CULTIVO DA MACONHA COM FINS MEDICINAIS: IMPACTOS DA DESCRIMINALIZAÇÃO

CULTIVO DA MACONHA COM FINS MEDICINAIS: IMPACTOS DA DESCRIMINALIZAÇÃO

28 de novembro de 2023 Off Por Cognitio Juris

CULTIVATION OF MARIJUANA FOR MEDICINAL PURPOSES: IMPACTS OF DECRIMINALIZATION

Artigo submetido em 6 de outubro de 2023
Artigo aprovado em 18 de outubro de 2023
Artigo publicado em 28 de novembro de 2023

Cognitio Juris
Volume 13 – Número 50 – Novembro de 2023
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Izabel Correa [1]
Juliana Fioreze [2]

RESUMO: A utilização da cannabis medicinal tem sido muito importante no debate jurídico, principalmente sobre a descriminalização do plantio e da importação dos medicamentos à base de cannabis. Isso porque, vários estudos vêm demonstrando a eficiência do ativo no tratamento de diversas patologias, como esquizofrenia, ansiedade, mal de Alzheimer, entre outras, e no alívio da dor dos pacientes em tratamento de câncer. Neste sentido, o trabalho analisa como a descriminalização do plantio da maconha e a importação de medicações feitas com os ativos da planta tem impactado a vida e o bem-estar dos pacientes que dela utilizam. Para atingir o objetivo do trabalho, adotou-se o método dedutivo de pesquisa e a pesquisa bibliográfica exploratória e explicativa. A lei Antidrogas (lei 11.343/06) define que importar a cannabis constitui crime de tráfico de drogas. Já a definição de droga, e quais são as de uso não permitido no Brasil, está regulamentado pela Agencia Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. Decorre que, quando a utilização da planta e de seus ativos é puramente curativa e/ou paliativa, isso não configura crime relacionado à droga no sentido de uso em busca do efeito alucinógeno. Portanto, existe um balizamento relacionado ao objetivo da compra do insumo ou de seus compostos, que difere totalmente o usuário ou traficante, do paciente em tratamento. Em recente decisão do dia 5 de junho deste ano, a 6ª Turma do STJ considerou que a conduta de plantar cannabis para fins medicinais não preenche a tipicidade material, motivo pelo qual se faz necessária a expedição do salvo-conduto quando comprovada a necessidade médica do tratamento, evitando-se, assim, criminalizar pessoas que estão em busca do seu direito fundamental à saúde. Para além de diminuir o estigma em relação à planta, é necessário descriminalizar o porte, a compra, o plantio e a importação para fins terapêuticos.

Palavras-chave: cannabis medicinal; descriminalização; plantio.

ABSTRACT: The use of medicinal cannabis has been very important in the legal debate, especially regarding the decriminalization of planting and the importation of cannabis-based medicines. This is because several studies have demonstrated the active ingredient’s efficiency in treating various pathologies, such as schizophrenia, anxiety, Alzheimer’s disease, among others, and in reducing pain in patients undergoing cancer treatment. In this sense, the work analyzes how the decriminalization of marijuana cultivation and the importation of medicines made with the plant’s active ingredients have impacted the lives and well-being of patients who use it. To achieve the objective of the work, we updated the deductive research method and exploratory and explanatory bibliographical research. The Anti-Drug Law (law 11,343/06) defines that importing cannabis constitutes a drug trafficking crime. The definition of a drug, and which are not permitted for use in Brazil, is regulated by the National Health Surveillance Agency, Anvisa. It follows that, when the use of the plant and its active ingredients is purely curative and/or palliative, this does not constitute a crime related to the drug in the sense of use in search of the hallucinogenic effect. Therefore, there is a guideline related to the objective of purchasing the input or its compounds, which completely differs from the user or dealer of the patient undergoing treatment. In the recent decision of June 5th of this year, the 6th Panel of the STJ determined that the conduct of planting cannabis for medicinal purposes does not meet the material typicality, which is why it is necessary to issue safe conduct when the medical need for it is proven. treatment, thus avoiding criminalizing people who are seeking their fundamental right to health. In addition to reducing stigma regarding the plant, it is necessary to decriminalize possession, purchase, planting and importation for therapeutic purposes.

Keywords: medicinal cannabis; decriminalization; planting.

1. DEFINIÇÕES

O potencial curativo do canabidiol é assunto já bastante difundido. Muitos profissionais da área da saúde já prescreveram algum medicamento a base de cannabis, ou conhece alguém que usa para tratamento. As doenças combatidas com o óleo de cannabis também são as mais diversas, sendo efetivo como analgésico, em fibromialgias, para pacientes em tratamento de câncer, para controle e diminuição das ocorrências de ataque epiléptico. Existem relatos de pacientes que tratam Mal de Parkinson, Alzheimer, glaucoma, autismo, esclerose múltipla, doenças reumáticas, inflamações, insônia, ansiedade e depressão.

Diante desse leque de benefícios, se apresenta outro, que é a dificuldade para a compra do remédio. A considerar que a maconha é objeto ilícito e sua compra, importação, plantio é passível de penalização, muitas associações e outras organizações relacionadas ao tema vêm lutando judicialmente para conseguir importar a medicação. O problema nesse meio de obtenção, além dos custos altíssimos, é a burocracia envolvida e a dificuldade para conseguir receituário. Pela insegurança jurídica, muitos médicos não se sentem à vontade para prescrever, por receio de penalidades no Conselho de Classe.

