O PROBLEMA ESTRUTURAL COMO PRESSUPOSTO DO PROCESSO ESTRUTURAL

O PROBLEMA ESTRUTURAL COMO PRESSUPOSTO DO PROCESSO ESTRUTURAL

1 de dezembro de 2021 Off Por Cognitio Juris

THE STRUCTURAL PROBLEM AS AN ASSUMPTION OF THE STRUCTURAL PROCESS

Cognitio Juris
Ano XI – Número 37 – Dezembro de 2021
ISSN 2236-3009
Autor:
Marcos Paulo Passoni[1]

Resumo: O presente ensaio visa relacionar o problema estrutural com o processo estrutural.

Palavras-chave: “Problema estrutural” e “Processo Estrutural”

Abstract: The present essay aims to relate the structural problem with the structural process.

Keywords: “structural problem” and “structural process”.

I. A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

A sociedade contemporânea é altamente digital, dinâmica e detentora de amplo conhecimento.[2]

Digital porque as pessoas estão vivendo inseparavelmente das tecnologias digitais e das máquinas. Consomem um enorme tempo de horas de seu dia no celular e os celulares contêm mais informação e tecnologia do que as naves que levaram o homem ao espaço[3]. Usam dispositivos tecnológicos inteligentes implantados ao próprio corpo (cyborg como cibernético organismo), em uma espécie de conectividade perpétua. O marca-passo no coração é modalidade mais antiga desta tecnologia inserida no corpo (1958), mas já existem tatuagens digitais, por exemplo, que podem acompanhar tecnologicamente os processos físicos do corpo, ou a pílula inteligente, desenvolvida pela Proteus Biomedical e Novartis, capacitada por dispositivo digital biodegradável anexado a ela, que transmite dados para o telefone do usuário sobre como o corpo está interagindo com a medicação[4]. A internet, a World Wide Web e a comunicação sem fio são meios habituais para comunicação interativa, sobretudo entre os jovens. Recentemente foi desenvolvida uma máquina voadora (flyboard Air) fabricada pela tecnologia de drone que carrega um homem sobre uma pequena prancha a 30 metros de altura e voa a uma velocidade de até 150 Km/hora, tendo percorrido em uma única viagem 2 mil metros. A cibernética está na base da biologia molecular, biotecnologia, genômica, ciência da computação, tecnologia da informação e participa do desenvolvimento da robótica, inteligência artificial e neurociência. Os vírus informáticos têm vida própria, fazem cópias de seus próprios programas, crescem e se desenvolvem e se multiplicam com reprodução perfeita e melhorada. Atualmente, uma máquina toca na outra e, pelo simples toque, se retroalimenta de energia, o que preocupa autoridades especializadas em segurança. Se os três sites mais populares de mídia social (Facebook, Twitter e Instagram) fossem países, eles juntos teriam 1 bilhão de pessoas a mais que a China[5]. Fortes indícios, contudo, existem sobre a manipulação das pessoas pelas ferramentas digitais como Facebook, WhatsApp e Instagram a provocar alteração negativa do tecido social[6]. O automóvel Ford GT tem 10 milhões de linhas de código de computador, e segundo a BMW no ano de 2015 8% dos carros em todo o planeta (84 milhões) estavam conectados à internet de alguma forma e em poucos anos a previsão é de 290 milhões de carros conectados à internet. Os carros semiautônomos e autônomos da Tesla ou do Google são uma realidade.[7] A inteligência artificial (IA) já está massivamente presente nos tribunais[8] e nos escritórios de advocacia. São carros, casas, escritórios e cidades inteligentes.

Dinâmica porque a expansão do arco do conhecimento provocou o aumento do desconhecido, tornando em grande medida a sociedade intranquila e mais dinâmica. O que era para sempre tornou-se instantâneo e o tempo presente que era sólido pelas certezas também tornou-se líquido[9]. A ideia de Zygmunt Bauman é a de que o líquido sofre mudanças e não conserva a sua forma por muito tempo, exsurgindo daí a metáfora do mundo líquido. A fluidez das relações pessoais, o passageiro, o individualismo digital, levam ao dinamismo social. As relações humanas, na visão deste pensador, se tornaram fluidas, efêmeras, individualistas, sem sentido de coletivo e buscam a felicidade como plataforma de um viver, o que é constantemente insatisfatório, insaciável, inacabável. A busca pelo entretenimento é altíssima nos países de primeiro mundo e parece ser uma busca por esta almejada felicidade inalcançável. A própria busca pelo modismo, que deixa de ser moda ao gosto dos fabricantes ou estações do ano, é causa de descontentamento e intranquilidade. A moda mais do que provocar uma individualidade do ser, provoca nele uma descaracterização. O descarte na sociedade contemporânea é enorme: por exemplo, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) divulgou que 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são perdidos no planeta a cada ano. A produção e remoção de lixo no Brasil são causas de um problema sanitário, social, dentre outros. A família também sofre as consequências dessa situação contemporânea (a casa não é mais ‘o lar’, mas mero ‘local de passagem’). A sociedade de consumo impõe mais laços e ligações (uma espécie moderna de escravidão) do que de verdadeira liberdade. Os próprios indivíduos não estão completamente comprometidos com uma identidade única ou estável para  toda a vida: o consumo, o modismo, etc. forma e torna a identidade do ser de acordo com a época. A economia global se caracteriza atualmente pelo enorme fluxo e troca praticamente instantânea de informação, capital e comunicacional. Uma mensagem de WhatsApp[10] atravessa países em segundos, a comunicação digital veiculada pelas redes sociais como Google, Twitter e Facebook foi substancial para a propagação de informações que muito provavelmente levaram ao levante social mobilizado e à revoluções no mundo árabe em prol da democracia a partir do ano de 2010. O Brasil tinha 95 milhões de habitantes em 1970, com quase metade desta população morando na área rural, 50 anos depois o Brasil atingiu no ano de 2020 o número de 212 milhões de habitantes, sendo que praticamente 85% dessa população vive em área urbana.[11] Boa parte dos postos de trabalho serão ocupados pelos robôs de acordo com a Federação Internacional de Robótica e o mundo em 2015 tinha 1,1 milhão de robôs em funcionamento. Atualmente as máquinas dão conta de 80% do trabalho na fabricação de um carro.[12]

