A UTILIZAÇÃO DE ELEMENTOS ESTRANGEIROS NAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

A UTILIZAÇÃO DE ELEMENTOS ESTRANGEIROS NAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

1 de dezembro de 2021 Off Por Cognitio Juris

THE USE OF FOREIGN ELEMENTS IN THE SUPREME FEDERAL COURT’S DECISIONS

Cognitio Juris
Ano XI – Número 37 – Dezembro de 2021
ISSN 2236-3009
Autores:
Odir Züge Junior[1]
Valquíria Ortiz Tavares Costa[2]

RESUMO: O presente artigo propõe o estudo das decisões da Suprema Corte sob a ótica do uso de elementos estrangeiros na sua fundamentação. Primeiramente, é apresentado um panorama geral sobre o tema, especificando as correntes que demonstram qual o nível de aderência de um país ao uso de elementos estrangeiros. Em seguida, o estudo detém-se nos modelos de incidência, culminando na análise crítica acerca do uso de elementos estrangeiros no julgamento da ADI 3.510, cujo objeto de discussão é a liberação da pesquisa de células-tronco embrionárias.

PALAVRAS-CHAVE: Supremo Tribunal Federal. Elementos estrangeiros. Precedentes estrangeiros. Modelos de incidência. Justiça Constitucional.

ABSTRACT: This article proposes the study of Supreme Court decisions under the use of foreign elements’ perspective as its foundation. First, an overview of the topic is presented, specifying the doctrinaire bases that demonstrate a country’s level of adherence to the use of foreign elements. Then, the study focuses on incidence models, culminating in the critical analysis of the ADI 3,510 judgement’s use of foreign elements, whose object of discussion is the liberation of embryonic stem cell research.

KEYWORDS: Supreme Federal Court. Foreign elements. Foreign precedents. Incidence models. Constitutional Justice.

Introdução

Em 1808, a família real portuguesa se transfere para o Brasil e o então príncipe regente Dom João VI cria a Casa de Suplicação,[3] com sede no Rio de Janeiro, para julgamento das lides em segunda instância, cuja decisão era final e irrecorrível.

O Supremo Tribunal de Justiça sucede a Casa de Suplicação,[4] sendo instalado em 9 de janeiro de 1829 e aproveitando a composição de seus juízes, sob a presidência do Ministro José Albano Fragoso. Interessante notar que um de seus juízes era o monsenhor Pedro Machado Mirando Malheiro, evidenciando a forte ligação entre o Estado e a Igreja.

Note-se que a criação do Supremo Tribunal de Justiça deu-se quando já estava vigente a Constituição Imperial de 1824, mas somente com a outorga desta pelo imperador é que o Tribunal teve previsão constitucional no seu artigo 163, in verbis: Na Capital do Império além da Relação que deve existir, assim como nas demais Províncias, haverá também um Tribunal com a denominação de – Supremo Tribunal de Justiça – composto de Juízes Letrados tirados das Relações por suas antiguidades; e serão condecorados com o Título do Conselho. Na Primeira organização poderão ser empregados neste Tribunal os Ministros daqueles, que se houverem de abolir.[5]

O Supremo Tribunal de Justiça era composto por juízes brasileiros (doze) e portugueses (cinco), os quais poderiam receber o tratamento de Majestade (fruto de um alvará de 1797 extinto somente em 1890 pelo Decreto 25). Apesar da recente criação, o desejo de transformação desse Tribunal numa Corte Constitucional nos moldes americanos já existia. Na verdade, a intenção de ter uma Corte Constitucional se origina no Império, inclusive D. Pedro II, em 1888, envia dois conselheiros, Lafaiete e Washington, para estudo da Suprema Corte americana.

A transformação, porém, só veio com a República, por meio do Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, editado pelo Governo Provisório, mas com previsão expressa na Constituição de 1891, nos seguintes termos:

Art. 55. O Poder Judiciário da União terá por órgãos um Supremo Tribunal Federal, com sede na Capital da República e tantos Juízes e Tribunais Federais, distribuídos pelo País, quantos o Congresso criar.

 Art. 56. O Supremo Tribunal Federal compor-se-á de quinze Juízes, nomeados na forma do art. 48, n.º 12, dentre os cidadãos de notável saber e reputação, elegíveis para o Senado.

A primeira sessão do Supremo Tribunal Federal, realizada em 28 de fevereiro de 1891, contou com a presença de 15 ministros, grande parte pertencente ao Supremo Tribunal de Justiça, inclusive a presidência interina que continuava ser do Ministro Sayão Lobato, o Visconde de Sabará.

A primeira sessão plenária elegeu seu primeiro presidente, o Ministro Freitas Henriques, contando com oito votos.

A missão do novo tribunal é proteger os direitos fundamentais individuais, freando os abusos cometidos pelo Poder Executivo.

Surge, pois, o Supremo Tribunal com a missão principal – em um primeiro momento – de atuar como freio ao desmedido poder exercido pelo Executivo e, ao mesmo tempo, proteger a federação dos arroubos descentralizadores daqueles que haviam defendido a República. Essas tarefas, como se pretende demonstrar, não serão facilmente exercidas pelos membros que compõem o novo Tribunal. Os ministros possuíam vínculos históricos com o Antigo Regime e não estavam acostumados a enfrentar questões de Estado.[6][7]

Inicia-se, portanto, um novo capítulo na história do Poder Judiciário brasileiro, e dada a importância das decisões proferidas pela Suprema Corte, o presente artigo analisará  o uso de elementos estrangeiros na fundamentação de suas decisões, efeito de um mundo que se tornou globalizado, no qual romperam-se as barreiras, permitindo o acesso, em questão de segundos, e em tempo real,  a acontecimentos ocorridos em qualquer parte do mundo, fenômeno irresistível,  do qual não pode se furtar o Poder Judiciário, e, em especial, o Supremo Tribunal Federal. Porém, é preciso ter regras, vejamos quais são.

