DANO MORAL COLETIVO NA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA
5 de dezembro de 2023PUNITIVE DAMAGES FOR COLLECTIVE DAMAGES IN THE CRIMINAL CONVICTION SENTENCE
Artigo submetido em 30 de novembro de 2023
Artigo aprovado em 4 de dezembro de 2023
Artigo publicado em 5 de dezembro de 2023
Cognitio Juris Volume 13 – Número 52 – Dezembro de 2023 ISSN 2236-3009 |
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Autor(es): Bruno de Omena Celestino [1] |
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RESUMO: As esferas de responsabilização civil estão crescendo. Atualmente, além de se admitir a responsabilidade pelo dano moral coletivo, busca-se inseri-lo no âmbito penal através da fixação do mínimo indenizatório quando da sentença condenatória. A responsabilidade por danos morais não encontra mais restrições na lei brasileira, considerando que a Constituição brasileira expressamente a prevê, bem como o Código Civil. Já a responsabilidade por danos morais coletivos não possui previsão na Constituição brasileira, mas encontra previsão no âmbito da lei que regula as ações civis coletivas. A jurisprudência vem gradualmente aceitando a imposição da obrigação de reparação do dano moral coletivo nas sentenças penais condenatórios. Porém, não há previsão legislativa nem adequação do processo penal para fixação de tal obrigação na esfera penal. Assim, o artigo tem como objetivos a exposição sistematizada em capítulos sobre o tema relativo à reparação extrapatrimonial, adotando como metodologia a pesquisa doutrinária e de jurisprudência.
Palavras-chave: Responsabilidade civil. Dano moral coletivo. Sentença Penal Condenatória. Impossibilidade.
ABSTRACT: The spheres of tort law liability has been growing. Currently, in addition to admitting punitive damages for collective damages, it is sought to include it in the criminal proceedings by setting the minimum indemnity in the conviction sentence. Liability for moral damages is no longer restricted by Brazilian law, considering that the Brasilian Constitution expressly provides for it, as well as the Civil Code. Liability for collective damages is not provided for in the Brazilian Constitution but is provided for the law that regulates the collective actions (class actions). The jurisprudence has gradually accepted the liability for collective moral damage criminal conviction sentences. However, there is no legislative provision or adequacy of the criminal procedure to impose the collective punitive damages. The main method of the paper is the systematized exposition, with chapters on the subject, based on research on the jurisprudence of the Brazilian superior courts and the main law commentaries.
Keywords: Tort law liability. Punitive damages for collective damages. Criminal conviction sentence. Impossibilty.
INTRODUÇÃO
As sociedades modernas são marcadamente mais complexas se comparadas com as sociedades pré-industriais que as antecederam. Embora direitos coletivos não fossem estranhos, é inegável que os interesses e direitos individuais gozavam de protagonismo até o início do século XX. Contudo, com o fim da emergência do nazifascismo, os direitos coletivos ganharam notável evidência, sendo alçados à categoria de direitos fundamentais em diversas Constituições ainda vigentes.
Essa ampliação dos interesses tuteláveis no moderno modelo de Estado de Direito (Estado Democrático de Direito ou Estado Social e Democrático de Direito) provocou inegáveis reflexos no campo da responsabilidade civil, que passou a preocupar-se não apenas com as violações dos direitos individuais, mas também com as violações dos direitos coletivos, notadamente aqueles de natureza extrapatrimonial. Nesse contexto, aloja-se a figura jurídica do dano moral coletivo, cuja responsabilização tornou-se expressamente possível no ordenamento jurídico brasileiro a partir do Código de Defesa do Consumidor de 1990, no que foi seguida pelas alterações promovidas na Lei nº 7.347/1994 pela Lei nº 8.884/1994.
Em tempos recentes tornou-se comum pedidos de reparação de danos morais coletivos não apenas em ações civis públicas, mas também em ações penais, mormente naquelas ações cuja res judicia deducta envolve a imputação de crimes contra a Administração Pública. O argumento principal é que não existe qualquer vedação legal, ao contrário, a pretensão estaria acobertada pela sistemática da fixação de obrigação mínima de reparação civil dos danos em sede processual.
No entanto, além da relativa novidade do tema, que importa em natural precaução da abordagem, nota-se certa singeleza e insegurança nos argumentos favoráveis a imposição de mais um capítulo na sentença penal condenatória. Como exemplo desta situação está a instável posição do Supremo Tribunal Federal que em espaço aproximado de 2 (dois) anos produziu duas decisões absolutamente contraditórias no âmbito do órgão fracionário da Segunda Turma, primeiro, inadmitindo a possibilidade no julgamento da Ação Penal nº 992/DF e, depois, admitindo-a no julgamento da Ação Penal 1.002/DF.
Esta instabilidade é a razão pela qual escolheu-se o presente tema para fins de pesquisa.
O principal objetivo é contribuir com o debate de forma a se buscar uma estabilização na compreensão do tema. As principais indagações que orientam este singelo esforço de pesquisa estão na dúvida sobre a existência de previsão legal que autorize o juízo criminal fixar, na sentença penal condenatória, mínimo indenizatório à título de reparação de dano moral coletivo e, ainda, se seria o processo penal ambiente adequado para tratar do tema.
A fim de responder às indagações, laborou-se na análise qualitativa das relevantes posições doutrinárias sobre o tema e nas principais decisões dos tribunais superiores.
O método de se alcançar as respostas dá-se na exposição sistematizada do tema, sendo dividida a exposição em 3 (três) capítulos. No primeiro, analisar-se-á a responsabilidade civil extrapatrimonial e sua consequente reparação, tanto na órbita individual, quanto na órbita coletiva. No segundo capítulo, enveredar-se-á na análise do tema da responsabilidade civil, em especial a corrente que admite a fixação de responsabilidade por dano moral coletivo na sentença penal condenatória. No terceiro capítulo, abordar-se-á diretamente os problemas advindos da admissão da imposição de obrigação de responsabilidade civil por dano moral coletivo no âmbito da sentença penal condenatória.
Dessa forma, espera-se que a presente exposição possa contribuir com o tema, a despeito dos inegáveis limites estreitos do artigo, máxime a sensível imbricação da discussão do tema com a eficácia dos direitos fundamentais atingidos pela persecução penal.
1 RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS EXTRAPATRIMONIAIS
A responsabilidade civil por dano é matéria comezinha do Direito. Considerando a longevidade do tema não há qualquer dificuldade em aceitar a responsabilidade civil decorrente dos danos causados ao patrimônio de terceiros, pois a norma que compreende o dever jurídico de reparar o dano causado é tanto positivado no ordenamento jurídico, como se trata de verdadeiro princípio geral do Direito, tornando desnecessárias maiores explanações.
Durante muito tempo o dano e a consequente responsabilidade civil foram limitados à ótica patrimonial. Segundo Carlos Roberto Gonçalves, a concepção clássica do conceito do dano significava diminuição do patrimônio (GONÇALVES, 2008, v. 3, p. 337). Dessa forma, a responsabilidade extrapatrimonial encontrava dificuldades, uma vez que lesões aos direitos de personalidade não ocasionavam, a priori, repercussão patrimonial.
No entanto, a responsabilidade civil pelos danos extrapatrimoniais já não encontra qualquer dificuldade em ser admitida, mormente a expressa previsão no ordenamento jurídico, em especial pela elevação ao nível constitucional da possibilidade de reparação dos danos extrapatrimoniais nos termos do art. 5°, X e V da Constituição.
A reparação civil pelos danos extrapatrimoniais envolve, primordialmente, o dano moral individual, cuja previsão é expressa tanto na Constituição quanto na legislação ordinária.
Porém, com o amadurecimento do tema, a doutrina e jurisprudência passaram a admitir novos danos extrapatrimoniais indenizáveis relacionados com a coletividade, com especial destaque ao assim chamado dano social e o dano moral coletivo.
Em razão da necessidade de análise minimamente consentânea com o tema, analisaremos essas espécies de danos extrapatrimoniais em tópicos separados.[2]
1.1 DANO MORAL INDIVIDUAL
Sérgio Cavalieri Filho, em estudo sobre o tema, aponta para a existência de três fases de reparabilidade do dano moral. Primeiro, houve a fase da irreparabilidade, em que prevaleceu a tese da impossibilidade de tutela do dano moral coletivo, mormente a impossibilidade de se mensurar e quantificar pecuniariamente dor e sofrimento. Depois, teve lugar a fase da reparabilidade restrita, em que se admitiu a tutela do dano moral, mas de forma restrita, sendo imprescindível a demonstração de situações de sofrimento, humilhação, dor psíquica individual para fins de reparação. Por fim, a fase da reparabilidade integral, cuja configuração do dano independe da dor ou do sofrimento psíquico, estando relacionado com os danos aos direitos de personalidade, como honra, imagem, intimidade etc. (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 81-82).