Apesar de ser um tema que vem frequentando as rodas de conversa com crescente frequência, algumas definições claras dos termos mais comuns são muito importantes para o debate científico e acadêmico. Popularmente conhecida por diversos nomes, “erva”, “baseado”, “beque”, “fino”, “marijuana”, entre outros, a maconha é uma planta muito usada, no modo recreativo, no formato de cigarro, uma droga fumada e inalada pelos pulmões. Tem origem no cânhamo indiano e é derivada da Cannabis sativa. (MATOS, R. L. A. et al, 2017). Entretanto, esta é a forma polêmica do uso, já que causa dependência e está associada ao tráfico de drogas. Para além, a Cannabis tem aplicações farmacêuticas, culinárias, na cosmética e na medicina, e na indústria do cânhamo, para fabricação de cordas navais, por exemplo.

De início, a planta Cannabis sativa é um arbusto que se desenvolve de modo satisfatório em climas tropicais e temperados, podendo atingir até 2 metros de altura. Possui comprovação da produção de diversos efeitos terapêuticos, além do famigerado alucinógeno e causador de vício, dependendo do modo e da parte da planta que se utiliza. (MATOS, R. L. A. et al, 2017). O princípio ativo responsável pelos sintomas psicóticos experimentados por quem fuma a maconha ou o haxixe é o Tetra-Hidro-Canabinol, comumente dito apenas THC. (MATOS, R. L. A. et al, 2017).   

Partindo para o aspecto medicinal, relevante para este trabalho, tem-se o Canabidiol, também chamado pelas iniciais, apenas CBD. É um dos principais compostos do vegetal, possui função terapêutica e está no centro da discussão jurídica sobre a liberação do plantio da cannabis para a extração do ativo. Importante sublinhar que o canabidiol não produz efeitos psicoativos. (MATOS, R. L. A. et al, 2017).

No liame da discussão, muitos aspectos são elencados e levados à baila. O mais significativo na seara penal é exatamente o limiar entre o lícito e o ilícito quando é necessário comprar um medicamento a base de canabidiol, por exemplo, ou pedir autorização do órgão competente para o plantio e beneficiamento com intuito de auxiliar num tratamento. No aspecto criminológico, maconha está associada ao crime, porque é comumente categorizada como droga.

A definição jurídica de droga varia de acordo com o sistema legal de cada país. Em muitos lugares, como nos Estados Unidos e na União Europeia, as drogas são geralmente definidas como substâncias controladas ou proibidas, cuja posse, distribuição, fabricação ou uso estão sujeitos à regulamentações legais específicas.

Essas definições legais podem ser bastante abrangentes e incluir uma ampla variedade de substâncias químicas e naturais. Geralmente, as drogas são categorizadas com base em critérios, como o potencial de abuso, os riscos para a saúde pública e o valor médico. As substâncias controladas são as que estão sujeitas a controles legais e regulatórios, e podem ser subdivididas em diferentes categorias, geralmente variando de I a V, ou de A a D, com base em seu potencial de abuso e outros critérios. As drogas ilícitas, por sua vez, são substâncias proibidas por lei e cuja posse, distribuição, fabricação ou uso são crimes.

Ainda, existem substâncias cujo uso é controlado por regulamentações legais. São chamadas controladas e podem incluir substâncias prescritas por médicos, mas sujeitas à regulamentações estritas, para evitar abusos. E existe o que é classificado como recreativo. Estas drogas geralmente são o ecstasy, o cigarro de maconha, a cocaína, o LSD (dietilamida do ácido lisérgico), o MDMA (metanfetamina), entre tantos outros. O objetivo do consumo destas substancias é sentir o “barato”, a “onda”, resultado da ação entorpecente de cada droga.

Do ponto de vista médico, o termo “droga” se refere à qualquer substância química que afeta o funcionamento do corpo humano quando é introduzida no organismo. Essas substâncias podem ter uma ampla variedade de efeitos, desde a alteração da função cerebral, até o tratamento de doenças e condições médicas. No organismo, tais substâncias alteram determinadas funções do sistema nervoso, agindo como sedativos, estimulantes e analgésicos.

É importante, também, obter uma definição jurídica precisa de drogas. Em um contexto específico, é necessário consultar a legislação e regulamentação aplicável na jurisdição relevante. Neste sentido, tem-se Rogerio Greco, renomado jurista brasileiro especializado em Direito Penal, que contribuiu com a definição legal do termo “droga” no âmbito das leis brasileiras.

Deste modo, o conceito de droga é definido no artigo 1° da Lei n. 11.343 de 23 de agosto de 2006, a conhecida Lei de Drogas, considerando “drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”.; ou, ainda, como “substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998”, de acordo com art. 66, da mesma Lei.

Por conseguinte, é também defeso na Lei de Drogas portar o entorpecente, abarcando, em seu art. 28, “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo”, para consumo pessoal. Incidirá numa conduta ilícita considerada menos grave que a do tráfico de drogas, para a qual existe punição branda de prestação de serviço, ou de advertência ou ainda obrigatoriedade de comparecimento à programa educativo.

Mais gravosa é a ação descrita no art. 33 da mesma Lei, pois importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, confira tráfico. A pena é de reclusão, de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos, além do pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

No âmbito jurídico também a maconha pode ser objeto de três ações bem distintas, quais sejam, a descriminalização, a legalização e a despenalização. No cenário atual, já acontece a despenalização do porte para consumo próprio. Apesar disso, o debate é intenso e controverso, pois há a dificuldade para delimitar a quantidade da droga que pode ser tida para consumo, e não para o comércio.