1. O uso de elementos estrangeiros

O Decreto 848, de 11 de outubro de 1890,[8] promulgado durante o Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil, à época, governado pelo Marechal Deodoro da Fonseca e idealizado por Campos Salles, pode ser considerado um marco inicial na jurisdição constitucional brasileira, pois organizava a Justiça Federal e traçava os poderes do Supremo Tribunal Federal, prevendo inclusive a possibilidade de analisar a validade dos atos em face da Constituição em seu art. 9.º, II, parágrafo único.[9]

E em seu art. 386 indicava o caminho a ser seguido pelos intérpretes da nascente ordem institucional repu­blicana que se instalava no Brasil ao prever que “os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas na República dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e equity serão também subsidiários da jurisprudência e processo federal”.

O Brasil, país de tradição monárquica e parlamentarista (para os críticos do Segundo Reinado, chamado de pseudoparlamentarista), fez o transplante abrupto de instituições republicanas e presidencialistas desenvolvidas nos Estados Unidos e moldadas conforme sua evolução histórica, a ponto de a própria população brasileira não entender plenamente essa transformação.

Buscando analisar os primeiros constitucionalistas republicanos, Pedro Lessa registra o uso de fontes estrangeiras na pesquisa que realizou sobre o Poder Judiciário na Constituição de 1891, publicada em 1915:

[…] e como a doutrina entre nós conta por enquanto um número quase nulo de expositores, e a jurisprudência, incipiente e vacilante, pouco subsídio, ou amparo, pode prestar, forçoso me foi recorrer aos comentadores e aos julgados do país cujas instituições políticas serviram de modelo às nossas, os Estados Unidos da América do Norte, valendo-me, também, não raro, dos exegetas e da jurisprudência de uma nação que nos precedeu no perfilhar os lineamentos principais da obra de Hamilton, Madison e Jay, a República Argentina. Existindo no primeiro desses países uma grande massa de precedentes, de verdades gerais – induzidas da observação dos fatos, de deduções dessas verdades, de sentenças proferidas sobre uma imensa variedade de pleitos, de notações e comparações dos resultados de interpretações e aplicações diversas desta modalidade do direito constitucional, criada pelos norte-americanos, e adotada em grande parte por nós, fora imperdoável falta estudar nossa lei fundamental sem as lições dos constitucionalistas e dos juízes da América do Norte.[10]

A Suprema Corte brasileira também buscou na experiência constitucional republicana dos Estados Unidos e dentro da América Latina, da Argentina, os alicerces para embasar seus julgamentos, e um bom exemplo é o julgamento de um importante caso da segunda década do século XX, que envolvia liberdade de imprensa e a de­cretação de estado de sítio.

O Poder Executivo decretou estado de sítio e a política vedou a publicação de discursos parlamentares na imprensa. Ruy Barbosa impetra então o habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal. O jornal O Imparcial, amparado pela decisão, publica assim os discursos de diversos senadores e sofre retaliação, com a prisão de todos os membros de sua redação.

Novo habeas corpus é impetrado no Supremo Tribunal Federal por Ruy Barbosa (HC 3.539), cuja relatoria originária é do Ministro Pedro Lessa e a relatoria para o acórdão do Minis­tro Enéas Galvão, julgado na sessão de 9 de maio de 1914. Ambos os votos, tanto o voto vencido do relator originário quanto o condutor da maioria – formada para denegar a ordem – fizeram largo uso  de fontes estrangeiras para anali­sar a constitu­cionalidade da decretação do estado de sítio, ponto-chave da controvérsia. Nos votos sobram menções a nomes como Cooley, Thayer, Taylor e Willoughby, bem como deles constam referências a precedentes da Suprema Corte americana.

Carlos Bastide Horbach[11] demonstra que

[…] esse precedente não é caso isolado. O acúmulo de referências estrangeiras é uma das características mais constantes dos votos de Ministros do STF, seja nos pri­meiros anos da República, seja em suas fases de conso­lidação democrática, em seus momentos de crise insti­tucional, seja nos dias de hoje.

A própria jurisdição constitucional evoluiu, legislati­va e jurisprudencialmente, sob a égide das experiências estrangeiras, de modo que, gradualmente, essa evolução passa a ser refletida na origem dos autores e dos prece­dentes citados nos votos, os quais, cada vez menos, se referem a nomes americanos, trocando-os por autores e cortes da Europa.

 Em âmbito internacional, nasce o direito comparado no Congresso Internacional de Direito Comparado ocorrido em Paris, no ano de 1900, cuja meta seriam a descoberta de um direito comum legislativo e a busca de princípios gerais de direito reconhecidos formando uma base comum do direito.

Para Carlos Bastide Horbach, “o modo como ocorrem as tro­cas entre experiências jurídicas diversas sofreu uma sig­nificativa evolução. A comparação do início do século XX não mais se verifica nos dias atuais, em que os mé­todos e os objetivos do direito comparado são outros, notadamente diferentes”.[12]

Mas por que comparar?

A função primária do direito comparado é justamente conhecer outro ordenamento jurídico, suas teorias e práticas, proporcionando um acúmulo de conhecimento ao jurista. Ao compreender a norma estrangeira, o jurista descobre novas formas de prevenção e solução dos conflitos sociais, ampliando o rol de alternativas para alcançar a paz social. Num segundo momento, dá-se a utilização concreta dessas informações, valendo-se dos métodos de comparação.[13]

Scarciglia, fundamentando-se em Ackerman, aponta que esse acúmulo de conhecimentos por meio do direito comparado resulta em um

[…] fenômeno – definido com a expressão “revolução macrocomparativa” – vai incidir não só no modo – e nos lugares – de conhecimento do direito estrangeiro, mas vai também favorecer novas combinações de formantes (neo-formants), reconhecíveis ao comparatista mediante o auxílio da história, pela cultura de um povo, pela evolução das fórmulas políticas ou por outros fatores que, combinados entre si, incidem no jogo de formantes.[14]

Analisando a função secundária da comparação, Zweigert e Kötz apresentam cinco objetivos específicos do moderno direito comparado, especificando, entre eles, o auxílio ao legislador: “Legisladores ao redor do mundo têm percebido que em muitos assuntos boas leis não podem ser produzidas sem o recurso do direito comparado, seja na forma de estudos gerais ou na de relatórios especialmente produzidos sobre o tópico em questão”.[15]

Essa, aliás, é certamente a mais antiga das funções do direito comparado, pois “sempre se pensou que o conhecimento dos direitos estrangeiros era de importância primeira para o legislador”, como demonstram as obras de Platão e Aristóteles.[16]

