
ASPECTOS SOCIAIS E JURÍDICOS NA ANÁLISE DO HABEAS CORPUS N.º 158.580 A LUZ DO GARANTISMO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO
30 de dezembro de 2024SOCIAL AND LEGAL ASPECTS IN THE ANALYSIS OF HABEAS CORPUS No. 158,580 IN THE LIGHT OF GUARANTEES IN THE BRAZILIAN CRIMINAL PROCEDURE
Artigo submetido em 13 de novembro de 2024
Artigo aprovado em 26 de novembro de 2024
Artigo publicado em 30 de dezembro de 2024
Cognitio Juris Volume 14 – Número 57 – Dezembro de 2024 ISSN 2236-3009 |
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RESUMO: O presente ensaio teórico se delimita a abordar os aspectos sociais e jurídicos das condições de fundada suspeita quando da revista pessoal. A temática se tornou relevante quando do julgamento do Recurso de Habeas Corpus nº 158.580 pelo Superior Tribunal de Justiça. Far-se-á uma análise no contexto do direito penal e das garantias individuais: a exigência de um padrão probatório rigoroso para a realização de busca pessoal ou veicular sem mandado judicial. Tal exigência encontra-se delineada no artigo 244 do Código de Processo Penal Brasileiro, o qual estabelece que a busca pessoal deve ser embasada em uma “fundada suspeita” relacionada à posse de arma proibida, objetos ou papéis que constituam corpo de delito. Entretanto, teoricamente, não pode a busca pessoal ou veicular sem mandado ser fundada em critérios discriminatórios como raça, cor da pele, localidade ou aparência. A prova produzida através destes critérios arbitrários é considerada ilícita por sua derivação, sob égide da teoria dos frutos da árvore envenenada. O artigo utiliza o método dedutivo, alicerçado pela técnica de pesquisa bibliográfica e documental para atingir a crítica social.
Palavras-chave: Direito Penal. Fundada Suspeita. Provas. Processo Penal. Raça.
ABSTRACT: The present theoretical essay is limited to addressing the social and legal aspects of the conditions of well-founded suspicion when the personal magazine. The issue became relevant when the judgment of the Habeas Corpus Appeal No. 158,580 by the Superior Court of Justice. An analysis will be made in the context of criminal law and individual guarantees: The requirement of a rigorous evidentiary standard for conducting a personal or vehicular search without a warrant.This requirement is outlined in Article 244 of the Code of Criminal Procedure Brazilian, which establishes that the personal search must be based on a “well-founded suspicion” related to the possession of a prohibited weapon, objects or papers that constitute a body of crime. However, theoretically, personal or vehicular search without a warrant cannot be based on discriminatory criteria such as race, skin color, location or appearance. The proof produced through these arbitrary criteria is considered illicit by its derivation, under the aegis of the theory of the fruits of the poisoned tree. The article uses the deductive method, based on the technique of bibliographic and documentary research to achieve social criticism.
Keywords: Criminal Law. Founded Suspicion. Evidence. Criminal Procedure. Race.
INTRODUÇÃO
O Habeas Corpus nº 158.580, objeto deste artigo, colocou refletores no racismo estrutural brasileiro ao analisar a seletividade do policiamento ostensivo direcionada à população negra. Historicamente, desde o período colonial, marcados como criminosos em potencial, os corpos negros padecem da subjetividade da “fundada suspeita” no enquadramento de delitos penais.
A suspeita fundada é o requisito para a realização de busca pessoal e veicular, todavia, quando subsidiada em critérios discriminatórios, as provas obtidas nessas circunstâncias se tornam ilícitas e não podem ser usadas no inquérito policial ou na persecução penal. Por esta razão, invoca a teoria dos frutos da árvore envenenada, que disserta sobre as provas obtidas por meios ilícitos ou fraudulentos sustentando que estão contaminadas em pela sua ilicitude, desta forma, sendo reconhecidas como ilícitas por derivação.
Portanto, o presente artigo se delimita a abordar os aspectos sociais e jurídicos das condições de fundada suspeita quando da revista pessoal. A temática se tornou relevante quando do julgamento do Recurso de Habeas Corpus nº 158.580 pelo STJ. Far-se-á uma análise no contexto do direito penal e das garantias individuais: A exigência de um padrão probatório rigoroso para a realização de busca pessoal ou veicular sem mandado judicial.
