COOPERAÇÃO INTERNACIONAL: UMA NECESSIDADE ACIMA DOS INTERESSES GOVERNAMENTAIS

COOPERAÇÃO INTERNACIONAL: UMA NECESSIDADE ACIMA DOS INTERESSES GOVERNAMENTAIS

31 de maio de 2023 Off Por Cognitio Juris

INTERNATIONAL COOPERATION: A NEED BEYOND GOVERNMENT INTERESTS

Artigo submetido em 16 de março de 2023
Artigo aprovado em 21 de março de 2023
Artigo publicado em 31 de maio de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 46 – Maio de 2023
ISSN 2236-3009

Autor:
Laíza Bezerra Maciel[1]
Denise Beatriz Magalhães de Figueiredo Carvalho[2]

RESUMO: As consequências da pandemia de Covid-19 têm sido discutida em várias áreas do conhecimento, no entanto alguns temas, que não tiveram origem na crise sanitária, se mostraram proeminentes e a recente crise mundial de saúde revelou uma necessidade de uma política cuja preocupação ambiental e atenção à saúde seja prioridade. Por esse motivo, a pesquisa objetiva relacionar aspectos relevantes sobre a necessidade de cooperação internacional e o contexto brasileiro. Para o desenvolvimento do presente trabalho, utilizou-se do método dedutivo, por meio de uma pesquisa bibliográfica com a relação de conceitos importantes e interpretação jurídica. Por fim, constatou-se a influência do discurso nacionalista como fator agravante da crise sanitária e a exigência de uma cooperação internacional efetiva em matérias de pesquisas tecnológicas e científicas para imprimir esforços unívocos na proteção da humanidade e do meio ambiente.

PALAVRAS-CHAVE: Nacionalismo; Cooperação mundial; Crise humanitária global

ABSTRACT: The consequences of the Covid-19 pandemic have been discussed in several areas of knowledge, however, some themes, which did not originate in the health crisis, proved to be prominent and the recent global health crisis revealed a need for a policy whose environmental and health care is a priority. For this reason, the research aims to relate relevant aspects of the need for international cooperation and the Brazilian context. For the development of the work, the deductive method was used, through a bibliographical research with the relation of important concepts and legal interpretation. Lastly, the influence of the nacionalist discourse was verified as an aggravating factor of the health crisis and the demand for effective international cooperation in matters of technological and scientific researches to print univocal efforts in the protection of humanity and the environment.

KEY WORDS: Nationalism; World Cooperation; Humanitarian crisis

Considerações Iniciais

As consequências decorrentes da pandemia de Covid-19 evocou discussões emergentes que não tiveram origem na crise sanitária. Sociedades, sistemas de governança, empresas e cidadãos puderam reagir apenas com as ferramentas tecnológicas e os recursos na área da saúde aos quais já possuíam antes do momento crítico. Apesar da existência de muitos meios científicos, a recente crise sanitária revelou uma necessidade de uma política cuja preocupação ambiental e atenção à saúde sejam prioridades, de modo que estejam atreladas e ajustadas entre todos.

A propagação de uma epidemia em tempos passados teria sido evitável, considerando o avanço populacional, da tecnologia, da pesquisa e critérios éticos, da abertura das fronteiras globais. A globalização pode ter intensificado a disseminação da doença, no entanto, a imposição de medidas restritivas e o cerceamento de liberdades das pessoas não oferecem a devida proteção em relação à pandemia. É por intermédio das conexões globais que podem ser realizadas medidas eficazes em conjunto para uma solução adequada à complexidade do problema.

De certo, a aceitação de ter suas liberdades restritas em prol de interesses coletivos e da necessidade de preservação da vida afetou os cidadãos de diferentes nações, uma vez que a principal prioridade de muitas autoridades governamentais era evitar as mortes por Covid-19. A partir disso, Estados, sejam democráticos ou autoritários, adotaram muitas medidas isolacionistas semelhantes como tentativa de combate aos efeitos da pandemia.