Com efeito, a evolução histórica da responsabilidade civil extrapatrimonial parte da irreparabilidade para a reparabilidade integral, sendo a inequívoca opção feita pelo poder constituinte originário nos termos do art. 5°, V e X, da Constituição.
Os danos morais, portanto, são aqueles relacionados com interesses extrapatrimoniais típicos, isto é, não derivam de uma diminuição do patrimônio, mas sim são violações da dignidade de alguma pessoa, afetando direitos de personalidade. Dessa forma, as lesões às esferas de dignidade implicam em dano passível de reparação extrapatrimonial, sendo a humilhação, o desprezo etc. consequências e não pressupostos do dano moral.
Embora a lesão aos direitos de personalidade seja, primordialmente, relativa à pessoa natural, já não há mais dificuldades em aceitar que pessoas jurídicas também como sujeitos passivos de danos morais. Nestes casos, haverá a reparação não pela violação da dignidade e dos direitos típicos da pessoa natural, mas dos direitos de personalidade em sentido amplo como nome, honra etc.
A possibilidade de reparação do dano moral em favor da pessoa jurídica encontra-se sedimentada na jurisprudência, cabendo citar como exemplo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça nos termos da súmula n° 227: “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral” (BRASIL, 1999).
Socorrendo-se novamente às lições de Sérgio Cavalieri Filho, o autor explica que alguns direitos de personalidade especiais são titularizados por pessoas jurídicas, tais como o bom nome, imagem, sigilo de correspondência etc. Ademais, a reparação do dano moral encontra-se dissociada de sentimentos psíquicos humanos, uma vez que o art. 5°, X, da Constituição assegura a reparação do dano moral de qualquer pessoa, jurídica ou física, desde que atingida por violação da honra e imagem. Não bastasse, o dano moral teria como pressuposto compensar e punir o infrator, não sendo possível deixá-lo impune. Logo, a pessoa jurídica seria passível de sofrer dano moral em sentido amplo, possuindo direito à reparação (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 96-98).
1.2 DANO SOCIAL
É necessário fazer menção ao fato de que parcela da doutrina entende pela existência de uma nova espécie de dano extrapatrimonial, isto é, o dano social. Para tal corrente o dano social seria diferente do dano moral coletivo, considerando que o dano moral coletivo estaria relacionado, em alguma medida, com violação de direitos coletivos que possuem titulares próprios, ainda que não identificados, enquanto o dano social tutelaria os direitos da sociedade.
Nesse sentido se posicionam Ana Zenkner e Maiara Rocha para quem, baseado no magistério de Flávio Tartuce, duas seriam as grandes diferenças, primeiro, o fato do dano moral coletivo atingir os direitos de indivíduos, ainda que difusos, coletivos ou individuais homogêneos, e, segundo, porque o dano social comporta danos materiais, o que, por óbvio, não é objeto do dano moral coletivo (ZENKNER; ROCHA, 2017, p. 88).
Flávio Tartuce afirma que a construção do conceito de dano social indenizável é atribuída à Antônio Junqueira de Azevedo, na esteira de ampliação dos âmbitos de responsabilização civil tanto na órbita patrimonial como extrapatrimonial. O dano social teria por base o art. 1°, III, da Constituição, tomado na perspectiva coletiva, cujos eventuais danos aos interesses da sociedade mereceriam reparação (TARTUCE, 2008).
É de se reconhecer a aceitação gradual do dano social no âmbito das instituições judiciárias. A V Jornada do Conselho da Justiça Federal aprovou-se o enunciado n° 456 em que se admite que a norma do art. 944 do Código Civil incluiria a previsão do dano social (BRASIL, 2018).
Também há aceitação na jurisprudência. Cite-se o julgado da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça na Reclamação n° 12.062/GO em regime de recurso repetitivo, onde foi fixada a tese n° 742 que reconheceu como nula, em ação individual, a condenação ao pagamento de danos sociais não requeridos em favor de terceiros estranhos à lide, o que, a despeito da negativa da fixação do dano social, em verdade, reconheceu a possibilidade desta espécie de dano, apenas negando que fosse aplicado de maneira “extra petita” em ações individuais (BRASIL, 2018).
Em que pese respeitáveis os argumentos favoráveis a distinção entre dano moral coletivo e dano social, eis que eles não se sustentam. O dano social e o dano moral coletivo são em si a mesma coisa, pois o fundamento de ambos está na violação dos direitos coletivos que geram danos extrapatrimoniais de interesse da sociedade.
O grande problema da interpretação que diferencia o dano social do dano moral coletivo está em atrelar o dano moral coletivo aos pressupostos do dano moral individual, o que é repetidamente refutado pelos principais conceitos de dano moral coletivo. Com efeito, há considerável esforço em demarcar a diferença entre os danos extrapatrimoniais individuais e coletivos, pelo que não seria adequado afirmar que a diferença entre o dano moral coletivo e dano social seja a titularidade de direitos coletivos. Logo, quando falamos em responsabilidade extrapatrimonial coletiva tomamos a expressão dano social como sinônimo de dano moral coletivo.
1.3 DANO MORAL COLETIVO
A ideia de dano moral coletivo é decorrência do maior protagonismo que os direitos coletivos alcançaram nos ordenamentos jurídicos após a segunda metade do século XX. Como no Brasil o processo de democratização do Direito encampado pela Constituição de 1988 alçou diversos direitos coletivos para o campo constitucional, tomaram fôlego as discussões acerca da responsabilidade pelos eventuais danos causados por condutas que violassem os direitos coletivos sem necessariamente causar danos individuais.
De maneira geral, considera-se dano moral coletivo aquele decorrente de condutas que ofendem de forma intolerável os direitos coletivos em sentido amplo (o qual reputamos apenas os direitos transindividuais e direitos coletivos em sentido estrito), violando os interesses coletivos mais básicos da sociedade, os quais, por sua intolerabilidade, exigem a reparação do ofensor.
Em sentido semelhante, Carlos Alberto Bittar Filho afirma que o dano moral coletivo seria a lesão injusta à esfera moral da comunidade, atingindo de forma intolerável o patrimônio dos valores duma comunidade (BITTAR FILHO, 2005).
Diferentemente da responsabilidade por danos morais individuais, a responsabilidade civil por dano moral coletivo não possui expressa previsão na Constituição, em que pese entendimentos em contrário.[3] O que a Carta Magna prevê, em diversas oportunidades, é a possibilidade de tutela dos direitos coletivos em suas diversas espécies, o que não se constitui, por si só, base para responsabilidade civil por danos extrapatrimoniais coletivos.
No entanto, embora a Constituição não preveja expressamente a possibilidade de responsabilidade civil por danos morais coletivos, fato que ela também não o veda.
A primeira previsão expressa da reparação do dano moral coletivo deu-se no Código de Defesa do Consumidor no art. 6º, VI e VII, tratando-a como direito básico do consumidor. Posteriormente, a Lei nº 8.884/1994 modificou a redação do art. 1º da Lei 7.347/86 para expressamente prever a possibilidade de ajuizamento de ação civil pública para se alcançar a reparação de danos morais, fazendo com que exista procedimento próprio de tutela da reparação dos danos morais em perspectiva coletiva.[4]
A possibilidade de responsabilização por dano moral coletivo encontrou resistência no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do REsp 598.281/MG a Primeira Turma, por maioria, entendeu pela impossibilidade de condenação por dano moral coletivo em ação civil pública cuja causa de pedir remota dizia respeito a suposto dano ambiental decorrente de loteamento irregular. Prevaleceu voto divergente da lavra do Min. Teori Zavascki, para quem não seria possível harmonizar tal responsabilidade com os pressupostos dos danos transindividuais, uma vez que dano moral pressuporia sentimentos individuais, diversos dos interesses transindividuais (BRASIL, 2006).