Em que situações, porém, o intérprete está habilitado a empregar o direito estrangeiro?[17]

O juiz que deseja empregar o direito estrangeiro deve se orientar por duas balizas já difundidas no início do século XX: a necessidade de colmatar uma lacuna e que a solução encontrada seja harmônica com o direito interno.[18]

Para Carlos B. Horbach,

[…] desde sua sistematização, na virada do século XIX para o século XX, o direito comparado tem buscado identificar a metodologia mais adequada a promover seus fins, havendo na atualidade não um consenso, mas somente uma aceitação mais ampla e difundida de um desses métodos, o qual não se coloca infenso a críticas. Assim, desenvolveram-se diferentes aproximações metodológicas no direito comparado, traduzidas, por exemplo, no método problemático, no método casuístico, no método factual e no método funcional, o qual enfatiza a função que determinada categoria, regra ou instituto desempenha em seu ordenamento, habilitando a comparação com categorias, regras ou institutos funcionalmente semelhantes.[19]

O método mais aceito pela doutrina comparatista é o funcional. Nas palavras de Zweigert e Kötz,

[…] o princípio metodológico básico de todo o direito comparado é o da funcionalidade. Desse princípio básico decorrem todos os outros que determinam a escolha dos direitos a comparar, o escopo da comparação, a criação de um sistema de direito comparado e assim por diante. Incomparáveis não podem ser utilmente comparados, e em matéria jurídica somente são comparáveis as coisas que preenchem a mesma função.[20]

Todavia, o uso do método funcional não pode ser indiscriminado. Roberto Scarciglia estabelece algumas regras para que o jurista utilize o método funcional, quais sejam:

a) o termo a comparar deve ser estudado tal e como aparece na realidade; b) o termo de comparação deve ser examinado em suas fontes originais; c) o termo a comparar deve ser estudado na complexidade e totalidade das fontes do direito; e) o termo a comparar deve ser interpretado segundo o método hermenêutico do ordenamento a que pertence.[21]

É importante o intérprete se desembaraçar das pré-compreensões advindas do ordenamento jurídico de origem, ao mesmo tempo que deve entender o sistema de fontes jurídicas do direito alienígena, buscando o direito vivente, ou seja, como as normas são vivenciadas e compreendidas, e não apenas o direito posto.

Para isso, ganha força a formação humanística do intérprete, e sua capacidade de entender a língua estrangeira torna-se requisito imprescindível para a análise do direito.

Ackerman[22] explica que o direito constitucional comparado está em sua fase inicial, ainda mais se contrastado com as comparações que tradicionalmente são feitas no âmbito do direito privado. Nesse contexto de gênese da comparação no direito público, sempre se corre o risco de assumir premissas falsas, que conduzirão – por certo – a conclusões igualmente falsas. Ackerman dá como exemplo de premissas falsas o nominalismo e o particularismo. No nominalismo, o estudioso tende a aproximar institutos que guardam o mesmo nome – e o exemplo dado é o de corte constitucional, sob cujo nome podem se esconder as mais variadas instituições.

O mesmo risco do nominalismo é tratado por Marc Ancel, em uma perspectiva geral do direito comparado:

[…] é preciso sobretudo não confiar nas traduções apressadas e naqueles que chamamos de falsos amigos. É preciso não traduzir common law por direito comum e a equity inglesa não é a equidade continental, não mais do que a preventive detention, que constitui um internamento e segurança, não é a nossa prisão preventiva.[23]

Por sua vez, o particularismo faz com que o exame comparado procure inserir de tal forma o objeto de análise em seu contexto original, que despreza suas naturais conexões com o mundo exterior.

Na antropologia, um método eficiente para aprender sobre o povo pesquisado é a observação participante em que o antropólogo se insere na sociedade examinada para aprender seus hábitos, cultura, regras etc.

No direito comparado, essa ideia guarda similaridade com o apregoado por autores tradicionais do direito comparado que defendem constantemente a necessidade de “viagens de comparação”, nas quais os juristas teriam condições de investigar in loco o funcionamento do direito estrangeiro, num processo de completa inserção em sua vida cultural, política, institucional etc.[24]

Importa, portanto, a reunião de um variado grau de informações, a fim de formar uma ampla compreensão da cultura jurídico-institucional, bem como da vida social dos países envolvidos, fornecendo uma visão global, permitindo, ao fazer a justaposição das regras jurídicas, afastar as “falsas congruências”.

Em seguida, apartado o risco de utilização de falsas congruências, são realizadas três ações elementares para a construção do sistema, guardando estrita relação com o quesito de funcionalidade, ou seja, saber qual a função das instituições jurídicas no País que pautam o direito comparado, quais sejam, conhecer, compreender e comparar.

Explica Carlos Bastide Horbach que

[…] a essas três alguns autores agregam a fase da aplicação de resultados, que é contingente, pois variável de acordo com as finalidades do estudo. Nas duas funções acima indicadas – ampliação do rol de soluções à disposição do jurista e auxílio na interpretação do direito nacional – essa fase de aplicação de resultados estará presente.[25]

Finalmente, Roberto Scarciglia alerta para o fato de que, “sem um enfoque metodológico sério, o estudioso corre o risco de não levar a cabo nenhuma atividade de comparação real, incorrendo mais na realização de atividades em sua maior parte ornamentais, sem nenhum valor epistemológico”.[26]

1.1 Necessidade (ou não) de autorização constitucional para o uso de elementos estrangeiros

A Constituição sul-africana estatui, em seu art. 39, n. 1, c, que, na interpretação da declaração de direitos, os tribunais devem considerar o direito estrangeiro e, no tópico anterior, foi explicado que o Decreto 848/1890, responsável por estruturar a Justiça Federal no Brasil, autorizava expressamente o uso de elementos estrangeiros, o que não se reproduziu na Constituição brasileira, que silencia sobre o tema.

Então recai a dúvida: é necessária a autorização constitucional expressa para o uso de elementos estrangeiros?

Na verdade, não há óbice na utilização de elementos estrangeiros, nem mesmo necessidade de previsão constitucional, uma vez que se trata de um mecanismo de interpretação constitucional a ser considerado com os demais métodos, como o gramatical, lógico, histórico e o sistemático.

