a primeira, voltada à assistência judiciária para os pobres, iniciada nos Estados Unidos da América, em 1965, com a criação do Office of Economic Opportunity; a segunda, concentrada na tutela de interesses difusos, especialmente do meio ambiente e dos direitos dos consumidores; e a terceira, consistente num novo enfoque de acesso à justiça, para sua ampliação por meio de reformas e medidas variadas, como mecanismos privados e informais de solução de litígios, conciliação, arbitragem, especialização de juízos, adaptação de procedimentos às peculiaridades dos casos e pessoas envolvidas, simplificação do Direito (por exemplo, pela instituição da responsabilidade civil objetiva para dadas hipóteses), entre outras (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).

Ora, esse direito de acesso efetivo à justiça, pode-se dizer, decorre da “igualdade de todos perante a lei, igualdade efetiva – não apenas formal – [que] é o ideal básico de nossa época” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 165). Já na introdução do livro, ao iniciar a explicação da expressão “acesso à justiça”, os autores frisaram as duas finalidades básicas a serem consideradas: “[p]rimeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 8).

Constata-se, portanto, que a própria noção de acesso à justiça é indissociável hodiernamente do valor igualdade real. Essa indissociabilidade é ainda reforçada em se tratando de acesso à justiça para a efetivação de direitos sociais, direitos fundamentais de segunda geração, cujo valor fonte é dado pelo princípio da igualdade. Por isso, o acesso à justiça aí deve ser concebido de molde a fortalecer a igualdade real, para cuja aferição não se pode ignorar as consequências práticas que tal concepção provoca.  

Essa conclusão parece estar de acordo com o que propõe Kazuo Watanabe (2013b), que, ao tratar de políticas judiciárias adequadas sob a perspectiva dos meios alternativos de resolução de controvérsias estatuídos pela Resolução n. 125 do Conselho Nacional de Justiça – cujos mecanismos acabaram por ser positivados na Lei n.13.140/2015 e no novo CPC –, defende uma atualização do conceito de acesso à justiça, que, para além do acesso aos órgãos judiciários e da obtenção de um provimento jurisdicional, torna-se mais intensamente acesso à ordem jurídica justa. A mesma lógica – propugna-se no presente trabalho – tem lugar no trato jurisdicional e processual adequado de questões envolvendo controle de políticas públicas.

Pois bem, pelo exposto, percebe-se sem dificuldade ser inviável, em cada uma das centenas de milhares de ações individuais voltadas à alteração de políticas públicas, a adoção de técnicas processuais mais complexas, que demandam maior tempo e dispêndio de energia, tais como: a condução de uma fase pré-processual em busca de solução consensual e universal (para todos os que se encontram na mesma situação); toda a complicada cognição judicial, inclusive na fase executiva, para a adequada correção da política pública; a ampliação do contraditório para a democratização do processo, por meio da realização de audiências públicas para ouvir especialistas e a opinião os envolvidos, bem como pela intervenção de amici curiae; e fundamentação profunda e robusta, que contemple suficientemente todas as questões e aspectos envolvidos na causa, bem como as consequências da decisão, conferindo, assim, maior legitimidade à atuação jurisdicional. É inexequível, de resto, levantarem-se em cada processo individual o número de pessoas na mesma situação do demandante, os recursos disponíveis, as dificuldades técnicas para a implantação ou alteração da política pública respectiva etc.

Assim, pode-se concluir que, em regra, a prestação adequada de tutela jurisdicional individual em sede de controle de políticas públicas mostra-se virtualmente impossível.[23] (A verificação dessa (im)possibilidade deve ocorrer, é claro, caso a caso.)

Constatada no caso concreto essa impossibilidade, parece impor-se a extinção do processo sem exame de mérito por falta de interesse processual, em sua vertente utilidade.[24] Com efeito, que utilidade tem um processo em que é impossível prestar tutela jurisdicional adequada? Nenhuma. Em tal situação, deve o juiz comunicar o Ministério Público e outros legitimados coletivos, para a promoção de adequada tutela coletiva.