Entretanto, o entendimento acima exposto nunca foi unânime no Superior Tribunal de Justiça. No julgamento do Recurso Especial n° 866.636/SP a Terceira Turma admitiu a condenação por dano moral coletivo por entender que existiria violação do direito difuso da saúde em ação civil pública cuja causa de pedir remota foi conhecido como “caso das pílulas de farinha”, quando foram colocados à venda por laboratório farmacêutico lote de caixas utilizados em testes de embalagens que não continham princípio ativo do medicamento (BRASIL, 2007).
Também a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n° 1.057.274/RS envolvendo a limitação imposta por decreto estadual do gozo por pessoas idosas do direito de vagas gratuitas em viagens interestaduais de ônibus (conhecido como “passe livre”), negou, no caso concreto, a condenação por dano moral coletivo por deficiência no prequestionamento recursal, porém expressamente admitiu a possibilidade de sua configuração, uma vez que o dano moral coletivo deveria ser pensado de forma autônoma ao dano moral individual, sendo desnecessária a demonstração de sentimento de repulsa ou indignação, senão apenas que a ofensa fosse grave o suficiente para violar os sentimentos da coletividade ou grupo (BRASIL, 2009).
Atualmente prevalece de forma segura na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a interpretação que admite a responsabilização civil por danos morais coletivos[5], posição a qual reputamos coerente, desde que o seja no âmbito das ações cíveis públicas, considerando que há expressa previsão legal para tais casos.
Estabelecida a existência legal desta espécie de dano, importante expor de forma mais detalhada os pressupostos distintivos da responsabilidade por dano moral coletivo, considerando que a análise é imperiosa para, doravante, entender se é possível discuti-la na sentença penal condenatória.
1.3.1 Pressupostos da responsabilidade por dano moral coletivo
O fator chave para a superação dos entraves doutrinários e jurisprudenciais na admissão da responsabilidade por dano moral coletivo foi o distanciamento dos pressupostos da responsabilidade por dano moral individual. Dois fundamentos são apontados como preponderantes para a construção de uma teoria própria em favor da especialização do dano moral coletivo, sendo eles: (i) a existência de condutas que violam bens jurídicos coletivos de forma relevante, causando danos que ultrapassam os meros interesses individuais; (ii) a inadmissibilidade de que a lesão aos direitos coletivos ficasse sem resposta do ordenamento jurídico, gerando impunidade e estimulando a reiteração de comportamentos ilícitos.
Como mencionado, o primeiro pressuposto está na ideia de que o dano moral coletivo não depende da demonstração de eventuais consequências individuais negativas, como acontece no dano moral individual. Enquanto neste último é relevante averiguar eventuais consequências individuais como abalo psicológico, constrangimento, humilhação etc., não há tal exigência para configuração do dano moral coletivo. Em alguns casos, sequer é possível averiguá-los, considerando a natureza transindividual de alguns direitos (e.g., meio ambiente equilibrado). Noutros casos, quando existentes consequências individuais negativas, elas não são necessárias para configuração do dano. Portanto, o que interessa para configuração do dano moral coletivo é a lesão intolerável ao bem jurídico coletivo.
Quanto ao ponto, Xisto Tiago Medeiros Neto afirma que a construção do conceito de dano moral coletivo não se vincula às questões individuais psíquicas (repulsa, abalo etc.), mas à violação dos direitos coletivos, razão pela qual não se deveria buscar um modelo de responsabilização civil por danos coletivos baseados exclusivamente nos pressupostos dos danos pessoais. Resumidamente, o autor afirma que o dano moral coletivo se dá quando há violação grave de direitos coletivos, mediante a intenção deliberada do autor em obter ilicitamente vantagem e em contraposição às normas do Estado Democrático de Direito (MEDEIROS NETO, 2015, p. 12-13).
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça diversas decisões ressaltam que o dano moral coletivo prescinde da vinculação aos pressupostos do dano moral individual. Podemos citar, por exemplo, o decidido pela Segunda Turma no Recurso Especial n° 1.269.494/MG que tratava de imputação de dano ambiental, onde se admitiu a possibilidade, em tese, de condenação em danos morais coletivos, sendo desnecessária a demonstração de dor, sofrimento e repulsa de toda a comunidade para a caracterização do dano (BRASIL, 2013).
Já no julgamento do Recurso Especial n° 1.397.870/MG, que envolvia a imputação de venda casada em serviços de telecomunicação, foi estabelecido que o dano moral coletivo não se resumiria à dor psíquica, mas abarcaria também qualquer abalo moral da coletividade (BRASIL, 2014).
A lesão intolerável ao bem jurídico coletivo indicaria a necessidade de o Estado tutelá-lo de maneira efetiva, punindo eventual comportamento contrário aos direitos e interesses sociais. Não existiria lógica no sistema jurídico em atribuir elevada valoração à determinado bem jurídico coletivo e não dispor de instrumento efetivo para que pudesse protegê-lo. Nesse ponto, a necessidade de punição dos comportamentos que colocam em risco ou lesionam os direitos coletivos seria fundamento apto a justificar a responsabilização por danos morais coletivos.
Essa compreensão é esposada por Xisto Tiago Medeiros Neto, para quem a responsabilização por dano moral coletivo se justificaria na medida em que não seria admissível aceitar a violação de direitos coletivos e da própria ordem jurídica sem a consequente obrigação de reparação (MEDEIROS NETO, 2015, p. 13).
1.3.2 Funções da responsabilização por dano moral coletivo
Para além dos pressupostos nos quais se assentam a responsabilização por dano moral coletivo é importante esclarecer qual a função exercida pela reparação em tais casos. Apesar do uso do vocábulo “reparação”, a condenação por dano moral coletivo possui menos a natureza de reparação e mais, ou até mesmo exclusivamente, a natureza de sanção. Com efeito, a responsabilização por dano moral coletivo possui destacadas funções punitivas, comunicando tanto à sociedade quanto ao transgressor a reprovação da conduta e desestimulando a reiteração dos comportamentos indesejados.
No entanto, diversos autores afirmam a condenação em dano moral coletivo ainda possuiria função reparatória, ainda que simbólica. Carlos Alberto Bittar Filho, afirma que a reparação pecuniária por dano moral coletivo teria uma função tanto compensatória quanto punitiva (BITTAR FILHO, 2005).
Luis Gustavo Grandinetti C. de Carvalho, por outro lado, traz a noção de que há preponderância ora da função reparatória, ora da função sancionatória do dano moral coletivo. Primeiro, parte da premissa de que não há mais conveniência em se adotar uma rígida separação entre das esferas de responsabilidade civil e penal (CARVALHO, 2000, p. 26). Ademais, continua o autor afirmando que apenas as sanções penais precisariam de rígida previsão legal, sendo que em face das condutas que atentassem contra interesses públicos previstos no sistema jurídico, poderiam ser aplicada sanções típicas de direito privado, deduzidos dos princípios gerais e demais normas do sistema jurídico (Ibidem, p. 28-29). Dessa forma, ressalta que reparação do dano moral coletivo atenderia ao hiato entre a lesão aos interesses públicos ou difusos e a inexistência de sanção penal, mesclando as esferas de responsabilidade, ora possuindo preponderância reparatória, ora sancionatória (Ibidem, p. 34-38).
Em que pese respeitáveis os argumentos que advogam pela natureza reparatória ou compensatória da obrigação advinda da condenação por dano moral coletivo, fato que tais funções são retóricas ou meramente acidentais. A grande distinção entre a reparação por dano moral individual e dano moral coletivo é, em verdade, a prevalente ou quase absoluta função punitiva no último caso.