J. J. Canotilho,[27] inspirado em Peter Häberle, afirma que o diálogo entre cortes constitucionais com o intercâmbio de ideias é o “quinto método de interpretação constitucional”.

André Ramos Tavares explica que até mesmo diante de uma vedação expressa do uso de elementos estrangeiros por uma Constituição deve-se entender que a proibição recai sobre a utilização de um modelo de subordinação, ou seja, proíbe-se o uso reverencial de decisões externas, mas não se trata de um bloqueio absoluto, justamente porque é um método de interpretação da Constituição.

Nesse sentido:

As regras interpretativas, acaso presentes em uma Constituição sempre serão não definitivas e passíveis de interpretação, dado o caráter não imanente do conteúdo das normas jurídicas. São considerações totalmente aplicáveis para eventual cláusula proibitiva expressa pela não utilização de jurisprudência estrangeira.

A mera vedação do uso interno de jurisprudência externa poderia, ainda, ser interpretada como cláusula implícita à soberania, o que, aliás, tem sido uma constante invocação na doutrina norte-americana contrária à utilização dessas decisões. Contudo, considerada com esse fundamento, a cláusula deve ser interpretada como proibindo a utilização em um modelo de subordinação, quer dizer, um uso reverencial de decisões externas, e não como um bloqueio definitivo e absoluto.[28]

Portanto, tratando-se de método interpretativo, a Constituição não precisa autorizar expressamente o uso de elementos estrangeiros e, mesmo diante de uma proibição expressa, deve-se entender tratar-se de vedação do uso reverencial desses elementos.

1.2 O uso do direito estrangeiro como fonte do direito constitucional: correntes

A primeira corrente, a universalista, defende que as cortes constitucionais devem buscar identificar um conjunto de princípios em comum a fim de encontrarem uma unidade na diversidade e, com isso, tendem a desconsiderar as diferenças, sejam legais ou culturais.

Para essa corrente, a universalidade da experiência humana justifica o uso de precedentes estrangeiros. Também o direito, visto como princípio, ou seja, um conjunto de princípios ético-filosóficos que transcendem fronteiras, justificaria o uso de elementos estrangeiros.

Como a corrente universalista busca por convergência, o uso de elementos estrangeiros pode revelar direitos imanentes e transcendentes.[29]

Essa corrente sofre críticas, pois, ao tentar buscar uma verdade universal, esquece-se de que, na verdade, o direito é um fenômeno cultural e social, e, portanto, a diversidade normativa é reflexo das diferentes culturas existentes.

No lado diametralmente diverso está a corrente isolacionista, que recusa qualquer possibilidade de interação entre as cortes constitucionais, cabendo ao juiz repudiar o uso de qualquer elemento estrangeiro.

O fundamento da doutrina isolacionista reside na superioridade e singularidade da experiência americana, a necessidade de a Constituição ser interpretada de acordo com a vontade dos fundadores da pátria (chamado de originalismo), a dificuldade dos juízes em lidar com o material estrangeiro, e, por fim, o aspecto majoritário que compõe a democracia e a ofensa à soberania, pois acreditam os isolacionistas no direito de autodeterminação no âmbito interno e externo.

A corrente isolacionista encontra raízes profundas nos Estados Unidos, demonstrando o grau de polarização que o tema, a utilização de elementos estrangeiros, alcançou no país, a ponto de um professor de direito, Austen L. Parrish, afirmar, em seu artigo “Storm in a teacup: the US Supreme Court’s use of foreign law”,[30] que o uso de jurisprudência estrangeira demonstraria inferioridade intelectual da Suprema Corte.

Não assiste razão aos isolacionistas, como ensina André Ramos Tavares, a noção de soberania não deve ser um óbice ao uso de precedentes estrangeiros, desde que evitado o modelo de submissão, não fazendo “o uso referencial de decisões externas”.[31]

As críticas à utilização de fontes estrangeiras são manifestas na Suprema Corte norte-americana, notadamente pelo Justice Antonin Scalia, principalmente após o julgamento de dois casos notórios, Lawrence v. Texas e Roper v. Simon, em que o uso de fontes estrangeiras foi introduzido de modo mais enfático, a partir das contribuições do Justice Anthony Kennedy.

No primeiro caso, Lawrence v. Texas, a Suprema Corte Americana precisou decidir se a lei texana que criminalizava a sodomia ofendia a dois direitos fundamentais, quais sejam, a liberdade e a privacidade. Superando o precedente Bowers v. Hardwick, que mantinha a lei antissodomia, o voto vencedor do Justice Kennedy defendeu a inconstitucionalidade da lei texana, apontando, dentre vários argumentos, a posição da Corte Europeia de Direitos Humanos que condenou a Irlanda do Norte, em caso semelhante, por violar as normas da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Nessa oportunidade, o Justice Scalia criticou de forma enfática a utilização de precedente estrangeiro, ressaltando que o direito estrangeiro é, na verdade, insignificante para a Suprema Corte Americana, bem como o voto vencedor só considerou as decisões estrangeiras que corroboravam seus argumentos, ignorando as decisões contrárias a esse entendimento. [32]

No julgamento Roper v. Simon, analisava-se a aplicação de pena de morte a menores de idade à época do delito.

A Suprema Corte norte-americana decidiu pela inconstitucionalidade da norma vedando a pena capital para menores de idade. Em seu voto, o Justice Kennedy considerou a opinião da comunidade mundial sobre o tema, que repudia a sujeição de menores à pena de morte, afirmando que “nossa decisão, no sentido de que a pena de morte para menores de 18 anos, é desproporcional e acha guarida na constatação de que os Estados Unidos é o único país do mundo que continua a condenar menores à pena capital”, e aduz ser “adequado reconhecer a esmagadora força da opinião internacional contra a aplicação da pena de morte a menores”, tornando-se o voto vencedor.[33]

Mais uma vez, o Justice Scalia elaborou voto criticando a utilização de precedentes estrangeiros, bem como condenando seu uso de acordo com as conveniências das circunstâncias.