De amplo conhecimento[13] é a sociedade contemporânea porque ela produziu uma quantidade enorme de informações e as entrelaçou a outra enorme quantidade de conhecimentos nas últimas décadas muito superior a todo o conhecimento produzido pela humanidade nos últimos séculos. O aumento na descoberta de conhecimento, em todas as suas modalidades e espectros, provocou o aumento do ‘campo conhecido’, o que necessariamente também aumentou a área deste campo a ser descoberta, exigindo a busca de novos conhecimentos, em uma situação de perpetuidade e infinitude e dinamicidade. É geometricamente verdadeira a máxima atribuída ao filósofo Sócrates de que ‘só sei que nada sei’. Atualmente um jovem estudante tem mais informação disponível do que os grandes cientistas de dois ou três séculos atrás. O conhecimento atualmente é aparentemente mais concreto, prático e voltado a ser aplicável. Fato é que além do conhecido ainda há o desconhecido, o que propulsiona a humanidade para a busca de mais informação/conhecimento. A sociedade da era do conhecimento se desenvolveu no contexto da revolução tecnológica, o que possibilitou o intenso fluxo de informações com velocidade e intensidade nunca visto. A educação à distância (EAD) é exemplo deste fluxo de informações velozes e intensas e onipresentes. A globalização do conhecimento imprimiu mudanças substanciais à sociedade contemporânea. O ser humano é produtor e produto do conhecimento.

Nisso, o que se vê, é uma sociedade contemporânea massificada, polarizada e burocratizada.

A sociedade contemporânea e o direito

A sociedade contemporânea, contemplada em parte por essas dimensões acima sucintamente delineadas, sofre interferências em suas relações[14]. Nas relações sociais, econômicas, culturais, políticas e jurídicas. A própria relação jurídica de direito material contemporâneo – espelhada e emergida nesta sociedade – em certa medida já se difere das relações jurídicas anteriores e, por efeito, a própria relação jurídica instrumental hodierna também se difere, em alguma medida, das relações instrumentais anteriores, a exigir um olhar ou técnica diferenciada sobre elas. Esta nova técnica pode ser de intensidade, qualidade ou de quantidade.

Basta imaginarmos o colapso da barragem do Fundão, pertencente à Samarco, no município de Mariana em Minas Gerais (2015), considerado um dos maiores desastres ecológicos do país[15], e o próprio tratamento jurídico instrumental diferenciado empreendido a este litígio estrutural, para vislumbrarmos a complexidade dessa situação social, política, econômica e jurídica.

Há a necessidade de uma atuação diferenciada ao problema; o próprio pedido formulado na petição inicial comumente envolve a imposição de um Plano com tempo, modo e grau de realização e com prazos pré-estabelecidos. Recentemente, nos autos da ADPF 746, em incidental pedido de tutela provisória, o STF – Supremo Tribunal Federal proferiu a seguinte decisão: “Em face do exposto, defiro em parte a cautelar pedida pelos requerentes para determinar ao Governo Federal que: (i) promova, imediatamente, todas as ações ao seu alcance para debelar a seríssima crise sanitária instalada em Manaus, capital do Amazonas, em especial suprindo os estabelecimentos de saúde locais de oxigênio e de outros insumos médico-hospitalares para que possam prestar pronto e adequado atendimento aos seus pacientes, sem prejuízo da atuação das autoridades estaduais e municipais no âmbito das respectivas competências; (ii) apresente a esta Suprema Corte, no prazo de 48 (quarenta e oito horas), ‘um plano’ (g/n) compreensivo e detalhado acerca das estratégias que está colocando em prática ou pretende desenvolver para o enfrentamento da situação de emergência, discriminando ações, programas, projetos e parcerias correspondentes, com a identificação dos respectivos cronogramas e recursos financeiros; e (iii) ‘atualize o plano em questão’ (g/n) a cada 48 (quarenta e oito) horas, enquanto perdurar a conjuntura excepcional.” A diferenciação também se dá comumente no procedimento, pois a adoção de um procedimento bifásico auxiliará na melhor tomada de decisões (normalmente fracionárias, ex vi do art. 356 do CPC) na segunda etapa do procedimento porquanto o processo já está mais alimentado com informações relevantes para o melhor direcionamento da prestação jurisdicional.

Mas, como se verá infra, esta situação de rompimento de barragem acima mencionada, bem como outras situações relacionadas ao tema, não é propriamente nova, mas a quantidade e intensidade delas, sim.

Este olhar técnico diferenciado na e para a prestação jurisdicional pelo Estado-Juiz vem ocorrendo na Itália desde a década de 1970 com Proto Pisani[16], e no Brasil, de modo mais intenso, desde o início da década de 1990 com apoio no texto Constitucional e com o amplo estudo sobre o tema das tutelas diferenciadas, sobretudo pelo ângulo da generalização do emprego da tutela antecipada, do antigo artigo 273 do CPC/73, as quais se aprimoraram em certa medida desde então, até o advento do Código de Processo Civil de 2015.

Nesta sociedade contemporânea, a considerar os últimos 50 a 100 anos, as empresas, a população, os vínculos sociais, as exigências políticas, econômicas, financeiras e a pluralidade cultural se modificaram, se transformaram e se ampliam em vários aspectos e cores.

Percebe-se, em suma, que ‘problemas aparentemente novos’ (e.g., rompimento de barragem ou excesso de capacidade de pessoas nas unidades prisionais brasileiras ou tentativa de erradicação do trabalho infanto-juvenil ou inventários de bens abundantes deixados pelo de cujus ou uma disputa de dissolução parcial de sociedade cuja sociedade detenha patrimônio abundante ou tecnicamente de difícil apuração pela multiplicidade de matéria; a insolvência de uma pessoa jurídica e todo o universo de bens, ativos e passivos)  não passam de problemas realmente velhos, porém, com maior intensidade, qualidade e quantidade. O problema não é novo, mas sua intensidade, quantidade e qualidade sim. É esta intensidade/qualidade/qualidade que impõe, em alguma medida, uma tutela diferenciada.