O fechamento de aeroportos e áreas fronteiriças foram as primeiras providências urgentes adotadas por países mais desenvolvidos que temiam uma explosão de casos da enfermidade. O isolamento das nações não foi capaz de conter o colapso dos sistemas públicos de saúde de vários países e demonstrou apenas o que já era explorado em muitas conferências internacionais de meio ambiente: o sopesamento dos interesses individuais e a cooperação entre as nações.

Por esse motivo, a presente pesquisa se propõe a discutir de que forma a cooperação entre os países pode contribuir ao combate da crise humanitária, estabelecendo algumas relações com o nacionalismo e o movimento constitucionalismo. A insuficiência de ações estratégicas entre as nações foram os principais fatores que contribuíram para o agravamento do problema sanitário enfrentado globalmente.

As propagações de notícias falsas sobre a contaminação, o limitado acesso à informação confiável e à produção técnico-científica também constituem fatores de grande relevância para análise sobre a dificuldade de instauração de medidas eficazes contra a recente epidemia. Devido a isso, o trabalho tem como objetivo relacionar os aspectos referentes ao nacionalismo e a necessidade de cooperação entre as nações, a fim de imprimir esforços unívocos para a proteção da humanidade e do meio ambiente.

Por último, para a elaboração desta pesquisa, será utilizada a lógica dedutiva, por meio da pesquisa bibliográfica, com a identificação de conceitos essenciais e interpretação jurídica relacionados com o objeto de estudo. Será impulsionada pela elucidação de diferentes autores, por meio das quais os debates iniciados indicam importantes contribuições das ciências jurídicas para traçar uma relação do direito constitucional e a tutela do meio ambiente.

  1. O nacionalismo como fator agravante da crise humanitária

O sentimento de pertencimento de um sujeito a determinado grupo por vínculos étnicos, históricos, culturais, religiosos e linguísticos introduz a noção primordial do conceito de nacionalismo. A ideia atual do nacionalismo como um movimento de construção de uma identidade nacional, baseado em características, muitas vezes, históricas e sociais partilhadas, foi estruturada ao longo dos últimos séculos em diferentes sociedades.

Para o Professor Hobsbawm (1990, p.14-15), as tentativas de se estabelecerem critérios objetivos sobre a existência de nacionalidade ou de explicar o fato de certos grupos terem se tornado “nações” foram feitas com base em critérios simples como a língua, a etnia ou em uma combinação de língua, território, etnia, história em comum e traços culturais compartilhados, o que os fazem critérios opacos, mutáveis e ambíguos, convenientes para propósitos propagandísticos e programáticos e não para fins descritivos.

Embora seja complexo de elucidar um conceito sobre o termo “nação”, a ideia de nação ainda está estreitamente relacionada ao nacionalismo. Na etimologia da palavra, nação refere-se, de modo geral, a comunidade ou agrupamento de indivíduos que compartilham uma identidade cultural, um território com limites definidos e um sistema comum de governo.

Sobre o que é nação, Helio Jaguaribe (2013, p. 24-27) evidencia que há duas perspectivas de respostas, visto que o termo carrega amplas definições jurídicas. Em termos objetivos, tem-se a preocupação em determinar os componentes essenciais que compreendem o conceito de nação, isto é, trata-se de um povo produto de condições históricas, transformações econômicas-sociais, elementos culturais e territoriais. Já, em termos subjetivistas, a nação é a consequência da vontade prévia de constituí-la e mantê-la.

À vista disso, verifica-se que a compreensão de nação não indica unicamente o agrupamento de pessoas que estão ligadas por uma extensão territorial, características históricas, aspectos religiosos, língua ou cultura, mas não bastaria uma interpretação puramente objetivista. Além dos vínculos comuns que integram uma nação, há a necessidade de uma organização de Estado bem estruturada. Diante disso, Hobsbawm expõe que o conceito de nação também tem um caráter político:

O significado fundamental de “nação”, e também o mais frequentemente ventilado na literatura, era político. Equalizava “o povo” e o Estado à maneira das revoluções francesa e americana, uma equalização que soa familiar em expressões como “Estado-nação”, “Nações Unidas” ou a retórica dos últimos presidentes do século XX. Nos EUA, o discurso anterior preferia falar em “povo”, “união”, “confederação”, “nossa terra comum”, “público”, “bem-estar público” ou “comunidade”, com o fim de evitar as implicações unitárias e centralizantes do termo “nação” em relação aos direitos dos estados federados (HOBSBAWM, 1990, p.31).