A terceira corrente é a moderada que entende

[…] ser salutar o diálogo entre Cortes, desde que a utilização de jurisprudência estrangeira não seja feita de modo assistemático ou sem qualquer critério. Pode-se dizer, grosso modo, que os defensores desta corrente veem no intercâmbio entre Cortes um fluxo de ideias capaz de propiciar um melhor entendimento do próprio ordenamento jurídico em que está inserido, permitindo a melhora contínua do sistema.[34]

Para o autor Marcelo Neves,[35] o uso de elementos estrangeiros permite à jurisdição constitucional ver novas soluções, novos caminhos, que não seria capaz de descobrir sozinha.

A corrente moderada difere-se das demais por propor o conhecimento dos precedentes e doutrina estrangeira para avaliar se esta pode trazer alguma contribuição para melhorar o direito interno e se há compatibilidade entre os dois sistemas, podendo, ao final, decidir por utilizar ou rejeitar conforme se mostre adequada ou não a sua utilização.

1.3 Modelos de incidência da jurisprudência constitucional estrangeira em determinada Justiça Constitucional

André Ramos Tavares demonstra que há várias possibilidades de utilização da jurisprudência estrangeira por uma Justiça Constitucional denominadas de “modelos de incidência”.

Esses modelos de uso podem ter uma aplicação diversificada, embora alerte o autor que essa forma de atuação demonstra, na verdade, uma falta de metodologia constitucional, ou retrata uma mudança consciente que reflita a alteração na história constitucional do país. Esses modelos têm a vantagem de permitir a análise de um único caso ou de múltiplas decisões.

É possível que haja um falso positivo em que há um mascaramento do método usado, pois, apesar de manifestar adesão a um modelo, na verdade utiliza-se outro.

O primeiro modelo é o de submissão que pressupõe uma total deferência à jurisprudência constitucional estrangeira, o que poderia causar, como efeito colateral, contradições, invalidades internas e até tornar o ordenamento jurídico nacional inoperante.

Esse modelo é passível de uso pelos Tribunais com pouca tradição democrática ou ainda mais jovens que acabam buscando decisões de outros Tribunais mais consolidados para fundamentar suas decisões. Exemplo interessante traz Pedro Lessa, quando, sob a égide da Constituição de 1891, narra a utilização de jurisprudência americana:

[…] e como a doutrina entre nós conta por enquanto um número quase nulo de expositores, e a jurisprudência, incipiente e vacilante, pouco subsídio, ou amparo, pode prestar, forçoso me foi recorrer aos comentadores e aos julgados do país cujas instituições políticas serviram de modelo às nossas, os Estados Unidos da América do Norte, valendo-me, também, não raro, dos exegetas e da jurisprudência de uma nação que nos precedeu no perfilhar os lineamentos principais da obra de Hamilton, Madison e Jay, a República Argentina. Existindo no primeiro desses países uma grande massa de precedentes, de verdades gerais – induzidas da observação dos fatos, de deduções dessas verdades, de sentenças proferidas sobre uma imensa variedade de pleitos, de notações e comparações dos resultados de interpretações e aplicações diversas desta modalidade do direito constitucional, criada pelos norte-americanos, e adotada em grande parte por nós, fora imperdoável falta estudar nossa lei fundamental sem as lições dos constitucionalistas e dos juízes da América do Norte.[36]

O segundo modelo é o de repulsa (ou rejeição) que recusa abertamente a utilização de elementos estrangeiros, negando-se a possibilidade de diálogo com elementos externos, com base na autossuficiência do ordenamento constitucional e, portanto, filiando-se aos isolacionistas.

O significado da norma só pode ser obtido por meio de consulta ao próprio direito interno do qual foi emanada e

[…] o modelo de repulsa pôde, por muito tempo, na recente história norte-americana, ser bem representado pela sua Suprema Corte e por boa parte da doutrina nesse país. Nos EUA preponderava uma aversão ao não nacional decorrente da situação histórica de um país que, como berço do constitucionalismo, forjou e desenvolveu, originalmente, diversas das instituições e institutos constitucionais de prática atual difundida por diversos Estados. Sendo o país das liberdades, não haveria, em uma visão extremada, motivo para recorrer a outros países na busca do sentido dessas liberdades.[37]

O terceiro modelo é chamado de modelo decorativo e reflete o mero uso ornamental da jurisprudência constitucional estrangeira sem que esta tenha influenciado a tomada de decisão. Para André Ramos Tavares,

[…] trata-se da utilização, ou melhor, seria dizer da não utilização respeitosa da jurisprudência constitucional estrangeira. Há uma mera referência desnecessária, referência morta, a elementos não nacionais, como meio de impor soluções previamente engendradas, uma forma de demonstrar conhecimento e autoridade. São usos que efetivamente não têm qualquer deferência ou preocupação dialógica com o material referido. Por esse motivo deve ser concebido como um modelo de referência não decisiva para a tomada de decisão.[38]

O modelo de unilateralismo é o quarto modelo. Esse modelo não repele oficialmente o uso de jurisprudência constitucional estrangeira, porém simplesmente não o utiliza em qualquer decisão, como ocorre na França que,

[…] devido a uma situação peculiar de sua Justiça Constitucional, que historicamente desenvolveu-se de maneira própria, com decisões proferidas em controle prévio, em curtíssimo espaço de tempo e fundamentação extremamente exígua, a falta de referência a elementos estrangeiros parece ter sido uma decorrência praticamente inevitável.[39]

O quinto e último modelo é o “modelo de interlocução ou dialógico”, que lembra um diálogo a ser feito com a jurisprudência estrangeira porque aprecia o caso nacional e a jurisprudência estrangeira, buscando entender em que esta poderia ser útil e tomando a decisão consciente de utilizá-la ou não, conforme demonstre ser ou não efetivamente útil ao deslinde do caso nacional.

Para André Ramos Tavares, o modelo de interlocução é

[…] uma das principais formas de utilização da jurisprudência constitucional estrangeira pelas Justiças Constitucionais parece ser a da abertura para a compreensão, discussão, reflexão e eventual aproveitamento dessas decisões e de suas razões de decidir, mas considerando a perspectiva, particularidades e nacionalidade (dentro da dogmática vigente) do caso apresentado para julgamento.