Nesta ordem de raciocínio e sociedade contemporânea, igualmente, se vislumbram ‘problemas genuinamente novos’ (e.g., acidentes com veículos autônomos ou robotizados conduzidos sem qualquer interferência humana, já com a primeira vítima fatal em 18 de março de 2018; a adoção de cirurgias plásticas em adolescentes; o emprego de vacinação em massa da população sem a prévia aprovação destas vacinas pelos órgãos competentes) os quais também merecem um tratamento diferenciado.

Esses problemas, sejam problemas classificados como novos (e.g., pedido de retirada de circulação de automóvel autônomo em razão de ocorrência de acidente fatal e potenciais falhas no sistema; ou a própria quantidade massiva e enorme de processos atualmente em tramitação no Poder Judiciário Nacional[17]; ou adolescentes que fazem cirurgias plásticas para se parecerem mais com as fotografias filtradas de seus perfis sociais[18]), sejam problemas classificados como velhos (e.g., tratamento desumano aos presos nas penitenciárias nacionais ocorridos desde a década de 1950 do Século XX), podem ser examinados para os fins e propósitos deste trabalho sob a ótica de um problema estrutural.

II. PROBLEMA ESTRUTURAL

O processo estrutural

Mas, afinal, o que é o processo estrutural?

Antes de ingressarmos no estudo sobre o problema estrutural, faz-se necessário tecemos algumas breves considerações sobre a ideia de processo estrutural, conquanto este não seja o objeto deste estudo.

Só há falar em processo estrutural se o fundamento da demanda estiver vinculado a um problema estrutural, como se pretende demostrar.

Logo, quanto mais se estudar, compreender e se delimitar as áreas de atuação, os contornos e colorações, e a essência mesmo do problema estrutural, mais eficaz e eficiente será a prestação da tutela jurisdicional pelo processo estrutural.

A ideia de processo estrutural (structural injunction) nasceu nos Estados Unidos da América. Juízes federais iniciaram a implementação de decisões da Suprema Corte de 1954, no caso Brown x Board of Education[19], as quais visavam garantir direitos iguais entre negros e brancos. O racismo da época era um racismo enraizado no seio social-cultural americano e era um problema que dependeria de vários atos e fatos para ser superado e/ou solucionado, não bastando de apenas um ato ou fato para grassar a sua solução ou superação. A solução para o processo estrutural não é automática, já se vislumbrava neste precedente. A ideia de consenso e amplo diálogo entre todos os envolvidos para a solução do problema também se mostrou de relevo para ‘desenraizar’ o racismo do seio social-cultural e ‘des-consolidá-lo’ da sociedade americana. Planos foram apresentados às comunidades para superação deste problema. Além disso, também pode se dizer que foi extraído deste caso a ideia de que, não se altera um problema desta magnitude com mudanças brutas e, sim, com atos flexíveis e maleáveis e decisões escalonadas. É pedra de toque do processo estrutural a flexibilidade dos atos processuais e do procedimento, assim como, o são as decisões escalonadas que fundadas (sobretudo hodiernamente pelo comando do art. 356 do CPC/2015) irão guiar as medidas e técnicas estruturais no caminho de solução (ou primeira superação ou primeiro passo a caminho da solução)  do problema estrutural.

No Brasil, o caso emblemático e tratado por aqui como um dos primeiros processos estruturais do país foi a “ACP do Carvão”.

A ação civil pública de n. 93.8000533-4/SC (5000476-90.2018.4.04.7204), distribuída para a 1ª Vara Federal de Criciúma, foi ajuizada em 1993 pelo Ministério Público Federal contra a União, Estado de Santa Catarina e empresas mineradoras da região que atuavam na bacia carbonífera localizada no sul do Estado de Santa Catarina. O pedido desta ACP do Carvão foi no sentido de impor a recuperação da região degradada e a indenização pelos danos causados, além do reconhecimento da solidariedade entre os réus para o seu pagamento. Para a recuperação das áreas afetadas, pleiteou o MPF fossem os demandados condenados na apresentação de um cronograma (‘Plano’) de execução das tarefas voltadas à amenização dos danos ambientais, dentre outros pedidos.

Em 2002, em suma, a sentença de 52 laudas condenou todas as empresas, a União e o Estado de Santa Catariana a apresentarem, no prazo de 6 meses, um projeto ou plano de recuperação ambiental da região, com cronograma (‘Plano’) de execução de três anos. A decisão de primeiro grau foi confirmada praticamente[20] na íntegra pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região TRF-4, em outubro de 2002. Nos tribunais Superiores o processo tramitou sem alteração do comando da sentença, confirmado pelo v. acórdão, quanto à ordem de obrigação de fazer o ‘Plano’ para a recuperação da degradação ambiental. Os autos baixaram do STF – Supremo Tribunal Federal em setembro de 2014.

Existiram três fases de execução da ACP do carvão. A primeira execução da decisão (2002 a 2004) foi no sentido de reunião de informações necessárias para subsidiar ulterior execução já que a r. sentença e decisões anteriores haviam sido muito genéricas (“apresentem um plano de recuperação”) sem detalhar a forma, o tempo e o grau de se realizar tal Plano. A segunda execução (2004 a 2005) foi concentrada na atuação do Ministério Público ao identificar insuficiências ou irregularidades ou inconsistências no plano de recuperação apresentado pelos demandados. A terceira fase (2006 a 2009) instituiu o Grupo de Assessoramento Técnico do Juízo (GTA) que contemplava um grupo de especialistas da área ambiental externos ao feito, assim como nesta fase os demandados foram compelidos a apresentar plano de recuperação de acordo com a padronização e indicadores apontados pelo Ministério Público Federal.

Destes dois processos acima resumidamente trabalhados e exemplificados (Brown x Board of Education e a ACP do Carvão)  extrai-se a ideia central de que o processo estrutural tem necessariamente em sua base (leia-se, em sua causa de pedir) um problema estrutural.

Sem o problema estrutural, o processo não ganhará o título de processo estrutural e não poderá ser tratado como tal. Processo estrutural é substancialmente sinônimo de problema estrutural, a evidenciar a importância deste tema – antes mesmo do estudo do processo estrutural.