Rememore-se que uma das premissas da reparação por dano moral coletivo seria a impossibilidade de se admitir uma violação do ordenamento jurídico pela vulneração dos direitos coletivos sem a correspondente resposta estatal, razão pela qual Xisto Tiago Medeiros Neto aponta que a condenação possuiria uma destacada função punitiva-pedagógica (MEDEIROS NETO, 2015, p. 18), afirmando ainda:
Assim, a imposição dessa parcela ao ofensor corresponde à forma de responsabilização concebida pelo sistema jurídico, equivalente ao que se convencionou chamar de reparação por dano moral coletivo, e que tem o objetivo de atender, com primazia, à função sancionatória e pedagógica reconhecida à tutela desta categoria de danos. Com efeito, não se trata, propriamente, de uma reparação típica, de finalidade compensatória, nos moldes do que se observa em relação aos danos morais individuais. Cuida se, aqui, repise-se, de uma modalidade peculiar de resposta do sistema jurídico, imprescindível à garantia da sua própria respeitabilidade, estruturada especificamente para as hipóteses de danos a direitos transindividuais. Em síntese, a função e o objetivo da condenação, na seara dos direitos coletivos, afasta-se das linhas básicas que caracterizam o modelo de reparação dos danos pessoais. (MEDEIROS NETO, 2015, p. 18-19)
É necessário deixar claro que o autor mencionado não afasta completamente a função compensatória, admitindo-a, porém de forma secundária e indireta (MEDEIROS NETO, 2015, p. 22), razão pela qual noutra oportunidade ressalta:
No plano concreto, porém, o que importa e prevalece é a previsão legal, objetiva, da condenação do agente violador ao pagamento de parcela pecuniária, que tenha significação exemplar, como decorrência da causação do dano coletivo extrapatrimonial, de maneira a atender à funcionalidade e à coerência do sistema de responsabilidade civil (MEDEIROS NETO, 2015, p. 22).
A indefinição da natureza jurídica do dano moral coletivo justifica, na visão de Leonardo Roscoe Bessa, seja reconhecida a ausência de uma teoria própria e a necessidade de se buscar um conceito autônomo. Assim, defende a conjugação das finalidades típicas da responsabilidade civil e penal na órbita da responsabilização por danos morais coletivos (BESSA, 2007, p. 250)[6]. Embora o autor reconheça a natureza multifacetada das funções desta modalidade de responsabilidade civil, destaca precisamente a função sancionatória:
A conclusão, em síntese, é que, por ausência da sedimentação, no campo do direito material, de modelo teórico próprio, o entendimento acerca do dano moral coletivo decorre de enfoque multifacetado e, no que diz respeito à finalidade punitiva, tanto sob uma perspectiva civil como penal, é possível considerar a presença de tal caráter sancionatório (BESSA, 2007, p. 269).
É evidente que em muitos destes casos sobressai a função punitiva. Busca-se punir mais severamente o infrator dos direitos coletivos e comunicar à sociedade que violações aos interesses sociais não serão tolerados. Tomando por base tais elementos, não há como não se traçar um paralelo entre as funções do dano moral coletivo e as funções das penas criminais, pois as citadas funções punitivas e pedagógicas são verdadeiro traslado das funções retributivas e preventivas, gerais e especiais, da sanção penal.
1.3.3 Natureza in re ipsa do dano moral coletivo
Em razão dos pressupostos diferenciados da responsabilidade por dano moral coletivo, a comprovação das consequências negativas de eventual conduta passível de responsabilização não é impreterível, pois o dano moral coletivo possui a natureza “in re ipsa”, depreendido da própria dimensão da agressão ao bem jurídico coletivo.
Em diversas oportunidades o STJ ressaltou a natureza in re ipsa do dano moral coletivo. Exemplificando, no julgado do Recurso Especial n° 1.784.595/MS, em caso que envolvia drogaria com problemas de higiene e armazenamento de medicamentos controlados e vencidos, tratou-se como irrelevante o fato da drogaria ter corrigido os defeitos e não ser reincidente, pois esta seria mera causa agravante e o dano efetivo independeria de prova, configurando-se in re ipsa (BRASIL, 2020).
Xisto Tiago de Medeiros Neto afirma que o dano se verifica pelo próprio fato, sendo dispensável prova direta do dano moral coletivo, senão do fato em si, isto é, da conduta violadora, pois a natureza danosa seria extraída da certeza de que tais condutas lesionariam os direitos coletivos em sentido amplo (MEDEIROS NETO, 2015, p. 16-17).
Em sentido semelhante, Carlos Alberto Bittar Filho afirma:
Com supedâneo, assim, em todos os argumentos levantados, chega-se à conclusão de que o dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico; quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial. Tal como se dá na seara do dano moral individual, aqui também não há que se cogitar de prova da culpa, devendo-se responsabilizar o agente pelo simples fato da violação (“damnum in re ipsa”) […] (BITTAR FILHO, 2005)
Todavia, a natureza in re ipsa do dano moral coletivo pode gerar excessos na responsabilização. Daí porque a intolerabilidade da agressão é tanto pressuposto quanto limite. Funciona como instrumento de temperamento do dano moral coletivo, pois somente haverá dano quando existir uma grave lesão que afeta direitos fundamentais coletivos, isto é, uma conduta intolerável, não bastando o mero ato ilícito.
Em sentido semelhante, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgando o Recurso Especial n° 1.823.072/RJ, afastou a condenação em dano moral coletivo em face de operadora de plano de saúde por descredenciamento de clínica fisioterapia em que não teriam sido cumpridos os requisitos legais, pois se entendeu que, a despeito do ato antijurídico, não teria existido lesão intolerável (BRASIL, 2019).
1.3.4 Direitos coletivos passíveis de reparação por dano moral
Se há certo consenso doutrinário e jurisprudencial quanto a admissibilidade da responsabilidade civil por dano moral coletivo, não se pode dizer quanto a extensão desta. Com efeito, há dúvidas razoáveis sobre a possibilidade de estendê-la para todas as espécies de direito coletivos.
Existem três espécies de direitos coletivos em sentido amplo: (a) direito transindividual ou difuso, que são aqueles cujos titulares não são individualizados ou individualizáveis, cuja ligação entre eles se dá por uma relação de fato (e.g. direito ao meio ambiente equilibrado); (b) direitos coletivos em sentido estrito, que são aqueles cujos sujeitos não são individualizados, porém são individualizáveis, compondo um grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas cujos interesses são unidos por uma relação jurídica base (e.g.: relação de consumo, direitos trabalhistas de categoria profissional etc.); (c) direitos individuais homogêneos, que são aqueles individuais, porém legalmente equiparados como coletivos considerando a similitude das pretensões chamadas de origem comum.
A classificação supra decorre da interpretação das disposições do art. 81, parágrafo único, incisos I usque III, do Código de Defesa do Consumidor, sendo comumente referenciada pela doutrina.[7]
Não há dificuldade na responsabilização civil por dano moral envolvendo direitos difusos e coletivos, mormente a natureza propriamente coletiva destes direitos. Contudo, há divergência quanto a impossibilidade de condenação por dano moral coletivo nos casos de direitos individuais homogêneos.
Xisto Tiago de Medeiros Neto entende que a configuração do dano moral coletivo dar-se-á independentemente do número de pessoas, pois ainda que a conduta ilícita tenha atingido poucos poderá alcançar repercussão coletiva, gerando a necessidade de reparação, sendo indevido analisá-lo apenas em razão da quantidade de pessoas. Por esta razão, o dano moral coletivo estaria configurado toda a vez que houvesse uma lesão séria aos direitos transindividuais, assim considerados em todas as suas expressões (MEDEIROS NETO, 2015, p. 14-15).
Esta interpretação ampliativa está longe de ser pacífica, pois há em entendimentos jurisprudenciais e doutrinários em sentido contrário.
Por exemplo, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça julgando o Recurso Especial n° 1.610.821/RJ, em caso em que a empresa estaria limitando a troca de produtos defeituosos em 7 (sete) dias, violando garantia legal, manteve-se o julgamento de procedência da ação, porém sem condenação em dano moral coletivo. No caso, foi destacado que não seria possível condenação por dano moral coletivo envolvendo direito individual homogêneo, pois este último possui a natureza acidentalmente coletiva, isto é, seria direito individual onde o legislador, artificialmente, teria conferido tratamento jurídico de direito coletivo (BRASIL, 2020).
No âmbito doutrinário, Leonardo Roscoe Bessa entende que dano moral coletivo não se confunde com a indenização por danos individuais homogêneos, destacando, novamente, a função punitiva deste instituto que se destina à reprovação das condutas violadoras dos direitos transindividuais (ou difusos) e dos direitos coletivos em sentido estrito (BESSA, 2007, p. 280).
Reputamos como inadmissível a condenação por dano moral coletivonos casos envolvendo os direitos individuais homogêneos, considerando a natureza acidentalmente coletiva destes. Decerto, trata-se de direitos individuais típicos cuja tutela, por opção legislativa, se dá em procedimento coletivo a fim de prestigiar outros direitos como a segurança jurídica e a celeridade. No entanto, esta opção legislativa não afasta a natureza jurídica de direito individual, pelo que impossível a condenação por dano moral coletivo.