A despenalização, em termos legais, significa uma mudança na legislação que reduz as penalidades associadas a determinadas ações ou comportamentos tipificados nas leis penais. Segundo o doutrinador Zaffaroni (1991), a “despenalização é o ato de ‘degradar’ a pena de um delito sem descriminalizá-lo”. Essa redução pode envolver a remoção de penalidades criminais ou a substituição por penalidades civis, administrativas ou outras menos severas. Acontece, também, em outras áreas do direito, não se limitando apenas ao campo das drogas. No entanto, a despenalização de drogas é um exemplo comum desse conceito e é frequentemente discutida em contextos de políticas de drogas.

Despenalizar as drogas não é o mesmo que legalizá-las. Na despenalização, o uso, a posse ou a venda de drogas ainda podem ser considerados ilegais, mas as penalidades associadas a essas ações são reduzidas. Isso geralmente significa que os infratores podem enfrentar penalidades civis, como multas, em vez de processos criminais que podem levar à prisão, ou obrigação compulsória de tratamento.

Os argumentos a favor da despenalização das drogas incluem a redução do encarceramento relacionado à infrações de drogas, a minimização do estigma associado ao uso de drogas e o redirecionamento de recursos para a prevenção e tratamento do uso problemático de drogas, em vez de punição.

É importante observar que as políticas de despenalização de drogas variam amplamente de país para país e de jurisdição para jurisdição. Alguns países têm adotado abordagens mais progressistas em relação à despenalização, enquanto outros mantêm leis de drogas mais rigorosas. As políticas em torno das drogas são frequentemente moldadas por considerações culturais, sociais, econômicas e de saúde pública, e estão sujeitas a mudanças ao longo do tempo, à medida que novas informações e perspectivas emergem.

Já a descriminalização significa que algo já não é mais crime e, portanto, deixa de ser punível na seara. Mesmo assim, o ato continua sendo um ilícito civil, cabendo sanções leves, como pagamento de multa e/ou prestação de serviço comunitário. Para os casos relacionados ao uso de drogas, o juízo pode determinar que o usuário frequente cursos de reeducação. A descriminalização corre a par do princípio da intervenção mínima, conhecido também pela expressão ultima ratio, vinda do latim, ‘último recurso’. No entendimento de Guilherme Nucci, doutor em direito processual penal, por este princípio ‘a gente (sic.) espera que o direito penal possa ser utilizado quando os outros ramos do direito não estão atendendo a questão (…)’. (NUCCI, 2023).

De todo modo, existe a possibilidade de legalização, como é o caso de alguns países. Legalizar é o mesmo que passar a permitir por meio de uma lei, que pode regulamentar a prática do ato e determinar suas restrições e condições. Quando a ação é legalizada, são previstas punições para quem descumprir as regras estabelecidas. No Brasil é assim com as bebidas alcoólicas e com os cigarros tradicionais: proibida a venda para menores de idade e com regras específicas de tributação e de propaganda.

O Uruguai, a República Dominicana, o Canadá e alguns estados dos Estados Unidos, Portugal, Luxemburgo, Nova Zelândia, Suíça, Holanda, Jamaica e África do Sul. Todos regulam a cannabis, de alguma forma, para fins recreativos.

A Holanda, por exemplo, vende nos chamados coffee shops, um estabelecimento aparentemente como um outro bar qualquer, mas com aval para os usuários consumirem, sem que incidam em crime.

Na Suíça, os médicos podem receitar desde 2011, e desde 1º de agosto de 2022, é possível adquirir ou importar medicamentos à base de maconha, ou, ainda, plantar a cannabis, apenas com o receituário médico. O objetivo é facilitar aos pacientes o acesso aos tratamentos. Mesmo existindo o mercado ilegal da droga, no modo recreativo, já existem estudos no sentido de regulamentar ou mesmo legalizar.  No que se refere à quantidades, as variedades de cannabis com baixo teor de THC, geralmente definidas como aquelas que contêm menos de 1%, são consideradas legais. Enquanto isso, no restante da Europa, o limite é mais baixo, entre 0,3% ou 0,2%.

Além de definir os vocábulos mais comumente citados, para entender os impactos dos usos da maconha é preciso traçar um panorama breve da história da planta. A cannabis vem sendo usada desde muito tempo com os mais diversos objetivos: como matéria prima na confecção de tecidos, na produção de papel, como óleo combustível, em receitas culinárias, de forma hedonista e, ainda, com fulcro terapêutico.

O uso medicinal tem registros datados de 1.000 anos antes de Cristo, na Índia, e de 2.700 anos antes de Cristo, na China. No modo recreativo, a planta é queimada em formato de cigarro e sua fumaça é inalada. Os efeitos psicoativos e o grau de intensidade variam de pessoa para a pessoa, do nível de qualidade da erva e do tipo. Os primeiros registros de evidências do uso como droga pelo ser humano datam de 2,5 mil anos atrás, aproximadamente, na Ásia Central. 

Dentre os 400 componentes da cannabis, o canabinóide é o responsável pelos efeitos psicoativos. Estes mesmos componentes foram usados como tranquilizantes em tratamentos de ansiedade, histeria e compulsividade, na Índia, nos idos de 1.000 anos antes de Cristo. No século XIX, se expandiu o uso pela Europa Napoleônica. No século XX, iniciou-se o uso para transtornos mentais, como sedativo e hipnótico.

Em determinado momento, porém, a maconha começou a ser criminalizada. Após a II Conferência Internacional do Ópio, iniciada em novembro de 1924, em Genebra, na Suíça, iniciou-se a “hegemonia médico moral americana”, cujo marco estaria localizado na incorporação feita pela Liga das Nações aos “princípios americanos” de penalização sobre os usos de opiáceos e de cocaína fora da esfera médica e científica (VARGAS, 2001, p. 204). A partir daí o uso da maconha passou a ser proibido em diversos países, mesmo que com objetivo terapêutico, aliado ao desconhecimento amplo dos efeitos benéficos da planta.