Nesta linha de ideia, o processo estrutural foi conceituado pela doutrina nacional com “um processo coletivo no qual se pretende, pela atuação jurisdicional, a reorganização de uma estrutura, pública ou privada, que causa, fomenta ou viabiliza a ocorrência de uma violação a direitos, pelo modo como funciona, originando um litígio estrutural.”[21]

O processo estrutural, sucintamente acima apresentado, tem como propósito promover, em procedimento transitório e normalmente bifásico, o içamento do estado de coisas de desconformidade atual e consolidado (e.g., o racismo estruturado, a degradação ambiental estruturada, a omissão estatal latente etc.) e colocá-lo no estado de coisas ideal desejável (e.g. de superação do racismo, de superação da degradação do meio ambiente, de superação da omissão estatal etc.).

Por tais razões, o estudo do problema estrutural é de fundamento importância, porquanto só há falar em processo estrutural diante de um verdadeiro problema estrutural. A existência de um processo estrutural depende da existência de um problema estrutural.

O conceito de problema estrutural

Afinal, no que consiste o termo problema estrutural e como ele pode ser conceituado.

É possível tentar conceituar o problema estrutural com um estado de desconformidade consolidado que merece ser transferido deste estado de coisa atual para um estado de coisa ideal[22] desejável a ser atingido (state of affairs, idealzustand).[23]

Mais especificamente, problema estrutural pode ser um ato ou situação jurídica consistente em um estado de coisa atual, lícito ou ilícito, causado por ato omissivo ou comissivo, de natureza relacionada à direito processual ou à material, e à direito individual ou coletivo, dentre outros, existente em momento pré-processual ou intra-processual, e que necessita ser içado, por planejamento, flexibilidade, consenso, transitoriedade e decisões escalonadas com estabelecimentos de metas e desdobramento destas metas, deste estado de coisa atual (permanente e consolidado) para um estado de coisa ideal desejado a ser atingido como ato fim.

Pelo dicionário[24] o estado de coisa tem amplo sentido e pode significar como o último estado em que a coisa se encontra — geralmente dito status quo. Especificamente, estado de coisa atual pode ser definido como uma situação qualificada por determinadas qualidades desconformes e o estado de coisa ideal desejada como uma situação qualificada por determinadas qualidades conformes. Naquele há um estado de desconformidade, neste um estado de coisa em conformidade. O estado de coisa atual é o que deve ser objeto de transição e o estado de coisa ideal transforma-se em um fim a ser alcançado ou perseguido por aquela transição, de modo que metas e medidas e técnicas estruturantes servirão de bases ou plataformas para realizar tal transição e superação entre os estados de coisa, inicial e final.

O estado de coisa relativo à situação ou ato

O estado de desconformidade atual consolidado ou estado de coisa atual pode se referir a uma situação jurídica[25] ou a um ato. Situação lato sensu traz a ideia de estado e condição das coisas e pessoas em relação a outras; situação jurídica é de sentido genérico, exprimindo sempre, respeitante às pessoas, a posição ou condição em que se encontram em relação ao direito que lhes é assegurado[26]. Como situação jurídica poderíamos exemplificar como o estado desumano das prisões nacionais, o estado de falta de vagas em creches para as crianças, o estado de ausência de fornecimento adequado de próteses para os cidadãos desvalidos. Por vez, o estado de coisa atual consolidado pode se referir a um ato. Ato deriva do vernáculo actus, de agir, levar, conduzir, tem o sentido de indicar, de modo geral, toda ação resultante da manifestação de vontade ou promovida pela vontade da pessoa; em suma, é tudo o que acontece com e pela vontade de alguém[27].  Como ato jurídico poderíamos exemplificar como o estado de coisa procedimento retardado ou ineficiente na  nomeação de apenas um perito para a avaliação de dezenas ou centenas de imóveis ou no ato de nomeação de um perito para a avalição de uma empresa beneficiária de incentivos fiscais estaduais envoltos ao tema de direito municipal, direito tributário, direito processual, direito administrativo, dentre outros, além de elementos contábeis, econômico e financeiro, em uma ação de dissolução parcial de sociedade empresária ou em uma ação de prestação de contas; ou mesmo em uma ação coletiva. Vislumbra-se aqui, no primeiro exemplo, um estado de situação jurídica atual que merece ser levado ao estado de situação jurídica ideal a ser atingido (e.g. com a superação da falta de vagas nas creches ou da superlotação dos presídios), assim como no segundo exemplo um estado de procedimento processual atual que merece ser levado ao estado procedimental ideal a ser atingido (e.g. a superação da demora pericial diante da complexidade posta na lide).

O estado de coisa desconforme ao Direito

O problema estrutural pode estar relacionado à situação ou ato de ilicitude ou de antijuridicidade.

Aliás, os princípios ou regras não se limitam a proibir, permitir ou obrigar a abstrata cominação e aplicação da lei e da Constituição Federal, mas a proibir, permitir ou obrigar a concreta cominação e aplicação da lei e da Constituição Federal. Problema estrutural visto de forma abstrata, apenas, não merecerá maiores preocupações do ordenamento jurídico. São os problemas estruturais concretos e merecedores de superação ou de solução, este o verdadeiro objeto do Direito e do litígio estrutural com a pacificação do conflito.

São os prováveis requisitos para o reconhecimento do estado de coisas contrário ao Direito: (i) vulneração massiva e generalizada de direitos, normalmente de direitos fundamentais, de um número significativo de pessoas; (ii) prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantia e promoção dos direitos; (iii) a superação das violações de direitos pressupõe a adoção de medidas e de técnicas estruturantes, normalmente complexas e por uma pluralidade de órgãos, (iv) envolvendo mudanças estruturais, de estrutura privada ou pública, e, que podem depender da alocação de recursos públicos, correção das políticas públicas existentes ou formulação de novas políticas, dentre outras medidas; e (v) potencialidade de congestionamento da justiça, se todos os que tiverem os seus direitos violados acorrerem individual ou coletivamente — de forma não-estrutural — ao Poder Judiciário.[28]

O problema estrutural normalmente estará relacionado à desconformidade ao Direito, contudo, esta desconformidade ao Direito não-necessariamente é requisito para se classificar o problema como problema de ordem estrutural, já que o problema estrutural pode emergir apenas de uma situação de desconformidade lícita e jurídica, sendo que tal distinção será examinada no próximo item deste capítulo.

O problema estrutural consistirá, comumente, como situação ou ato ilícito ou antijurídico.