Nação, então, é uma expressão que passa a ser empregada como sinônimo de povo, no entanto teve o intuito de suscitar a ideia e o senso de pertencimento a uma comunidade, com origem histórica, englobando dentro de uma unidade política todos os seus membros de dada identidade cultural. Por conseguinte, o nacionalismo surge como um sentimento de valorização da nação a qual determinado sujeito pertence.

De um modo geral, o nacionalismo é entendido como uma ideologia, cujo conjunto de valores e de ideias apresentam como razoável ou desejável determinado projeto para a comunidade, segundo os interesses situacionais compartilhados por determinado grupo social. Apesar da multiplicidade de características, para a compreensão dos problemas que envolvem o nacionalismo recente, é necessário estabelecer uma breve diferenciação das suas espécies.

Ao explicar o sentido do nacionalismo brasileiro, Jaguaribe (2013, p. 69) observa que o fenômeno nacionalista se refere a um sentido necessariamente finalista. Nessa perspectiva, entende-se que o nacionalismo não se trata da simples expressão de características nacionais ou a imposição de peculiaridades de determinado grupo. É considerado um meio para atingir um fim o qual geralmente volta-se para o desenvolvimento. Para ser exercido, não se pode confundir com o nacionalismo o fato de serem nacionais os agentes ou recursos empregados para a obtenção de um fim qualquer. Em relação a isso, o sociólogo aponta a seguinte observação:

O nacionalismo, muito ao contrário, só se realiza na medida em que reconhece seu fim, que é o desenvolvimento, e para isso deve utilizar-se de todos os meios apropriados, seja qual for a origem dos agentes, desde que, nas condições concretas, se revelem os mais eficazes (JAGUARIBE, 2013, p.70).

Diante disso, o fenômeno do nacionalismo pode ser observado de diversas formas e tem sido utilizado para justificar atitudes e posicionamentos políticos principalmente no atual cenário brasileiro. A valorização de símbolos nacionais, da bandeira, do hino e figuras históricas, além de discursos de reconhecimento da identidade cultural, são muitas das manifestações do nacionalismo. A dificuldade se inicia quando o reconhecimento da nação a que se pertence é posto como melhor do que as demais nações.

Esse sentimento nacionalista de priorizar a nação pertencente, seja por qualquer razão, pode proporcionar um caminho para manifestações extremadas e impulsionar discursos de ódio, com as práticas de xenofobia, de racismo e outras discriminações. O nacionalismo exagerado destaca o sentimento de superioridade da própria cultura, costumes e até concepções pessoais em detrimento de outros e, como consequência, pode propiciar um caminho fértil para o individualismo.

O comportamento individualista, em uma sociedade moderna, privilegia os interesses de determinados indivíduos em relação ao bem-estar da coletividade. Embora o individualismo possa ser observado em todos os setores da sociedade, em grupos socialmente minoritário e até em congregações religiosas, essa atitude não é exclusiva da cultura brasileira. A recente situação pandêmica expôs o quão individualista as nações estrangeiras reagiram, numa tentativa de proteção à vida ou de sobrevivência do seu povo.

O fechamento de aeroportos internacionais na Europa e as restrições de entrada de pessoas de nacionalidades de alguns países – onde o contágio por Covid-19 era alto, juntamente com o aumento de mortes – foram as primeiras medidas a serem tomadas por alguns governos europeus, com a finalidade de evitar a propagação da doença. Tais providências, incontestavelmente, foram decididas em caráter de urgência, no entanto perduraram por longos meses.

Juntamente com as restrições em aeroportos e os protocolos de saúde e confinamento para conter a proliferação de uma doença desconhecida, surgiram as ações diligentes de muitas empresas farmacêuticas e nações, tais como China, Reino Unido, Rússia e Estados Unidos, na busca por uma vacina ou algum medicamento que auxiliasse no tratamento médico.

De modo igual a corrida armamentista, houve o incentivo à pesquisa e desenvolvimento das primeiras vacinas para a Covid-19, ou seja, o que era para ser motivo de união de interesses e cooperatividade entre os países, passa a imperar a ideia de quem seria o primeiro país a descobrir uma solução para a crise que a humanidade enfrenta no século XXI. O fato de nações desenvolvidas não compartilharem informações confiáveis e pesquisas sobre vacinas ou medicamentos em testes demonstrou o que realmente interessa é a demonstração de poder e tecnologia.

Ao tratar sobre a influência do nacionalismo e a relação com problemas globais, Harari (2018) destaca que a guerra nuclear, o colapso ecológico e a disrupção tecnológica são suficientes para ameaçar o futuro da civilização e nações desunidas, com interesses individuais, não contribuem para um resultado próspero. O professor evidencia ainda que os excessos nacionalistas não justificam a expansão militar sob alegações da necessidade de se proteger de países vizinhos:

[…] as armas nucleares elevaram as apostas e mudaram a natureza fundamental da guerra e da política. Enquanto os humanos souberem como enriquecer urânio e plutônio, sua sobrevivência depende de saberem dar preferência à prevenção de uma guerra nuclear em detrimento dos interesses de qualquer nação em particular. Nacionalistas fervorosos que gritam “Nosso país em primeiro lugar!” deveriam se perguntar se seu país é capaz de, sozinho, sem um robusto sistema de cooperação internacional, proteger o mundo – ou a si mesmo – da destruição nuclear (HARARI, 2018, p. 118).

A invenção de armas nucleares abalou fortemente o equilíbrio da harmonia social no âmbito mundial. Essa política nacionalista desestabilizou as relações internacionais, já que a expansão armamentista possibilitou a concretização das ameaças de agressões nucleares. Dessa forma, as nações mais desenvolvidas se organizaram para viabilizar o diálogo entre as demais nações e, assim, manter o bem-estar social. É por meio do anseio cooperativo que muitos países soberanos podem evitar crises que afetam todos globalmente.

Uma bomba atômica é uma ameaça real e imediata que ninguém pode ignorá-la, por sua vez o aquecimento global é uma ameaça mais prolongada que ocasiona impactos diferentes a depender da biodiversidade de diferentes nações. Assim como as duas adversidades a serem enfrentadas pela humanidade, a crise sanitária também consiste em uma ameaça à sobrevivência do homem e de nações. A longo prazo, uma pandemia, não controlada com medidas eficazes, afetaria a saúde e a vida de milhares de pessoas, além do impacto a sistemas políticos e governos.

Da mesma forma que negar a existência do problema produzido pelas mudanças climáticas só amplificaria ainda mais o agravamento da situação, a negação da existência da complexidade da doença, seja no contexto brasileiro ou em outros países, poderia ocasionar na expansão da quantidade de infectados pela doença e de mortos. E de que modo o nacionalismo se relaciona com isso? As nações mais desenvolvidas podem até, individualmente, adotar políticas sanitárias sérias, mas os esforços se mostraram insuficientes sem a colaboração das demais nações.

Os discursos nacionalistas são oportunos para uma sociedade compreender historicamente os fatos e valorizar a sua identidade cultural, no entanto esse nacionalismo passa a ser preocupante quando não se incentiva o respeito às demais nações e a importância de ações positivas de cooperação para o combate a problemas que se tornaram globais. Os governos podem fechar aeroportos, restringir a locomoção da população local ou aumentar a quantidade de leitos para atender as pessoas, mas é necessário considerar os esforços em conjunto com os demais países para que as medidas sejam eficazes.

  1. A cooperação como resposta aos impactos da pandemia

A cooperação entre os povos é inerente aos seres humanos, sendo indispensável formar alianças para a consecução de objetivos comuns, especialmente em cenários caóticos. A melhor maneira de lidar com ameaças generalizadas à humanidade é por meio da comunhão e coordenação de interesses entre governos e instituições globais, por intermédio da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização das Nações Unidas (ONU).

O retorno ao mundo ao qual cada um se dedica apenas para si de maneira isolada e sem qualquer relação de interdependência com o resto das nações caracteriza um inevitável retrocesso. O atual momento impõe o fomento da diplomacia multilateral e o fortalecimento da governança da saúde global, conceitos que devem ser compreendidos sob uma ótica humanitária e democrática.

O Relatório United Nations comprehensive response to Covid-19: saving lives, protecting societies, recovering better, da Organização das Nações Unidas, recentemente atualizado, ressaltou que a humanidade está inextricavelmente conectada e revelou desigualdades multifacetadas em relação a cuidados, serviços e oportunidades da população mundial. Embora sete bilhões de doses de vacinas da Covid-19 tenham sido administradas em todo o mundo, a falta de acesso justo e igualitário às vacinas ameaça o progresso à medida que o vírus sofre mutações e se torna mais transmissível.

Para apoiar efetivamente os países nos esforços a fim de responder à pandemia e os  seus impactos socioeconômicos, é fundamental a mobilização dos recursos financeiros disponíveis e, principalmente, o fornecimento de informações e dados confiáveis para as estratégias de redução da propagação da doença. Os investimentos em pesquisa científica é a principal ferramenta da humanidade para o desenvolvimento de medicamentos, vacinas e tratamentos médicos. Por meio dessa ação, pode ser oferecido assistência e apoio inclusive às populações com escasso acesso a serviços de saúde.

 Diante disso, há a necessidade de um olhar mais atento para a crise humanitária que causou impactos significativos entre os mais pobres e os vulneráveis. Os principais impactos são a insegurança alimentar e a inacessibilidade a medicamentos e vacinas, aos quais acabam afetando direitos essenciais à manutenção da dignidade da pessoa humana. Por essa razão, é preciso uma transformação na política internacional de cooperação sanitária, uma vez que é preciso medidas diligentes, em um curto lapso temporal, para o combate às doenças.

No Relatório United Nations comprehensive response to Covid-19: saving lives, protecting societies, recovering better, pode-se aludir a preocupação da construção de uma sociedade baseada no multilateralismo para o combate de adversidades que atinge à população de várias nações:

The need for international solidarity has never been more important. This crisis can only be overcome if we unite in our struggle against the pandemic and step up and accelerate our efforts and cooperation. Multilateralism, partnerships and whole-of-society approaches are critical (ONU, 2021, p. 06).[3]

Depreende-se, como consequência, que o entendimento de saúde pública, principalmente num panorama global, se trata de um bem público basilar para a corroboração da vida em sociedade e, por isso, decisões locais e individualizadas podem trazer resultados em grandes proporções. As aberturas de ambientes de aglomeração e a flexibilização prematura das medidas de confinamento em algumas cidades, por exemplo, possibilitaram o aumento de contágio pelo coronavírus, o que gerou novos casos da doença a serem tratados pelos sistemas de saúde.

Nessa perspectiva, as ações realizadas de maneira isolada não podem ser consideradas como o único método eficaz para conter surtos de epidemias. As restrições de liberdades individuais e os fechamentos de aeroportos não constituem medidas eficazes de proteção contra doenças infecciosas e o exemplo da propagação da varíola em 1918 pode esclarecer esse fato. Em poucos meses, a varíola difundiu-se rapidamente mesmo quando a globalização não havia se desenvolvido tal como está na atualidade.

Para o historiador Harari (2020, p. 5), a informação é a melhor defesa que os humanos têm contra os patógenos e não o isolamento. Ante a oposição entre patógenos e médicos, os médicos e os pesquisadores da área de saúde se apoiam na análise científica da informação. O compartilhamento de informações científicas voltadas ao sistemas de saúde pública são essenciais para elaboração de ações integradas entre as nações no combate à disseminação de doenças.

Sobre isso, Marques Júnior (2021) destaca que os problemas humanitários não obedece fronteiras estatais e deve-se resguardar um interesse público maior que é a proteção da vida:

O multilateralismo é fundamental para a proteção central às medidas sanitárias de combate ao coronavírus na ordem jurídica internacional. A cooperação internacional facilita a construção de um processo de solidariedade global. Na visão tradicional, a soberania estatal resguarda o poder de aplicar sua lei interna às pessoas naturais e jurídicas que se encontrem sob a sua jurisdição. Não obstante, existem casos em que o bem da vida a ser tutelado ultrapassa fronteiras estatais, evidenciando a necessidade de haver cooperação entre os entes soberanos a fim de resguardar um interesse público maior, no caso ora em comento: a saúde da população mundial (MARQUES JÚNIOR, 2021, p.3).

Da mesma forma que o aquecimento global afeta a população mundial, as problemáticas da crise causada por uma doença até então desconhecida não se enquadram em limites territoriais criados pelo homem. Por esse motivo, a defesa da saúde humana deveria ser prioridade de discussão em âmbito internacional, mas há hesitação das nações mais desenvolvidas de que forma poderia ocorrer ações de assistência e ajuda entre os países sem interferências em assuntos de segurança e soberania nacional dos demais países.

O sistema jurídico e as relações internacionais evoluíram muito ao longo dos anos, de modo que é possível realizar a cooperação entre as nações por intermédio de um corpo normativo, respeitando a soberania entre os Estados e construindo a paz. É por meio de convenções, tratados ou contratos que podem as nações se comprometerem a compartilhar interesses e informações de tecnologia e pesquisa para a proteção da vida em tempos de crises sanitárias e em prol da preservação do meio ambiente.

Para Marques Júnior (2021, p. 5), “a cooperação internacional fundada na solidariedade implica na formação e manutenção de um sistema de saúde mínimo que possa salvar as pessoas da morte, não só no presente, mas em relação a evitar o colapso sanitário e sofrimento às futuras gerações”. Posto isso, acordos internacionais, com forças normativas no ordenamento jurídico interno das nações, poderiam implicar soluções para a manutenção do bem-estar social. As nações têm a liberdade de ajustarem quais ações positivas podem combater tais crises.

  1. O constitucionalismo e a Democracia Global no combate à crise sanitária

O reconhecimento de um constitucionalismo cooperativo viabiliza as possíveis alternativas para superar os obstáculos impostos pelas crises humanitárias. A busca por um modelo de constitucionalismo global em tempos de pandemia da Covid-19 aponta para a pluralidade democrática e a necessidade de investimentos em políticas públicas sanitárias. É indispensável a criação de um quadro de solidariedade global voltado às pesquisas científicas, a fim de alcançar convergências na preservação da vida e do direito à saúde.

De acordo com Marques Júnior (2021), constitucionalismo e democracia se relacionam, mas não necessariamente são interdependentes:

Constitucionalismo e democracia representam conceitos distintos. Um pode existir sem o outro. A realidade contemporânea demonstra que a relação entre a democracia e a Constituição se revela como constante necessidade. O escopo fundamental da constituição moderna é a introdução de mecanismos reativos às mudanças não permitidas. No contexto do modelo imanente ao neoconstitucionalismo europeu-continental, o valor democrático é materializado por meio da democracia representativa e majoritária (MARQUES JÚNIOR, 2021, p.7).

Com o movimento constitucionalista, surgiram as contribuições jurídicas com preocupações voltadas aos direitos humanos, a concepção de Estado Democrático de Direito e os valores da dignidade da pessoa humana. A construção dos direitos humanos surgiu em um contexto após a Segunda Guerra Mundial, a qual as nações reconheciam a imprescindibilidade da proteção de direitos fundamentais ao ser humano e a limitação do poder estatal. Presentemente, ainda que o contexto seja outro, a pandemia trouxe reflexões para o direito sanitário e o direito à ciência.

