DIREITOS FUNDAMENTAIS E RELAÇÕES PRIVADAS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS SOCIAIS
31 de julho de 2023CONSTITUTIONAL RIGHTS AND PRIVATE RELATIONS: SOME CONSIDERATIONS REGARDING THE HORIZONTAL EFFECT OF SOCIAL RIGHTS
Artigo submetido em 05 de junho de 2023
Artigo aprovado em 19 de junho de 2023
Artigo publicado em 31 de julho de 2023
Cognitio Juris Ano XIII – Número 48 – Julho de 2023 ISSN 2236-3009 |
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Autor: Guilherme Barcelos Machado Lopes [1] |
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Resumo: O presente artigo tem por objetivo oferecer algumas diretrizes gerais para uma solução adequada ao problema da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais sociais. Para isso, serão abordadas algumas das propostas doutrinárias, bem como a decisão do Supremo Tribunal Federal que abordou explicitamente o problema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Em seguida, os direitos fundamentais sociais serão considerados em sua especificidade, a fim de se demonstrar como uma abordagem fiel ao texto constitucional exige uma solução diferenciada, sensível à diversidade dos direitos incluídos naquela categoria.
Palavras-chave: direitos fundamentais, direitos sociais, eficácia horizontal.
Abstract: The present paper aims at providing some general directives for an adequate solution to the problem of horizontal effect of social constitutional rights. We will consider some of the approaches offered by the relevant legal doctrine, as well as the decision of the Supreme Federal Court that specifically accessed the issue of horizontal effect. Next, we will consider constitutional social rights in their specificity, in order to show that an approach that remains faithful to the Constitution demands a differentiated solution that is sensible to the diversity of rights included in that category.
Keywords: constitutional rights, social rights, horizontal effect.
Introdução
O presente estudo tem por objetivo apresentar alguns delineamentos a propósito do problema da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais sociais.
Para essa finalidade, serão inicialmente contrastadas algumas das teorias que a doutrina constitucional desenvolveu, relativamente ao tema da eficácia dos direitos fundamentais nas relações de direito privado. Com essa abordagem, se pretenderá não um exame detalhado das diferentes propostas teóricas, mas apenas um contraste das diferentes posições a respeito do problema colocado, a fim de evidenciar a ausência de um consenso doutrinário sobre o tema.
Em seguida, será abordada a decisão do Supremo Tribunal Federal no âmbito do RE nº 201.819-8/RJ, a qual, conquanto não tenha abordado explicitamente os direitos sociais em sua particularidade, fornece, ainda assim, alguns direcionamentos que podem ser aproveitados nesse campo específico.
A partir desses direcionamentos, os direitos fundamentais sociais serão então considerados em sua especificidade, a fim de se demonstrar a insuficiência de quaisquer abordagens simplificadoras de perfil generalista. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais sociais não segue, como se verá, uma regra que se aplique de maneira unívoca para todos os direitos inseridos nessa classificação. Uma resposta adequada ao problema que se colocou demanda uma solução diferenciada, que possa tomar em conta as particularidades dos diferentes direitos fundamentais sociais e, sobretudo, as diferentes estratégias de que o constituinte se serviu para efetivá-los. Os contornos gerais de uma solução satisfatória, sem, no entanto, pretensões de exaustividade, serão oferecidos ao final do trabalho.
Direitos fundamentais nas relações privadas: algumas distinções teóricas
O problema da aplicação dos direitos fundamentais nas relações de direito privado tem ocupado a doutrina estrangeira, sobretudo alemã, pelo menos, desde o advento da Lei Fundamental de Bonn, cuja aprovação data de 1949 (cf. SARMENTO, 2004, p. 224). Destacam-se, como polos referenciais nesse debate, as chamadas teoria da eficácia indireta, proposta por Günter Dürig (cf. 2011, p. 35), e da eficácia direta, proposta por Hans Carl Nipperdey (cf. 2011, p. 57-62).[2]
Em linhas bastante gerais, a teoria da eficácia indireta condiciona a eficácia dos direitos fundamentais nas relações de direito privado à normatização infraconstitucional: apenas como parâmetros para interpretação das normas infraconstitucionais específicas ao direito privado é que os direitos fundamentais teriam nesse domínio qualquer influência, através das chamadas “cláusulas gerais”, que funcionariam como “portas de entrada” para as normas de direito fundamental. O exemplo paradigmático dessa doutrina remete ao chamado “caso Lüth” (BVerfGE 7, 198), julgado pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha no dia 15 de janeiro de 1958 (cf. SCHWABE e MARTINS, 2005, p. 381-395). Em síntese, tratava-se de caso envolvendo um boicote convocado pelo cidadão Erich Lüth contra um filme lançado por Veit Harlan, sendo o boicote motivado pelas associações daquele cineasta com filmes produzidos durante o regime nacional-socialista. A convocação do boicote levou Harlan e seus parceiros comerciais a proporem ação judicial em face de Lüth, com fundamento em dispositivo do Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch, ou “BGB”) que estipulava o dever de indenizar para todo aquele que causasse dano a outrem de maneira intencional e contrária aos “bons costumes”. As instâncias ordinárias julgaram o caso desfavoravelmente à Lüth, mas a Corte Constitucional reverteu o julgado, entendendo que a cláusula geral “bons costumes” deveria receber uma interpretação consonante aos direitos fundamentais.