2 RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NA ESFERA PENAL
Feitas as considerações anteriores acerca da responsabilidade civil por danos extrapatrimoniais, resta então analisar como o tema incide na esfera penal. É necessária uma prévia e concisa digressão sobre como o tema da responsabilidade civil é tratado no contexto penal.
O sistema jurídico brasileiro adota, como princípio, a separação das instâncias, não existindo vinculação necessária entre a o juízo criminal e o cível. Porém, há exceções notórias como, por exemplo, as questões prejudiciais heterogêneas necessáriasque vinculam o juízo criminal à decisão produzida no âmbito civil acerca do estado civil das pessoas, mormente o art. 92 do Código de Processo Penal.
No caso da responsabilidade civil e penal há expressa norma jurídica determinando a separação das instâncias, isto é, o art. 935 do Código Civil de 2002 que prevê: “a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.
Como se nota, a norma supra traz a regra da independência, no entanto ela mesmo indica as exceções, como a vinculação das decisões meritórias sobre a prova da existência de fato e autoria, assim como aquelas condutas abarcadas por causas excludentes de ilicitude o que, aliás, é repetido nos arts. 65 e 66 do Código de Processo Penal.
Nesse diapasão, uma vez praticada uma hipotética conduta criminosa há tanto interesse para ação penal da parte com legitimidade ativa ad causam, como também para eventual ação civil de reparação de danos. Não há necessidade de se aguardar o desfecho de eventual ação penal para que possa ser intentada a adequada ação veiculando a pretensão civil. Entretanto, uma vez transitada em julgada a sentença condenatória esta qualifica-se como título executivo extrajudicial apta a subsidiar a competente ação civil ex delicto nos termos do art. 63 do Código de Processo Penal.[8]
A flexibilização da separação entre as instâncias vem se acentuando, em especial no tema da responsabilidade civil dos danos causados pela infração criminosa. Embora já se admitisse a produção de efeitos no âmbito civil em tais temas, diversas previsões legais passaram a permitir a discussão da reparação civil diretamente no âmbito do próprio processo penal.
A Lei 9.099/95 tratou com abundância dessa possibilidade, com a expressa previsão de composição civil nas infrações de menor potencial ofensivo a ser realizada no âmbito do procedimento penal sumaríssimo (cf. art. 72 e 73 da Lei 9.099/95), bem como permitindo a suspensão do processo para crimes cuja pena mínima seja igual ou inferior à 1 (um) ano, desde que o beneficiado reparasse o dano no âmbito do próprio procedimento penal (cf. art. 89, da Lei 9.099/95).
Previsão semelhante encontra-se no novel instituto do acordo de não persecução penal previsto no art. 28-A, I, do CPP introduzido pela Lei 13.964/2019, pois condiciona a homologação do acordo à reparação dos danos pelo acusado.
Entrementes, foi a Lei 11.719/2008 que mais a instância penal da cível, ao permitir por força do art. 387, IV, do Código de Processo Penal que o juízo penal, em capítulo da sentença penal condenatória, possa fixar o valor mínimo de reparação dos danos causados pela infração de acordo com os prejuízos suportados pela vítima, o que ver-se-á em seguida.
2.1 FIXAÇÃO DO VALOR MÍNIMO DE REPARAÇÃO DO DANO NA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA
A Lei nº 11.719/2008 deu nova redação ao art. 387 do Código de Processo Penal, incluindo o inciso IV que expressamente prevê a possibilidade de o juiz fixar valor mínimo de reparação de acordo com os prejuízos suportados pela vítima. Do referido inciso depreende-se três pressupostos claros para a atuação do juiz: (i) a fixação de um valor mínimo; (ii) deve existir relação de causalidade entre os danos e a infração; (iii) tem como medida os prejuízos sofridos pelo ofendido.
O juízo penal não pode avançar para a reparação de todo o prejuízo, mas sim fixar um valor mínimo. Noutras palavras, a liquidação do prejuízo ainda é de competência do juízo civil, pelo que não houve um rompimento dos sistemas de independência, cabendo à instância adequada analisar a reparação integral do dano. No entanto, nada impede que a vítima se contente com o valor mínimo, ainda que possa ser reparado na instância civil a maior. Essa situação de estabelecer uma fixação de valor mínimo e não integral recebeu crítica de Guilherme de Souza Nucci, tratando-o como meio termo injustificável (NUCCI, 2008, p. 691).
Ademais, a lei exige expressamente a demonstração da relação causal. Essa obrigação decorre dos princípios constitucionais da culpabilidade penal subjetiva e da pessoalidade da pena, pois ninguém pode ser penalmente punido por fato de terceiro do qual não concorra com culpa subjetiva. Nesse diapasão, como na esfera penal a obrigação de indenizar é um efeito secundário da pena (v. art. 91, I, do Código Penal) e somente é atribuível àquela conduta subjetiva que guarde relação causal com o fato, não é possível fixar responsabilização civil por danos que não decorram, diretamente, da conduta penalmente típica.
Por fim, a fixação do quantum mínimo da esfera penal exige prejuízo, mormente a expressa previsão da parte final do inciso IV do art. 387 do Código de Processo Penal. É mister que se apontem os efetivos prejuízos que merecem reparação. O prejuízo funciona como limite para a fixação do quantum mínimo indenizatório, seja porque atende à disposição já contida no Código Civil – cujo limite da responsabilidade civil individual é a extensão do dano causado, aplicando critério equitativo apenas no caso de impossibilidade de quantificação do prejuízo efetivo (cf. art. 944, caput, do Código Civil) –, seja porque não é devido que sentença penal disponha sobre obrigações indeterminadas, como seria uma imposição de responsabilidade civil por danos que não possuem qualquer parametrização com base nos prejuízos sofridos.[9]
O art. 387, IV, do Código de Processo Penal é o único dispositivo que trata expressamente da possibilidade de atribuição de responsabilização civil em capítulo da sentença penal condenatória – à exceção dos negócios processuais que, por sua vez, não são decisões condenatórias. Em verdade, não há outros dispositivos legais no Código de Processo Penal regulando o capítulo da sentença relacionado com a reparação por danos, em especial para esclarecer eventuais dúvidas acerca do alcance da responsabilização civil, como, v.g., nas condenações por crimes sem sujeito passivo individual, abundantes na legislação penal (e.g. crimes contra a Administração Pública, contra a Fé Pública etc.).
Esta simplicidade é um dos motivos pelo qual a doutrina e jurisprudência interpretem cada vez mais ampliativamente o dispositivo para alcançar responsabilidade por danos extrapatrimoniais, inclusive para alcançar a eventual reparação por danos morais coletivos.
2.2 FIXAÇÃO DO VALOR MÍNIMO DO DANO MORAL INDIVIDUAL NA SENTENÇA PENAL
A reparabilidade do dano moral individual possui previsão constitucional, não havendo dúvidas sobre o tema (v. art. 5°, V e X da Constituição).
As regras relativas à reparação do dano individual, seja material ou moral, encontram previsão no Código Civil (art. 927 usque art. 954) e em boa medida espelham a disciplina da reparação prevista no Código Penal (art. 91, I) e Código de Processo Penal (art. 63 usque art. 68), não há dificuldade, a priori, em admitir a fixação do valor mínimo de reparação do dano moral individual em capítulo da sentença penal condenatória.
A possibilidade da fixação do quantum mínimo por dano moral individual em capítulo da sentença penal condenatória já possui acolhida na jurisprudência.
A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Agravo Regimental no Recurso Especial n° 1.888.079/RJ, manteve a fixação de dano moral individual em sentença penal condenatória em caso envolvendo imputação de roubo e corrupção de menores, uma vez que teria existido pedido expresso na denúncia. (BRASIL, 2021).
A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n° 1.675.874/MS, decidido em regime de recurso repetitivo (Tema 983), pacificou esta interpretação quando discutia a questão da indenização por dano moral em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo que no bojo do julgado reconheceu-se que o art. 387, IV, do Código de Processo Penal contemplava a indenização por dano material e moral, desde que houvesse pedido expresso da acusação ou da parte ofendida (BRASIL, 2018).
A rigor, não há dificuldade em aceitar a imposição em capítulo da sentença penal condenatória da obrigação de reparação de valor mínimo por dano moral individual, sendo que o tema está se pacificando na órbita jurisprudencial, o que não pode ser dito quanto ao tema do dano moral coletivo.