A referida exigência encontra-se delineada no artigo 244 do Código de Processo Penal Brasileiro, o qual estabelece que a busca pessoal deve ser embasada em uma “fundada suspeita” relacionada à posse de arma proibida, objetos ou papéis que constituam corpo de delito. Entretanto, teoricamente, não pode a busca pessoal ou veicular sem mandado ser fundada em critérios discriminatórios como raça, cor da pele, localidade ou aparência. A prova produzida através destes critérios arbitrários é considerada ilícita por sua derivação, sob égide da teoria dos frutos da árvore envenenada.
Objetivando a crítica social sobre o racismo arraigado nas instituições de segurança no Brasil contemporâneo, o ensaio teórico pleneado a partir do método dedutivo e das técnicas de pesquisas bibliográficas e documental, estruturou-se a partir de três seções. No que concerne aos procedimentos metodológicos, a pesquisa bibliográfica auxiliou na compreensão dos fenômenos sociais e jurídicos em discussão a partir dos estudos já publicados em livros, artigos científicos, ensaios críticos, dissertações de mestrado e teses de doutorado. A pesquisa documental, por meio da jurisprudência analisada, auxiliou na assimilação jurídica e social do objetivo apontado no estudo.
Sendo assim, a primeira seção discorre sobre a influência do racismo estrutural no sistema penal brasileiro a partir da sedimentação do “perfil criminoso” alocado à população negra, o que reflete na violência policial e no encarceramento em massa deste grupo social. A segunda que está titulada como “Fruits os the poisonous tree – a teoria da prova ilícita” abordará a teoria dos frutos da árvore envenenada no sistema penal pátrio, estabelecendo a ilicitude de provas obtidas por meios ilícitos ou fraudulentos. E por último, a terceira seção ocupa-se da análise jurídica do Recurso de Habeas Corpus nº 158.580 pelo Superior Tribunal de Justiça.
2. ASPECTO SOCIAL: O PERFILAMENTO RACIAL
O julgamento do Habeas Corpus nº 158.580, tema do presente artigo, trouxe em voga para o debate jurídico o racismo estrutural que edificou o Brasil. A discussão jurídica do recurso ficou restrita a seletividade do policiamento ostensivo nos grupos lidos como “marginalizados”. A subjetividade da “fundada suspeita” permite que os agentes policiais realizem busca pessoal ou veicular a partir de critérios como raça, cor da pele, gênero, localidade e vestimentas, o que rotula determinados indivíduos como suspeitos ou criminosos em potencial.
O Ministro Relator Rogerio Schietti Cruz (2022) reconhece que:
[…] Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos –– diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas – pode fragilizar e tornar írritos os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade.
O policiamento ostensivo tem em seu alvo preferencial na personificação do racismo e das desigualdades sociais, portanto, o homem negro, jovem, pobre e morador de lugares periféricos é mirado como suspeito. São esses indivíduos que – diariamente – são acuados, violentados e encarcerados pelos agentes de segurança do Estado Nacional. Não há como fugir da reflexão e crítica social de que a “fundada suspeita”, subsidiada pela legislação penal brasileira, interfere diretamente no encarceramento em massa da população negra e periférica no Brasil.
Pela perspectiva histórica, a constituição das relações políticas e sociais no Brasil se deu por meio da escravização de pessoas negras e indígenas, a sociabilidade foi racializada. O Estado, através das suas instituições, permanece desempenhando um papel essencial, o que é lamentável, na manutenção da marginalização dos corpos racializados, mesmo após a abolição da escravatura. A imagem dos(as) negros(as) passou por uma transformação perante o imaginário social racista, foi transmutado de “bom escravo” para “mau cidadão”, após a emancipação dos negros escravizados. Essa mudança apenas amplificou os estereótipos em torno das pessoas negras, bem como influenciou no encarceramento como um dos maiores dispositivos do controle social por intermédio do sistema criminal brasileiro.