Genericamente, o problema estrutural pode ser de ordem de inconstitucionalidade ou de ilegalidade ou de mera desconformidade, cujo estado de coisas atual consolidado deve ser içado a um estado de coisas ideal desejável.

O estado de coisa de mera desconformidade

A doutrina especializada no tema tem defendido como condição necessária à classificação dos problemas estruturais uma situação de estado de coisas consolidado “contrária ao Direito[29] ou “em violação a direitos[30].

Ao nosso sentir, contudo, o estado de coisas atual consolidado não deve ser necessariamente classificado como ilícito ou antijurídico.

 Defenderemos no curso desta dissertação que o estado de coisas de desconformidade atual pode enquadrar-se em ‘situação lícita’ ou em um ‘ato lícito’ que, primeiramente, merece ser visto como uma situação ou ato em mera desconformidade (sem qualquer atribuição de ilícito ou antijurídico) e, depois, possa ser efetivamente examinado pelas partes e juízo como situação ou ato em desconformidade ao Direito ou como situação ou ato de mera desconformidade sem ser exatamente antijurídico, os quais, um ou outro, merecem ser levados ao estado de coisa ideal desejável a ser atingido, o que homenageará a celeridade processual consoante os termos do art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal. O problema estrutural não é necessariamente um ilícito ou necessariamente ligado a uma situação antijurídica, em suma[31].

A ilicitude ou antijuridicidade não é caraterística marcante e exclusiva do problema estrutural. Ao problema estrutural o destino da práxis forense não reservou tal exclusividade.

O estado de coisa em situação de jurisdição contenciosa ou voluntária

O problema estrutural veiculado substancialmente em algum litígio estrutural ora está envolto à lide, à relação jurídica processual formada entre partes (sob o ângulo de serem sujeitos altamente parciais), que irrogam resistência entre si e, ao final, há fixação de verba de sucumbência, o que é característico da jurisdição contenciosa.

Contudo, entre os problemas estruturais examinados por este trabalho em alguns litígios também se veiculam mera controvérsia, não há propriamente partes mas interessados, nem resistência, e, ao final, não há fixação de verba honorária de sucumbência e, em alguns casos, sequer há recursos interpostos contra a decisão final de primeiro grau. Além disso, tem o litígio estrutural a pretensão de constituição de algo novo, o estado de coisas ideal desejável. Por exemplo, embora com certas imprecisões para tal fim exemplificativo, na ADPF 347 distribuída perante o STF – Supremo Tribunal Federal, a qual cuidou da tentativa de humanização dos presídios, inexistiu propriamente pretensões resistidas daqueles entes que ocuparam o polo passivo do feito, inexistiu entre os interessados envolvidos posições antagônicas, inexistiram contestações propriamente, praticamente, de modo atípico, não houve interposição de recursos contra as decisões proferidas no curso desta ADPF, nem a fixação de honorários de sucumbência etc., o que remete a nítida ideia da jurisdição voluntária.

O problema estrutural ao que consta pode desaguar em um conflito estrutural em jurisdição contenciosa ou em jurisdição voluntária.

O estado de coisa por ato omissivo ou comissivo

O estado de coisas atual permanente parece ser provocado normalmente por ato comissivo.

As instituições públicas ou privadas em geral atuam concretamente, seja com grande ou baixa intensidade, pela manutenção daquele estado de coisas petrificado, sobretudo quanto é o caso de um estado de coisas de mera desconformidade (sem ilicitude, portanto).

Entretanto, o estado de coisas atual consolidado também pode ser provocado pela permanente postura omissiva das instituições públicas ou privadas à luz de determinadas situações ou atos. Neste caso há uma inércia ou inação prolongada no tempo e provocadas pela ausência de exercício das funções, poderes ou dos deveres (públicos ou privados) destas instituições, diante de determinada situação concreta, a provocar tal perpetuidade e estado de inalterabilidade enraizada. Ainda que haja atuação insuficiente, mas haja atuação, o ato é comissivo, porém de baixa intensidade, ou, por vez, a atuação insuficiente ou frágil de baixa intensidade poderá ser considerada ato de inércia, mas ambas causam a permanência do estado de cosias atual consolidado (lícito ou ilícito) merecedor de transitoriedade para outro patamar.

Existem várias modalidades de comportamento-omissivo prolongado no tempo a consolidar a situação também no espaço-tempo, mas uma em especial merece atenção verticalizada, qual seja, a inércia na produção normativa que perdura no tempo por prazo irrazoável, a caracterizar retardamento abusivo da situação jurídica ou ato, que, por exemplo, pode acarretar grave lesão a direito subjetivo ou coletivo (ilicitude), ou ainda acarretar a mera consolidação do estado de coisas de forma lícita; a inércia na produção normativa caracteriza-se pela não aplicação intencional e prolongada de disposições constitucionais pelos poderes incumbidos de lhes garantir e dar cumprimento e execução.

Esta situação de inação na produção normativa, e.g., pode culminar na impetração de ‘mandado de injunção de natureza estrutural’, fundada no art. 5°, LXXI, da Constituição Federal e Lei 13.300/2016,com vistas a suprir falha estrutural omissiva no ordenamento. Vale dizer, o mandado ao visar tornar viável os direitos e liberdades constitucionais ou prerrogativas relacionadas à nacionalidade, soberania ou cidadania, pode ser considerado uma demanda estrutural. Com isto não se quer dizer que todo e qualquer mandado de injunção terá natureza estrutural, mas, sim, se quer dizer que, a depender da omissão normativa a ser suprima pela pretensão do mandado, com traços a solucionar um problema estrutural, aí sim o mandado de injunção (individual ou coletivo) poderá vir a receber o selo de processo estrutural.

De um ato comissivo ou omissivo, pode emergir um estado de coisas atual consolidado, a exigir solução estrutural.

O estado de coisa relativo ao direito material ou ao direito processual

O problema estrutural pode ter natureza relacionada ao direito material ou à natureza do direito processual.

