AS RECENTES DECISÕES DO STF FACE AS NOVAS RELAÇÕES DE TRABALHO E O ESGOTAMENTO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
28 de novembro de 2023THE RECENT DECISIONS OF THE SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL IN LIGHT OF THE NEW WORK RELATIONSHIPS AND THE EXHAUSTION OF THE JURISDICTION OF THE LABOR COURT
Artigo submetido em 25 de outubro de 2023
Artigo aprovado em 7 de novembro de 2023
Artigo publicado em 28 de novembro de 2023
Cognitio Juris Volume 13 – Número 50 – Novembro de 2023 ISSN 2236-3009 |
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Autor(es): Raphael Felipe da Silva Santos[1] |
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Sumário: 1 Introdução; 2 A competência material-constitucional da justiça do trabalho; 3 Relação de trabalho e de emprego; 4 Competência da justiça do trabalho para as relações de trabalho; 5 Motoristas e empresas de transporte rodoviário de cargas e contratos de representação comercial autônoma; 6 Profissional-parceiro em salão de beleza; 7 Motoristas e plataformas digitais; 8 Vínculo do escritório de advocacia com o advogado; 9 Ativismo judicial; 10 Conclusão; 11 Referências.
RESUMO: O presente artigo pretende analisar a competência material da Justiça do Trabalho promulgada na Constituição Federal para conhecer e julgar ações oriundas das relações de trabalho e como as decisões do STF e do STJ estão esvaziando tal competência ao interpretar que determinadas relações de trabalho têm natureza comercial, e portanto, competem o conhecimento e julgamento pela Justiça Comum. A pesquisa pretende analisar as Emendas Constitucionais que firmaram a competência da Justiça do Trabalho. Por conseguinte, brevemente elucida o que é relação de trabalho e emprego. Em seguida aborda que, embora todas as relações de trabalho sejam de competência da Justiça do Trabalho, as decisões do STF desde os servidores estatutários até outras relações estão afastando tal competência. O estudo das decisões do STF, STJ e TST demonstra que o ativismo judicial está criando decisões teratológicas, além de precarizar as relações de trabalho e dificultar o acesso de trabalhadores à justiça, além de diminuir os seus direitos e garantias fundamentais. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica e documental.
Palavras-Chave: Direito do Trabalho. Direito Processual do Trabalho. Competência. Relações de Trabalho. Relações de emprego.
ABSTRACT: The present article seeks to analyze the substantive jurisdiction of the Labor Court as promulgated in the Federal Constitution to adjudicate actions arising from employment relations. It examines how decisions from the STF (Federal Supreme Court) and the STJ (Superior Court of Justice) are undermining such jurisdiction by interpreting that certain employment relationships possess a commercial nature, and therefore, fall within the purview of the Common Courts for adjudication. This research aims to scrutinize the Constitutional Amendments that established the jurisdiction of the Labor Court. Consequently, it briefly elucidates the distinctions between employment and work relationships. It further argues that, although all employment relationships fall under the jurisdiction of the Labor Court, decisions from the STF, ranging from statutory civil servants to other relationships, are sidelining such competency. A study of decisions from the STF, STJ, and TST (Superior Labor Court) reveals that judicial activism is leading to aberrant rulings, which in turn are jeopardizing employment relationships, hindering workers’ access to justice, and diminishing their fundamental rights and guarantees. The methodology adopted for this study encompassed bibliographic and documentary research.
Palavras-Chave: Labor law. Labor Procedural Law. Jurisdiction. Work Relations. Employment Relations.
1 INTRODUÇÃO
A Justiça do Trabalho foi criada com a Constituição de 1934, durante o período Vargas. Inicialmente, este órgão não pertencia ao Poder Judiciário, possuindo uma natureza administrativa, sob a tutela do Poder Executivo. A Constituição de 1937 suscitou questionamentos sobre a sua natureza jurisdicional, já que, mesmo permanecendo subordinada ao Executivo, seus julgamentos podiam ser objeto de recurso extraordinário ao STF.
Com a Carta Magna de 1946, a Justiça do Trabalho foi definitivamente integrada ao Poder Judiciário, contando com uma estrutura que previa Juntas ou Juízes de Conciliação e Julgamento, Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunal Superior do Trabalho – estrutura que, em sua essência, persiste até os dias atuais. O diferencial da época era a representação classista, que viria a ser abolida em 1999 pela Emenda Constitucional 24, consolidando os órgãos de primeiro grau como “Juízes do Trabalho”.
Ao longo de sua evolução, a Justiça do Trabalho tinha como principal função dirimir conflitos oriundos da relação empregatícia. Esta competência, embora possa parecer abrangente pelo nome, concentra-se principalmente nas relações de emprego, mas não se limitando.