O sistema penal contemporâneo segue a premissa colonial de racializar as abordagens e revistas, direcionando o perfil de suspeita para corpos negros em lugares periféricos, desviando a atenção dos elementos objetivos daquelas suspeitas. Por óbvio, o colonialismo tinha como prática a desumanização e marginalização dos negros para justificar a escravização, a punição e o aprisionamento daqueles corpos. Nesta mesma ótica, a teórica Ana Luiza Pinheiro Flauzina (2006) revela que no Brasil Colônia o sistema punitivo tinha uma relação direta com a casa grande e a senzala, sendo o direito de punição do senhorio um dos eixos do sistema escravocrata.
Em uma ordem cronológica, Flauzina (2006) aponta que a transição da esfera privada para pública aconteceu por meio de uma série de mecanismos que o racismo imperava. Não obstante o fim da escravidão e a subjugação legal dos corpos negros, o medo das elites e da branquitude em relação às pessoas negras, fez surgir o estado policial e vigilantista que mantém o controle social sobre àqueles corpos.
Portanto, a população negra sempre foi objeto de vigilância e controle do estado brasileiro, principalmente, no mundo moderno colonial, sendo essa dominação instrumentalizada no sistema penal. Intrinsecamente, o elemento racial é um critério de tipificação penal, uma espécie de qualificadora, o sistema penal sempre foi voltado para determinado grupo racial, operando na criminalização brasileira.
Desta forma, a seletividade penal na criação e sedimentação do estereótipo do criminoso no Brasil é conexa ao elemento racial, priorizando à população negra nos perfis de “suspeitos”, “indiciados”, “acusados”, “réus”, “apenados” e “condenados” que figuram todo processo penal, conforme elucidado por Flauzina (2006). A teórica resumirá o sistema penal brasileiro como um dos tentáculos do racismo estrutural brasileiro, em razão da falaciosa simbiose que os une.
Filiando-se ao entendimento de Silvio Almeida (2021, p.64), o sistema de opressão racial decorre da própria estrutura social, ou seja, o racismo é o centro das relações econômica, jurídica, política e até mesmo familiares. Os comportamentos individuais e institucionais são derivados do racismo estrutural como se fosse uma regra. Do mesmo modo que, as pessoas “racializadas são formadas por condições estruturais e institucionais”.
Sendo assim, podemos afirmar que o sistema de justiça retroalimenta a normalização da violência e o controle social sobre à população negra, em especial à sua juventude, como uma forma de “a criminalização da pobreza, guerra às drogas, que, na realidade, é uma guerra contra os pobres e, particularmente, contra as negras” (Almeida, 2021, p.66). Igualmente, não pode ser considerado exagero “dizer que o sistema de justiça é um dos mecanismos mais eficientes na criação de raça e seus múltiplos significados”, denunciará Silvio Almeida (2021, p.66).
Na ementa do Recurso de Habeas Corpus, o Min. Rogerio Cruz (2022) grifa a desproporcionalidade dos “enquadros” realizados, esmagadoramente, aos jovens negros periféricos. Igualmente, esse perfil (homens, jovens e negros) é demarcado como suspeito em inúmeras pesquisas desde o ano de 1960. O enquadro destes corpos não é apenas um fruto do sistema da criminalidade, como repressão, mas o exercício do poder empregado contra esse grupo social. Por isso, a reprodução do racismo também se dá na vigilância policial de jovens negros, pobres e periféricos.
Depreende-se que há um perfilamento racial para a reprodução do policiamento ostensivo, o alto contingente de pessoas negras encarceradas no território nacional é uma herança colonial que a todo momento ratifica a dominação e a hierarquização racial. A fundada suspeita sem existência de elementos objetivos sobra juventude negra periférica reafirma o estigma da marginalização, transgredindo os direitos humanos das pessoas negras.
A Segurança Pública para combater a real criminalidade deve respeitar à dignidade dos grupos racializadas, inclusive, como uma forma de romper o colonialismo na sociedade contemporânea. A desigualdade racial na aplicação da fundada suspeita não agrega no sistema penal brasileira, uma vez que não avalia os impactos sociais daquela abordagem ou revista sobre à população negra. Portanto, é necessário a apresentação de propostas concretas no combate ao racismo estrutural no sistema penal pátrio, promovendo políticas públicas que viabilizem a igualdade racial no âmbito penal e coibam o perfilamento racial nas abordagens policiais.