Flávio Luiz Yarshell, ao tratar do interesse de agir pela perspectiva (adotada por parte da doutrina) da adequação da via eleita, explica que o nome dado à ação, os fundamentos legais invocados e erros sanáveis quanto à escolha do procedimento não levam à carência de ação. Para a verificação da adequação do “tipo de ação” em cada caso, deve-se levar em conta somente se o pedido deduzido é idôneo a, em tese, solucionar o mal narrado na inicial e se o procedimento (ainda que após possíveis correções) é apto a conduzir à solução do problema apresentado (YARSHELL, 2006). Logo, também sob essa ótica do interesse de agir pela adequação da via eleita, a impossibilidade acima explicada – de alcançar-se no processo individual a solução adequada do caso apresentado – conduz à falta de interesse processual.

Como, então, equacionar a questão suscitada pelo quadro apresentado, isto é, como viabilizar o controle jurisdicional e a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais sociais, garantidos constitucionalmente (art. 5º, XXXV e § 1º), mas evitar as distorções que a atuação do Judiciário na seara das políticas públicas pode ocasionar? Parece que a solução deve ser buscada, de acordo com o princípio da instrumentalidade processual, no sistema processual coletivo.

Essa proposta de solução resguarda a inafastabilidade da jurisdição, por meio da tutela coletiva dos direitos sociais, sem, contudo, os inúmeros problemas e distorções causados pela litigância individual de massa. Entretanto, deve garantir-se, vale repetir, a tutela individual para as hipóteses em que não há criação ou alteração de política pública, mas mera exigência de prestação especificamente prevista no ordenamento jurídico.

A ideia de ausência de interesse processual – que ainda reclama desenvolvimento mais aprofundado – é potencialmente polêmica, em face do princípio da inafastabilidade da jurisdição.[25] Sucede, todavia, ser necessária uma “releitura atualizada e contextualizada” desse princípio, “a fim de se preservar sua utilidade e mantê-lo aderente às novas circunstâncias e necessidades da massificada e conflituosa sociedade contemporânea”. “Essa releitura é ainda necessária à vista da notória e crescente crise numérica de processos, que avulta muito além da capacidade instalada da Justiça estatal”.[26]

Preocupação e raciocínio similares levaram a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça a fixar, em recurso repetitivo julgado em 28/10/2009 (REsp 1110549/RS), a tese de que, “[a]juizada ação coletiva atinente à macro-lide geradora de processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais, no aguardo do julgamento da ação coletiva”. A Primeira Seção do Tribunal, por sua vez, também em julgamento de recurso repetitivo (REsp 1353801/RS), abraçou expressamente, em 14/08/2013, o mesmo entendimento, com referência ao precedente da Segunda Seção. Nesses precedentes e em outros que lhes sucederam, a Corte afirmou que tal compreensão, ao privilegiar a via coletiva, melhor se harmoniza com a efetivação prática e racional do acesso à justiça nos dias atuais.

Nessa direção, aliás, caminha o Projeto de Lei n. 5139/2009 (BRASIL, 2009) – que objetiva dar nova normatização à ação civil pública –, ao estabelecer, em seu art. 37, que “[o] ajuizamento de ações coletivas não induz litispendência para as ações individuais que tenham objeto correspondente, mas haverá a suspensão destas, até o julgamento da demanda coletiva em primeiro grau de jurisdição”. Tal Projeto, entretanto, carece de impulsionamento na Câmara dos Deputados desde 2010, aguardando julgamento de recurso dirigido ao Plenário contra apreciação conclusiva da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania por sua rejeição.