Por sua vez, a teoria da eficácia direta de Nipperdey dispensa a intermediação de quaisquer cláusulas gerais a nível infraconstitucional, admitindo que se proceda diretamente da norma de direito fundamental para a busca de uma solução a um conflito de direito privado. Para o referido autor, considerações sobre o grau de desigualdade entre as partes envolvidas numa relação de direito privado poderiam, eventualmente, justificar a sobreposição de direitos fundamentais sobre a autonomia privada que, via de regra, governaria essas relações (NIPPERDEY, 2011, p. 63).
No Brasil, a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas também recebeu, mais recentemente, atenção da doutrina, cabendo destacar algumas obras dedicadas especificamente a esse tema, da autoria de Daniel Sarmento (2004), Wilson Steinmetz (2004), e Virgílio Afonso da Silva (2014). Além disso, o problema também recebeu atenção em obras mais generalistas de teoria dos direitos fundamentais, podendo-se aqui mencionar as obras de Ingo Wolfgang Sarlet (2015) e de Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2014, p. 110-111).
Não há, contudo, unanimidade entre esses autores quanto à melhor maneira de transpor os direitos fundamentais para a esfera do direito privado. Com efeito, as teses de Daniel Sarmento (2004, p. 304-309) e de Wilson Steinmetz (2004, p. 218-220) se aproximam em virtude da preferência por uma teoria de eficácia direta, na qual os direitos fundamentais e a autonomia privada precisam ser de algum modo equilibrados, mas os referidos autores propõem abordagens metodológicas bastante distintas. Virgílio Afonso da Silva (2014, p. 132-170) se inclina em favor de uma solução integradora que leve em conta os diferentes padrões de normatização disponíveis em cada caso. Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2014, p. 110-111) aderem à teoria da eficácia indireta, enquanto Ingo Wolfgang Sarlet distingue níveis de eficácia variados a partir da forma de positivação dos diferentes direitos fundamentais (2015, p. 265-401).
Não é o caso de se proceder aqui a um exame mais detalhado dessas diferentes propostas doutrinárias. Basta, pois, deixar suficientemente evidenciado o fato de que os autores que se ocupam do tema divergem tanto no que toca às soluções que propõem – isto é, na maneira como respondem à questão: “qual relação os direitos fundamentais mantêm com as relações entre particulares? ” – quanto no que toca à metodologia que sugerem para pôr em prática suas respectivas soluções – isto é, na maneira como respondem à questão: “como se estabelece a relação entre direitos fundamentais e relações de direito privado? ”. Dada essa pluralidade de alternativas, não se pode, por simples referência a alguma teoria geral, pretender encontrar uma solução pronta para o problema da eficácia dos direitos fundamentais sociais nas relações privadas.
Antes, no entanto, de se proceder na incursão de tal problema, é oportuno examinar a maneira como o Supremo Tribunal Federal lidou com o tema da eficácia horizontal dos diretos fundamentais, a fim de se identificar possíveis direcionamentos para a abordagem da questão.
Adoção da teoria da eficácia imediata na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
A incidência dos direitos fundamentais nas relações de direito privado foi tematizada expressamente pelo Supremo Tribunal Federal na esfera do RE nº 201.819-8/RJ. Cuidava-se, no julgado, de demanda motivada pela exclusão de membro de uma associação de músicos, impugnada em virtude da inobservância do devido processo legal.