3. “FRUITS OS THE POISONOUS TREE” – A TEORIA DA PROVA ILÍCITA.
Oriunda do ordenamento jurídico americano e abarcada pelo código penal brasileiro, a teoria da dos frutos da árvore envenenada, é uma metáfora legal que estabelece normativas a respeito das provas descobertas e obtidas por meios ilícitos ou fraudulentos, bem como aquelas que são somente foram descobertas através de um ilícito, tal como uma busca ilegal ou escuta telefônica clandestina, sustentando que estão contaminadas pela ilicitude, sendo consideradas ilícitas por derivação.
A teoria se tornou regra legal através do artigo 157 do Código de Processo Penal (Brasil, 1940), visto que no Brasil, são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. A evolução das civilizações paulatinamente buscou proteger a intimidade dos indivíduos, como reflexo desta evolução, foram criados mecanismos de proteção inclusive ao domicílio, que possui regras específicas e bem delimitadas para o ingresso sem consentimento daquele que lá reside.
Conforme dispõe o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal (Brasil, 1988), a casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. Na mesma esteira, a teoria apontada pode ser utilizada como mecanismo de proteção aos indivíduos que produzem atitude suspeita e são abordados por policiais militares nas fiscalizações de rotina. Mormente, os “enquadros” ou “duras” culminam com a apreensão de pequenas quantidades de entorpecentes ou outros achados ilícitos.
Aury Lopes Junior (2019, p. 481), ensina que a apreensão de provas por meios ilícitos é contaminada, vez que deriva de uma conduta ilícita, neste sentido exemplifica que:
[…] a apreensão de objetos utilizados para a prática de um crime (armas, carros etc.) ou mesmo que constituam o corpo de delito, e que tenham sido obtidos a partir da escuta telefônica ilegal ou através da violação de correspondência eletrônica. Mesmo que a busca e apreensão seja regular, com o mandado respectivo, é um ato derivado do anterior, ilícito. Portanto, contaminado está.
A fim de tornar as medidas mais efetivas e vultosas, principalmente em delitos de posse de entorpecentes, os agentes policiais não raras vezes ingressam no domicílio do primeiramente detido e ora preso em flagrante a fim de que procurem outros objetos que avolumem a apreensão. No entanto, a conduta que antes era lícita, passa a ter caráter ilícito, pois o ingresso no domicílio do preso sem o seu consentimento, colore ilegalidade a abordagem. Neste sentido, a Grinover (1982, p.151 e 166) é transparente ao afirmar que a “ […]inadmissibilidade processual da prova ilícita torna-se absoluta, sempre que a ilicitude consista na violação de uma norma constitucional, em prejuízo das partes ou de terceiros”.
Mesmo as abordagens ou “enquadro” que restarem infrutíferos, são capazes de produzir efeitos negativos no indivíduo, seja pela pressão psicológica ao qual é submetido durante a abordagem, seja pelo fato de ser revistado, ou pelo fato de estar temporariamente detido pelos policiais militares. Salienta-se que, conforme abordado no tópico anterior, há um perfilamento racial e social referente às características do indivíduo abordado.
A produção de provas no processo penal, depende do preenchimento de um conjunto robusto de elementos necessários à penalização do agente infrator. O objetivo sob a égide legal, não se trata apenas de produzir provas que incriminam o agente, mas também de preservar a integridade do devido processo legal.
No julgado do Recurso Especial nº 1.630.097 (Brasil, 2022), o Ministro Joel Ilan Paciornik, na prerrogativa de relator, lembrou que as provas obtidas de forma ilícita são inadmissíveis e que “qualquer tipo de prova contra o réu que dependa dele mesmo só vale se o ato for feito de forma voluntária e consciente”. Na mesma toada demonstra, Espíndula (2009, p. 165) demonstra que:
[…]a finalidade em se garantir a cadeia de custódia é para assegurar a idoneidade dos objetos escolhidos pela perícia ou apreendidos pela autoridade policial, a fim de evitar qualquer tipo de dúvida quanto a sua origem
e caminho percorrido durante a investigação criminal e o respectivo processo judicial.