[…] isso significa, portanto, que não há uma mera deferência à jurisprudência estrangeira, mas sim a tomada de conhecimento de sua existência para eventual utilização determinante no contexto da solução nacional. Determinante, aqui, não deve ser, pois, concebida como submissão ao material estrangeiro. Trata-se do que a doutrina norte-americana identifica como “autoridade persuasiva”, mas que significa, dentro do processo de tomada de decisão, a possibilidade de se tornar, conjuntamente com outros elementos e por uma série de fatores outros, determinante, decisiva para a solução final.[40]

A jurisprudência estrangeira deve servir de ferramenta interpretativa e argumentativa, com o objetivo de auxiliar a compreensão do próprio ordenamento jurídico, podendo ser fonte inestimável de informação que auxiliará na tomada da melhor decisão.

De acordo com Joan L. Larsen, o uso de precedente estrangeiro pode ilustrar os contrastes entre dois ordenamentos jurídicos, permitindo conhecer melhor a temática em análise pelo Tribunal Constitucional, as consequências da decisão, bem como reforçar a argumentação da conclusão alcançada ou até mesmo evidenciar as diferenças entre os dois ordenamentos jurídicos para mostrar e apoiar a tomada de decisão diversa daquela dada pelo direito estrangeiro.[41]

No caso State v. Makwanyane, julgado pela Suprema Corte sul-africana, que versava sobre a constitucionalidade da pena de morte no país africano, exemplifica o uso dialógico e negativo de utilização de direito estrangeiro, uma vez que, após profunda pesquisa da jurisprudência norte-americana que considera legítima a pena de morte a ser aplicada pelo Estado, verificou-se que as premissas, valores e história da África do Sul são muito diferentes da norte-americana e, portanto, a solução deveria ser distinta da norte-americana.[42]

Outro exemplo em que a comparação do ordenamento jurídico nacional e estrangeiro resultou na negativa de utilização do precedente estrangeiro ocorreu na decisão da Suprema Corte Canadense, no caso Regina v. Keegstra, que analisava a constitucionalidade de um dispositivo do Código Penal canadense que criminalizava o discurso antissemita. Após o voto vencedor fazer uma análise detalhada da jurisprudência norte-americana decidiu-se pela não utilização, considerando que as premissas americanas divergiam dos fundamentos constitucionais canadenses.[43]

Situação diversa observa-se no caso Lawrence v. Texas, já citado no tópico anterior, que discutia a constitucionalidade da lei texana que criminalizava a relação sexual entre adultos do mesmo sexo, tendo o Justice Stevens buscado no direito inglês o fundamento para seu voto, valendo-se do relatório The Wolfenden Report: Report of the Committee on Homosexual Offenses and Prostitution, elaborado pela Comissão de Ofensas Homossexuais e Prostituição, a qual foi a base legal utilizada pelo Parlamento Inglês para descriminalizar as relações homossexuais no Reino Unido, revogando sua legislação antissodomita ao estabelecer o Sexual Offences Act 1967, cumprindo assim decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos.[44]

Dessa forma, o Justice Stevens, ao aplicar em seu voto majoritário e como parte de sua fundamentação o raciocínio utilizado no direito estrangeiro para declarar a inconstitucionalidade da lei texana que criminalizava a homossexualidade, traz um claro exemplo de argumentação persuasiva (ou empréstimo argumentativo), em que, após a análise do direito estrangeiro e da conveniência de seu uso, percebe-se que ele oferece uma solução que pode ser adotada.

Essa é a essência do modelo de interlocução ou dialógico que pressupõe uma análise cuidadosa das premissas comuns (fáticas e jurídicas), assim como a fundamentação que demonstre a aproximação entre os casos analisados, a razoabilidade da decisão estrangeira, para decidir pelo seu uso ou afastamento. É importante deixar clara a decisão tomada, o que André Ramos Tavares chama de “transparência honesta”.[45]

1.4 Análise do uso de elementos estrangeiros na ADI 3.510 que trata da liberação da pesquisa de células-tronco embrionárias

A ADI 3.510, cuja relatoria ficou a cargo do Ministro Ayres Britto, em que o Supremo Tribunal Federal analisou a constitucionalidade da Lei de Biossegurança, contou com ampla utilização de elementos estrangeiros, o que justifica o interesse em sua análise.

Carlos Bastide Horbach aponta que,

[…] na ADI 3.510 os primeiros recursos a elementos estrangeiros se fizeram presentes no voto da Ministra Ellen Gracie, cuja argumentação parte da referência ao Human Fertilization and Embriology Act, editado pelo parlamento britânico em 1990. Não há, na manifestação em questão, uma justificativa técnica acerca da escolha desse diploma normativo ou mesmo das conexões genéricas entre a experiência do Reino Unido e a do Brasil. Quanto às fontes, o caso britânico é basicamente analisado com base na obra de Letícia da Nóbrega Cesarino, intitulada nas fronteiras do “humano”: os debates britânico e brasileiro sobre a pesquisa com embriões, texto esse que é uma pesquisa na área das ciências sociais e da antropologia e não um texto jurídico.[46]

No Brasil, André Ramos Tavares é um dos poucos a chamar a atenção para o problema, asseverando que: “[…] a jurisprudência estrangeira tem sido invocada em países, sem maiores preocupações metodológicas ou de legitimidade quanto ao seu uso; na maior parte dos casos, sequer a pertinência e o grau de vinculação são objeto de esclarecimentos”.[47]

Em seguida, Carlos Bastide Horbach analisa o voto do Ministro Menezes Direito, que também faz amplo uso de elementos estrangeiros, nos seguintes termos:

O exame se inicia com menções a dados oficiais acerca do direito inglês e australiano; isso sem que o voto indique quais são as semelhanças e as diferenças que tornam a comparação mais ou menos adequada a auxiliar na controvérsia posta ao STF. Depois, a argumentação passa pelo exame de um relatório da Assembleia Nacional francesa, do qual é destacado trecho específico da manifestação de um único deputado, a qual corrobora as razões do voto do Ministro. Cita, ainda, com base em site da internet, as normas de países que proíbem a pesquisa com células-tronco – como Alemanha, Itália, Áustria e Polônia –, sumarizando suas disposições. Há também uma breve referência à Lei francesa n.º 2004800, relativa à bioética. Tendo como fonte o site do Parlamento britânico, o Ministro Menezes Direito cita a lei já mencionada no voto da Ministra Ellen Gracie; para na sequência dedicar um parágrafo para cada um dos ordenamentos dos seguintes países: Suécia, Espanha, Portugal, Bélgica e Canadá. Em um único parágrafo, o voto menciona as regras japonesas, chinesas, sul-coreanas e de Cingapura. Para finalmente arrematar as considerações sobre experiências estrangeiras analisando os casos norte-americano – em que os ordenamentos dos diferentes Estados são citados num único parágrafo – e australiano.