A Emenda Constitucional 45/2004 ampliou o alcance da Justiça do Trabalho, outorgando-lhe o poder de julgar não só questões atinentes às relações de emprego, mas a todas as relações laborais. Essa modificação, comum em inovações jurídicas, gerou debates acadêmicos e jurisprudenciais acerca da delimitação da competência da Justiça do Trabalho em comparação com a Justiça Estadual ou Federal.
O STF, por meio de suas recentes deliberações, que são objeto de análise neste estudo, tem se manifestado sobre temas submetidos a controle de constitucionalidade, tanto no controle concentrado quanto no difuso. Tais questionamentos se originam nas instâncias iniciais da Justiça do Trabalho, passam pelos Tribunais Regionais e pelo TST, podendo, em determinadas situações, chegar ao STF através de recurso extraordinário. É notório que tais deliberações do STF destoam do consenso previamente estabelecido na seara trabalhista.
Dessa forma, o propósito deste estudo é avaliar as recentes posições adotadas pelo STF, sobretudo no que diz respeito à restrição da competência material da Justiça do Trabalho e a sua capacidade de julgar casos envolvendo distintas formas de relação laboral, tais como, reconhecimento de vínculo de emprego entre motoristas e empresas de transporte rodoviário de cargas, regidos pela Lei nº 11.442/2007, representantes comerciais, as relativas aos contratos de parceria de trabalhadores com o salão de beleza, a dos motoristas de aplicativos, sociedade da advogados e advogados, e outros. Busca-se também ponderar sobre o aparente alinhamento do STF à perspectiva legislativa de reduzir garantias trabalhistas.
Finalmente, este trabalho objetiva discutir o suposto ativismo do STF, ponderando sobre as consequências da reforma trabalhista e a possível limitação do acesso à Justiça do Trabalho, visando a concretização de um ideal liberal que coloca trabalhador e empregador em patamares de igualdade, contrariando princípios como o da primazia da realidade e da proteção ao trabalhador.
2 A COMPETÊNCIA MATERIAL-CONSTITUCIONAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A Constituição de 1988 marcou o período de redemocratização da sociedade brasileira, assolada por tantos anos pelo revoltante regime da Ditadura Militar.
A Constituição Federal de 1988 abordou explicitamente a competência da Justiça do Trabalho para conhecer e julgar as ações, principalmente após as Emendas Constitucionais 24/99 e 45/04, restando a competência assim definida:
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;
IV os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
V os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;
VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;
VII as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
VIII a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a , e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir;
IX outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
§ 1º Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.
§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.
§ 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito. (BRASIL, 1988).
Originalmente, o artigo 114 estabelecia a competência da Justiça do Trabalho para a conciliação e decisão de controvérsias entre trabalhadores e empregadores. Contudo, após múltiplas modificações advindas das Emendas Constitucionais e Ações Diretas de Inconstitucionalidade, o mencionado artigo ampliou a competência da Justiça do Trabalho para analisar e decidir litígios decorrentes da relação de trabalho. Esta competência se mostra consideravelmente mais ampla, visto que a relação de trabalho é categorizada como um gênero, do qual a relação empregatícia é uma subcategoria.
A importância da ampliação da Competência da Justiça do Trabalho foi assim definida por Guilherme Guimarães Feliciano (2005, p. 117)
Goste-se ou não, a EC 45/04 consumou uma conquista política sem precedentes da Magistratura do Trabalho, comparável somente à extinção da representação classista (EC 24/99). E, para além disso, trata-se de uma conquista histórica, que rompeu com um paradigma institucional vigente desde a criação da Justiça do Trabalho, na Constituição da República de 1946. Não sem polêmicas, não sem dissensões; e, acima de tudo, não sem imensas dificuldades operacionais. Mas, nada obstante, uma conquista.
Numerosos críticos se opõem à ampliação da competência da Justiça do Trabalho, alegando sua falta de preparo para tal expansão. Contudo, tal argumentação se mostra falha, pois, o crescimento nas demandas impulsionará um correspondente aumento nos investimentos na Justiça Especializada. Isso permitiria que esta apreciasse os novos casos com mais agilidade e simplicidade.
3 RELAÇÃO DE TRABALHO E DE EMPREGO
Tratando o presente artigo sobre a competência da Justiça do Trabalho para relações de trabalho, importante conceituar esta última, diferenciando-a da “relação de emprego”.
O termo trabalho possui amplo sentido e, partindo dessa premissa inicial, foi elaborado juridicamente o significado de relação de trabalho (subtendendo ser humana), qual seja, qualquer relação entre pessoas físicas ou entre pessoa física e pessoa jurídica, que se consubstancia na utilização do esforço humano, seja físico ou intelectual, para a consecução de certo objetivo produtivo. Com base neste conceito, frise-se que, quando a relação de trabalho for entre pessoa física e pessoa jurídica, a primeira será sempre a prestadora de serviços, não se caracterizando relação de trabalho quando houver prestação de serviços por pessoa jurídica, em face da ausência do elemento humano.