Outro espectro deste prisma, pode ser analisado sob a perspectiva do jurista Aury Lopes Jr. (2019) o qual mostra que o processo está destinado a comprovar se um determinado ato humano realmente ocorreu na realidade empírica. Com isso, o saber – enquanto obtenção de conhecimento – sobre o fato é o fim a que se destina o processo, que deverá ser um instrumento eficaz para a sua obtenção. Ademais, a doutrina visa fornecer lastro e fundamentação para as decisões judiciais, assim aduziu:
Os tribunais superiores têm a missão de “comunicar” o padrão de ética e o padrão de legalidade do processo penal. É compromisso do STF e do STJ “comunicar” a validade e o alcance das regras do devido processo e de exclusão da prova ilícita (exclusionary rules) de forma clara e objetiva, sem o casuísmo conveniente que se vê hoje. E mais: quando se anula um processo por ilicitude da prova, não se pode pensar na proporcionalidade vinculada àquele caso, senão em relação ao sistema de administração de justiça. É uma ponderação, mas em relação àquele caso pontual, senão em relação à lisura do sistema de administração da justiça, para evitar que dezenas ou centenas de outras ilegalidades sigam sendo praticadas na coleta de provas. Essa é uma comunicação eficiente do alcance e eficácia das regras do devido processo. (Lopes Junior, 2019. p.482).
Devido ao exposto, avista-se que o Habeas Corpus em comento, possibilitou que outros julgados seguissem linhas conexas e alinhadas aos parâmetros constitucionais de proteção às garantias legais do indivíduo, em sede de intimidade, propriedade e liberdade. Os tribunais superiores, em enfoque ao STJ, já têm se manifestado neste trilho legal, sobre a teoria da árvore dos frutos envenenados, e a necessidade da fundada suspeita, conforme a ementa colacionada do Habeas Corpus n. 559.264/MA:
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES, ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO E LAVAGEM DE CAPITAIS. DEVASSA NÃO AUTORIZADA. PROVA ILÍCITA. NULIDADE. RECONHECIMENTO. PROVAS DERIVADAS. ANULAÇÃO. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE VENENOSA. IMPOSSIBILIDADE, NA HIPÓTESE. REVOLVIMENTO FÁTICO-
PROBATÓRIO. ORDEM DENEGADA. 1. “A teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree) e a doutrina da fonte independente (independent source doctrine) são provenientes do mesmo berço, o direito norte-americano. Enquanto a primeira estabelece a contaminação das provas que sejam derivadas de evidências ilícitas, a segunda institui uma limitação à primeira, nos casos em que não há uma relação de subordinação causal ou temporal. O reconhecimento da ilicitude de prova torna imprestáveis todas as que dela são derivadas, exceto se de produção independente ou de descoberta inevitável, conforme entendimento doutrinário, jurisprudencial e legal de aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada. (HC n. 559.264/MA,relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 9/8/2022, DJe de 18/8/2022.)
Doutrina e jurisprudência possuem grande impacto nas decisões colegiadas dos Tribunais Superiores bem como, analisar conjuntamente aspectos sociais, econômicos e raciais são fundamentais para a concretização de entendimentos judiciais que estejam alinhadas as justas expectativas sociais na resolução de conflitos, principalmente na esfera penal.
4. ANÁLISE DO RECURSO DE HABEAS CORPUS Nº 158.580
O recurso foi interposto por Mateus Soares Rocha, que alegou ser vítima de coação ilegal em decorrência de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, que denegou a ordem no HC n. 8025547-90.2020.8.05.0000, gerando o presente Habeas Corpus nº 158580 – BA, que foi julgado pelo Ministro Rogerio Schietti Cruz do Superior Tribunal de Justiça.
De acordo com os autos, o recorrente foi preso em flagrante, sendo a pena preventiva, posteriormente convertida em medidas cautelares, pela prática, em tese, do crime de tráfico de drogas. A defesa pleiteou o reconhecimento da ilicitude das provas colhidas com base na busca pessoal realizada pelos policiais no réu – por violação dos artigos 240, § 2º e 244 do Código de Processo Penal, porquanto justificada apenas pela alegação genérica de que ele estava em “atitude suspeita”, requerendo, por consequência o trancamento da ação penal.