Normalmente, o problema estrutural material surge na sociedade, fixa-se no seio social, instaura-se e ulteriormente haverá de ser conduzido e levado pelos órgãos de Estado ao estado de coisa ideal, seja via consensual, seja via instrumental processual. A transposição do estado de coisa atual para o estado de coisa ideal desejado passa pelo direito material. O estado de coisas atual consolidado pode ter natureza de direito material civil, penal, administrativo, familiar, empresarial etc. Normalmente, o problema estrutural processual irá nascer no curso do processo (como procedimento) e normalmente estará ligado umbilicalmente ao estado de coisa procedimental atual que merecerá ser levado e conduzido ao estado de coisa procedimental ideal. A transposição do estado de coisa procedimental atual para o estado de coisa procedimental ideal desejado também pode passar pelo direito instrumental. O estado de coisas atual consolidado pode ter natureza de direito processual civil, processual penal, processual administrativo, processual familiar, empresarial etc. O ‘mando de injunção de natureza estrutural’ mencionado no item anterior pode ter como objeto norma constitucional de índole material ou instrumental, a explicar tal exposição.

Logo, o estado de coisa atual consolidado também pode ter natureza de direito material ou mesmo direito instrumental violados.

O estado de coisa de natureza relativo ao direito coletivo ou individual

O problema estrutural pode envolver o direito coletivo ou o direito individual.

O problema estrutural normalmente está relacionado à situação complexa e de dimensões coletivas como, por exemplo, a necessidade de fornecimento de próteses para inúmeras pessoas de um estado, a reorganização do sistema penitenciário nacional, a instalação de Defensoria Pública em diversos municípios do país. Essa posição, qual seja, de que o problema estrutural tem necessariamente natureza coletiva, é defendida pela doutrina tradicional sobre o tema[32].

Entretanto, o estado de coisas atual consolidado não está, necessária e exclusivamente, ligado ao direito coletivo, eis que existem situações ou atos não atrelados ao direito coletivo e que se encontram em posição merecedora de reorganização e reestruturação sob uma visão de processo estrutural. São situações ou atos envolvendo problema estrutural de natureza material ou instrumento de dimensão de direito individual. O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990), p. exemplo, estabelece em seu artigo 98 medidas de proteção à criança e ao adolescente sempre que seus direitos forem violados, de modo que o ‘período de transição’ entre o estado de coisas atual consolidado (e.g., criança ou adolescente desintegrados da família) com o fim de atingimento do estado de coisa ideal desejável (e.g., criança ou adolescente reintegrados à família ou integrados à família substituta) haja o acolhimento deles em instituições ou em famílias substitutivas, o que envolve esta perspectiva direito individual de cada adolescente ou criança.

Outro exemplo de problema de natureza em conformidade ao direito individual e, evidentemente, de natureza estrutural, mas que não foi examinado por este prisma da estruturalidade, foi à situação jurídica disputada em ação possessória aforada no século XIX, em 1895, portanto há 125 anos, pelo Conde e pela Condessa d’Eu, Princesa Isabel, contra a União, em que se discutiu a posse do Palácio Isabel, atual Palácio Guanabara, localizado no Rio de Janeiro, para repelir a natureza de bem próprio nacional do Decreto n. 447 de 1891 ao argumento de confisco de bem particular pelo Estado Brasileiro. Cento e vinte e cinco anos depois o problema individual e 125 anos depois do ajuizamento deste processo, o conflito jurídico não terminou e ainda tramita no STF – Supremo Tribunal Federal.·.

Ao processo estrutural não cabe apenas solucionar problemas ligados ao direito coletivo, mas também à direitos individuais[33].

III – CONCLUSÃO

Como visto acima, o problema estrutural é o estado de desconformidade consolidado que merece ser transferido deste estado de coisas atual enraizado (e.g. superlotação em presídios; desmatamento demasiado em florestas; ausência de atuação do estado em situação de calamidade sanitária; ausência de legislação regulamentadora diante de necessária proteção as liberdades constitucionais etc.) para um estado de coisas ideal desejável a ser atingido (state of affairs, idealzustand), exemple gratia, com a superação do estado de superlotação dos presídios, com a superação do desmatamento exagerado de florestas nativas; imposição de atuação do estado em situação de calamidade sanitária, normalmente com a adoção de um plano de curto, médio e longo prazo de implementação; supressão legislativa pela eventual impetração de um mandado de injunção estrutural.

A provável lição deste estudo é a de que não pode haver processo estrutural sem a existência de um problema estrutural. A existência de um problema verdadeiramente estrutural qualificará o processo como estrutural. Processo intitulado de estrutural sem estar finalisticamente visando solucionar um autêntico problema estrutural perderá o título de processo estrutural e não poderá receber as eventuais benecesses da tutela diferenciada que a ele se deve aplicar comumente.

Assim, como se denota do exposto acima, o problema estrutural é pressuposto para a validão de um autêntico processo estrutural. Existe quase uma sinonímia entre processo estrutural e problema estrutural.

Posto isto, para melhor prestação jurisdicional e homenagem aos ditames contemplados na Constituição Federal da República Brasileira, é de fundamental importância, ao nosso sentir, o estudo substancial e verticalizado do ser: o problema estrutural.

Bibliografia:

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como

teoria da fundamentação jurídica. 2 ed. São Paulo: Landy Editora, 2005.

_______. Teoria dos direitos fundamentais. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

ARENHART, Sergio Cruz, JOBIM, Marco Félix (org.). Processos estruturais. Salvador: Editora Juspodivm, 2017.

CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. O processo estrutural enquanto forma de objetivação e o ativismo judicial in Revista de Processo RePro 297, de novembro de 2019. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019.

COSTA, Susana Henriques da; WATANABE, Kazuo; GRINOVER, Ada Pellegrini (Org.). O processo para solução de conflitos de interesse público. Salvador: JusPODIVM, 2017.

COTA, Samuel Paiva; NUNES, Leonardo Silva. Medidas estruturais no ordenamento

jurídico brasileiro: os problemas da rigidez do pedido na judicialização dos conflitos de interesse público. Brasília: Revista de Informação Legislativa: RIL, v. 55, n. 217, p. 243-255, jan./ mar. 2018.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

_______. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GALDINO, Matheus Souza. Breves reflexões sobre as consequências de uma compreensão teleológica dos fatos para a teoria do processo estrutural. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (Org). Processos estruturais. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 675-725.

NERY Jr., Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal, 10ª ed., São Paulo: Ed. RT, 2020.