Nos dizeres do eminente jurista Maurício Godinho Delgado (2019, p. 285), em consonância com o acima exposto, relação de trabalho “refere-se a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano”.
Quanto à referida conceituação, não há grande divergência na doutrina.
Devido à amplitude de seu significado, relação de trabalho é gênero, do qual decorrem diversas espécies, que têm como principal expoente a relação de emprego, sendo pacífico este entendimento na doutrina e jurisprudência.
A Relação de Emprego é, sem dúvidas, a mais importante espécie de relação de trabalho. Sua relevância é de tal ordem que muitas vezes se utiliza da expressão genérica para conceituá-la e vice-versa, o que se verifica até na nossa legislação, que faz uso indiscriminado de referidas expressões.
Os sujeitos da relação de emprego são o empregado e o empregador, que se encontram definidos nos arts. 2º e 3º da CLT, in verbis:
Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
§ 1º – Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.
(…)
Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Parágrafo único – Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual. (BRASIL, 1943)
Restando explícitos os pressupostos da relação de emprego: trabalho por pessoa física, com pessoalidade, de forma não-eventual, com subordinação e mediante pagamento de salário.
4 COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA AS RELAÇÕES DE TRABALHO
De igual modo, considerando que o presente artigo discute a competência da Justiça do Trabalho, imperioso antes tratar do conceito de jurisdição e de competência.
A jurisdição se revela como a manifestação do poder soberano do Estado, juntamente com as funções legislativa e administrativa. Significa referido instituto no poder de “dizer o direito” e, como tal, todos os órgãos do Poder Judiciário a possuem, sendo a mesma inerente a todos os juízes.
A jurisdição ocupa posição central na estrutura do Direito Processual.
Cada órgão do Poder Judiciário, no entanto, não possui a atribuição de “dizer todo o direito”, há uma repartição de trabalho e cada juiz recebe uma parcela dessa jurisdição, que é denominada competência, por isso a competência é a medida de jurisdição atribuída a cada juiz.
Há diversos critérios para a fixação da competência de um juiz: em razão da matéria (ratione materiae), em razão das pessoas (ratione personae), em razão da função/da hierarquia ou em razão do território (ratione loci).
Divide-se a competência, ainda, em relativa e absoluta. Trata-se de competência absoluta quando os critérios para a fixação de competência são criados de acordo com o interesse público e é relativa quando o escopo é proteger interesses particulares.
A competência absoluta não pode ser alterada, podendo ser declarada pelas partes a qualquer tempo, bem como ex officio pelo juiz, o vício de incompetência absoluta acarreta a nulidade dos atos decisórios, porque, como a mesma não pode sofrer alteração, também não pode ser prorrogada. São espécies de competência absoluta em razão da matéria (ex ratione materiae) e em razão da função.
Quanto à competência relativa, pode ser modificada e prorrogada, implicando dizer que um Juízo que normalmente não seria competente para apreciação de determinada causa, pode processá-la e julgá-la sem que acarrete nulidade dos atos decisórios. O vício de incompetência relativa não pode ser declarado ex officio pelo juiz, apenas arguido pelas partes. Exemplo de competência relativa é a em razão do lugar (ex ratione loci).
Imperioso ressaltar que podem ocorrer conflitos de competência, tanto positivo como negativo. Opera-se o primeiro quando dois ou mais Juízos declaram-se competentes para apreciação de determinada causa. Verifica-se o segundo quando dois ou mais Juízos consideram-se incompetentes para julgar a demanda, possuindo legitimidade para suscitar o conflito as partes, o Ministério Público ou o próprio juiz.
Após a contextualização dos conceitos-chave, adentra-se no exame da jurisdição e da competência da Justiça do Trabalho conforme previsto no atual do art. 114 da Constituição Federal.
Conforme abordado na seção 2 deste trabalho, a Emenda Constitucional 45/04 ampliou a esfera de atuação da Justiça do Trabalho ao reconhecer sua jurisdição e competência para julgar uma ampla variedade de questões vinculadas a relação de trabalho. Tal ampliação é claramente percebida ao se examinar o inciso I do referido artigo, que aborda a matéria de maneira ampla (litígios relacionados à relação de trabalho) e os subsequentes incisos, do II ao VIII, que detalham e especificam as ações sobre representatividade sindical, litígios concernentes a danos morais ou materiais resultantes da relação de trabalho, ações relacionadas a penalidades administrativas e ações associadas ao exercício do direito de greve, entre outros.