Sobre o assunto, é útil ainda referência a trabalho de Kazuo Watanabe (2006) sobre a relação entre demanda coletiva e demandas individuais. O autor aponta o erro forense comum de admitir-se a fragmentação de um conflito coletivo com o processamento de demandas pseudoindividuais fundadas em relação jurídica material de natureza incindível. O exemplo apresentado no texto refere-se às tarifas de assinatura telefônica, que levou ao ajuizamento de milhares de demandas individuais. Para Watanabe, não se pode alterar a regulação estatal pertinente apenas para o autor de dada ação individual. É que a concessão do serviço de telecomunicações deve observar disciplina tarifária a ser uniformemente aplicada para todos os usuários que se encontrem em idêntica situação. Qualquer alteração dessa disciplina tarifária afeta o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão. Assim, prossegue o processualista, toda e qualquer modificação na estrutura de tarifas deve ocorrer de modo global e uniforme para todos os usuários; nunca de forma individual e diversificada, com a exclusão de tarifa exclusivamente para um ou alguns. Portanto, conclui, ação judicial voltada a alterar a disciplina estatal tarifária deve ter natureza coletiva, para abarcar todos os usuários, de modo uniforme e isonômico. São inadmissíveis aí demandas individuais.

Parece, a toda evidência, que o mesmo raciocínio vale aqui. A política pública voltada à concretização de um direito social, por meio do emprego de recursos limitados, é definida pelo Estado para efetivação uniforme e isonômica em relação a todas as pessoas que se encontrem em idêntica situação. Cuida-se aí de imperativo imposto pelo princípio constitucional da igualdade. Não se pode, pois, criar ou modificar política pública – com a correspondente realocação de recursos públicos restritos – de maneira individual e diversificada, em ações individuais, exclusivamente em favor do autor do processo.[27] A criação ou alteração da política pública em juízo deve contemplar todas as pessoas que fazem jus ao respectivo direito, encontrando-se em igual condição. Para tanto, o instrumento adequado é o processo coletivo.

4.2 ACESSO À JUSTIÇA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Considerado não apenas o pano de fundo teórico que norteia a elaboração deste artigo, dado pela teoria tridimensional do Direito, de Miguel Reale – como exposto na Introdução –, que conduz à consideração da realidade e dos valores envolvidos na aplicação das normas jurídicas, mas também tendo presente uma das lições sobre conhecimento e aprendizagem de Edgar Morin (2003), que adverte sobre o imperativo de que informações particulares e especializadas não sejam separadas dos problemas reais, cada vez mais polidisciplinares e multidimensionais – separação com a qual se corre o risco de perder a apreensão do global e do fundamental –, parece relevante ampliar um pouco a contextualização do objeto deste estudo, ainda que em breves palavras.

A época atual, a qual Zygmunt Bauman chama de modernidade líquida[28], é marcada, entre outras coisas, por traço relacionado ao discurso ético-político, notadamente sobre justiça e direitos humanos, que o autor assim começa a explicar:

A segunda mudança é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizantes. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana, foi fragmentado (“individualizado”), atribuído às vísceras e energia individuais e deixado à administração dos indivíduos e seus recursos. Ainda que a ideia de aperfeiçoamento (ou de toda modernização adicional do status quo) pela ação legislativa da sociedade como um todo não tenha sido completamente abandonada, a ênfase (juntamente, o que é importante, com o peso da responsabilidade) se transladou decisivamente para a autoafirmação do indivíduo. Essa importante alteração se reflete na realocação do discurso ético/político do quadro da “sociedade justa” para o dos “direitos humanos”, isto é, voltando o foco daquele discurso ao direito de os indivíduos permanecerem diferentes e de escolherem à vontade seus próprios modelos de felicidade e de modo de vida adequado.

[…]

A sociedade moderna existe em sua atividade incessante de “individualização”  (2001, p. 41-43).

E prossegue Bauman:

[…] como de Tocqueville há muito suspeitava, libertar as pessoas pode torná-las indiferentes. O indivíduo é o pior inimigo do cidadão, sugeriu ele. O “cidadão” é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade – enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à “causa comum”, à “boa sociedade” ou à “sociedade justa”. […] As únicas duas coisas úteis que se espera e se deseja do “poder público” são que ele observe os “direitos humanos”, isto é, que permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permita que todos o façam “em paz” – protegendo a segurança de seus corpos e posses, trancando criminosos reais ou potenciais nas prisões e mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de estranhos constrangedores e maus.

[…]

Se o indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e se a individualização anuncia problemas para a cidadania e para a política fundada na cidadania, é porque os cuidados e preocupações dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o espaço público até o topo, afirmando-se como seus únicos ocupantes legítimos e expulsando tudo mais do discurso público. O “público” é colonizado pelo “privado” […] (2001, p. 49-51).

O autor afirma, em continuidade, que há uma nova agenda pública de emancipação no contexto dessa nova modernidade fluida e, particularmente, na esteira da constante “individualização” das tarefas da vida:

         Essa nova agenda surge do hiato previamente discutido entre a individualidade de jure e de facto, ou entre a “liberdade negativa” legalmente imposta e a ausente – ou, pelo menos, longe de universalmente disponível – “liberdade positiva”, isto é, a genuína potência da autoafirmação. A nova condição não é muito diferente daquela que, segundo a Bíblia, levou à rebelião dos israelitas e ao êxodo do Egito. “O faraó ordenou aos inspetores e seus capatazes que deixassem de suprir o povo com a palha utilizada para fazer tijolos… ‘Que eles vão e colham sua própria palha, mas cuidem para que atinjam a mesma quota de tijolos de antes.’” quando os capatazes argumentaram que não se pode fazer tijolos eficientemente a menos que a palha seja devidamente fornecida e acusaram o faraó de ordenar o impossível, ele inverteu a responsabilidade pelo fracasso: “Vocês são preguiçosos, vocês são preguiçosos.” Hoje não ha mais faraós dando ordens aos capatazes para que açoitem os displicentes. (Até o açoite se tornou um trabalho “faça-você-mesmo” e foi substituído pela autoflagelação.) (2001, p. 65-66).

Hoje, a noção de emancipação deve ser compreendida como “a tarefa de transformar a autonomia individual de jure numa autonomia de facto” (BAUMAN, 2001, p. 68) e essa tarefa não pode ser deixada exclusivamente sob responsabilidade de cada indivíduo; antes, “[a] verdadeira libertação requer hoje mais, e não menos, da ‘esfera pública’ e do ‘poder público’” (BAUMAN, 2001, p. 68).

Pois bem, voltando-se os olhos para o específico objeto deste artigo, enquadrado no contexto da sociedade moderna, tal qual descrita por Bauman, pode-se dizer que, no tempo de hoje, em que se exagera a importância da responsabilidade individual, privilegiar o acesso individualizado à justiça, apenas formalmente assegurado a todos – ou seja, garantido nos textos legais, mas não na realidade, como exposto no item anterior –, para que cada um promova judicialmente o controle (para criação, supressão ou alteração) de políticas públicas voltadas à concretização de direitos sociais, é opção político-jurídica conducente ao paradoxo de favorecer os que tiveram e têm oportunidades para obtenção dos recursos (materiais, intelectuais etc.) necessários ao aludido acesso, em detrimento dos que não tiveram e nem têm tais oportunidades. Trata-se de um paradoxo na medida em que se cria um desigual acesso à justiça para a efetivação de direitos visceralmente ligados na história ao valor igualdade e, o que é mais grave, que dependem de recursos financeiros escassos para sua satisfação.

Parece, pois, lícito daí inferir, de um lado, que o atual quadro de litigância individual de massa acima retratado (do qual o maior exemplo é a judicialização da saúde) insere-se no contexto maior de individualismo exacerbado que marca a sociedade atual – individualismo encarado na perspectiva que mais interessa ao presente estudo, ou seja, seu aspecto ético-político –, e, de outro, que a proposta desenvolvida neste trabalho de que o acesso coletivo à justiça é juridicamente mais adequado para alteração em políticas públicas harmoniza-se com a crítica de Bauman a esse excesso de individualismo.

5 CONCLUSÃO

            A análise necessária à adequada tutela jurisdicional de direitos sociais por meio da revisão de políticas públicas não pode prescindir da observância ao princípio da igualdade e da consideração, em nível macro, dentre outros dados, dos recursos públicos disponíveis e das demandas sociais e informações técnicas existentes, num quadro de prioridades orçamentárias que devem ser definidas em harmonia com os objetivos constitucionais.

Buscou-se demonstrar que tal análise ostenta complexidade significativamente superior em comparação às causas tradicionais que contrapõem os interesses e alegações apenas de duas partes. Isso, contudo, tem sido em geral olvidado no país, o que tem gerado situação paradoxal de grande escala no âmbito do controle judicial de políticas públicas: em se tratando de direitos sociais, que surgiram para a efetivação do princípio da igualdade, sua indiscriminada judicialização em processos individuais tem paradoxalmente violado a isonomia.

Com isso, pretendeu-se mostrar que o modelo processual individual não é adequado à revisão de políticas públicas, tanto pela quebra da isonomia, quanto pela falta de estrutura e expertise do Judiciário e sua falta de visão de conjunto quanto aos impactos na arrecadação e alocação de recursos públicos, que geram disfunções insuperáveis num modelo de litigância individual de massa. Não é factível que, no sem-número de processos individuais existentes, o Judiciário possa fazer a contento, em cada caso, a intrincada análise imprescindível ao controle de dada política pública, garantindo a igualdade.

Concluiu-se, pois, que, em regra, a prestação adequada de tutela jurisdicional individual em sede de controle de políticas públicas mostra-se virtualmente impossível. Essa impossibilidade, se verificada no caso concreto, aponta para a falta de interesse processual, em sua vertente utilidade, porquanto é inútil um processo em que é impossível prestar tutela jurisdicional adequada. A ausência de interesse de agir aí também decorre da inadequação da via eleita, caso se constate que o processo individual não tem condições de oferecer solução adequada para o caso apresentado.

Nesses casos, o controle adequado deve ser implementado por meio dos instrumentos dispostos no sistema processual coletivo, resguardando-se, desse modo, a inafastabilidade da jurisdição, sem, porém, os inúmeros problemas e distorções causados pela litigância individual em larga escala. Entretanto, deve garantir-se a tutela individual para as hipóteses em que não há criação ou alteração de política pública, mas somente exigência de prestação especificamente prevista no ordenamento jurídico. Trata-se de proposta alinhada à noção de acesso efetivo à justiça, intrinsecamente ligada ao valor igualdade, promovendo-se prestação jurisdicional mais justa no contexto da sociedade contemporânea.

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[1] Doutorando em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Mestre em Direito pela UFMS. Procurador da República no Ministério Público Federal em Campo Grande, MS.

[2] Doutora e Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Pesquisadora e professora permanente do Mestrado em Direitos Humanos da UFMS. Coordenadora do Grupo de Pesquisas no CNPq – Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Sustentável. Membro do CEDIS/UNL.

[3] Políticas públicas entendidas “como programas de ação governamental voltados à concretização de direitos”(BUCCI, 2001, p. 13). Uma política pública é constituída por “um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado” (COMPARATO, 1998, p. 45).

[4] “A expressão ‘reserva do possível’ foi difundida por uma célebre decisão da Corte Constitucional alemã proferida em 1972, e conhecida como o caso Numerus Clausus” (SARMENTO, 2010, p. 196).

[5] Nem se alegue que o Poder Público pode imprimir dinheiro – já que compete à União, por meio do Banco Central, emitir moeda – e, por isso, inexistira para ele limites por falta de numerário. Essa possibilidade é descabida porque a emissão de moeda deve observar dadas regras decorrentes da lógica econômica, uma vez que qualquer exagero aí pode ocasionar inflação além de limites aceitáveis e, com ela, necessário aumento da taxa básica de juros, com a consequente explosão da dívida pública e desorganização da economia, em prejuízos de todos.

[6] In verbis:  “§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.”

[7] O Projeto apresenta avanços para o adequado controle judicial de políticas públicas. O respectivo Anteprojeto foi encetado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ), presidido por Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe, após amplos estudos e debates acadêmicos (GRINOVER; WATANABE, 2013, p. 506-508).

[8] Para um resumo das teorias absoluta – segundo a qual há um conteúdo mínimo previamente determinado de cada direito fundamental social – e relativa – no sentido de que esse conteúdo essencial depende de ponderação à luz de cada caso – sobre o mínimo existencial, cf. COSTA, 2013, p. 349-350; e SARMENTO, 2010, p. 202-207.

[9]  Convém explicitar o que se designa pelo vocábulo “justiciabilidade”: não se trata da possibilidade de ajuizamento da demanda ou de seu conhecimento no mérito, mas sim da possibilidade de efetiva tutela jurisdicional, com a procedência do pedido formulado (WATANABE, 2013a; ZANETI JR., 2013). É claro, porém, que, mesmo reconhecida a justiciabilidade (que é uma potencialidade, uma possibilidade), em cada caso se faz necessária a análise de admissibilidade da demanda concretamente deduzida, por meio da verificação dos pressupostos processuais e das condições da ação, bem como o exame da existência do direito alegado, de sua violação etc.

[10] Watanabe defende, ainda, que os direitos sociais não englobados pelo mínimo existencial, mas estabelecidos em normas constitucionais com densidade suficiente são também justicializáveis imediatamente. Essa densidade suficiente refere-se à possibilidade de extração do texto constitucional da respectiva política pública, sem prévia interposição legislativa ou administrativa. Exemplo disso está no art. 230, § 2º, da Constituição (“§ 2º Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos.”) e em algumas previsões de direitos trabalhistas do art. 7º da Constituição. O aludido Projeto de Lei n. 8058/2014 (BRASIL, 2014a), cujo anteprojeto foi gestado sob os auspícios de Kazuo Watanabe e Ada Pellegrini Grinover, segue essa linha em seu art. 28: “Na hipótese de ações que objetivem a tutela de direitos subjetivos individuais cuja solução possa interferir nas políticas públicas de determinado setor, o juiz somente poderá conceder a tutela na hipótese de se tratar do mínimo existencial ou bem da vida assegurado em norma constitucional de forma completa e acabada, nos termos do disposto no parágrafo 1° do art. 7°, e se houver razoabilidade do pedido e irrazoabilidade da conduta da Administração.”

[11] Grinover estende essa ideia inclusive para regras constitucionais, ou seja, compreende que o mínimo existencial é “pressuposto para a eficácia imediata e direta dos princípios e regras constitucionais” (2013, p. 133). Parece carecer de sentido essa extensão. Em princípio, as regras jurídicas devem ser aplicadas tal qual são, independentemente de protegerem ou não o que se entende por mínimo existencial. Assim é com qualquer norma jurídica e não há razão alguma para ser diferente em relação às regras constitucionais; ao contrário, com ainda mais razão a incidência de regras previstas na Constituição deve ser rigorosamente observada.