Com o acolhimento, pelo respectivo Tribunal de Justiça, da pretensão do associado excluído, houve interposição de recurso extraordinário por parte da associação, que contou com voto favorável da relatora, então Ministra Ellen Gracie. Dentre os fundamentos do voto, a relatora destacou o seguinte:
“Entendo que as associações privadas têm liberdade para se organizar e estabelecer normas de funcionamento e de relacionamento entre os sócios, desde que respeitem a legislação em vigor. Cada indivíduo, ao ingressar numa sociedade, conhece suas regras e seus objetivos, aderindo a eles”.
Contudo, houve divergência por parte do Ministro Gilmar Mendes, que votou pela manutenção da decisão atacada. O entendimento do Ministro foi seguido pela maioria. Determinante, no voto vencedor, foi o desequilíbrio na relação jurídica entre a associação e seus associados. Nesse sentido:
“Destarte, considerando que a União Brasileira de Compositores (UBC) integra a estrutura do ECAD [Escritório Central de Arrecadação e Distribuição], é incontroverso que, no caso, ao restringir as possibilidades de defesa do recorrido, ela assume posição privilegiada para determinar, preponderantemente, a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seu associado.
Em outras palavras, trata-se de entidade que se caracteriza por integrar aquilo que poderíamos denominar como espaço público ainda que não-estatal.
Essa realidade deve ser enfatizada principalmente porque, para os casos em que o único meio de subsistência dos associados seja a percepção dos valores pecuniários relativos aos direitos autorais que derivem de suas composições, a vedação das garantias constitucionais de defesa pode acabar por lhes restringir a própria liberdade de exercício profissional.
Logo, as penalidades impostas pela recorrente ao recorrido, extrapolam, em muito, a liberdade do direito de associação e, sobretudo, o de defesa. Conclusivamente, é imperiosa a observância das garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da CF).
Tem-se, pois, caso singular, que transcende a simples liberdade de associar ou de permanecer associado. Em certa medida, a integração a essas entidades configura, para um número elevado de pessoas, quase que um imperativo decorrente do exercício de atividade profissional”.
Em razão dessas circunstâncias, o Supremo Tribunal Federal manteve a decisão segundo a qual a associação deveria proporcionar ao associado, antes de sua exclusão, as garantias ínsitas ao devido processo legal, tais quais o acesso ao contraditório e à ampla defesa.
Conquanto autores como Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (cf. 2014, p. 113-114) menosprezem o peso da supracitada decisão enquanto evidência de uma adoção da teoria da eficácia direta na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não nos parece que seja sustentável negar, contrariamente ao conteúdo expresso da própria decisão, que houve efetivamente a adoção de tal teoria.
Problema distinto seria indagar pela relevância da supracitada decisão para os propósitos de uma investigação concernente aos direitos fundamentais sociais. Afinal, ainda que admitida a premissa segundo a qual o Supremo Tribunal Federal acolheu a teoria da eficácia direta, se poderia objetar que não se tratava, na decisão em apreço, de um direito de índole social. A adesão à teoria da eficácia direta poderia assim ser limitada a direitos fundamentais de dimensão meramente negativa. Uma linha de questionamento desse tipo se sustentaria, por exemplo, no entendimento segundo o qual prestações positivas que têm como base direitos fundamentais sociais não poderiam estar direcionadas aos particulares, por não disporem estes dos meios adequados de satisfação daqueles direitos.
Contudo, a própria decisão do Supremo Tribunal Federal reconheceu aplicabilidade direta e imediata a um direito fundamental que, conquanto não figure, tradicionalmente, no rol dos assim chamados direitos sociais, tampouco pode ser considerado como um direito a uma prestação meramente negativa. Afinal, a garantia de acesso ao devido processo não envolve apenas omissões/abstenções. No caso em apreço, tratando-se da exclusão de membro de associação, a satisfação daquela garantia demanda, por parte do ente privado, toda uma série de prestações positivas voltadas à criação de procedimentos internos que permitam ao associado, antes de ser excluído, a possibilidade de tomar conhecimento da infração a ele atribuída, de defender-se do conteúdo dessa acusação, etc.
De fato, é ilusória a crença segundo a qual posições para exigir prestações positivas só seriam outorgadas por direitos sociais. Tão ilusória quanto a crença de acordo com a qual direitos sociais têm, todos eles, apenas essa dimensão positiva/prestacional. Para se retomar, aqui, um exemplo de Böckenförde (1993, p. 64), é inviável conceber o direito à liberdade de imprensa apenas em sentido negativo, sendo condição necessária, para a existência de uma imprensa livre, que o Estado assegure uma pluralidade mínima de empresas atuando no fornecimento de informações nos meios de comunicação de massa. Um monopólio privado sobre esses meios aniquilaria a liberdade de imprensa tão eficazmente quanto um monopólio estatal.