A relação de trabalho, da qual a relação de emprego é uma espécie (como já detalhado na seção 3), engloba uma ampla gama de interações baseadas no esforço humano, particularmente após a implementação da EC 45/04, e a expressão “ações derivadas da relação de trabalho” serve para englobar diversos aspectos dessas interações sob a alçada da Justiça do Trabalho. Isso inclui, mas não se limita a, modalidades como trabalho autônomo, trabalho avulso, atividades voluntárias, empreitada, estágios, colaboração em cooperativas, trabalhos ocasionais, entre outros.
À exceção ocorre em relação aos servidores públicos. Os servidores públicos podem ser estatutários ou celetistas.
Os celetistas são considerados empregados e, por isto, mesmo antes da alteração da competência, já era questão pacificada que eles restavam amparados pela Justiça do Trabalho para a solução de seus litígios, competência esta que restou reforçada pela Emenda Constitucional 45/2004.
Quanto aos servidores estatutários, vinculados à administração por uma relação de direito público, sempre houve divergência quanto à Justiça competente para apreciação dos litígios decorrentes da relação de trabalho estabelecida, tendo o STF, na ADI nº 3.395, afastado a competência da justiça especializada para julgar causas envolvendo vínculo jurídico administrativo ou estatutário entre o Poder Público e seus servidores.
Deste modo, ao abordar as exceções resultantes das decisões do STF, prossegue-se com a avaliação central deste estudo da competência da Justiça do Trabalho em relação às diversas relações de trabalho à luz das recentes decisões do STF.
5 MOTORISTAS E EMPRESAS DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE CARGAS E CONTRATOS DE REPRESENTAÇÃO COMERCIAL AUTÔNOMA
Em decorrência da similaridade das relações regidas pela Lei nº 4.886, de 1965 (BRASIL, 1965), que envolve as atividades dos representantes comerciais autônomos e as regidas pela Lei nº 11.442, de 2007 (BRASIL, 2007), que trata de transporte rodoviário de cargas por conta de terceiro e mediante remuneração, o presente tópico abordará a matéria de forma conjunta.
No Recurso Extraordinário 606003, que apresentava repercussão geral sob o tema 550 e sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, e cujo acórdão foi redigido pelo Ministro Roberto Barroso, o STF reconheceu a constitucionalidade da Lei nº 4.886/1965. A Corte estabeleceu a competência da Justiça Comum para apreciação de causas relacionadas à relação jurídica entre representante e empresa representada, ressaltando que tal vínculo não configura uma relação de trabalho entre as entidades envolvidas. (BRASIL, 2020).
De igual forma, a Lei nº 11.442, de 2007 também teve sua constitucionalidade questionada, sendo que após análise da matéria pelo STF nas ADC 48-DF e ADI 3961, o Tribunal declarou ser legítima a terceirização da atividade-fim da empresa prevista na Lei nº 11.442, de 2007, tratando-se de vínculo meramente comercial e afastou a configuração de relação de emprego nesta hipótese. (BRASIL, 2020).
Em resumo, por maioria, o STF firmou a seguinte tese:
1 – A Lei nº 11.442/2007 é constitucional, uma vez que a Constituição não veda a terceirização, de atividade-meio ou fim. 2 – O prazo prescricional estabelecido no art. 18 da Lei nº11.442/2007 é válido porque não se trata de créditos resultantes de relação de trabalho, mas de relação comercial, não incidindo na hipótese o art. 7º, XXIX, CF. 3 – Uma vez preenchidos os requisitos dispostos na Lei nº 11.442/2007, estará configurada a relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista”. (BRASIL, 2020).
Fica claro que o STF excluiu da jurisdição da Justiça do Trabalho os casos que envolvem trabalhadores das empresas de transporte rodoviário de cargas, regulamentadas pela referida lei, no que concerne aos terceirizados para funções principais. A Corte concluiu que a relação entre os motoristas e as transportadoras possui caráter mercantil, e não se enquadra como relação de emprego.
O foco desta discussão não está na decisão do STF ao validar a lei que rege o transporte rodoviário de carga. A Corte estabeleceu a permissibilidade da terceirização tanto para funções secundárias quanto para atividades principais. Também estipulou um prazo de prescrição de apenas um ano para ressarcimentos ligados a contratos de transporte. Essa definição ocorre porque os créditos não surgem de uma relação de trabalho, mas sim de um vínculo comercial.
Ocorre que na tese fixada no julgamento da ADI 3961 e da ADC 48, restou expressamente ressalvado que “uma vez preenchidos os requisitos dispostos na Lei nº 11.442/2007, estará configurada a relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista”. (BRASIL, 2020).
Dessa forma, a Corte Suprema estabeleceu que a justiça do trabalho é incompetente para examinar, à primeira luz, qual a relação jurídica entre o motorista e seu contratante-empresa de transporte, se comercial, de trabalho ou emprego.