A Constituição Federal Brasileira de 1988, nos artigos 6º, 194, 196 e 200, assegurou os direitos relativos à saúde como um direito de todos e dever do Estado mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença, ao acesso universal e igualitário às ações e serviços. Embora haja previsões constitucionais e infraconstitucionais sobre direito à saúde, constata-se que os problemas e as dificuldades inerentes à pandemia justificam a construção de uma nova ordem jurídica.

O colapso nos sistemas de saúde, ocasionado devido à sobrecarga na capacidade de atendimento nos serviços de saúde, faz prova de que se requer providências preventivas de maneira coletiva. Os investimentos em pesquisas científicas e tecnologias de desenvolvimento de medicamentos e vacinas são as primeiras ações que devem ser discutidas em convenções internacionais e, em consequência disso, a atenção para a afirmação de políticas públicas e normas internas que garantam o acesso e o compartilhamento de informações responsáveis em situações de crise.

Ao contrário do direito sanitário, a Constituição Federal Brasileira não consagrou o direito à ciência de forma expressa, o que não impede de reconhecer esse direito como pertencente ao ordenamento jurídico brasileiro, por efeito do artigo 5°,  § 2° e §3° da carta constitucional. Isso porque há a possibilidade de outros direitos e garantias fundamentais, emanados de princípios ou tratados internacionais, serem concebidos e incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro.

A proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de toda produção científica encontra previsão no artigo 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Decreto n° 591 de 1992 e no artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos. Tem-se, consequentemente, que os instrumentos do Direito Internacional e os entendimentos doutrinários possibilitam a aproximação do conteúdo normativo do direito à ciência com a proteção de direitos fundamentais.

Considerando as adversidades enfrentadas pela crise sanitária, o direito dos indivíduos de desfrutar dos benefícios ao progresso científico e tecnológico e o direito de cientistas de desenvolverem a pesquisa científica se tornaram prerrogativas de tamanha relevância, já que o acesso à informação é uma garantia a ser conferida a qualquer cidadão brasileiro. Por outro lado, com a consolidação desse entendimento, surge a obrigação do Estado de ativamente resguardar as evidências científicas.

Numa época de globalização do debate constitucional, as Constituições expressaram a evolução dos povos e regimes políticos contemporâneos. Além do caráter simbólico e político, a norma constitucional possui um papel relevante no processo de regulamentação da atuação dos Estados. Sobre isso, segundo Benjamin (2007, p. 2), as primeiras Constituições tinham por objetivo principal estabelecer, do ponto de vista institucional, a mecânica governamental básica e, sob a perspectiva substantiva, o fim era resguardar o cidadão contra atos de governantes arbitrários.

A constitucionalização de normas atua como um marco regulador da atuação estatal e, simultaneamente, garante direitos e deveres fundamentais dos cidadãos. Por essa razão, é amparado o cidadão em casos de ameaças às liberdades individuais e de riscos às expectativas das futuras gerações. Os fundamentos do Direito Ambiental, por exemplo, encontram-se expressamente apresentados em um crescente número de Constituições modernas e, a partir disso, pode ser elaborada a estrutura teórica da disciplina.

A observância de normas e princípios ambientais têm importância não apenas com a finalidade de disciplinar matérias de natureza ambiental, mas também oferece diversos benefícios, sejam formais ou substantivos, ao ordenamento jurídico. De modo equivalente, o amparo constitucional do direito à ciência e à informação técnico-científica, de forma expressa, pode acolher os interesses coletivos em prol do desenvolvimento de estratégias voltadas à saúde.

Em relação ao benefício da constitucionalização, Benjamin (2007) destaca que a legitimação constitucional resguarda a função estatal reguladora em tempos de crise ambiental. Para ele, “uma das missões das normas constitucionais é estabelecer o substrato normativo que circunda e orienta o funcionamento do Estado. Nesse sentido, a inserção da proteção ambiental na Constituição legitima e facilita – e, por isso, obriga – a intervenção estatal” (BENJAMIN, 2007, p. 21).

É importante ressaltar que, embora os benefícios da constitucionalização apontem para a importância de disciplinar as ciências jurídicas ambientais, não se pode distanciar a necessidade de um novo paradigma constitucional para atender a demanda quanto ao direito à ciência e à informação técnico-científica a serem compartilhadas entre as nações. Ante o enfraquecimento de instituições estatais e de serviços básicos a serem ofertados em tempos de crise sanitária, os comandos constitucionais conduzem a orientação estatal principalmente na formulação de políticas públicas e em procedimentos decisórios individuais.

Os atuais modelos constitucionais elevam a tutela ambiental ao de um direito fundamental e, pela via da norma constitucional, a proteção do meio ambiente integra interesses difusos e coletivos que devem ser sopesados se em contradição com outras prerrogativas constitucionais. Por consequência, a proteção constitucional às prerrogativas modernas, tais como a acessibilidade à informação técnico-científica por meio de uma atuação cooperativa entre as nações, pode garantir o avanço tecnológico e estratégico em situações de crise pandêmica.

Considerações finais

A cooperação entre os povos para o progresso da humanidade é um dos princípios que rege as relações internacionais da República Federativa do Brasil. O Estado Brasileiro assume os valores de solidariedade e a necessidade de ajuda recíproca entre as nações. Nessa perspectiva, a previsão do artigo 4°, inciso IX da Constituição Federal Brasileira atua como premissa que irá conduzir as ações estatais no âmbito internacional, sobretudo em momentos de crises.

Com a situação de pandemia, houve a necessidade de ações eficazes para cooperação entre os países no combate à disseminação da doença. Vários foram os fatores agravantes para que o problema sanitário chegasse a proporções globais e entre eles está o nacionalismo. O fenômeno do nacionalismo, entendido como ideologia, pode proporcionar caminhos para manifestações excessivas e tomada de decisões isoladas, traçando um caminho fértil para o individualismo.

A partir do estudo desenvolvido, é possível constatar que não há como empregar mudanças isoladas e conseguir resultados efetivos no que concerne à proteção de interesses em prol da humanidade e do meio ambiente. A elaboração de estratégias das nações em conjunto é fundamental para a consecução de objetivos comuns, especialmente em cenários caóticos. Por isso, a melhor maneira de lidar com ameaças generalizadas à humanidade é por meio da comunhão e coordenação de interesses entre governos e instituições globais.

Além disso, a acessibilidade a informações confiáveis e o compartilhamento de produções científicas na área da saúde constitui uma importante medida preventiva para que os países possam direcionar o investimento em políticas públicas sanitárias e em desenvolvimento de medicamentos, vacinas e demais tecnologias. Haja vista que os problemas humanitários perpassam limites fronteiriços, tal proposta cria um quadro de solidariedade global, buscando convergências na preservação da saúde humana e na manutenção da dignidade.

Considerando que ao longo dos anos o sistema jurídico e as relações internacionais se desenvolveram, de modo que é admissível a cooperação entre as nações, por meio de um corpo normativo, respeitando a soberania entre os Estados. Os tratados, as convenções ou os contratos podem oferecer amparo legal aos países que se comprometerem a compartilhar informações de tecnologia e pesquisa para a proteção da vida em tempos de crises sanitárias.

Por fim, as pretensões discutidas em âmbito internacional sobre interesses relacionados à proteção da saúde humana e da ciência podem ser amparadas por normas constitucionais, pois proporcionam diferentes benefícios. Entre eles, a constitucionalização de normas atua como um marco regulador da atuação estatal, além de garantir direitos e deveres fundamentais dos cidadãos. Os preceitos interpretativos previstos em dispositivos constitucionais orientam a compreensão e a análise das demais disposições no ordenamento jurídico.

Referências

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[1]  Advogada. Mestranda em Direito do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

[2] Servidora pública no Instituto Federal do Amazonas (IFAM). Mestranda em Direito do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

[3] A necessidade de solidariedade nunca foi tão importante. Esta crise só pode ser superada se nos unirmos em nossa luta contra a pandemia e intensificarmos e acelerarmos nossos esforços e cooperação. O multilateralismo, as parcerias e as abordagens de toda a sociedade são fundamentais.