Ademais:
“[…] os direitos em sentido clássico podem apresentar-se como direitos a prestações. Estão neste caso o direito de voto […], o direito a uma tutela ou defesa efetiva dos direitos na sua integralidade […] ou o dever, que incumbe ao Estado, de criação de normas procedimentais e organizativas, que, de algum modo, requerem uma prestação estatal” (QUEIROZ, 2010, p. 179).
Dadas essas circunstâncias, são acertadas as colocações de Canotilho e Vital Moreira (1991, p. 112-113) quando assinalam que: “seria profundamente errado partir de uma contraposição linear dos ‘direitos sociais’ aos ‘direitos, liberdades e garantias’ e supor que aqueles consistem exclusivamente em direitos positivos, em direitos dos cidadãos a prestações ou actividades do Estado”
Por conseguinte, seria equivocado rejeitar a relevância do precedente do RE nº 201.819-8/RJ para o problema da eficácia perante terceiros dos direitos fundamentais sociais, simplesmente com base no caráter preponderantemente prestacional desses direitos. Afinal, a garantia efetiva de acesso ao devido processo envolve, também ela, prestações positivas, e isso não foi impeditivo ao reconhecimento de uma aplicabilidade direta por parte do Supremo Tribunal Federal.
Uma análise mais detida sobre a pluralidade dos meios de satisfação, sejam positivos/prestacionais, sejam negativos/omissivos, dos diferentes direitos fundamentais – sejam eles de qual “geração” ou “dimensão” forem – em conjunção com as particularidades do caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do RE nº 201.819-8/RJ é, assim, bastante para se sustentar uma conclusão negativa: a de que uma classificação dos meios de satisfação dos direitos fundamentais não é suficiente para se determinar a eficácia destes perante particulares. Soluções desse tipo, conquanto sedutoras em sua simplicidade, se revelam ilusórias.
Algumas diretrizes para a aplicabilidade perante terceiros dos direitos fundamentais sociais
Duas colocações de fácil confirmação no texto constitucional podem, se generalizadas, induzir a equívocos inversos. A primeira consiste no fato de que há na Constituição Federal, a exemplo de seu art. 196, direitos fundamentais sociais que vinculam apenas o Estado. A generalização equivocada dessa constatação leva à crença de que direitos fundamentais sociais não vinculariam, sob nenhuma hipótese, os particulares.
A segunda colocação é a de que, também inequivocamente, há no texto constitucional direitos fundamentais sociais que se dirigem aos particulares, a exemplo de parte considerável dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais previstos no art. 7º da Constituição. A generalização equivocada dessa constatação consiste em afirmar que os direitos fundamentais sociais vinculam indistintamente os particulares e o Estado.
É procedente, assim, a afirmação de Wilson Steinmetz, no sentido de que: “não são dogmaticamente corretas posições que, de imediato e sem qualquer diferenciação, excluem a vinculação dos particulares a direitos fundamentais sociais e posições que propõem exatamente o oposto” (2004, p. 277).
Há, pois, dois aspectos cruciais a serem elucidados a propósito da vinculação de particulares a um determinado direito fundamental. O primeiro deles é a vinculação pura e simples, o que equivale a responder à seguinte indagação: “a norma do direito fundamental em questão tem como destinatário o Estado apenas ou também os sujeitos privados?”. O segundo deles consiste em, uma vez estabelecida a vinculação do particular, elucidar o meio pelo qual essa vinculação está elaborada no texto constitucional, o que equivale a responder à indagação: “A constituição vincula os particulares diretamente ao direito fundamental em questão, ou subordina essa vinculação à produção legislativa infraconstitucional?”.
Nem sempre, evidentemente, uma resposta a essas questões será óbvia, muito embora existam também disposições constitucionais para as quais aquelas questões não representam qualquer dificuldade. O já mencionado art. 196 da Constituição é um que, inequivocamente, exclui os particulares do alcance dos deveres que o dispositivo estabelece. Por sua vez, o art. 7º, XXIII, oferece exemplo de norma que, de modo muito evidente, tem particulares entre seus destinatários (a saber, os empregadores de pessoas que exercem atividades penosas, insalubres ou perigosas), mas subordina aos “termos da lei” o direito do trabalhador ao respectivo adicional de remuneração – o que reclama uma aplicabilidade apenas indireta.[3] Ainda, constata-se no artigo 7º, XVIII, exemplo de direito fundamental social imediatamente aplicável aos particulares.