No Brasil, em 1934, o governo de Getúlio Vargas criou a Delegacia de Tóxicos e Mistificações. Dentre outras atribuições, a atividade mais marcante era a de repressão às práticas de umbanda, de roda de samba e de consumo da maconha. Sem precisar adentrar no tempo, fica muito visível que a Delegacia visava determinado grupo de cidadãos. Mas não é o enfoque aqui.

Na década de 1960, foi descoberto o delta-nove-tetra-hidrocanabinol, descrito quimicamente como ∆∆9-THC, ou apenas pela sigla THC; e o canabidiol, ou apenas CBD. O professor israelense Raphael Mechoulam foi responsável, junto com seu grupo de pesquisadores, por identificar e isolar a molécula. Daí em diante, muitos outros pesquisadores e médicos começaram a aprofundar os estudos sobre os componentes da cannabis, com enfoque nas propriedades medicinais.

Nascido na Bulgária, Mechoulam viveu de 1930 até março de 2003; lecionou no Departamento Materiais Naturais da Escola de Farmácia da Faculdade de Medicina da Universidade Hebraica de Jerusalém; e “ajudou a fundar na universidade israelense um centro de estudos sobre canabinoides, as substâncias da planta que ativam receptores específicos no corpo humano com diferentes efeitos (o THC e o CBD são apenas os mais conhecidos entre mais de 100 canabinoides). (Shin Suzuki, 2023). Atuou como reitor da mesma universidade entre 1979 e 1982, consolidando uma carreira memorável.

Em função destas e das seguintes descobertas, iniciou-se, também, um movimento contrário ao da proibição absoluta do uso e/ou plantio da maconha. Apesar disso, a extração dos componentes medicinais está muito atrelada aos usos ilegais do vegetal. Com base em ideias e ideologias, em sua maioria, moralistas e conservadoras, o preconceito e a desinformação atrasaram significativamente o desenvolvimento da medicina da maconha, não havendo liberação de verbas ou até mesmo autorização para aprofundar academicamente o tema.

2. ASPECTOS GERAIS DA PLANTA CANNABIS

O gênero cannabis possui diversos tipos de plantas, sendo a sativa e a indica as mais comumente estudadas. A Cannabis sativa é o tipo que possui altos níveis de tetrahidrocanabinol, o THC, famosa substancia responsável pelos efeitos psicoativos, e baixos níveis de canabidiol e canabinol- CBD e CBN, respectivamente. Já a Cannabis indica tem níveis médios destas substancias. Menos conhecida que as anteriores, existe, também, a Cannabis ruderalis, com baixos níveis de THC e altos níveis de CBD e CBN (SONICS & MATERIALS, 2018).

A planta Canabis sativa faz parte da família Moraceae, sendo, também, conhecida pelos nomes Cânhamo da Índia, marijuana, hashish, charas, bhang, ganja e sinsemila. Em alguns lugares, ela recebe nomes diferentes, de acordo com o uso. Na Assíria, há 300 anos, por exemplo, ela podia ser “qunnabu, quando a planta era utilizada em rituais religiosos; azallu, um termo medicinal, assim como hemp; gan-zi-gunnu, o qual significava “a droga que extrai a mente”. (HONÓRIO, 2005).

O hashish, ou haxixe, como também é conhecida a resina seca extraída das flores das plantas fêmeas, apresenta a maior porcentagem de compostos psicoativos, cerca de 10 a 20 %. (HONÓRIO, 2005). O skank é extraído de plantas cultivadas em condições especiais, com o intuito de potencializar os efeitos psicotrópicos da planta, por ter maior nível de THC; também aumenta o risco de psicose nos consumidores.

De modo geral, a maconha cresce em vários lugares do globo, preferindo os de clima tropical e temperado, como o Brasil, nas regiões dos trópicos.  O arbusto pode ser masculino, que morre após fertilizar a fêmea. As plantas de ambos os sexos produzem as mesmas proporções de canabinóides, apesar de o senso comum considerar produtiva apenas as flores femininas.

O primeiro relato de isolamento do Δ9-THC foi dos pesquisadores Gaouni e Mechoulam, em 1964, e já na década de 70 vários componentes tinham sido conhecidos e estudados. Algumas indústrias têm interesse na produção do composto sintético. Entretanto, a dificuldade para isolar o efeito psicotrópico dificultou o uso medicinal do THC sintético. O único composto com possibilidade medicamentosa foi o Nabilone, utilizado como antiemético no Reino Unido.

Dentre os 400 componentes da cannabis, o canabinóide é o responsável pelos efeitos psicoativos. Estes mesmos componentes foram usados como tranquilizantes em tratamentos de ansiedade, histeria e compulsividade, na Índia, nos idos de 1.000 anos antes de Cristo. No século XIX, se expandiu o uso pela Europa Napoleônica. No século XX, iniciou-se o uso para transtornos mentais, como sedativo e hipnótico.

3. PANORAMA DA REGULAMENTAÇÃO AO REDOR DO MUNDO

O Uruguai foi um dos primeiros países do mundo a adotar uma política de descriminalização e legalização da maconha, embora seja importante notar que essas políticas podem ter evoluído desde então. Se deu a partir da Lei 19.172, sancionada por José Mujica, em 20 de dezembro de 2013, e desde lá integra a Junta Nacional de Drogas. Além disso, foi criado o Instituto de Regulação e Controle da Cannabis, doravante IRCCA, incumbido de regular o mercado e dar assessoria ao governo. O empresário Marco Algorta desempenhou um papel importante na indústria da cannabis medicinal no Uruguai como fundador e primeiro presidente da Câmara de Empresas de Cannabis Medicinal. Fundou, também, a Cannapur, que Khiron Life Science, empresa do Canadá comprou tempos depois.

Como referência, o modelo de regulamentação da maconha no Uruguai foi inovador à época em que foi implementado, mesmo que tenha dividido opiniões. Muitos consideram que a lei esteve baseada em preconceito e que o debate que a gerou foi deveras tímido, dada a importância do tema e suas repercussões. De acordo com Algorta, é necessário rever o modelo vigente, já que o argumento utilizado em 2013 foi a famosa “guerra às drogas”, ou “luta contra o narcotráfico”.

Agora, quase 10 anos passados desde a regularização, o atual diretor-executivo do IRCCA, Juan Ignacio Tastás, considera um momento importantíssimo para sugestões e aponta que são necessárias diversas melhorias, a considerar, por exemplo, o fato de não ser possível comprar o canabidiol nas farmácias do país.  Desde a mudança na lei, os números apontam que foi comercializada mais de 10 toneladas de maconhas, dentre as 37 farmácias com habilitação para a venda. Tais estabelecimentos foram abastecidos por 3 empresas que podem produzir. Apesar da grande quantidade, estudos demonstraram que apenas 40% dos usuários –cerca de 61 mil- adquiriram a maconha nestas drogarias.

Para os usuários que plantam a cannabis, são 306 clubes com registro, com 10 mil membros, mais ou menos, que conseguiram mais de 14 mil autorizações para o cultivo doméstico. Na avaliação de Marco Algorta, a regulamentação não instigou nem aumentou o interesse dos jovens e adolescentes, que preferem o álcool ou outras drogas. A maior parte dos compradores e usuários é de adultos com mais de 40 anos que, na época em que a maconha era criminalizada, eram jovens. O que se notou foi um consumo consciente e a consciência da importância da redução de danos. Outro aspecto importante na permissão do uso é a idade de quem vai na farmácia comprar. Além de ser natural do Uruguai e residente, não é permitida a venda da maconha para menores de 18 anos.

No caso do Uruguai, houve a preocupação em aplacar o tráfico de drogas e cuidar que os jovens não usassem maconha de procedência duvidosa, afetando ainda mais a saúde dos adeptos. Na seara atual do Brasil, a discussão orbita o aspecto benéfico e curativo da planta e as dificuldades que tanto os pacientes tem para comprar e ter autorização da ANVISA, como, também, de os profissionais da saúde sentirem segurança jurídica para prescreverem canabidiol.

No sentido de combater o tráfico, a legislação não conseguiu enfraquecer as facções, pois o país é rota da cocaína, que gera mais lucros. Apenas em 2022, houve aumento de apreensões em 50%, por que passa pelo país a droga que vem da região da Bolívia rumo ao continente europeu, segundo dados do site InsightCrimes. (LISBOA, 2023. Online).

Ainda sobre os efeitos esperados, a criminalidade também subiu se considerar a crescente no número de homicídios, com base em dados recolhidos pelo Banco Mundial. Além do mais, grande parcela de usuários continuou comprando no mercado ilegal, o que tem diversos porquês. Um deles é o fato de precisar fazer um cadastro junto ao governo, com nome e sobrenome. Numa boca de fumo não é necessário se cadastrar, nem mesmo se identificar. Do número de homicídios, especialistas consideram que este aumento tem relação com a luta pelo poder sobre regiões do tráfico, e que o controle da maconha não é relevante para combater os índices de violência e sim, as investigações de crimes chamados “de colarinho branco”, dos quais a lavagem de dinheiro é o grande exemplo. A título de esclarecimento, os crimes de colarinho branco são aqueles levados a efeitos por sujeitos com algum tipo de poder na sociedade, seja econômico ou de influência. São “crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, praticados não só por administradores e diretores de instituições financeiras, mas por qualquer indivíduo que lese a ordem econômica do país.”. (TRF3, 2023. Online).

Replicando no Brasil o modelo do vizinho uruguaio, os resultados seriam potencialmente diferentes, em função, principalmente, da diferença populacional e territorial e das divergências culturais.

Na Europa, desde 2001, Portugal é pioneiro. Do outro lado do Atlântico, o usuário pode adquirir e usar a maconha sem que incorra em crime punível com prisão. Há a possibilidade de internação obrigatória para reincidentes, e não é permitido importar ou plantar. Apesar de equiparar com a heroína os modos de obtenção da maconha, estudos do neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro indicam que não houve aumento do consumo após a descriminalização do uso entre os lusos. Reconhecido por seu trabalho no campo da neurociência e da pesquisa do cérebro, Sidarta é defensor da descriminalização de todas as drogas, argumentando que essa é mais uma questão de saúde pública do que apenas de segurança e combate ao crime.

A par disso, a legislação do Colorado possui regulamentação para derivados canábicos, prevendo multa para quem usar em vias públicas. Portando licenças próprias é permitido o plantio doméstico de até 6 plantas; a posse em si, para uso próprio, não é crime, mas é vedada a veiculação de propaganda dos canábicos. Especificamente da maconha medicinal, já existe liberação desde 2009, legalizando a maconha comercial recreativa em 2012. No ano seguinte, Colorado definiu a quantidade passível, fixando o porte em 28,5 gramas de canabis para consumo próprio.

O Food and Drug Administration (FDA), a agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, aprovou a utilização de canabinoides em formulações farmacêuticas para tratamentos específicos. Um exemplo é o dronabinol, comercializado sob o nome Marinol. O dronabinol é uma forma sintética de delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), o principal componente psicoativo da cannabis. Ele é prescrito para tratar náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia em pacientes com câncer e para estimular o apetite em pacientes com síndrome de perda de peso associada à AIDS.

No entanto, é importante notar que a FDA considera a planta de cannabis (maconha) como um todo como uma substância controlada de Classe I nos Estados Unidos, o que significa que é ilegal a nível federal. No entanto, como mencionado, vários estados dos EUA implementaram suas próprias leis que legalizam o uso medicinal da cannabis. Isso criou uma discrepância legal entre as leis estaduais e as leis federais em relação à maconha.

Essas leis estaduais permitem que pacientes com condições médicas específicas obtenham acesso legal à maconha medicinal, que pode incluir várias formulações de canabinoides para o tratamento de várias condições médicas, como dor crônica, epilepsia, esclerose múltipla, entre outras.

A discrepância entre as leis estaduais e federais dos EUA em relação à maconha tem sido um ponto de debate e desafio, e a regulamentação da maconha continua a evoluir nos Estados Unidos, à medida que mais estados consideram medidas relacionadas à legalização e uso medicinal da planta. É uma área em constante mudança, sujeita a desenvolvimentos legislativos e regulatórios.

Mesmo com tais permissões, é proibido o consumo em via pública, o que é passível de multa, ou por menores de 21 anos, como é para as bebidas alcoólicas.  Para o plantio com finalidade de comercialização, é necessário portar licença emitida pelo governo e respeitar um limite de produção de 70% da quantidade que é vendida. E, ainda, é proibido vender a um só comprador montante superior a 30% da venda total do estabelecimento.

Nos casos de venda, foi estabelecida uma incidência de 15% de tributos a recolher sobre o cultivo e 10%, posteriormente, sobre a venda, entre outras taxas. O objetivo foi encarecer a droga, desestimulando, por consequência, o consumo. A distribuição doa valores arrecadados da venda legal da maconha também obedece certos critérios, a ver, os 40 milhões de dólares primeiros vão para um fundo específico para construção de escola; o restante que se arrecadar é usado pelo governo, para usos de modo geral.

Como consequência dessa política, segundo dados do Departamento de Segurança Pública do Colorado, até o ano de 2016, o número de prisões relacionadas a maconha diminuiu consideravelmente. Mesmo em menor escala, também obtiveram diminuição nos casos de crimes violentos e contra o patrimônio privado. Sobre usuários adolescente os dados são divergentes, tendo aumento no número de usuários acima de 18 anos.

É importante anotar que, com o advento da lei que legaliza ou descriminaliza, essa permissão pode ter influenciado as respostas dos entrevistados, sendo um motivo plausível para o registro de aumento de pessoas que consomem maconha.

No México é famoso o Cartel de Sinaloa, que é um dos mais perigosos, de acordo com a Revista Veja (2009, s. p.), cujo líder já foi considerado um dos mais ricos do mundo, Joaquim Gusman, pela Revista Forbes. Outros nomes, com capacidade armamentista sofisticada, são Los Zetas, Cartel Del Golfo, La Família Michoacana, Cartel de Tijuana, Beltrán Levya e Cartel de Juárez, atuantes na fronteira com os Estados Unidos. Na contramão do comércio de drogas, o México é protagonista importante no tema “política de drogas”, tendo já descriminalizado a posse do entorpecente.

Mais progressista, a Alemanha tem em andamento e discussão um projeto de legalização, proposto pelo ministro da Saúde, Karl Lauterbach. Mesmo reconhecendo os riscos da aprovação do projeto, ele considera que seria o início de uma reviravolta para coibir o mercado ilegal e a criminalidade relacionada.  A previsão colocada em discussão é de que seja aprovado o porte da quantidade de 25 gramas, apenas para pessoas com mais de 18 anos, e o cultivo de até 3 plantas, que seja apenas para consumo pessoal. Serão regulamentados, também, os clubes de cannabis, que poderão fornecer produtos caseiros a base de maconha. Entretanto, será proibido o consumo no local ou num raio de 200 metros, além de não serem permitidos próximos a escolas, por exemplo. O ministro da Agricultura defende a letra do projeto, apontando que a lei descriminaliza o usuário e aumenta a proteção de crianças e jovens. O próximo passos seria regulamentar o comércio de derivados, mas com diversos requisitos rígidos. (VEJA, 2023). 

Na contramão, estão médicos que consideram um perigo para a saúde das crianças, os sindicatos policiais e a Associação Alemã de Juízes. O ministro do Interior de Hamburgo, Andy Grote, leva em consideração “Experiências de outros países mostram que a legalização provoca um grande aumento no consumo, com todos os seus riscos e efeitos colaterais, e acha que a lei nova seria “uma burocracia abrangente de vigilância da cannabis”. (VEJA, 2023).

4. DO DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE

Antes de qualquer dispositivo legal que permita o uso da planta para fins médicos, a própria Constituição, nos arts. 6° e 196 a 200, garante a qualquer cidadão que a saúde é um direito social, cabendo ao Poder Público garantir a fiscalização, a regulamentação e o acesso e controle de ações e serviços relacionados.

A Constituição Federal do Brasil, amparada no artigo citado acima, preconiza que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, ou seja, o Estado brasileiro tem a obrigação de garantir a saúde da população. Para tanto, deve elaborar políticas sociais e econômicas que visem à prevenção de doenças e outros agravos à saúde, bem como, ao acesso universal e igualitário à ações e serviços de saúde para a promoção, proteção e recuperação da saúde.

Assim está disposto:

Artigo 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (CF, 1988).