Nesse contexto, importante destacar que as decisões supracitadas do STF não observam o art. 114 e incisos da CF, que define a competência material da Justiça do Trabalho para análise da relação de trabalho entre as partes, e o art. 43 do CPC, que estabelece que “determina-se a competência no momento do registro da distribuição da petição inicial, sendo irrelevante as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta” (BRASIL, 2015).
Além disso, os princípios da “perpetuatio jurisditionis” e do juízo natural estão sendo mitigados sempre que, por meio de reclamações, os Ministros do STF retiram da Justiça do Trabalho a prerrogativa de decidir sobre a existência ou não de relação de emprego e remetem os processos à Justiça Comum, efetivamente transferindo para outra jurisdição a avaliação de certos tipos de contratos, transações ou atividades empresariais, como nas ações envolvendo motoristas de empresas de transporte rodoviário de cargas, ou então o STF admite que caberá à Justiça Comum conhecer e julgar processos em que se pede o reconhecimento de vínculo de emprego em determinadas atividades empresariais, o que é absurdo sob o ponto de vista do art. 114 da CF.
6 PROFISSIONAL-PARCEIRO EM SALÃO DE BELEZA
Quanto à relação jurídica que enlaça o profissional-parceiro ao salão de beleza, regida pela chamada “lei do salão de beleza-parceiro”, esta trouxe relevantes mudanças nessa modalidade de negócio empresarial.
A Lei nº 13.352, de 27 de outubro de 2016 (BRASIL, 2016), que modificou a Lei nº 12.592, de 2012, regulamentada pela Portaria MTB 496/2918, faz parte do conjunto das modificações da reforma trabalhista de 2017, quando passou a admitir o contrato de parceria entre profissionais que exercem as atividades de cabeleireiro, barbeiro, esteticista, manicure, pedicure, depilador, maquiador, criando as figuras do “profissional-parceiro” e “salão-parceiro”, estabelecendo que o salão pode contratar pessoas registradas na modalidade pessoa jurídica ou “PJ”, como pequenos empresários, microempresários ou microempreendedores individuais.
Por entender que a lei precariza as relações de trabalho desses profissionais transformados em pessoas jurídicas com a finalidade de burlar seus direitos trabalhistas, como horas extras, férias, FGTS e 13º salários, tratando-se de notório retrocesso social e flagrante violação à dignidade humana e valor social do trabalho, a Confederação Nacional do Trabalhadores em Turismo e Hospitalidade – CONTRATUH, ajuizou perante o STF a ADI 5625-DF, destacando que a relação de emprego, com assento constitucional no art. 7º, inc. I e o contrato de trabalho devem cumprir a função social prevista no art. 5º, inc. XXIII, art. 170, § 1º, da CF/88, sob o fundamento de que todos esses princípios foram desrespeitados pela lei questionada.
Por oito votos a dois, na ADI 5625-DF, a Suprema Corte declarou constitucional a denominada “lei do salão parceiro”, restando vencidos apenas o relator ministro Edson Fachin e a ministra Rosa Weber. (BRASIL, 2021).
Refletindo sobre as outras decisões do STF sobre os servidores estatutários, motoristas e representante comercial acima mencionadas, certamente que a Corte será questionada acerca da competência da Justiça do Trabalho para julgar as ações envolvendo os contratos de parceria dos salões de beleza, e infelizmente há de se esperar a tendência de reconhecimento de relação comercial, assim como as de motoristas que trabalham por plataformas digitais, como os aplicativos Uber, 99 e outros, remetendo à Justiça Comum a análise da configuração de contrato de natureza civil.
7 MOTORISTAS E PLATAFORMAS DIGITAIS
A evolução tecnológica, particularmente em áreas como tecnologia da informação, big data, inteligência artificial, robótica, IoT, nanotecnologia e biotecnologia, tem provocado significativas transformações no Direito do Trabalho. Estas inovações introduziram novos modelos de trabalho que se alinham com as capacidades digitais. Em um cenário marcado por altas taxas de desemprego, cresce a tendência para contratações flexíveis ou baseadas na demanda, bem como modelos de negócios que se apoiam em uma vasta rede de profissionais prontamente disponíveis, frequentemente referidos como “trabalho em massa” ou “crowdsourcing”.
Diante desta nova realidade digital, muitos acadêmicos e pesquisadores têm voltado sua atenção para as relações de trabalho e emprego mediadas por plataformas digitais. É inegável que esses aplicativos vão além de simplesmente conectar consumidores e prestadores de serviços. Eles desempenham papéis cruciais em definir preços, monitorar a execução das tarefas e avaliar os prestadores de serviços. Além disso, a capacidade dessas plataformas de descredenciar ou “desativar” um prestador é comparável a uma forma de demissão.