Assim, é forçoso consentir, em se tratando especificamente dos direitos sociais, com aquela parte da doutrina que reconhece, para o tema da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, a necessidade de uma abordagem matizada/diferenciada (cf. SARLET, 2015, p. 400).
Sem que se tenha aqui pretensões de se exaurir o tema, importa indicar dois dispositivos teóricos de especial relevância para se especificar a forma de vinculação de particulares a direitos fundamentais sociais. O primeiro deles, decisivo para a questão da vinculação pura e simples dos particulares, consiste no chamado “suporte fático” dos direitos fundamentais. Com efeito, as normas de direito fundamental têm condições de aplicabilidade que podem ser reduzidas à conjunção dos seguintes elementos: um âmbito de proteção (o domínio de condutas, estados, características, etc., que o direito protege), uma intervenção sobre tal âmbito, e uma ausência de fundamentação constitucional para esta intervenção. Em se tratando especificamente de direitos sociais em dimensão prestacional, as variáveis que compõem o suporte fático podem ser mantidas, bastando reinterpretá-las de modo a conceber o âmbito de proteção como o conjunto das ações que fomentam o fim social respectivo, e a intervenção como uma realização insuficiente dessas ações (cf. SILVA, 2017, p. 67-79).
Assim, a vinculação de um particular a um direito fundamental social é questão que se resolve pela identificação do suporte fático do respectivo direito. Se a norma de direito fundamental em consideração possuir um âmbito de proteção passível de sofrer intervenções por particulares, e se a própria Constituição não excluir expressamente a relevância dessas intervenções para que seja atingido o direito em causa, então a norma de direito fundamental vincula particulares.
Esse critério, como sinalizado, determina a vinculação ou não vinculação pura e simples de particulares a um dado direito fundamental. Contudo, a forma da vinculação ainda permanece por determinar.
Para elucidar esse segundo ponto, um critério relevante é o da técnica de positivação do direito fundamental no texto da Constituição (cf. SARLET, 2015, p. 268). Trata-se aqui de identificar os meios de concretização do direito fundamental que o constituinte estabeleceu, atentando-se, entre outros aspectos, para uma possível subordinação do direito à concreção legislativa. Uma aplicabilidade direta perante particulares exige meios de concreção que sejam minimamente determináveis em nível constitucional. O direito da gestante à licença maternidade, previsto no já mencionado art. 7º, XVIII, é um exemplo paradigmático: os meios de sua concreção (licença de cento e vinte dias sem prejuízo do emprego e do salário) já estão previamente especificados na própria Constituição. Não há, ainda, qualquer remissão à legislação infraconstitucional por meio de expressões tais quais “nos termos da lei”. É instrutivo contrastar essa disposição com a do art. 7º, XXVII, que prevê o direto à “proteção em face da automação, na forma da lei”. Este dispositivo, diferentemente do anterior, prevê não apenas um fim de natureza geral, cujos meios de concretização não estão esboçados a nível constitucional, como também o subordina expressamente à produção legislativa infraconstitucional. Uma eficácia dessa norma em relações de direito privado não poderia se dar, portanto, senão de maneira indireta.
Assim, a elaboração do suporte fático de um direito fundamental e a atenção à forma de positivação de que o constituinte lançou mão para introduzi-lo no texto constitucional parecem ser elementos mais instrutivos, para fins de se determinar a eficácia de um direito social perante particulares, do que o apelo a classificações ou ao eventual aspecto prestacional do direito em causa.
As duas diretrizes fornecidas tornam a abordagem do problema sensível às variadas estratégias de positivação de que o constituinte se utilizou para o fim de dar efetividade aos direitos fundamentais sociais. Consequentemente, trata-se de proposta que consegue manter maior fidelidade em relação ao próprio texto constitucional.
Conclusão
A vinculação de particulares a direitos fundamentais suscita, sobretudo, duas soluções doutrinárias: a chamada teoria da eficácia imediata, e a teoria da eficácia mediata. Na doutrina brasileira, o problema recebeu abordagens distintas, que oscilam entre as duas teorias e soluções integradoras ou intermediárias.
O Supremo Tribunal Federal, através da decisão que julgou o RE nº 201.819-8/RJ, deu sinalizações explícitas de adesão à teoria da eficácia imediata, pois que aplicou diretamente o direito fundamental ao devido processo, com o fim de assegurar os meios de defesa para indivíduo que havia sido excluído de associação privada.
Conquanto o referido caso não tenha versado sobre um direito de natureza social, pode-se retirar dele uma conclusão instrutiva: do ponto de vista da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o caráter prestacional de um direito fundamental não é, por si, suficiente para se recusar sua aplicabilidade em face de particulares. Pode-se, portanto, recusar qualquer proposta que recuse aos diretos sociais uma eficácia nas relações privadas, e que tenha por base apenas o argumento de que a dimensão positiva/prestacional desses direitos inviabilizaria a vinculação dos particulares.
Além disso, a leitura do texto constitucional fornece numerosos exemplos de direitos fundamentais sociais que se aplicam a particulares direta ou indiretamente.
Não é possível, por conseguinte, pretender resolver o problema da vinculação dos particulares por uma abordagem generalista, que simplesmente afirme ou negue uma eficácia direta ou indireta dos direitos sociais nas relações privadas. Mais instrutiva, pois, é uma abordagem sensível às particularidades dos diversos direitos fundamentais sociais, capaz de ter em conta as diferentes estratégias de efetivação empregadas pelo constituinte.
Dois componentes adquirem, assim, importância central para a abordagem que aqui se propõe. O primeiro deles consiste na identificação dos elementos que integram o chamado “suporte fático” do direito fundamental que se pretende aplicar. Há, pois, normas de direito fundamental que efetivamente excluem os particulares de seu alcance, seja porque possuem âmbitos de proteção que não podem ser atingidos por ações/omissões que algum particular possa desempenhar, seja porque excluem ações de particulares do domínio das intervenções relevantes para a configuração de uma restrição ao respectivo direito fundamental. Contudo, não se verificando nenhuma dessas duas alternativas, estar-se-á diante de norma de direito fundamental que alguma eficácia tem perante os sujeitos privados.
O suporte fático do direito fundamental serve, assim, para determinar se ele vincula ou não particulares, mas não serve para especificar a forma de vinculação. Para isso, é necessário socorrer-se a critérios adicionais, dos quais se destaca aqui o da técnica de positivação. Tem-se, pois, de verificar se a norma de direito fundamental social estipula os meios necessários para a concretização do direito, ou se ela subordina a eficácia deste à concreção legislativa. Em sendo possível discernir meios de concreção por uma interpretação em nível constitucional, e não havendo condicionamento à produção legislativa infraconstitucional, a norma será diretamente aplicável.
Evidentemente, os critérios propostos estão longe de ser totalmente unívocos. Em determinadas circunstâncias, identificar o alcance do suporte fático de uma norma de direito fundamental, ou extrair meios mais ou menos determinados de concretização, serão problemas consideravelmente ambíguos.
Nada obstante, as indicações aqui feitas fornecem diretrizes que permitem manter um grau mais elevado de fidelidade ao texto constitucional do que se obteria por uma abordagem simplificadora de cunho mais generalista.
Referências
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CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991.
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2014.
DÜRIG, Günther. Direitos fundamentais e jurisdição civil. Tradução de Luís Afonso Heck. In: HECK, Luís Afonso (org.). Direitos fundamentais e direito privado: textos clássicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed. 2011.
NIPPERDEY, Hans Carl. Direitos fundamentais e direito privado. Tradução de Waldir Alves. In: HECK, Luís Afonso (org.). Direitos fundamentais e direito privado: textos clássicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed. 2011.
QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais sociais: questões interpretativas e limites de justiciabilidade. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2010.
SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12ª ed. rev. atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
SILVA, Virgílio Afonso da S. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. 1. ed., 4., tir. São Paulo: Malheiros, 2014.
________. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. 4. tir. São Paulo: Malheiros, 2017. STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004.
[1] Advogado. Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela mesma instituição. Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
[2] Consideramos que as demais teorias podem ser consideradas matizações ou então sínteses das soluções propostas por essas duas referências básicas. Para uma exposição mais detalhada das diferentes teorias, cf. SILVA, 2014, p. 70-106.
[3] Não abordaremos, aqui, o que consideramos um problema distinto, e que consiste nas medidas que o Poder Judiciário poderia tomar diante da inação do legislador em produzir as normas infraconstitucionais reclamadas pelo texto constitucional.