2.3 FIXAÇÃO DO VALOR MÍNIMO DE DANO MORAL COLETIVO NA SENTENÇA PENAL
A doutrina e jurisprudência brasileira encontra-se em progressivo estágio de aceitação da possibilidade de o juízo criminal fixar obrigação de reparação mínima por danos morais coletivos na sentença penal condenatória, em especial nos crimes cujos bens jurídicos tutelados sejam (crimes contra a Administração Pública, o Meio Ambiente etc.).
Luiz Fernando Silva Oliveira entende como legítima a imposição na sentença penal condenatória dos danos morais coletivos nos casos envolvendo crimes contra a Administração Pública. Para o autor, ela funcionaria como verdadeira indenização punitiva (punitive damages), não mera indenização compensatória, sob pena da conduta criminosa ser considerada viável na medida em que o condenado apenas devolveria aquilo que obteve irregularmente (OLIVEIRA, 2019, p. 142). Ademais, a reparação punitiva possuiria natureza de sanção reparadora que, conjuntamente com a sanção penal, serviria para desestimular as práticas criminosas contra a Administração Pública e recuperar a confiança social (Ibidem, p. 147).
Ainda segundo o autor:
O dano moral coletivo deve ser utilizado como sanção reparadora, nos crimes praticados contra a Administração Pública, e aplicado pelo juiz criminal, conjuntamente com a pena privativa de liberdade, na própria sentença penal condenatória, para punir os violadores da ordem jurídica, e servir de instrumento de recuperação da confiança da coletividade no sistema jurídico, atuando como medida de aperfeiçoamento do sistema de repressão e prevenção dos delitos contra a Administração Pública. (OLIVEIRA, 2019, p. 147).
Para chegar a tal conclusão, o autor destaca a natureza punitiva e pedagógica do dano moral, que, a despeito da inexistência previsão legal expressa, teria ampla aceitação jurisprudencial (OLIVEIRA, 2019, p. 110-114).[10] Ressalta que o dano moral coletivo possuiria previsão no art. 6, VI e VII, do CDC e art. 1º, caput, da Lei 7.347/85 (Ibidem, p. 119-120). Não bastasse, advoga que a aplicação do dano moral coletivo em sede processual penal encontraria amparo nos arts. 5º, X, da CF c/c art. 91, I, do CP c/c art. 387, IV, do CPP c/c art. 1º da Lei 7.347/85, propondo até mesmo parametrização do quantum debeatur por analogia da Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429/92 (Ibidem, p. 143 e 161-164).
No âmbito da jurisprudência há decisões admitindo a fixação de danos morais coletivos em sentenças penais condenatórias.
A título de ilustração citamos o julgado da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região na apelação criminal nº 5026663-10.2014.4. 04.7000/PR que reformou sentença de primeiro grau em processo da chamada “Operação Lava-Jato” que havia afastado condenação por dano moral coletivo em suposto crime contra o Sistema Financeiro Nacional. Para o Tribunal, teria existido lesão à imagem e higidez do Sistema Financeiro Nacional, o que, aliado à precedente de uma das turmas do Supremo Tribunal Federal, autorizaria a fixação de quantum mínimo indenizatório (BRASIL, 2020).
A discussão, como visto, já se instalou no Supremo Tribunal Federal, embora naquele Sodalício a questão ainda esteja indefinida.
Originariamente a Suprema Corte brasileira não admitia a possibilidade. No julgamento da Ação Penal n° 996/DF a Segunda Turma, por maioria de votos, indeferiu a condenação por danos morais coletivos. Embora o relator, ministro Edson Fachin, tivesse julgado pela possibilidade da condenação, seguido pelo então ministro Celso de Mello, prevaleceu o voto divergente do ministro Dias Toffoli, destacando que a novidade trazida pela Lei 11.709/2008 teria como fim precípuo os direitos individuais, não os de natureza difusa, sendo que o processo penal, de regra, não seria o local adequado para fixação de tal obrigação, mormente o alto grau de indeterminação, sendo este o local da ação civil pública, onde ainda sim seria difícil estabelecê-lo e mensurá-lo. Também divergiram do relator os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski (BRASIL, 2018).
Posteriormente, no julgamento do Agravo Regimental na Petição n° 7.069a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria, deu provimento ao recurso para permitir arresto para futuro pagamento de multa condenatória, porém, por unanimidade, indeferiu o pedido de arresto para garantir futuro adimplemento de obrigação de reparação dano material coletivo. O voto vencedor do ministro Roberto Barroso deixou transparecer posição favorável à eventual fixação de mínimo indenizatório por dano moral coletivo em sede penal, no que foi seguido em voto pelo ministro Luiz Fux. Entretanto, os ministros não admitiram o arresto porque, naquele momento, a tese de imposição de dano moral coletivo em sede de ação penal mostrava-se controvertida na Suprema Corte (BRASIL, 2019).
Eis que em 09 de junho de 2020, após a mudança de composição da Segunda Turma, o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Penal n° 1.002, admitiu, por maioria, a fixação de obrigação solidária de mínimo indenizatório por dano moral coletivo em face de condenados pela prática do delito de corrupção e lavagem de dinheiro. Com base no art. 3°, I, c/c art. 37 da Constituição Federal, o voto vencedor estabeleceu que nos casos envolvendo crimes praticados por agentes públicos que lesionam o erário é permitida a fixação de mínimo indenizatório por dano moral coletivo à luz do art. 387, IV, do CPP c/c art. 927 do CC, considerando a violação das expectativas sociais, dos objetivos fundamentais e princípios da Administração Pública delineados na Constituição (BRASIL, 2020).
Não há, até o presente momento, posição consolidada no Supremo Tribunal Federal quanto ao tema. Não consideramos a decisão na AP 1.002/DF um leading case, uma vez não houve uma mudança de posicionamento da Corte. Ainda há uma indefinição, até porque a composição da Segunda Turma do STF sofreu modificação desde a data daquele julgamento, existindo ministros em ambas as turmas contrários ao posicionamento adotado. Logo, o julgado em comento apresenta-se como isolado.
Seja como for, observa-se que há na Corte Suprema brasileira espaço para aceitação da imposição de dano moral coletivo em sentença penal condenatória.
3 ANÁLISE CRÍTICA DA FIXAÇÃO DO DANO MORAL COLETIVO NA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA
Como se nota, a possibilidade de fixação de dano moral coletivo na sentença penal condenatória encontra-se em debate. Poucas são as reflexões profundas quanto a sua admissibilidade no processo penal, diversamente do que acontece no processo civil coletivo, cuja discussão está mais evoluída. Sendo assim, baseado nas pesquisas desenvolvidas cumpre contrastar os argumentos favoráveis a possibilidade de fixação do dano moral coletivo em capítulo da sentença penal condenatória.
A análise qualitativa das posições doutrinárias e jurisprudenciais feitas no presente estudo demonstra que há certa empolgação com a admissão da responsabilização por dano moral coletivo no âmbito do processo penal com base no art. 387, IV, do Código de Processo Penal.
Poucas são as posições doutrinária que efetuam a análise crítica quanto eventual inadequação de se trasladar, sem maiores cuidados, matéria típica processo civil coletivo para o campo processual penal. Ademais, há elasticidade nos argumentos que defendem a existência de previsão legal para o expediente mencionado. Sendo assim, cumpre analisar cada um desses problemas.
3.1 DA VIOLAÇÃO DA LEGALIDADE PENAL
Não existe previsão legal específica para fixação de quantum mínimo indenizatório por dano moral coletivo no âmbito da sentença penal condenatória.
Em que pese o esforço das posições favoráveis, boa parte dos argumentos recorrem à aplicação, a fórceps, do art. 387, IV, do Código de Processo Penal, desconsiderando a sua literalidade, ou aplicando analogia in malam partem.
A primeira observação que se faz é que o art. 387, IV, do Código de Processo Penal não oferece espaço para a fixação do valor mínimo reparatório à título de dano moral coletivo. Como já mencionamos anteriormente, a base da reparação por danos morais coletivos não é a reparação do prejuízo efetivamente experimentados pelas vítimas, até porque a vítima seria a coletividade e, em muitos casos, não identificáveis. O que se tutela é a violação de bens jurídicos reputados relevantes para a coletividade, pelo que a imposição de obrigação reparatória de dano moral possui natureza materialmente punitiva, isto é, trata-se de verdadeira sanção penal ao infrato, visando dissuadir outros potenciais infratores.