Percebe-se que a escolha de elementos estrangeiros apenas para corroborar a argumentação, sem influenciar a reflexão do intérprete, como no caso da escolha de um relatório da Assembleia Nacional francesa, do qual é destacado trecho específico da manifestação de um único deputado, configura o cherry- picking, como criticou o Justice Scalia no julgamento do caso Roper v. Simon, ao dizer “to invoke alien law when it agrees with one’s own thinking, and ignore it otherwise, is not reasoned decisionmaking, but sophistry”,[48] e ainda, nas palavras do Justice Roberty, “by cherry-picking foreign law, you can find anything you want”.[49][50]

Como combater o cherry-picking, ou seja, como evitar a escolha arbitrária da legislação estrangeira apenas para ser usada para ratificar uma decisão já tomada pelo intérprete, apenas para legitimar sua decisão?

Também a menção a inúmeros ordenamentos jurídicos sem estabelecer um paralelo com o caso julgado, faltando uma análise de qual efetiva contribuição podem trazer, acaba por esvaziar o significado do uso do elemento estrangeiro, que é ampliar os horizontes de possibilidades do julgador, demonstrando novos caminhos e soluções, e não apenas confirmar uma solução previamente adotada.

A solução para esse problema é o uso de método como o dialógico proposto por André Ramos Tavares ou o método funcional citado por Carlos Bastide Horbach, “o qual enfatiza a função que determinada categoria, regra ou instituto desempenha em seu ordenamento, habilitando a comparação com categorias, regras ou institutos funcionalmente semelhantes”.[51]

Do contrário, haverá “uma mera referência desnecessária, referência morta, a elementos não nacionais, como meio de impor soluções previamente engendradas, uma forma de demonstrar conhecimento e autoridade. São usos que efetivamente não têm qualquer deferência ou preocupação dialógica com o material referido”.[52]

Considerações Finais

Como bem lembra Maria Garcia[53], “o deus, a quem pertence o oráculo de Delfos, não diz nem oculta nada. Significa.” .

Conclui-se que caberá ao intérprete modelar, como um artesão modela a argila, todo o processo de escolha do elemento estrangeiro, sopesando os prós e contras do seu uso, e, a partir daí, definir a sua aceitação ou rejeição.

Finalmente, fica claro que é a forma de utilização do elemento estrangeiro que vai ditar a sua real contribuição jurídica ou uso meramente decorativo, ônus que invariavelmente recairá sobre o intérprete.

Referências

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[1] Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, Mestre em Direito também pela USP e Professor de Direito

[2] Doutoranda em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Mestre em Direito Constitucional também pela PUC/SP, Professora de Direito e Advogada.

[3] Por meio do alvará régio de 10 de maio 1808 (DIREITO, Gustavo. O Supremo Tribunal Federal – uma breve análise da sua criação. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 260, p. 256, maio/ago. 2012).

[4] A Casa de Suplicação, apesar de extinta de pleno direito, continuou existindo de fato até 1833, quando se estabelece o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro.

[5] DIREITO, Gustavo. O Supremo Tribunal Federal – uma breve análise da sua criação, p. 257.

[6] DIREITO, Gustavo. O Supremo Tribunal Federal – uma breve análise da sua criação, p. 260.

[7] “O “velho tribunal monárquico era uma corporação sem dimensão política que servia a um Estado unitário. O novo deveria ser uma instituição republicana, federativa e a ela se confiava a guarda da Constituição” (DIRCEU, José; SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto. A relação do Supremo Tribunal Federal na história republicana. In: SEMINÁRIO O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA HISTÓRIA REPUBLICANA. Anais… Rio de Janeiro: Ajufe, 2002).

[8] BRASIL. Decreto n.º 848, de 11 de ou­tubro de 1890. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/ d848.htm. Acesso em: 15 jun. 2020.

[9] “Registre-se que se trata do marco inicial da jurisdição constitu­cional brasileira, ou seja, da atividade jurisdicional voltada ao exercí­cio do controle de constitucionalidade; mas não se tem, no decreto em questão, o surgimento do controle de constitucionalidade no Brasil, já que no Império a Assembleia Geral exercia constante­mente o controle de constitucionalidade sobre as leis provinciais e o Conselho de Estado igualmente confrontava as leis com o texto constitucional de 1824, promovendo até mesmo decisões de inter­pretação conforme a constituição (LOPES, José Reinaldo de Lima. O Oráculo de Delfos: o conselho de Estado no Brasil-Império. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 198 e ss.)” (HORBACH, Carlos Bastide. O direito comparado no STF: internacionalização da jurisdição constitucional brasileira. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 12, n. 2, p. 193-210, 2015).

[10] LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário. Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, Supremo Tribunal Federal, 2003. p. 6.

[11] HORBACH, Carlos Bastide. O direito comparado no STF: internacionalização da jurisdição constitucional brasileira, p. 193-210.

[12] HORBACH, Carlos Bastide. O direito comparado no STF: internacionalização da jurisdição constitucional brasileira, p. 193-210.

[13] SCARCIGLIA, Roberto. Introducción al derecho constitucional comparado. Madrid: Dykinson, 2011. p. 70.

[14] SCARCIGLIA, Roberto. Introducción al derecho constitucional comparado, p. 74.

[15] ZWEIGERT, Konrad; KÖTZ, Hein. Introduction to comparative law. 3. ed. Oxford: Clarendon Press, 2011. p. 16.

[16] ANCEL, Marc. Utilidade e método do direito comparado. Porto Alegre: Fabris, 1980. p. 18-20.