_______ e Nery, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado, 15ª ed., São Paulo: Ed. RT, 2019.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MEDEIROS JÚNIOR, LEONARDO. Processo estrutural consequencialista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord). Direito jurisprudencial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.


[1] Doutorando em Direito pela PUC-SP. Mestre em Direito Difusos e Coletivos pela Unimes-Santos. Bacharel em Direito pela PUC-SP. Professor de Direito Processual Civil da Escola Superior de Advocacia de São Paulo. Advogado.

[2] O presente capítulo não tem a pretensão de esmiuçar as situações acima expostas e, sim, evidenciar que a maioria delas inexistia ou sequer era imaginada há menos de meio século, o que pode significar que os instrumentos processuais e o próprio direito material, que sempre caminharam logo atrás do passo a passo do desenvolvimento da sociedade, aparentemente, podem estar mais distantes de alcançar este passo social digital, complexo, dinâmico e de altíssimo conhecimento.

[3] “É utilizada a mesma quantidade de processamento para responder a uma busca no Google que o processamento utilizado – em voo e no chão – em todo o programa Apollo”, in A quarta revolução industrial, Klaus Schwab, São Paulo, Edipro, Traduzido por Daniel Miranda, p.124.

[4] A quarta revolução industrial, Klaus Schwab, São Paulo, Edipro, Traduzido por Daniel Miranda, p.117.

[5] A quarta revolução industrial, Klaus Schwab, São Paulo, Edipro, Traduzido por Daniel Miranda, p.119.

[6] e.g., quem recebe notícias previamente selecionadas e direcionadas ao seu exclusivo “gosto” e perfil ideológico, e nada sobre o “gosto” contrário e o perfil ideológico diverso ao seu, tem uma visão de mundo distinta e fechada da realidade, como se o outro sujeito (olha aí a polarização) nada enxergasse, quando em realidade sua visão foi “dolosamente” fechada e enviesada pelo direcionamento dessas notícias que servem para fisgar lentamente e magicamente a audiência instantânea e permanente deste usuário nas mídias sociais, causando distopia como controle opressivo da sociedade, o que pode eclodir, ao nosso sentir, em riscos ou ameaças à existência.

[7] Dois hackers em 2015 demonstraram que podiam invadir o sistema de um carro em movimento, controlar as funções de seu painel, direção, freios etc., tudo através do sistema de entretenimento do veículo, in A quarta revolução industrial, Klaus Schwab, São Paulo, Edipro, Traduzido por Daniel Miranda, p.130.

[8] O STF tem um dos mais complexos sistemas de inteligência artificial do Poder Judiciário, apelidado de “Victor”, em homenagem ao Ministro Victor Nunes Leal, precursor das súmulas.

[9] Tempos líquidos na linguagem do sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

[10] Vivian Patrícia Peron Vieira, in “O papel de comunicação digital na primavera árabe: apropriação e mobilização social”, artigo apresentado ao grupo de trabalho de comunicação e sociedade civil no V Congresso da Compolítica, Curitiba/PR, em 2013. O trabalho apresenta as mudanças econômicas, políticas e sociais decorrentes do advento da internet em escala internacional, assim como as suas três dimensões fundamentais: digitalização, convergência e mobilidade.

[11] De acordo com dados da pesquisa nacional por amostra de domicílio (PNAD) de 2015.

[12] in A quarta revolução industrial, Klaus Schwab, São Paulo, Edipro, Traduzido por Daniel Miranda, p.144.

[13] O termo conhecimento é inintercambiável com o termo informação: informação são dados (tais como fatos e números brutos relativos a pessoas e coisas) estruturados, organizados e processados analiticamente, ao passo que o termo conhecimento (cognoscere) é a habilidade dos humanos para articular e aplicar tais informações.

[14] Lourival Vilanova, in Causalidade e relação no direito, 4ª ed., São Paulo, RT, 2000, p. 39.

[15] O primeiro rompimento relevante de barragem no Brasil ocorreu em 1986 com a Barragem do Fernandinho, município de Itabirito, em Minas Geral, com 7 mortes.

[16] O estudo deste jurista representou um marco histórico ao discutir que a técnica procedimental uniforme seria um obstáculo à adequada prestação jurisdicional, ensinam as lições datadas de 1973 de PROTO PISANI, Andrea. “Orbene, allorché il legislatore deve predisporre una forma di tutela giurisdizionale per una singola categoria di diritti non può non tener conto delle peculiarità proprie di questi diritti (diritti evidentemente individuate anche dai soggetti che ne sono titolari) allo scopo di predisporre un procedimento tecnicamente adeguato allo specifico bisogno di tutela. É questa un’osservazione banale, su qui però la dottrina processualistica non ha riflettuto sufficientemente, forse perchè a ciò non sollecitata adeguatamente da Chiovenda, che non ebe il tempo di sistemare nelle Istituzioni la materia trattada. nell’ultima parte dei Principi” (in Tutela giurisdizionale differenziata e nuovo processo del lavoro. In Studi di diritto processuale del lavoro. Milano: Giuffrè, 1977. p. 660-663). Tradução livre pelo autor: “Contudo, quando o legislador deve preparar uma forma de proteção judicial para uma única categoria de direitos, ele não pode deixar de levar em conta as peculiaridades desses direitos (direitos evidentemente também identificados pelos sujeitos que o detêm) a fim de preparar um procedimento tecnicamente adequado à necessidade específica de proteção. Esta é uma observação trivial, mas a doutrina processual não tem refletido suficientemente sobre isso, talvez por não ter sido devidamente solicitada por Chiovenda, que não teve tempo de resolver o assunto tratado nas Instituições  na última parte dos Princípios”.

[17] Apesar da queda na taxa de congestionamento, maior produtividade dos magistrados, maior número de centros de solução de conflitos, virtualização dos processos e queda nos números de processos, atualmente, o Brasil ainda tem 77,1 milhões de processos em tramitação (Dados de dez./2019), como informa o sítio eletrônico do  CNJ in  https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB_V2_SUMARIO_EXECUTIVO_CNJ_JN2020.pdf, consultado em 07.11.2020, às 10:46h.