O cerne do debate centra-se na questão da subordinação. Tradicionalmente, a subordinação é um dos elementos-chave para determinar uma relação de emprego. No contexto das plataformas digitais, a subordinação adquire uma nova dimensão, muitas vezes referida como “subordinação algorítmica”. Isso ocorre porque os algoritmos dessas plataformas, em muitos casos, determinam a maneira como o trabalho é realizado, avaliam o desempenho e tomam decisões que afetam diretamente a remuneração e a continuidade do prestador na plataforma. Portanto, a grande questão é se essa forma de controle algorítmico pode ser considerada equivalente à subordinação tradicional nas relações de trabalho (RODRIGUES, 2021).
No contexto contemporâneo, marcado por avanços tecnológicos e pela digitalização de diversos segmentos da economia, a subordinação, como tradicionalmente entendida, tem enfrentado desafios interpretativos significativos. A emergência da chamada “subordinação algorítmica” reflete essa transformação. Em vez de receber instruções diretas de um supervisor humano ou de seguir procedimentos estabelecidos por políticas corporativas, muitos trabalhadores agora são guiados, avaliados e, às vezes, penalizados por algoritmos e sistemas automatizados.
Essa forma de subordinação, mediada por tecnologias, traz peculiaridades. Ela pode ser menos visível, mas é altamente eficaz. Os algoritmos, com sua capacidade de coletar, processar e analisar grandes volumes de dados em tempo real, podem exercer um controle ainda mais preciso sobre a atividade do trabalhador do que um supervisor humano tradicional. Por exemplo, motoristas de aplicativos de transporte ou entregadores podem ser direcionados em suas rotas, avaliados em sua eficiência e até incentivados ou desincentivados a trabalhar em determinados horários ou locais, tudo com base em decisões algorítmicas.
Por conseguinte, é fundamental que a legislação trabalhista e a jurisprudência reconheçam e se adaptem a essas mudanças. A subordinação algorítmica, em muitos contextos, demonstra o mesmo grau de controle e direção sobre o trabalhador que a subordinação tradicional. Se ignorarmos essa realidade, corremos o risco de deixar uma parcela crescente da força de trabalho sem a proteção adequada que as leis trabalhistas visam proporcionar.
Afinal, a essência da relação de emprego não reside apenas em quem dá as ordens, mas na natureza do controle exercido sobre o trabalhador. Em um mundo cada vez mais digital, esse controle pode não vir na forma de um supervisor direto, mas de um código de computador. Portanto, para garantir os direitos dos trabalhadores na era digital, é imperativo que reconheçamos a subordinação algorítmica como uma manifestação moderna da tradicional relação de emprego (BARZOTTO; MISKULIN; BREDA, 2021, p. 211-223).
No Brasil, a jurisprudência que vem sendo construída no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho é no sentido de inexistência do vínculo de emprego entre motoristas e o aplicativo de transportes Uber, tendo como principal fundamento a inexistência de onerosidade e subordinação, destacando que a Uber pratica alto percentual sobre os valores pagos pelas viagens recebidos pelos motoristas, e que isso exclui a onerosidade, além de haver flexibilidade de horário.
À exceção, o julgamento do RR 100353-02.2017.5.01.0066, concluído pela 3ª Turma do TST em 6.4.2022, reconheceu o vínculo empregatício entre a Uber e o motorista, determinado o retorno dos autos ao Juízo da Vara do Trabalho de origem para examinar os demais pedidos deduzidos pelo Reclamante daí decorrentes, articulados na petição inicial. (BRASIL, 2020).
Em 19.05.2023, o ministro Alexandre de Moraes do STF, na Reclamação Constitucional (RCL) 59.795, cassou uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT3), de Minas Gerais, que entendeu pelo vínculo empregatício entre um motorista de aplicativo e a empresa de transporte individual Cabify.
Em face da decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes, é possível identificar que o STF vem adotando uma postura que reconhece as mudanças nas relações de trabalho ocasionadas pela economia digital. A interpretação dada à relação entre motoristas de aplicativos e empresas de tecnologia, como a Cabify, demonstra um esforço do Judiciário em compreender e adaptar-se às novas formas de organização do trabalho, que são marcadas por uma flexibilidade e por modelos de negócios disruptivos.
Ao assemelhar a relação entre motorista e plataforma de aplicativo à figura do transportador autônomo, prevista na Lei 11.442/2007, o Ministro Alexandre de Moraes buscou encontrar um paralelo no ordenamento jurídico para categorizar essa relação contemporânea. De acordo com essa visão, o motorista possui autonomia, sendo proprietário do seu meio de produção (o veículo) e estabelecendo relação de natureza comercial, e não empregatícia, com a empresa de aplicativo.