Não se pode perder de vista que a possibilidade de fixação de responsabilidade civil por dano moral coletivo está intimamente ligada à maior intensidade da sanção materialmente penal aplicada em desfavor do réu, como reconhece Luiz Fernando Silva de Oliveira ao tratar da imposição de danos morais coletivos em casos envolvendo crimes contra à Administração Pública, pois a imposição desta obrigação adicional torna mais onerosa a reprovação social da conduta e desestimula eventual reiteração do ilícito (OLIVEIRA, 2019, p. 142-144).
O disposto no art. 91, I, do Código Penal c/c art. 387, IV, do Código de Processo Penal não contempla essa espécie de responsabilização civil extrapatrimonial. Referidos dispositivos estão relacionados com as disposições típicas da responsabilidade civil por danos individualizados. Portanto, a base da fixação do quantum mínimo indenizatório em sentença penal está assentada na reparabilidade, não no sancionamento.
A introdução pela Lei 11.719/2008 da possibilidade de fixação do valor mínimo reparatório da sentença penal condenatória possuiu nítida finalidade de ressarcir os prejuízos diretamente causados pela conduta criminosa e não a de punir.
Heráclito Antônio Mossin, por exemplo, ao interpretar o art. 387, IV, do Código de Processo Penal afirma que cumpre ao juiz fixar o valor mínimo de acordo com os danos efetivamente comprovados nos autos, embora a vítima possa liquidar a sentença penal no futuro para apurar o valor efetivamente devido, sendo que referida disposição tem como finalidade cumprir o disposto no art. 91, I, do Código Penal (MOSSIN, 2010, p. 627-628).
Eugênio Pacelli de Oliveira propôs a interpretação restritiva do art. 387, IV, do Código de Processo Penal, destacando que o dispositivo tem como finalidade a especificação do valor mínimo e cujos prejuízos estejam comprovados, tratando-o, ademais, como ampliação da regra do art. 91, I, do Código Penal (OLIVEIRA, 2012, p. 657-658).
Interpretando sistematicamente as disposições alhures vê-se que a função da reparação dos prejuízos decorrentes da conduta criminal não possui função sancionatória. Todas as disposições relativas à reparação civil no âmbito penal voltam-se a reparação do prejuízo efetivamente sofrido pela conduta criminosa. A própria disposição do art. 91, I, do Código Penal fala em reparação do dano “causado” pelo crime, isto é, um dano efetivo, com nexo causal entre a conduta e o prejuízo. Ademais, o Código Civil, ao tratar da reparação decorrente do ato ilícito e dano o faz sob a ótica da reparação do prejuízo, sendo este último o limite da reparação nos termos do art. 927 do Código Civil.
Não se olvide que no Direito Penal o instituto responsável por imprimir a reprovação pela conduta e desestimular a reiteração do ato ilícito é a pena, que pode, inclusive, revestir-se na forma de perda de bens, suspensão de direitos e multas, não havendo o porquê se apelar para a reparação civil do dano com medida punitiva quando o Direito Penal dispõe de meios efetivos para tais fins.
Em verdade, o que se nota da análise dos posicionamentos favoráveis à interpretação ampliativa do art. 387, IV, do Código de Processo Penal c/c art. 91, I, do Código Penal foi a inegável tentativa de escapar das amarras da legalidade penal estrita, direito fundamental nos termos do art. 5º, XXXIX, da Constituição. Isso porque boa parte dos autores que conceituam o dano moral coletivo destacam a função punitiva exercida pela reparação desta espécie de dano, cuja finalidade é a reprovação da conduta atentatória aos interesses sociais e desestimular a reiteração da conduta indesejada.
Logo, o dano moral coletivo tem inegável natureza e sendo sanção aplicada em sede de penal faz-se necessário observar a prévia e estrita previsão legal, o que efetivamente não existe.
O recurso à legislação especial, como os arts. 6º, VI e VII, do Código de Defesa Civil e 1º, “caput”, da Lei 7.347/85, bem como aos dispositivos constitucionais relacionados com os objetivos da República (art. 3º) e princípios constitucionais gerais da Administração (art. 37) apenas reforça essa inegável pretensão de, por vias transversais, superar a instransponível barreira da legalidade penal, pois nos dispositivos mencionados nada há tratando sobre o dever de imposição de condenação por dano moral coletivo em capítulo da sentença penal condenatória.
Desta forma, o que existe é a analogia para permitir a imposição desta verdadeira sanção pecuniária aditiva e sem previsão em lei penal estrita.
Ressalte-se que se trata de analogia in malam partem, considerando as implicações negativas no patrimônio e liberdade do apenado.
Primeiramente, haverá uma punição pecuniária consistindo na retirada do patrimônio do indivíduo de valores que não estão previstas previamente em lei, muito menos corresponde a restituição ou reparação de prejuízos efetivamente causados.
Por outro lado, torna-se absolutamente viável impor obrigações abusivas com o fim de se impedir medidas despenalizadoras como suspensão condicional do processo e acordo de não persecução, que exigem como pressuposto a reparação do dano (respectivamente, art. 89, §1º, I, da Lei 9.099/95 e art. 28-A, I, do Código de Processo Penal). Também seria possível se impedir a progressão de regime prisional em crimes contra a Administração Pública, máxime a exigência prévia de reparação dos danos (cf. art. 33, §4º, do Código Penal). Outrossim, seria possível impedir o livramento condicional (cf. art. 83, IV, do Código Penal c/c art. 131 da Lei de Execuções Penais), dentre outras hipóteses.
Enfim, não há possibilidade de se admitir na sentença penal condenatória a fixação de dano moral coletivo, mormente a inexistência de previsão legal estrita, bem como a impossibilidade de fazê-lo por analogia sem que exista a violação do direito fundamental da legalidade penal estrita nos termos do art. 5º, XXXIX, da Constituição.
3.2 INADEQUAÇÃO DO PROCESSO PENAL PARA FIXAÇÃO DO DANO MORAL COLETIVO
Do ponto de vista processual, há que se expor a inadequação instrumental em se permitir a fixação de dano moral coletivo no seio da lide penal.
A jurisdição exercida em matéria penal não comporta a amplitude que é natural do processo civil coletivo. No processo penal, a sentença condenatória deve ser individualmente determinada e taxativa, com culpa e sanções estritamente estabelecidas de acordo com o que prevê a lei penal.
Nesse diapasão, é tarefa verdadeiramente hercúlea exigir quantificação de um mínimo reparatório por dano moral coletivo quando se sabe que, em tais casos, sequer o prejuízo pode ser quantificado, o que se dirá atribuí-lo como obra da conduta individual e subjetiva de alguém.
Amanda Buarque Bernardo ressalta que o art. 387, IV, do Código de Processo Penal foi pensado para ressarcir a vítima, porém como a reparação do dano moral coletivo se reverte para um fundo, se assemelha à uma sanção pecuniária. Não bastasse, considerando que há indeterminabilidade do sujeito passivo e indivisibilidade da ofensa essa situação dificultaria a quantificação de qual seria o mínimo para ser indenizado na esfera penal (BERNARDO, 2021).
Luis Gustavo G. C. de Carvalho, tratando do contexto de ações cíveis, reconhece que, mesmo neste campo, há perigo em se forçar demais o conceito de dano moral, gerando discussões sobre indenizações vultosas e banalização do instituto (CARVALHO, 2000, p. 23-24).
Essas considerações espaçadas se somam as já clássicas advertências da doutrina sobre a inadequação da via processual penal para discussão da fixação da indenização civil em matéria penal.
Daí porque lúcidas as advertências que já eram feitas por Vicente Greco Filho no sentido de que a fixação do mínimo de reparação do dano em sede processual penal seria danosa e perturbadora, desviando o seu curso e objeto (GRECO FILHO, 2009, p. 318-319).
Enfim, há impossibilidade da fixação do dano moral coletivo no âmbito do processo penal, seja porque não há previsão legal nesse sentido, seja porque não há adequação para tal espécie de pretensão no processo penal.
Entretanto, isso não significa que inexistirá responsabilização por dano moral coletivo no âmbito adequado. O que se advoga no presente é que essa matéria não compete ao procedimento penal, pelo que a sentença penal condenatória dela não pode tratar. Sendo assim, uma vez que se divise a possibilidade de responsabilização civil por dano moral coletivo, cumpre ajuizar a adequada ação civil pública pelos legitimados nos termos do art. 1º, caput, da Lei 7.347/85.
CONCLUSÕES
A reparação do dano moral coletivo decorre da expansão das esferas de responsabilização civil. Inicialmente enfrentou resistência em razão da incompatibilidade com os pressupostos da responsabilidade civil, porém obteve reconhecimento a partir do momento em que assentou seus pressupostos de maneira diversa daqueles da responsabilidade civil por dano individual.
A responsabilidade por dano moral coletivo possui natureza jurídica de sanção, visto que suas funções são: retribuição do comportamento por sua elevada reprovabilidade e prevenção e desestimulo de comportamentos ilícitos semelhantes. Em que pese se admitir funções reparatórias, elas são meramente simbólicas ou acidentais.
As disposições constantes do Código Penal, Código de Processo Penal e Código Civil acerca da reparação civil em decorrência de comportamentos criminosos não contempla a reparação por danos extrapatrimoniais coletivos, uma vez que tratam da responsabilização civil pelos danos e prejuízos, materiais e morais, de ordem individual, cujos pressupostos são diferentes daqueles de ordem coletiva.
O recurso às disposições legais especiais que tratam da responsabilização civil por dano moral coletivo configura-se como “analogia in malam partem”, violando o direito fundamental da reserva legal estrita do art. 5º, XXXIX, da Constituição, consistindo em verdadeira pena anômala, não prevista prévia e expressamente em lei.
O processo penal é meio inadequado para versar sobre matéria de responsabilidade civil por dano moral coletivo.
As conclusões do presente artigo não impedem, todavia, persecução civil para apuração de eventual responsabilidade civil por dano moral coletivo. Todavia, esta pretensão deve ser exercida por meio processual adequado que é a ação civil pública.
REFERÊNCIAS
BERNARDO, Amanda Buarque. A fixação do dano moral coletivo na sentença penal condenatória. Conteúdo Jurídico, Brasília, 28 mai. 2021. Disponível em: < https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56324/a-fixao-do-dano-moral-coletivo-na-sentena-penal-condenatria. >. Acesso em: 28 maio 2021.
BESSA, Leonardo Roscoe. Dano Moral Coletivo. Revista da Escola Superior da Magistratura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, v. 10, n. 40, p. 247-283, out./dez. 2007.
BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 559, 17 jan. 2005. Disponível em:< https://jus.com.br/artigos/6183 >. Acesso em: 25 jul. 2021.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1. Turma). Agravo Regimental no Recurso Especial 1.305.977/MG. Relator: Ari Pargendler, 09 abr. 2013. Disponível em: < https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201102973961&dt_publicacao=16/04/2013 >. Acesso em 05 ago. 2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Agravo Regimental no Recurso Especial 1.888.079/RJ. Relator: Sebastião Reis Jr., julgado em 02 mar. 2021. Disponível em: < https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202001975835&dt_publicacao=09/03/2021 >. Acesso em 07 dez. 2021.
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[1] Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pós-graduado lato sensu em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP). Professor da Graduação em Direito nas disciplinas de Processo Penal, Direito Constitucional, Teoria Geral de Direito Constitucional e Direito Internacional Público e Privado da Faculdade Anhanguera de Maceió/AL. Professor da Graduação em Direito das Disciplinas de Processo Penal do Centro Universitário Mário Pontes Jucá (UMJ). Advogado.
[2] Cumpre esclarecer que a doutrina aponta para existência de outra espécie de dano extrapatrimonial individual reparável, a saber, o dano estético. Contudo, optamos por não o tratar como espécie em separado, pois concordamos com a posição de Sérgio Cavalieri Filho que enxerga nos danos estéticos a mera especialização de danos morais (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 102). Decerto, os danos estéticos são estritamente individuais e representam uma afetação da dignidade de um indivíduo cuja base é uma lesão material, isto é, lesão em alguma dimensão ao corpo do ser humano. Tais danos, além de poderem representar danos materiais (como o lucro cessante de modelos que se veja impedidos de realizar seus trabalhos ou tenham significativa diminuição dos seus ganhos), significam também dano moral, visto que tem o condão de afetar negativamente a dignidade de alguém diminuindo-lhe a autoestima, causando-lhe sofrimentos etc.
[3] É o caso, por exemplo. de Xisto Tiago de Medeiros Neto, para quem a previsão do dano moral coletivo decorreria da previsão constitucional de direitos coletivos e instrumentos de tutela, como mandado de segurança coletivo, ação popular e ação civil pública (MEDEIROS NETO, 2015, p. 15-16). Desta posição se discorda, pois o fato de existir direitos coletivos não significa que a Constituição previu a responsabilidade extrapatrimonial coletiva. Ademais, das ações constitucionais nominadas para tutela dos direitos coletivos,
[4] Em sentido semelhante, conferir a posição de Leonardo Roscoe Bessa (BESSA, 2007, p. 257-258).
[5] Como exemplo, citamos as recentes decisões: (a) no Recurso Especial n° 1.823.217/DF a Terceira Turma manteve condenação em dano moral coletivo de operadora de telefonia por ligações que estariam sendo derrubadas para fins de realização de novas chamadas e novas cobranças (BRASIL, 2021); (b) no Recurso Especial n° 1.737.412/SE a Terceira Turma restabeleceu condenação de primeiro grau de instituição financeira que não se adequou para cumprir tempo máximo definido em lei para espera em fila de atendimento presencial, disponibilização de banheiros e assentos para idosos, gestantes etc. (BRASIL, 2019).
[6] Leonardo Bessa é ainda mais direto quando afirma: “Sustenta-se, neste ensaio, que a apreensão adequada do dano moral coletivo requer análise funcional do instituto, o qual é multifacetado, ora se aproximando de elementos e noções de responsabilidade civil nas relações privadas, ora aproveitando-se de perspectiva própria do direito penal, especialmente no que diz res- peito à sua função” (2007, p. 250).
[7] Confira-se, v.g., Fredie Didier Jr. E Hermes Zaneti Jr. que trazem classificação semelhante (DIDIER JÚNIOR; ZANETI JÚNIOR, 2008, v. 4, p. 76-78).
[8] Toda essa questão é muito bem exemplificada nas palavras de Fernando da Costa Tourinho Filho: “No Direito pátrio, o sistema adotado é o da independência, com certa mitigação. A parte interessada, se quiser, somente poderá promover a ação para a satisfação do dano na sede civil. Jamais ingressar em sede para postulá-la. Por outro lado, como o fato gerador dessas responsabilidades é o crime, se houver sentença penal condenatória com trânsito em julgado, em face da influência que tal decisão exerce no cível, será ela exequível na jurisdição civil, onde não mais se discutirá o ‘an debeatur’ (se deve), e sim o ‘quantum debeatur’ (quanto é devido). Mas se, proposta a ação civil, estiver em curso a ação penal, deverá o Juiz do cível sobrestar o andamento da primeira, para evitar decisões conflitantes” (TOURINHO FILHO, 2001, p. 154).
[9] Alguns autores apresentavam objeções ainda maiores, como Eugênio Pacelli de Oliveira, para quem essa limitação deveria alcançar apenas os prejuízos decorrentes dos danos materiais, não podendo alcançar danos morais e lucros cessantes (OLIVEIRA, 2012, p. 657-658).
[10] O autor, aliás, propõe até mesmo a mudança de concepção da tutela de bens jurídicos para fins de tutela reparatória civil, novamente destacando sua função punitiva: “A proposta que apresentamos diverge desse pensamento tradicional, partindo de uma nova concepção de bem jurídico, e sustentamos que, na verdade, o principal bem jurídico protegido pelo ordenamento jurídico é a expectativa da coletividade de que a norma jurídica será obedecida, e, ainda, defendemos que o objetivo da indenização pelo dano moral coletivo não visa a restaurar os direitos difusos lesados (se se entendermos estes como o patrimônio público, a saúde, a honra, a vida, etc…), porque uma vez violados, dificilmente eles serão recompostos, razão pela qual, a condenação no pagamento de dinheiro a título de dano moral coletivo, visa punir o responsável pela violação da norma jurídica e recuperar a confiança da coletividade no sistema jurídico” (OLIVEIRA, 2019, p. 138).