Essa disposição constitucional estabelece a base para o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, que é o sistema público de saúde que visa garantir o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde para todos os cidadãos, independentemente de sua condição econômica. O SUS é financiado por recursos públicos e oferece uma ampla gama de serviços de saúde, desde a atenção básica até procedimentos médicos mais complexos.

A Constituição também prevê que o Estado pode regulamentar, fiscalizar e controlar a execução das ações e serviços de saúde, seja diretamente, por meio de terceiros ou por entidades privadas, desde que sigam as regulamentações estabelecidas pela legislação brasileira. Isso permite uma abordagem flexível na prestação de serviços de saúde, desde que sejam observados os princípios fundamentais da universalidade, integralidade e equidade.

Do mesmo modo, explica Alexandre de Moraes sobre o assunto, acrescentando que a fiscalização, o controle e a regulamentação deve “ser feita diretamente ou por meio de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado” (MORAIS, on line).

Neste sentido, a Lei Orgânica da Saúde foi criada para regulamentar o SUS- Sistema Único de Saúde, e a Lei n° 9.782 de 26 de janeiro de 1999 criou a ANVISA- Agencia Nacional de Vigilância Sanitária e definiu o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. Enquanto a Lei do SUS (Lei n° 8.080 de 19 de setembro de 1990) “regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado.”, a lei da ANVISA define as competências da União no âmbito do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária. 

Dentre as competências descritas no art. 2° da Lei da ANVISA, está “normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde;”, o que engloba todo e quaisquer produtos, inclusive a planta cannabis e os componentes com propriedades médicas já conhecidas.  Isso significa que, além de todo debate moral e legal, as pessoas que buscam tratamentos com canabinóides precisam de autorização administrativa.

Para aquisição de medicamentos sujeitos ao controle especial, a ANVISA emitiu a PORTARIA N° 344, DE 12 DE MAIO DE 1998, definindo, no art. 1°, uma série de conceitos para melhor compreensão do texto da portaria, como por exemplo, Medicamento, Psicotrópico, Entorpecente, Droga, Licença De Funcionamento, Autorização Especial e Certificado de Autorização Especial, todos diretamente relacionados à maconha medicinal.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o medicamento como recurso válido e altamente recomendável por não apresentar efeitos adversos (OMS, 2018). Apesar disso, e por não existir nenhum estudo reconhecido pela Anvisa, todas as embalagens de medicamentos devem trazer consigo a ressalva, “em negrito: “Este produto não possui eficácia e segurança avaliada pela Anvisa”, como consta do inciso V do Art. 36 da RDC nº 327, de 2019.

Perante diversos obstáculos e requisitos existentes atualmente no país, para que possa haver prescrição do medicamento à base de CBD, permitindo o uso somente em último caso, e apenas para poucas doenças, os pacientes brasileiros que precisam do medicamento ainda enfrentam mais dificuldade na sua obtenção, na cobertura pelo SUS e no reembolso pelos planos de saúde, ocasionando em grave afronta ao direito constitucional e legal à terapia mais benéfica para tratamento de suas doenças.

Algumas decisões judiciais muito importantes já foram comemoradas. Apesar de todo esse amparo legal, os pacientes que desejam medicamentos à base de canabinoides encontram dificuldades para liberação do plantio e ou da compra dos componentes medicinais. Ainda no intuito de facilitar esse processo, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução n° 2.113, em 2014, para autorizar o uso do canabidiol no tratamento de epilepsia refratária de crianças e adolescentes. Já em 2015, a ANVISA iniciou a autorização da importação do canabidiol, tendo inserido na lista C1 da Portaria nº 344/1998. 

Um dos requisitos burocráticos para obtenção das várias autorizações e documentos, é a obrigatoriedade dos tratamentos canabinoides serem a derradeira alternativa para o paciente, como se lê no art. 5º da RDC 327: “Os produtos de Cannabis podem ser prescritos quando estiverem esgotadas outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro. ” (Brasil, 2019, cap. II, art. 5º).

Para isso, o profissional médico precisa emitir um laudo atestando que o doente já passou pelos outros tratamentos, com a medicação conhecida e convencional, diga-se, e que não logrou êxito, satisfação. Ainda, não são aceitos tratamentos experimentais, é necessário que o tratamento que será prescrito já tenha comprovação médica de eficácia. 

Junto ao laudo, a receita médica precisa detalhar dose, nome do medicamento, posologia, nome do paciente, nome do prescritor e seu número no conselho profissional, de acordo com o artigo 7º, caput da RDC Nº 660 de 30 de março de 2022, cujo texto foi publicado no Diário Oficial da União no dia seguinte. Importa observar que a prescrição não é restrita ao médico, mas entende-se também ao psiquiatra, ao psicólogo, por exemplo.

Depois de conseguidas estas comprovações, outra dificuldade é o custo do medicamento. Como o produto não é produzido no país para ser vendido nas farmácias de modo tradicional, e as pessoas que por ventura tiverem conseguido autorização para plantio e obtenção dos componentes médicos não podem comercializar, resta a compra do exterior. Isso tudo encarece o produto, por óbvio. 

No Brasil, algumas importadoras do óleo são: a Terra Cannabis, a Cannect, a 4Social Meds e a Equilibra. É por meio destas e de outras empresas que o paciente vai adquirir, do exterior, o óleo de canabis. O óleo CBD full spectrum é recomendado pela 4Social Meds, produzido pela Beyond Botanicals, em Connecticut nos Estados Unidos. Apenas um frasco de 30 ml, com 1.200 mg, cerca de US$ 105, aproximadamente R$ 511,04. Outro produto recomendado é o Canna River Full Spectrum, tintura rica em terpenos e fitocanabinoides. A empresa Canna River é a fabricante e a Terra Cannabis, importadora. Dependendo da concentração de cannabis por miligrama, chega a custar, no mínimo, US$ 35, equivalentes a R$ 170,34 (considerando cambio de 16 de setembro de 2023).