[17] “Zweigert e Kötz registram, ainda, que os tribunais alemães são refratários a interpretações com base no direito estrangeiro e que a Corte de Cassação francesa é ‘surda’ a qualquer argumento que leve em consideração o direito comparado, enquanto países como Portugal e Grécia são notadamente abertos ao influxo exterior. Isso sem contar a constante troca de experiências que se verifica entre os países da Commonwealth britânica, em especial Inglaterra, Canadá e Austrália” (HORBACH, Carlos Bastide. O direito comparado no STF: internacionalização da jurisdição constitucional brasileira, p. 193-210).

[18] SCARCIGLIA, Roberto. Introducción al derecho constitucional comparado, p. 78.

[19] HORBACH, Carlos Bastide. O direito comparado no STF: internacionalização da jurisdição constitucional brasileira, p. 193-210.

[20] ZWEIGERT, Konrad; KÖTZ, Hein. Introduction to comparative law, p. 34.

[21] SCARCIGLIA, Roberto. Introducción al derecho constitucional comparado, p. 94.

[22] ACKERMAN, Bruce. The rise of world constitutionalism. Virginia Law Review, Charlottesville, v. 83, n. 4, p. 794, May 1997.

[23] ANCEL, Marc. Utilidade e método do direito comparado, p. 111.

[24] ANCEL, Marc. Utilidade e método do direito comparado, p. 111.

[25] HORBACH, Carlos Bastide. O direito comparado no STF: internacionalização da jurisdição constitucional brasileira, p. 193-210.

[26] SCARCIGLIA, Roberto. Introducción al derecho constitucional comparado, p. 94.

[27] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina. 2000. p. 1224.

[28] TAVARES, André Ramos. Modelos de uso da jurisprudência estrangeira pela justiça constitucional. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, ano 3, n. 12, p. 46, out./dez. 2009.

[29] Sobre a corrente universalista, o Brasil: “Como expoente desta doutrina no cenário brasileiro, Antonio Cançado Trindade fala em ‘Civitas Maxima Gentium’ e recorre à ideia de ‘universalidade do gênero humano’. Declara abertamente a sua filiação ao direito natural, o qual deriva da razão humana e impõe limites a conduta irrestrita dos governantes dos Estados. Defende a existência de uma ‘consciência jurídica universal’ (‘opinio juris communis’), que possui normas imperativas (Jus Cogens). Funde o Direito com a Ética. Para ele, cabe ao jurista dizer qual é o Direito com a Ética. Para ele, cabe ao jurista dizer qual é o Direito, recorrendo à consciência humana” (SIGNORETTI, Diogo Brandau. A utilização de precedentes estrangeiros pelo Supremo Tribunal Federal: fundamentos e critérios. 2013. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito, São Paulo, 2013, p. 33).

[30] PARRISH, Austen L. Storm in a teacup: the US Supreme Court’s use of foreign law. University of Illinois Law Review, v. 2, p. 638-639, 2007.

[31] TAVARES, André Ramos. Modelos de uso da jurisprudência estrangeira pela justiça constitucional, p. 46.

[32] SIGNORETTI, Diogo Brandau. A utilização de precedentes estrangeiros pelo Supremo Tribunal Federal: fundamentos e critérios, p. 22.

[33] SIGNORETTI, Diogo Brandau. A utilização de precedentes estrangeiros pelo Supremo Tribunal Federal: fundamentos e critérios, p. 66.

[34] SIGNORETTI, Diogo Brandau. A utilização de precedentes estrangeiros pelo Supremo Tribunal Federal: fundamentos e critérios, p. 46.

[35] NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 295-298.

[36] LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário, p. 6.

[37] TAVARES, André Ramos. Modelos de uso da jurisprudência estrangeira pela justiça constitucional, p. 30.

[38] TAVARES, André Ramos. Modelos de uso da jurisprudência estrangeira pela justiça constitucional, p. 31.

[39] TAVARES, André Ramos. Modelos de uso da jurisprudência estrangeira pela justiça constitucional, p. 31.

[40] TAVARES, André Ramos. Modelos de uso da jurisprudência estrangeira pela justiça constitucional, p. 32.

[41] LARSEN, Joan L. Importing constitutional norms from a “wider civilization”: Lawrence and the Rehnquist Court’s use of foreign and international law in domestic constitutional interpretation. Ohio Law State Journal, v. 65, p. 1282-1327, 2004 apud SIGNORETTI, Diogo Brandau. A utilização de precedentes estrangeiros pelo Supremo Tribunal Federal: fundamentos e critérios, p. 69.

[42] SIGNORETTI, Diogo Brandau. A utilização de precedentes estrangeiros pelo Supremo Tribunal Federal: fundamentos e critérios, p. 70.

[43] SIGNORETTI, Diogo Brandau. A utilização de precedentes estrangeiros pelo Supremo Tribunal Federal: fundamentos e critérios, p. 69/70.

[44] SIGNORETTI, Diogo Brandau. A utilização de precedentes estrangeiros pelo Supremo Tribunal Federal: fundamentos e critérios, p. 71.

[45] TAVARES, André Ramos. Modelos de uso da jurisprudência estrangeira pela justiça constitucional, p. 37.

[46] HORBACH, Carlos Bastide. O direito comparado no STF: internacionalização da jurisdição constitucional brasileira, p. 193-210.

[47] TAVARES, André Ramos. Modelos de uso da jurisprudência estrangeira pela justiça constitucional, p. 18.

[48] Tradução livre: “Invocar a lei alienígena quando concorda com o próprio pensamento, e ignorá-lo de outra forma, não é tomada de decisão fundamentada, mas sofisma”.

[49] Tradução livre: “Escolhendo a lei estrangeira, você pode encontrar o que quiser”.

[50] HORBACH, Carlos Bastide. O direito comparado no STF: internacionalização da jurisdição constitucional brasileira, p. 202.

[51] HORBACH, Carlos Bastide. O direito comparado no STF: internacionalização da jurisdição constitucional brasileira, p. 199.

[52] TAVARES, André Ramos. Modelos de uso da jurisprudência estrangeira pela justiça constitucional, p. 10.

[53] GARCIA, Maria. “Reserva do possível: os ardis da linguagem e o direito à educação.” Revista de Direito Educacional. Vol. 6/2012. p. 99-114.