Essa decisão reflete a tentativa do Poder Judiciário em equilibrar a proteção dos direitos dos trabalhadores com a necessidade de reconhecer e legitimar novas formas de relação de trabalho. Por um lado, é inegável que os avanços tecnológicos e as plataformas digitais trouxeram novas oportunidades de trabalho e renda para milhares de pessoas. Por outro, também surgem preocupações quanto à precarização e à falta de proteção trabalhista para aqueles que prestam serviços por meio dessas plataformas.
Cabe destacar que, ao mencionar que o STF possui precedentes que admitem a existência de contratos fora da estrutura tradicional da CLT, o Ministro reconhece a diversidade e complexidade das relações de trabalho na contemporaneidade. Nesse sentido, o desafio reside em encontrar soluções jurídicas que, ao mesmo tempo, respeitem a autonomia e a liberdade contratual dos envolvidos e garantam direitos fundamentais aos trabalhadores.
A decisão demonstra que o debate sobre a natureza jurídica da relação entre motoristas e plataformas de aplicativos está longe de ser pacificado e continuará sendo objeto de discussões no âmbito acadêmico, jurisprudencial e legislativo.
Baseado na tese da inexistência de vínculo de emprego entre motorista por aplicativo e plataforma digital de trabalho, em 28.10.2019, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça – STJ, Relator Ministro Moura Ribeiro, decidiu em sede de conflito negativo de competência originário de Minas Gerais, que a ação judicial promovida por motorista de Uber em face da empresa, tratando-se de trabalhador autônomo, deve ser endereçada à Justiça Comum – CC 164.544-MG, revelando assim, mais uma divergência entre as Cortes Superiores. (BRASIL, 2019).
É fato que a Emenda Constitucional 45/2004 ampliou a competência da Justiça do Trabalho para abarcar não apenas relações de emprego, mas também as relações de trabalho de maneira mais ampla. Em uma interpretação literal e sistemática da norma, seria natural que conflitos envolvendo trabalhadores e empresas de aplicativos fossem, em princípio, apreciados pela Justiça Especializada. Porém, a decisão do STJ e outras semelhantes proferidas pelo STF indicam uma resistência em reconhecer que a competência para julgar tais ações é da Justiça do Trabalho, dentro do escopo da Emenda Constitucional.
8 VÍNCULO DO ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA COM O ADVOGADO
Recentemente, mediante a Reclamação Constitucional (RCL) nº 59.836, o Eminente Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, acatou o pleito de um renomado escritório de advocacia em face de decisão que identificou vínculo empregatício de uma advogada, qualificada como sócia quotista. O Ministro salientou que tal decisão não estava em consonância com o posicionamento jurisprudencial consolidado pela Corte Suprema.
Ao proferir sua decisão e proceder com a Reclamação, o Ministro Barroso recordou que a Suprema Corte já havia estabelecido a licitude de outras formas de organização da produção e de pactuação da força de trabalho, que ultrapassam os contornos previstos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Tal posicionamento foi cristalizado em precedentes como ADPF 324, ADC 48, ADIs 3961, 5625 e ainda no Recurso Extraordinário 958.252, enquadrado no Tema 725 de repercussão geral.
Este discernimento fortalece a perspectiva, anteriormente abordada neste estudo, de que o Supremo Tribunal Federal, em suas deliberações, compreende que as relações de trabalho não se restringem ao contrato de emprego. Admite-se que, em um mesmo setor, coexistam profissionais regidos pela CLT e outros que exerçam suas atividades de forma esporádica ou com um grau mais elevado de independência. Ademais, ressalta-se a licitude dos acordos de terceirização, de parcerias, sociedades e contratações por meio de pessoa jurídica (comumente denominada “pejotização”), mesmo quando estas se destinam à realização de atividades essenciais da empresa, contanto que não esteja mascarada uma relação de emprego.
Por fim, é imprescindível evidenciar uma inquietação emergente destas resoluções do STF: não se trata unicamente de uma possível interpretação equivocada sobre as relações laborais, mas, sobretudo, do redirecionamento da competência jurisdicional da Justiça do Trabalho em direção à Justiça Comum para avaliar a natureza da relação em questão.
9 ATIVISMO JUDICIAL
As decisões dos Tribunais Superiores evidenciadas nesta pesquisa demonstram um proeminente ativismo judicial, sobretudo do STF. Esta Corte, ao invés de promover a uniformização interpretativa de certos temas, vem reconfigurando os consensos estabelecidos pelas Leis Trabalhistas e pela Carta Magna, possibilitando uma vasta gama de práticas.