[12] Cf. SARLET, 2008, p. 34; e WATANABE, 2013a. Watanabe, cuja posição é compartilhada por outros processualistas da Universidade de São Paulo (cf., p. ex., GRINOVER, 2013; e COSTA, 2013), entende que a fundamentalidade dos direitos sociais não se reduz ao mínimo existencial. “O mínimo existencial, além de variável histórica e geograficamente, é um conceito dinâmico e evolutivo, presidido pelo princípio da proibição de retrocesso, ampliando-se a sua abrangência na medida em que melhorem as condições sociais e econômicas do país” (WATANABE, 2013a, p. 219). Como se vê, apesar de propugnar a inoponibilidade da reserva do possível ao mínimo existencial, o autor sustenta que o conceito desse núcleo básico dos direitos sociais varia de acordo com as condições econômicas do país. Assim, como o conceito de mínimo existencial será definido no processo judicial em que se pleiteia a efetivação do direito, a consequência prática do pensamento do autor não difere da aceitação de oposição da reserva do possível contra prestação contida no mínimo existencial: para essa última posição, se comprovadamente não há recursos suficientes – em razão de gastos realizados com prestações tão ou mais importantes –, a reserva do possível pode ser exitosamente alegada; para o autor, como a situação econômica do país influencia na definição da amplitude do mínimo existencial, o Judiciário pode reconhecer, no processo, a partir da comprovada insuficiência de recursos, que a prestação pedida não compõe a ideia de mínimo existencial, negando-a, em conclusão similar à da tese da oponibilidade. Por outro lado, defender a vedação de retrocesso quanto à concretização de direitos sociais, com a consequente aceitação apenas de ampliações – e não restrições – do âmbito do mínimo existencial, a partir de melhora nas condições econômicas do país, parece, concessa maxima venia, não ser adequado. Ora, se as mudanças econômicas influenciam a definição do mínimo existencial para ampliá-lo, segue-se que, na situação econômica anterior (pior), justificava-se conceber o mínimo existencial com proporções mais reduzidas, ante a falta de recursos. Isso parece lógico e razoável. Afinal, a realidade não pode ser olvidada pelo Direito. Pois bem, e se essa situação econômica menos favorecida voltar a surgir, como no caso de uma recessão, por exemplo, situação bastante comum? A abrangência do mínimo existencial permanecerá fixa, mesmo sem recursos financeiros suficientes? Por que antes da melhora econômica, a falta de recursos justificava um mínimo existencial mais acanhado e, com a piora econômica, essa mesma carência financeira não deve ser levada em conta? Não se afigura razoável conferir tratamento distinto às duas situações. E mais: a realidade impõe-se em ambas.

[13] Cf., nesse sentido: STF, RE 581352 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, 2T, j. em 29/10/2013, DJe-230 21/11/2013; STF, ARE 639337 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, 2T, j. em 23/08/2011, DJe-177 14/9/2011; e STJ, REsp 811608/RS, Rel. Min. Luiz Fux, 1T, j. em 15/5/2007, DJ 4/6/2007, p. 314.

[14] A processualista cita, a respeito, precedente do STF (RE n. 482.611, Relator Ministro Celso de Mello).

[15] O orçamento público vincula-se aos objetivos do Estado brasileiro, explicitados no art. 3º da Constituição da República (CANELA JR., 2013).

[16] O modelo de litigância individual nessa seara acaba então por agravar aquilo que Boaventura de Souza Santos chama de predominância estrutural dos processos de exclusão sobre os de inclusão social. O autor português leciona que esses processos revelam-se por duas formas: a) o pós-contratualismo, pelo qual grupos e interesses sociais incluídos no contrato social são dele excluídos sem perspectiva de regresso; e b) o pré-contratualismo, pelo qual é bloqueado o acesso à cidadania a grupos que se consideravam candidatos a ela. Os assim excluídos do contrato social moderno, apesar de formalmente cidadãos, são lançados, de fato, num estado de natureza, em permanente ansiedade em relação ao presente e futuro, num caos constante em relação aos atos mais simples de sobrevivência e convivência, com o risco de surgimento de diversos fenômenos agrupados pelo autor sob a denominação fascismo societal (SANTOS, 1999).

[17] Dado apresentado por João Paulo Kleinubing, Secretário de Saúde do Estado de Santa Catarina, em Audiência Pública da Câmara dos Deputados, ocorrida em 1º/09/2015.

[18] Informação prestada por Arionaldo Bonfim Rosendo, Subsecretário de Planejamento e Orçamento do Ministério da Saúde, em Audiência Pública da Câmara dos Deputados, ocorrida em 29/8/2016.