A empresa Revivid Brasil, dos Estados Unidos, desde 2014 vende seus insumos para brasileiros. Dela é possível adquirir um frasco de Revivid Whole 1000mg, uma tintura/óleo full-spectrum, por R$ 500,00. Sua composição é de 1000mg de extrato da cannabis e 0,03% de THC. Para qualquer dos medicamentos, incide ainda uma taxa de envio em torno de 70 dólares, o que soma 340 reais, no mínimo.

No mercado nacional, até a data deste trabalho, a única empresa autorizada a fabricar medicamentos à base de cannabis é a Prati-Donaduzzi. A partir da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 327 de 9 de dezembro de 2019, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária define “as condições e procedimentos para a concessão da Autorização Sanitária para a fabricação e a importação (…) de produtos de Cannabis para fins medicinais de uso humano”. Desde então, a Prati-Donaduzzi comercializa um medicamento anticonvulsivante e analgésico por valores que giram entre R$ 246,00 e R$ 2.352,00.

A Anvisa também definiu que só é permitido o plantio da sativa após decisão judicial favorável. Sobre este aspecto, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 399, desde o ano de 2015. A partir da aprovação do projeto, na forma como está hoje proposto, seria permitida a compra de remédios que tenham o canabidiol em sua composição, desde que respeitado o limite de 0,3% de tetrahidrocanabinol.

O também conhecido cânhamo é um derivado da maconha, mas com baixíssimo teor do psicoativo THC. Pode ser usado em chás e compõe medicamentos que são usados no tratamento de epilepsia em crianças.

5. PANORAMA ATUAL LEGAL NO BRASIL E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo exposto, considerando os estudos sobre as benesses obtidas com o tratamento de diversas doenças com óleos e demais derivados da planta canabis sativa e, embasado nos projetos de lei em andamento que versam sobre a legalização ou mesmo sobre a descriminalização do uso e plantio para tratamento, é possível considerar que é questão de tempo para que os preconceitos que rondam o tema sejam superados.

No que tange a eficiência medicinal já não restam dúvidas de que a planta possui poder curativo em diversas áreas. Entretanto, os pacientes ainda enfrentam burocracias e altos custos para a aquisição e importação dos medicamentos que melhor possam os atender.

Enquanto existir apenas uma empresa com a autorização da ANVISA para a fabricação e industrialização dos fármacos, estes vão continuar custando muito caro. Ora, existindo leis que regularizam a produção de medicamentos utilizando uma planta sem a pecha de droga possivelmente outras empresas, tanto brasileiras quanto multinacionais estrangeiras, vão encontrar terreno mais confortável para atuarem. No mesmo sentido, existindo mais empresas que produzam e comercializem, considerando a lógica de mercado, os preços vão cair e será possível a livre concorrência.

O poder legislativo tem trabalhado projetos de lei desde 2015, quando o deputado Fábio Mitidieri, do Sergipe, propôs o Projeto de Lei PL nº 399/2015, que pretende viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta Cannabis sativa. Até a presente publicação, o PL está aguardando deliberação de recursos interpostos, na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.

Relacionado ao tema existe também o Projeto de Lei nº 4776/2019, do Senador Flávio Arns, do REDE/PR, que busca autorizar a produção de Cannabis para fins medicinais, além de regulamentar o controle e a fiscalização sanitária dos medicamentos à base de Cannabis, para permitir a venda exclusivamente em farmácias, autorizar a prescrição e dispensação pelo Sistema Único de Saúde, o SUS, e prever um procedimento simplificado para a importação para uso pessoal. Este PL encontra-se desde julho deste ano com a relatoria, Senador Alan Rick, na Comissão de Assuntos Econômicos, a CAE.

Recentemente, o tema esteve em discussão no Supremo Tribunal Federal, onde se pretende, definir uma quantidade considerada para consumo, ao mesmo tempo que tenciona descriminalizar o porte e a posse da maconha para uso próprio. Até o momento desta publicação, o projeto estava com placar de 5 a 1 para que o uso pessoal não seja crime, e desde 25 de agosto, aguarda análise do Ministro André Mendonça. Possivelmente em novembro o assunto retorne à pauta para demais votações.

Com o término da pesquisa, é possível delimitar que o cultivo da maconha com fins medicinais e seus impactos após a descriminalização aponta para uma série de mudanças significativas. Tal decisão tende a melhorar o acesso dos pacientes aos benefícios terapêuticos da cannabis de forma segura e legal, além de reduzir o encarceramento relacionado à planta e estimular a pesquisa científica. No entanto, é essencial que os governos implementem regulamentações rigorosas para evitar o uso indevido e garantir a qualidade e segurança dos produtos. Importante apontar que enquanto o tema for tabu, as pesquisas ficam prejudicadas, sem aporte financeiro do Estado e sem a possibilidade de estudos no Brasil, posto que proibido o plantio, a importação e a comercialização da erva.

À medida que mais nações e estados consideram a descriminalização, é fundamental aprender com as experiências anteriores e continuar a adaptar as políticas para maximizar os benefícios médicos e sociais, enquanto se mantém um controle eficaz sobre o mercado da maconha medicinal.

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[1] Discente do Curso de Direito da Faculdade Educacional de Medianeira – UDC Medianeira e-mail:

[2] Professora Mestre do Curso Direito da Faculdade Educacional de Medianeira – UDC Medianeira. E-mail: juliana.fioreze@udc.edu.br.