[18] “Jovens fazem cirurgias plásticas para ficar parecidos com suas selfies com filtro”, informa a BBC News Brasil em seu sítio eletrônico https://www.bbc.com/portuguese/geral-43910129, consultado em 07.11.2020, 11:12h: “De acordo com um novo estudo da Academia Americana de Cirurgia Facial, Plástica e Reconstrutiva, 55% dos cirurgiões plásticos faciais atenderam em 2017 pacientes que queriam passar por cirurgias para aparecer melhor em selfies, em comparação com 13% em 2013.” “Ao mesmo tempo, o uso de redes sociais parece ter um impacto negativo na autoestima. De acordo com um estudo de 2015 do Escritório Nacional de Estatísticas do Reino Unido, 27% dos adolescentes que usam mídias sociais por mais de 3 horas por dia apresentam sintomas de problemas de saúde mental. A combinação desses fatores talvez explique o surgimento da chamada “dismorfia de Snapchat”.”. Isso tudo faz lembrar a frase: “Se você não está pagando pelo produto, é porque você é o produto.”

[19] Brown v. Board of Education – 347 U.S. 483 (1954).

[20] No TRF-4 o processo e recurso de Apelação ganhou o n. 2001.04.01.016215-3. Todas as empresas foram condenadas, com exceção de uma, por ter adquirido a carbonífera após a ocorrência dos danos; o Estado de Santa Catarina também foi excluído de responsabilidade pelos danos causados, vez que, à época, a competência administrativa em relação às jazidas, minas e demais recursos minerais era privativa da União Federal; os sócios das empresas também foram condenados por falta de provas, de excesso de poderes ou abuso de direito ou violação à lei; houve provimento também aos recursas das empresas mineradoras para aumentar o prazo para cumprimento das determinações sentenciantes.

[21] Edilson Vitorelli, in Processo Estrutural, Ed. Podivm, Salvador, Bahia, p. 60. Particularmente, defendemos que o processo estrutural pode envolver também um processo individual (não necessariamente coletivo), bastando imaginarmos o pedido de um deficiente físico para que sua escola seja adaptada a ele. Em um grau menor, mas a falta de acessibilidade é um problema estrutural que, ao ser solucionado, atingirá a todas as demais pessoas via processo individual. Também defendemos que o conceito de processo estrutural deve abarcar situação de licitude e não penas de situação antijurídicas.

[22] Galdino, Matheus Souza. “Breves reflexões sobre as consequências de uma compreensão teleológica dos fatos para a teoria do processo estrutural”. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (Org). Processos estruturais. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 705.

[23] É princípio elementar de lógica que, quanto menos extenso, maior a compreensão do conceito, mais rica as notas que o singularizam, ensinou Galeano Lacerda in Despacho Saneador, Livraria Sulina, Porto Alegre, 1953, p. 77.

[24] Vocabulário Jurídico, De Plácido e Silva, RJ, 2014, p. 555.

[25] Existem também situação preponderantemente  econômica, cultural, política, ambiental, dentre outras.

[26] Vocabulário Jurídico, De Plácido e Silva, RJ, 2014, p. 1.308.

[27] Vocabulário Jurídico, De Plácido e Silva, RJ, 2014, p. 160.

[28] Este rol de requisitos para a composição do estado de coisas contrário ao Direito advém de um conceito mais  restrito sobre estado de coisas inconstitucional de Carlos Alexandre de Azevedo Campos, in Da Inconstitucionalidade por Omissão ao “Estado de Coisas  Inconstitucional”. Tese de doutorado aprovada na Faculdade de Direito da UERJ sob a orientação do Prof. Daniel Sarmento, 2015, p. 134-138.

[29] Matheus Souza Galdino, Processo Estrutural, Ed. Juspodivm, 2020, p. 41, 122 e 217, expõe seu pensamento como se o estado de coisa, necessariamente, originasse fatos contrários ao Direito, o que não nos parece adequado e esta dissertação pretende demonstrar o contrário: existe um estado de coisa procedimental, por exemplo, que decorre de decisão judicial lícita e que em muitos casos sequer é recorrida pelas partes, pois elas não perceberam que o ato decisória poderia ser melhor estruturado procedimentalmente, ou poderia ser visto pelo ângulo da reestruturação ou da reorganização procedimental. Não é erro de direito, não é erro de procedimento, mas um erro de estrutura.

[30] Edilson Vitorelli, in Processo Civil Estrutural: teoria e prática, Ed. Juspodivm, 2020, p. 219, explica que “o processo coletivo estrutural é um mecanismo no qual se pretende, pela atuação jurisdicional, a reorganização de uma estrutura burocrática, pública ou privada, que causa, fomenta ou viabiliza a ocorrência de uma ‘violação a direitos’.” (g/n).

[31] Um exemplo pode elucidar a exposição do assunto. A situação fiscal permanente e calamitosa de um Estado Brasileiro, que necessite de um Regime de Recuperação Fiscal, pode ser classificada como um estado de coisas degradante na perspectiva da situação fiscal atual deste ente, a qual deve ser içada ao estado de coisas ideal de um equilíbrio fiscal. As medidas para conduzir a uma melhora dessa situação fiscal consolidada e periclitante envolverá suspensão de pagamento da dívida com a União, aumento da receita do Estado (com aumento de impostos, e.g.), corte de gasto (conceder menos isenções fiscais, e.g.) e celebração de empréstimos, participação da Advocacia Geral da União, dentre outras medidas complexas, contudo, tudo isso conforme as regras legais. Esta situação fiscal que requer a realização de um Plano de médio e longo prazo, inclusive a celebração e homologação de Regime de Recuperação Fiscal entre o Estado e a União, é um problema estrutural lícito e de acordo (conforme) com as regras do ordenamento jurídico.  Esse problema em si não é ilícito ou antijurídico, mas ainda assim poderá ser objeto de um litígio estrutural.

[32] Edilson Vitorelli, in Processo Civil Estrutural: teoria e prática, Ed. Juspodivm, 2020, p. 52 e 219, já insere no conceito de processo estrutural a ideia de coletivo: “litígios estruturais são litígios coletivos (…)” ou  “o processo coletivo estrutural é um mecanismo (…).” (g/n).

[33] GALDINO, Matheus Souza. Breves reflexões sobre as consequências de uma compreensão teleológica dos fatos para a teoria do processo estrutural. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (Org). Processos estruturais. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 717-718.