[19] A proposta engendrada no aludido texto (de 1998) por Comparato, de lege ferenda, foi a criação de uma ação de controle concentrado, com legitimados específicos, de competência dos Tribunais de Justiça ou, se se cuidar de questão de âmbito nacional, do Supremo Tribunal Federal.

[20] Alguns tribunais não disponibilizaram os respectivos números.

[21] Acresça-se, também com Aluisio Gonçalves de Castro Mendes (2013), que tampouco o instituto da súmula vinculante oferece solução tão efetiva como as ações coletivas, pois os processos que incitam a edição de súmula vinculante demoram a chegar ao STF, de forma que, até lá, muitas ações sobre a questão já foram ajuizadas e apreciadas pelo Judiciário. Isso vale igualmente para os recursos repetitivos.

[22] O livro, cujo original foi editado em 1978, é um dos resultados de pesquisa interdisciplinar de Direito comparado denominada “Projeto Florença”.

[23] Diferentemente do que aqui se propõe, para Ada Pellegrini Grinover (2013), qualquer ação (de controle concentrado de constitucionalidade, coletiva, individual com efeito coletivo ou meramente individual) pode ser manejada para controle de políticas públicas, ainda que, como ressalva a autora, as demandas individuais exijam maior cuidado relativamente à escassez dos recursos públicos. Todavia, a pergunta que naturalmente surge dessa ressalva da processualista, mas fica sem resposta, é, na linha do que vem-se expondo: que cuidado é factível em cada um dos milhares de processos individuais sobre saúde ou vagas em creches, por exemplo?

[24] Embora o novo CPC não tenha tratado, como o revogado, da tão criticada categoria das condições da ação – ao menos com essa designação –, manteve a exigência de interesse de agir e legitimidade para a causa como requisitos para a apreciação do mérito (arts. 17, 330, II e III, e 337, XI).

[25] Parcela significativa da doutrina vem advogando a preferência da tutela coletiva ora defendida, mas ordinariamente ressalva a possibilidade de tutela individual. Ver, por todos: SARLET, 2016, p. 26.

[26] É a lição realista de Rodolfo de Camargo Mancuso (2012). O processualista não cuida do tema ora versado, mas sim de meios não judiciais de resolução de conflitos. Crê-se, todavia, que a argumentação encaixa-se também aqui.

[27] As ações individuais que veiculam pedidos de prestações objeto de direitos sociais, como o direito à saúde, não se confundem, via de regra, com o que Grinover (2013) e outros processualistas chamam de demandas individuais com efeitos coletivos, em cujo processo, em caso de procedência, resta tutelado não só o direito do autor como também o de dada coletividade interessada. É o caso, por exemplo, de demanda individual de vizinho de casa noturna ajuizada com o objetivo de obter a interdição de local em razão do excesso de barulho, ou seja, com o escopo de tutelar direito difuso que contempla toda a vizinhança. Já, por exemplo, nas inúmeras ações judiciais em que se pleiteia prestação de saúde, por outro lado, o provimento jurisdicional só aproveita ao demandante, pois a prestação concedida atende-o de forma específica ou individualizada, com o fornecimento de dado medicamento ou a realização de cirurgia, por exemplo.

[28] Correndo-se o risco próprio de simplificações, pode-se dizer que, para Bauman, o período em que vivemos é regido pela lógica do agora, do consumo e do prazer imediatos e, por consequência, pela liquidez, fluidez, leveza, volatilidade, incerteza e insegurança, em sucessão e contraste com a modernidade “sólida” (ou “pesada”, “condensada”), época que o antecedeu, na qual havia maior rigidez e durabilidade dos referenciais morais, das relações intersubjetivas, dos produtos etc. Essa vida quase sem referenciais (antes oferecidos pela religião, pela família, por ideologias políticas etc.), numa “sociedade de ‘indivíduos livres’”, acabou por levar à predominância do projeto individual de vida (individualismo exacerbado), pautado exageradamente pelo consumo, de sorte que as relações sociais, o próprio corpo e a própria vida são muitas vezes encarados como mercadoria.