Dessa forma, permanece incerta a postura que o STF adotará frente a potenciais distorções em empresas de representação comercial, tendo em vista a presunção recorrente de autossuficiência dos envolvidos e, consequentemente, de contratos válidos. No caso dos motoristas de aplicativos, inspirado por decisões do TST que refutam qualquer vínculo empregatício, o STJ, no exercício de seu mandato constitucional de solucionar conflitos de competência entre diferentes tribunais (CF 88, art. 105, I, “d”), posicionou-se pela natureza civil do vínculo entre motoristas e Uber, contextualizando-o na economia compartilhada e atribuindo a competência à Justiça Comum (BRASIL, 2019). É plausível que o STF seja chamado a intervir nessa controvérsia entre as Cortes Superiores, conforme preceitua a CF/88, art. 102, I, “o”.
Essa postura ativa do STF, em essência, compromete o acesso do trabalhador à Justiça. Surge o risco de a Justiça Comum interpretar o trabalhador vulnerável em paridade com conglomerados como Uber, Cabify, iFood e empresas de transporte, conferindo-lhes denominações como “empreendedores”, “parceiros”, “associados”, entre outras. Essa abordagem tende a obscurecer os princípios protetivos, fundamentais ao Direito do Trabalho e essencial para aqueles que dele dependem.
Em síntese, essa tendência ativista, evidente nas decisões que subtraem competência da Justiça do Trabalho, parece favorecer a flexibilização das condições de trabalho, incrementando os ganhos corporativos e negligenciando preceitos básicos da dignidade humana. Torna-se patente que, na Suprema Corte brasileira, prevalece uma análise calcada em perspectivas comerciais e civis, em detrimento dos princípios trabalhistas.
10 CONCLUSÃO
O estudo em pauta centrou-se na análise da competência da Justiça do Trabalho após a EC 45/04, onde uma revisão detalhada foi realizada sobre o art. 114, I da CF/88, particularmente no contexto de sua interpretação e aplicação pelo STF.
Brevemente o estudo indicou o conceito de relação de trabalho e, por via de consequência, diferenciou-o do significado de relação de emprego. O conceito de relação de trabalho engloba um amplo espectro de interações em que o esforço humano é empregado por uma das partes em benefício da outra. Já a relação de emprego, uma espécie deste, demanda a presença de características específicas: pessoalidade, onerosidade, subordinação e habitualidade.
Ao nos aprofundarmos na questão da competência, é evidente que o legislador aspirava a conferir ao Judiciário Trabalhista a autoridade para resolver contendas provenientes de todas as modalidades de relações de trabalho. Esse encargo é justificado pela especialização e sensibilidade dos juízes trabalhistas ao lidar com os intricados matizes das disputas laborais.
No entanto, trazidas as decisões do STF de retirar da competência da Justiça do Trabalho e remeter à Justiça comum matérias como contratos temporários desvirtuados e contratos nulos com a administração pública, motoristas agregados, representantes comerciais, profissionais do salão de beleza, advogados quotistas em escritórios de advocacia, entre outras, restou demonstrado que há um esvaziamento da competência da Justiça do Trabalho, agredindo diretamente o disposto no art. 114 da CF de 1988, pois privilegia a competência em razão da pessoa em detrimento da competência absoluta da Justiça do Trabalho em razão da matéria, numa distorção incompreensível, tanto do ângulo processual quanto do constitucional.
Também as decisões do TST que negam a inexistência de relação de trabalho entre motorista por aplicativo e a plataforma digital Uber, a decisão do STJ, que em sede de conflito negativo de competência, determinou que a ação judicial promovida por motorista de Uber em face da empresa, tratando-se de trabalhador autônomo, deve ser endereçada à Justiça Comum.
Essas decisões levarão ao impensável pedido de descaracterização de vínculo de natureza comercial e reconhecimento de relação de emprego entre trabalhador e empresa na Justiça comum, o que é totalmente teratológico.
No Brasil, é intrínseco à nossa ordem constitucional que o Poder Judiciário supervisione e avalie os atos do Poder Legislativo, garantindo que se alinhem à nossa Constituição. No entanto, observa-se uma série de interpretações e aplicações questionáveis, que desviam dos objetivos originais da legislação e do texto constitucional.
Em síntese, é imperativo reconhecer o papel contra majoritário das Supremas Cortes em salvaguardar os direitos, especialmente aqueles de grupos vulneráveis. No contexto brasileiro, é alarmante constatar o ativismo judicial do STF em suas decisões, que frequentemente reduz a competência da Justiça do Trabalho e, consequentemente, limita a eficácia dos direitos trabalhistas. Esse desvio não pode ser aceito silenciosamente pela comunidade jurídica, governo e sociedade civil, todos os envolvidos devem estar vigilantes e comprometidos em preservar os princípios e direitos estabelecidos para os trabalhadores.
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[1] Advogado. Pós-graduado em Direito do Trabalho pela Fundação Getúlio Vargas/SP. Pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/SP. Mestrando em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.