O relator do recurso, Ministro Rogerio Schietti Cruz, em seu voto, destacou a necessidade de se exigir elementos sólidos, objetivos e concretos para a realização de busca pessoal, além da intuição baseada no tirocínio policial. Segundo ele, a permissão para a revista pessoal decorre de fundada suspeita devidamente justificada pelas circunstâncias do caso concreto de que o indivíduo esteja na posse de armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito.
Valendo-se da necessária referibilidade da medida, a qual deve ser vinculada à sua finalidade legal probatória, o Ministro ressaltou ainda que a normativa constante do artigo 244 do Código de Processo Penal não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso também que esteja relacionada à “posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.
No caso concreto, o Ministro entendeu que não foi apresentada nenhuma justificativa concreta para a revista no recorrente além da vaga menção a uma suposta “atitude suspeita”, algo insuficiente para tal medida invasiva. Assim, o recurso foi provido para determinar o trancamento da ação penal. Com o trancamento da ação penal, foi também determinado que as provas obtidas a partir do momento de constatação da ilegalidade – seja ele quando da revista pessoal sem fundada suspeita – todas as provas obtidas devem ser determinadas como ilícitas e extirpadas dos autos processuais.
Essa análise técnica do presente recurso salienta a importância da observância dos requisitos legais para a realização de busca pessoal e a necessidade de se exigir elementos concretos e objetivos para justificar tal medida, reforçando, novamente, o Superior Tribunal de Justiça, à proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos e a observância do devido processo legal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer do presente artigo, analisamos criticamente a fundada suspeita como requisito para a busca pessoal no direito brasileiro, bem como os seus reflexos na reprodução do racismo estrutural na sociedade. A partir da revisão da literatura e da análise de jurisprudência dos tribunais superiores, chegou-se à conclusão que a busca pessoal é uma medida invasiva e constrangedora, que afeta os direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade do indivíduo, e, por isso, a sua realização deve observar os princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade, da razoabilidade e da dignidade humana.
Nesse sentido, apontou-se, também, que a fundada suspeita é um conceito jurídico indeterminado, que não possui uma definição legal precisa e que depende de uma avaliação casuística das circunstâncias fáticas que envolvem a abordagem policial. Não bastam, portanto, meras informações de fonte não identificada, intuições ou impressões subjetivas, baseadas exclusivamente no tirocínio policial. É preciso que haja elementos concretos e verificáveis que indiquem a possibilidade de que o indivíduo esteja na posse de arma proibida ou de objeto que constitua corpo de delito.
Além disso, a fundada suspeita deve estar relacionada à finalidade probatória da busca pessoal, ou seja, à existência de uma infração penal em curso ou já consumada. E nesse sentido não se admite a busca pessoal com finalidade preventiva ou exploratória, baseada em suspeição genérica sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto que constitua corpo de delito. A violação dessas regras e condições legais para a busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal dos agentes públicos que tenham realizado a diligência.
Verificamos ainda, que o racismo estrutural é uma decorrência da própria estrutura social, que se manifesta por meio de práticas que reproduzem preconceitos arraigados na sociedade. O perfilamento racial nas abordagens policiais é uma realidade que afeta diretamente a população negra, que é vista como suspeita pelo simples fato de ser negra, e que essa prática viola os direitos fundamentais à igualdade, à dignidade humana e à não discriminação.
Nesse sentido, deve-se investigar as causas e as consequências da seletividade e da desigualdade racial na aplicação da fundada suspeita pelos órgãos de segurança pública e pelo poder judiciário, para avaliar os impactos sociais e psicológicos das abordagens e revistas policiais desproporcionais e abusivas sobre a população negra.
A partir desse ponto, propor medidas concretas para combater o racismo estrutural na sociedade brasileira, promovendo políticas públicas efetivas de promoção da igualdade racial, como estimular o uso de câmeras pelos agentes de segurança, a fim de que se possa aprimorar o controle sobre a atividade policial, tanto para coibir práticas ilegais, quanto para preservar os bons policiais de injustas e levianas acusações de abuso. Por fim, capacitar os operadores do direito para lidar com questões raciais, para reconhecer e coibir o perfilamento racial nas abordagens policiais.
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GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
[1] Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ.
[2] Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Advogado.
[3] Mestre em Direitos Humanos pelo Programa de Pós-graduação em Stricto Sensu pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ.