APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA COM RELAÇÃO A MULHERES TRANSGÊNERO

APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA COM RELAÇÃO A MULHERES TRANSGÊNERO

28 de novembro de 2023 Off Por Cognitio Juris

APPLICABILITY OF THE MARIA DA PENHA LAW TO TRANSGENDER WOMEN

Artigo submetido em 11 de outubro de 2023
Artigo aprovado em 21 de outubro de 2023
Artigo publicado em 28 de novembro de 2023

Cognitio Juris
Volume 13 – Número 50 – Novembro de 2023
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Lucas Vivan dos Santos[1]
Marcelo Wordell Gubert[2]
Clara Heinzmann[3]

RESUMO

Pessoas transgênero são compreendidas como indivíduos que constroem e/ou identificam sua identidade de gênero como sendo diversa aquela imposta ao nascimento, no caso das mulheres transgênero, de forma mais comum, tratam-se de pessoas que ao nascer lhes foram impostos o gênero masculino, mas que durante o curso de sua vida, foi se entendendo de forma diversa, especificamente como mulher. Nesse sentido, faz-se necessário apontar que gênero e sexo são critérios objetivos que identificam coisas diversas, sendo que sexo vislumbra questões puramente biológicas, determinando indivíduos entre machos, fêmeas e intersexo, e gênero, identificando todo o tecido social que constrói as relações interpessoais e inclusive, intrapessoais, e são de forma genérica divididos entre homens e mulheres. Assim, o presente trabalho analisa se, frente ao exposto, a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) se aplica a mulheres transgênero vítimas de violência doméstico familiar contra a mulher. Para alcançar o objetivo da pesquisa, foram adotados o método dedutivo e a pesquisa de natureza bibliográfica explicativa. Ainda, historicamente a luta de pessoas transgênero é a de ver sua identidade e expressão de gênero dissidente da norma, reconhecida e garantir direitos inerentes dessa identificação, tal qual retificação de documentos e o acesso a ambientes que preconceito e discriminação as impedem de alcançar. Assim, quando a lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) identifica em seu artigo 5º que a violência deve ter por base aquela perpetrada em ambiente doméstico familiar contra mulher por condição do seu gênero, também engloba essa parcela da população de mulheres transgênero, tendo-se em vista que são, de fato, mulheres integrantes do gênero feminino.

Palavras-chave: Transgeneridade; questões de gênero; Lei Maria da Penha.

ABSTRACT

Transgender people are understood as individuals who construct and/or identify their gender identity as being different from the one imposed on them at birth. In the case of transgender women, more commonly, these are people who had the male gender imposed on them at birth, but who, during the course of their lives, came to understand themselves differently, specifically as women. In this sense, it is necessary to point out that gender and sex are objective criteria that identify different things, with sex looking at purely biological issues, determining individuals between males, females and intersex, and gender, identifying the entire social fabric that builds interpersonal and even intrapersonal relationships, and are generically divided between men and women. Thus, this paper analyzes whether, in light of the above, Law 11.340/2006 (Maria da Penha Law) applies to transgender women who are victims of domestic violence against women. To achieve the research objective, the deductive method and explanatory bibliographical research were adopted. Historically, the struggle of transgender people has been to see their gender identity and expression recognized and to guarantee the rights inherent in this identification, such as the rectification of documents and access to environments that prejudice and discrimination prevent them from reaching. Thus, when Article 5 of Law 11.340/2006 (the Maria da Penha Law) identifies that violence must be based on violence perpetrated in a domestic environment against a woman because of her gender, it also encompasses this section of the population of transgender women, given that they are, in fact, women of the female gender.

Keywords: Transgenderism; gender issues; Maria da Penha Law.

INTRODUÇÃO

Inicialmente, o presente trabalho carrega importância fatores diversos, na forma como se passa a expor. A abrangência do tema é de fundamental relevância, ao passo que explora matéria que carrega em si, certa polêmica doutrinária, tendo-se em vista o preconceito que é trazido à superfície com esta discussão, preconceito esse fundado na transfobia, fundado na prática de não enxergar pessoas transgênero como, de fato, do gênero com o qual se identificam e são socialmente identificadas.

Ainda, o tema carrega e expõe relações que são tidas especificamente na contemporaneidade brasileira. Isso dá, em razão das discussões de gênero, mais especificamente, com relação a validação de pessoas transgênero como indivíduos socialmente reconhecidos como tais. E também, em razão da Lei Maria da Penha ser uma lei que é modificada com muita frequência, seja com alterações formais em seu texto legal ou com modificações interpretativas por meio de controle de constitucionalidade ou precedentes legais e jurisprudenciais.

Nesta toada, o palco desta discussão, é, precisamente, relações de transgeneridade pautadas no Brasil, hoje, um dos países mais violentos e que mais matam pessoas transgênero no mundo, fundando assim, a discussão em bases concretas que podem referendar e indicar causas e concausas dessa violência, fator que pode levar a sua resolução em algum momento no futuro de toda esta problemática.

Desta forma, o presente trabalho pauta-se em discussões de gênero, que são fundamentais também, não apenas para pessoas transgênero, mas também para pessoas cisgênero, ao passo que instrui ainda mais o debate de papeis de gênero e de noções gerais do que se tem por gênero dentro da sociedade.

Também, trar-se-á noções e conceitos de estratificação social das relações de poder dentro da sociedade, especialmente fundamentais para que se possa identificar cenários de abuso, relações violência e paisagens de contradições sociais, sem as quais, a nossa sociedade não seria estruturada da forma como é, fundando assim a presente pesquisa em uma análise da materialidade dialética existente em nosso país.

Por fim, em que pese, muito da discussão será realizada, fundamentalmente, de forma epistemológica e metafísica, todos estes conceitos, razões e circunstâncias apresentadas, instruem de forma material a sociedade, estando presentes e sendo perpetradas em todas as relações de poder, contemporâneas, no mundo inteiro, neste sentido, portanto, urge a todos, conhecer e compreender esta dinâmica.

  1. EXPLORANDO AS DIFERENÇAS DE GÊNERO, SEXO E SEXUALIDADE

Inicialmente, cumpre explorar os conceitos e gênero, sexo e sexualidade, e diferenciá-los para que a abordagem da temática seja clara.

Assim, tem-se que o termo sexualidade ou orientação sexual, identifica como está disposta a atração sexual, afetiva e emocional do indivíduo com relação a um ou mais gêneros. A sexualidade é um conceito muito guiado pela autoidentificação dos indivíduos com alguma orientação sexual específica (CORTE IDH, 2017, p. 18).

A sexualidade é tema importante na discussão acerca de direitos da comunidade LGBTQIAPN+ de forma geral, ora, a comunidade tem por objetivo a conquista de direitos igualitários referentes a gênero, e sexualidade, vista que em sua sigla é comportada uma vasta variação de identidades de gênero, e sexualidades.

A diversidade de sexualidades dentro da comunidade é identificada, de forma majoritária, pelas sexualidades: lésbica, gay, bissexual, assexual/arromântico e pansexual. Todos identificando a diversidade da atração sexual, afetiva ou romântica por algum gênero específico, tendo-se que em vista que não é o sexo do indivíduo que orienta essa atração, mas sim, seu gênero (CIJSIDH, 2006).

Ainda, a sexualidade não identifica a atração por um gênero específico, por uma expressão certa de gênero, mas por todo um espectro, nesse sentido, não é certo afirmar que gays são homens que sentem atração sexual por outros homens, mas sim, que são pessoas alinhadas ao espectro de gênero masculino, que sentem atração por pessoas alinhadas ao mesmo espectro (CORTE IDH, 2017).

Com relação a sexo, esta é a classificação que se dá às especificidades biológicas das pessoas. Sexo, não é o que define a categoria de homem ou mulher, tendo-se em vista que essas categorias são conceitos sociais de indivíduos socialmente identificados pelo sexo (BOURDIEU, 2014, p. 138).

Sexo normalmente é associado a gênero, em razão de que, em nossa sociedade, determinado gênero é imposto desde o nascimento à criança, dependendo do sexo dela. Entretanto, muito embora o sexo seja usado para determinar o gênero, a relação para por aí, visto que todas as relações sociais que o indivíduo vai ter durante sua vida, não dizem respeito ao seu sexo, mas aos padrões de gênero imposto ao indivíduo, fato que é identificado por outra classificação.

O sexo geralmente é definido conforme o órgão genital, fêmea para quem tem vagina e macho para quem tem pênis. Contudo, é importante também destacar que também existe diversidade destas disposições de sexo, como por exemplo, pessoas intersexo, ou como rudimentarmente referenciadas “pseudo-hermafroditas”, que são pessoas que tem ambiguidade da gônada sexual, possuindo, muitas veze, ambas as genitálias (CORTE IDH, 2017, p. 16.)

Em contrapartida, o gênero é uma construção social de existência dos indivíduos que integra sua identidade e guia funções das pessoas em comunidade, além de ser imposto com base no sexo de nascimento (CORTE IDH, 2017, p.16.). Gênero integra a identidade e a personalidade das pessoas de forma que elas se entendam como socialmente pertencentes a este grupo, repetindo comportamentos e trejeitos dele por se identificar desta forma.

É importante pontuar que o sexo por si só não identifica o gênero do indivíduo, visto que ele próprio pode se identificar subjetivamente e socialmente com gênero diverso daquele imposto ao nascer:

Ninguém nasce mulher, torna-se. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse conjunto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam como feminino (BEAUVOIR, 2008).

Conforme o exposto, a condição de mulher é puramente instruída por sua disposição na sociedade como indivíduo sexualmente identificado que a integra, assim como da mulher, a condição de qualquer gênero, que muito embora divirja em conteúdo, em natureza é idêntica.

Destarte, por mais que não representam o mesmo, os conceitos destes três elementos integram-se em codependência para se definir.

  • TRANSGÊNERO OU TRANSEXUAL

2.1 CONCEITO

É imperioso destacar a que se refere quando se pauta gênero, que se entende como sendo uma construção social, reproduzida por todas as instituições de uma sociedade, tais como pela família, igreja, escola, trabalho e vários outros meios (BOURDIEU, 2014).

Se tratando especificamente de uma ficção que gira em torno de comportamentos sociais praticados por indivíduos sexualmente identificados na sociedade, que muito embora, se apoie primitivamente na morfologia biológica sexual dos humanos, tudo que deriva de sua institucionalização, é uma compreensão imaginária pautada em costumes e rituais orientados por esta identificação (BOURDIEU, 2014).

Neste sentido, pauta-se a transgeneridade na condição humana de divergência da identidade de gênero pessoal com o gênero imposto no nascimento, e neste mesmo sentido, conceitua-se cisgênero como sendo a pessoa que se identifica com o gênero imposto ao nascer (CORTE IDH, 2017).

Tendo o exposto como horizonte, sintetiza-se que, sendo uma pessoa transgênero alguém que não se identifica com o gênero imposto ao nascimento e que gênero é esta construção social que permeia as relações sociais, tem-se por certo que: não é necessária que haja transição de gênero para que alguém possa ser denominado transgênero; a transgeneridade não diz respeito ao órgão genital do indivíduo, sendo este, irrelevante para a temática.

Muito embora a definição técnica apresentada, há de se destacar que os termos transexualidade e transgeneridade encontram-se em profunda disputa de significados, ainda mais pela existência de gêneros que desafiam a binaridade posta, como por exemplo, o gênero “travesti”. Desta forma, no Brasil, a terminologia transexual é muito usada  também para se referir a transgênero, como uma forma de protesto, ora o termo transexual tenha sido usado por muito tempo para se referir pejorativamente a esta comunidade (ANTRA, 2023).

Noutro giro, é possível dizer que gênero é um espectro, onde as pessoas podem transitar (CORTE IDH, 2017). Colocando de forma simples, esse espectro poderia ser separado em masculino e feminino, podendo as pessoas se posicionar como quiserem, inclusive de ambos os lados ao mesmo tempo, sendo eu cada disposição neste plano evidenciaria uma nova identidade de gênero (RIBEIRO; SILVEIRA, 2020).

Esse deslocamento do gênero foi tratado por muito tempo como sendo uma doença, que necessita de tratamento médico, psiquiátrico, se chamava disforia de gênero e estava no capítulo de doenças mentais. Entretanto em 18 de junho de 2018, com a divulgação do CID-11 da OMS, a condição deixou a lista de doenças mentais e passou a se chamar “incongruência de gênero”, deixando só então de ser considerada uma doença (ICD-11 FOR MORTALITY AND MORBIDITY STATISTICS, 2018).

A alteração de “doença” para uma condição humana, como qualquer outra, é um grande avanço para a conquista de demais direitos, visto que sem o empecilho da patologização da sua existência, esses grupos minoritários podem calcar cada vez mais espaço em ambientes que os desprezam, invalidam e vitimizam.

  • HISTÓRIA DA LUTA DAS PESSOAS TRANSGÊNERO NO BRASIL

Em perspectiva histórica, a organização do movimento social e político que representa as pessoas transsexuais no Brasil data da ditadura militar, e iniciou-se com um movimento social alinhado à esquerda do espectro político formado até então, apenas pela minoria sexual homossexual, e denominava-se Movimento Homossexual Brasileiro (GREEN, 2018).

O movimento político, muito embora não representasse nenhuma diversidade sexual ou de gênero que não a homossexual, foi de relevância ímpar para a conquista de direitos e de visibilidade na época, portanto, tudo aquilo que divergia da norma sexual ou de gênero era visto apenas como homossexual (PINTO, 2020).

Durante a ditadura militar, pessoas LGBTQIA+ eram consideradas como algo a se varrer das ruas, em políticas de encarceramento e/ou extermínio, tanto é que durante uma visita da Rainha Elisabeth II, à São Paulo, o delegado José Wilson Richetti realizou rondas cujo objetivo era o de “limpar as ruas de assaltantes, prostitutas e homossexuais” (INANNA, 2019).

Acerca do mesmo período também é imperioso destacar a autodefesa da qual travestis se utilizavam e que mais tarde viria a se tornar um símbolo de luta e resistência: a navalha de baixo da língua. Essa política de encarceramento da ditadura ocorreu durante a epidemia de HIV, em função de que as pessoas não sabiam como a infecção era transmitida e que achavam que era uma “doença gay”, travestis se muniam de uma navalha, e a escondiam baixo de sua língua, se surgisse o risco de ser presa ou agredida, mutilavam a própria língua para que esguichasse e afastasse os agressores (INANNA, 2019).

Na atualidade, muito embora pessoas transgêneros tenham conquistado direitos referentes a sua identidade de gênero, é fato que ainda lutam pela mesma coisa: seu direito de existir, haja visto que além do Brasil ser o país que mais mata e vitimiza a população LGBTQIAPN+ no mundo (CALVI, 2022), também conta com o fato de que pessoas transgênero e travestis tem uma expectativa de vida média de 35 anos (BRUNA G. BENEVIDES, 2022. pag. 41).

Em que pese sejam desesperançosas as estatísticas de violência, é notório que a justiça brasileira trilha uma boa rota em direção a conferir isonomia entre as pessoas, como nas decisões jurisdicionais que conferiram o direito de pessoas transgênero de verem seu nome e sexo retificado em cartório, sem que seja necessário ajuizar qualquer ação judicial, conforme segue:

O sistema há de avançar para além da tradicional identificação de sexos para abarcar também o registro daqueles cuja autopercepção difere do que se registrou no momento de seu nascimento. Nessa seara, ao Estado incumbe apenas o reconhecimento da identidade de gênero; a alteração dos assentos no registro público, por sua vez, pauta-se unicamente pela livre manifestação de vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero (RE 670422, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 15/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-051 DIVULG 09-03-2020 PUBLIC 10-03-2020).

Nesta seara, nota-se que o julgamento declarou direito da pessoa transgênero de ver seu nome retificado, respeitando sua identidade de gênero e caminhando no sentido apontado de respeito da isonomia e garantia da não-discriminação pela identidade de gênero.

Ainda acerca da garantia de direitos, em 2019, também fora julgado que a homotransfobia seria processada e julgada como crime de racismo, nos moldes da lei 7.716/89, julgamento que declarou:

Os integrantes do grupo LGBTI+, como qualquer outra pessoa, nascem iguais em dignidade e direitos e possuem igual capacidade de autodeterminação quanto às suas escolhas pessoais em matéria afetiva e amorosa, especialmente no que concerne à sua vivência homoerótica. Ninguém, sob a égide de uma ordem democrática justa, pode ser privado de seus direitos (entre os quais o direito à busca da felicidade e o direito à igualdade de tratamento que a Constituição e as leis da República dispensam às pessoas em geral) ou sofrer qualquer restrição em sua esfera jurídica em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero! Garantir aos integrantes do grupo LGBTI+ a posse da cidadania plena e o integral respeito tanto à sua condição quanto às suas escolhas pessoais pode significar, nestes tempos em que as liberdades fundamentais das pessoas sofrem ataques por parte de mentes sombrias e retrógradas, a diferença essencial entre civilização e barbárie. (ADO 26, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 13/06/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-243 DIVULG 05-10-2020 PUBLIC 06-10-2020).

Compulsando-se o referido Acórdão, é possível observar que estas decisões que garantem direitos a indivíduos da comunidade LGBTQIAPN+, o fazem pautadas na própria constituição, em homenagem aos princípios da isonomia e da não discriminação. Motivos pelos quais são suficientes para afirmar que o direito pátrio, como dito anteriormente, caminha em direção a cada vez mais reconhecer pessoas transgênero como sendo pertencentes ao gênero que se identificam, haja visto a busca pela igualdade e eliminação da discriminação no âmbito do direito.

  • LEI MARIA DA PENHA E SUA HISTÓRIA

Dessarte, a lei maria da penha é uma lei que foi criada por pressão interna, na figura dos movimentos sociais e políticos da época, e por pressão externa, quando o Brasil foi condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos pela negligência com a violência doméstica e familiar contra a mulher em seu território, frente ao emblemático caso de Maria da Penha (DIAS, 2022. pag. 17).

Maria da Penha Fernandes, que nomeia a referida lei, era farmacêutica e casada com um professor e economista, eles viviam em Fortaleza/CE, e durante seu relacionamento tiveram três filhas. Sem contar as inúmeras agressões sofridas, seu marido tentou matá-la em duas oportunidades. Uma das tentativas de assassinato seu marido fez uso de uma espingarda, ação que a deixou paraplégica, após poucos dias do retorno do hospital, ele tentou matar ela novamente, eletrocutando-a enquanto tomava banho. As investigações acerca dos fatos começaram em 1983 e em 1984 o Ministério Público competente ofereceu denúncia em desfavor de seu marido, fato que o levou a júri em 1991, condenado a 8 anos de prisão, júri que viria a ser anulado, o que o submeteu a júri novamente em 1996, quando foi imposta a ele pena de dez anos e seis meses de prisão, em razão de recorrer em liberdade, iniciou o cumprimento da pena apenas em 2002, em que ficou de fato preso até 2004 (DIAS, 2022. p. 18).

Diante dos fatos extremamente gravosos cometidos em face de si, sem que as denúncias de ameaças e agressões menores surtissem qualquer efeito, Maria da Penha denunciou o Brasil a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.

Nesse contexto, surgiu a lei 11.340/2006, que veio como uma norma de discriminação positiva, ou seja, que realiza diferenciação dos sujeitos para aplicação da lei, mas isso com o fim de atingir a igualdade de fato (FERNANDES, 2023. pag. 52).

 Nos termos que estabelece a Constituição Federal, em seu artigo 3º, I a IV, são objetivos da república, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quais outras discriminações. Desta forma, não há em que e dizer de atingir estes objetivos sem extirpar a discriminação e violência de gênero contra mulheres (FERNANDES, 2023. p. 52).

Tendo-se em vista o exposto, a lei 11.340/2006 cria mecanismos e ferramentas de ação em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar, limitando sua área de atuação especificando o funcionamento dos mecanismos. A lei funciona de forma a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, que são definidas da seguinte forma:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual (BRASIL, 2006).

Sendo assim, a violência contra a mulher, para os fins de aplicação da referida lei, consiste na conduta baseada no gênero feminino que cause mal físico, sexual, moral, psicológico ou patrimonial. Ainda, muito bem pontuado pelo parágrafo único do artigo, a orientação sexual da vítima ou do agressor é irrelevante para a aplicação desta lei.

Ainda observando a abrangência da lei, o sujeito ativo de violência doméstica contra a mulher pode ser todo aquele que tenha relação de parentesco, afinidade, socioafetividade ou afeto, no momento atual da violência ou não, mas que sempre em razão da relação, pratica qualquer forma de violência contra a mulher (DIAS, 2022. p. 106).

  • APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA PARA MULHERES TRANSGÊNERO

Inicialmente, um dos primeiros casos de que se teve notícia acerca da aplicação da Lei Maria da Penha em favor de uma mulher transgênero data de 23 de setembro de 2011, onde muito embora a vítima, mulher transgênero, não tinha seu nome retificado em cartório, era socialmente reconhecida como mulher, conforme destacou a juíza que proferiu a decisão:

Desta forma, apesar da inexistência de legislação, de jurisprudência e da doutrina ser bastante divergente na possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha ao transexual que procedeu ou não à retificação de seu nome no registro civil, ao meu ver tais omissões e visões dicotómicas não podem servir de óbice ao reconhecimento de direitos erigidos à cláusulas pétreas pelo ordenamento jurídico constitucional. Tais óbices não podem cegar o aplicador da lei ao ponto de desproteger ofendidas como a identificada nestes autos de processo porque a mesma não se dirigiu ao Registro Civil de Pessoas Naturais para, alterando seu assento de nascimento, deixar de se identificar como Alexandre Roberto Kley e torna-se ‘Camille Kley’ por exemplo! Além de uma inconstitucionalidade uma injustiça e um dano irreparável! O apego à formalidades, cada vez mais em desuso no confronto com as garantias que se sobrelevam àquelas, não podem me impedir de assegurar à ora vítima TODAS as proteções e TODAS as garantias esculpidas, com as tintas fortes da dignidade, no quadro maravilhoso da Lei Maria da Penha (Proc. nº 201103873908, 1ª Vara Criminal de ANápolis/GO, Juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães, j. 28.09.2011).

Ainda diante do exposto, é importante destacar que a aplicação desta lei também é de caráter urgente para esta população, que nestes casos, são duplamente vitimizadas, em primeiro lugar frente a violência diária sofrida em razão do preconceito da sociedade, e em segundo lugar, dentro da própria casa pelo próprio companheiro ou companheira (FERNANDES, 2023. pag. 222).

Nesta toada, existem enunciados do COPEVID (Mulheres trans e travestis – Enunciado nº 30 (001/2016), FONAVID (ENUNCIADO 46) e CONDEGE (Enunciado IV) que firmam essa aplicação da Lei Maria da Penha em favor de mulheres trans, inclusive independente de cirurgia de transgenitalização, alteração no nome ou sexo no documento civil.

CONCLUSÃO

O presente trabalho realizou uma análise, no que compete a aplicabilidade da lei maria da penha (Lei 11.340/2006) e sua aplicação com relação mulheres transgênero como tuteladas.

Sendo a transgeneridade é um fenômeno que pode ser amplamente observado através de toda a história humana documentada, consistente na condição de identificar-se com o gênero oposto aquele imposto ao nascer, em síntese, uma inadequação entre gênero designado ao nascer e aquele com o que de fato, se identifica.

Assim, imperioso citar que existe uma diferença fundamental entre os conceitos de gênero e de sexo, são conceitos diversos que, muito embora estejam historicamente integrados, representam fenômenos diversos. Enquanto o sexo é um conceito que identifica a dimensão biológica que identifica os indivíduos entre machos, fêmeas, intersexo, dentre outros, gênero é o conceito responsável por categorizar os comportamentos sociais de indivíduos que tem primariamente seu gênero definido com base no sexo, identificando mulheres, travestis, homens e outras identidades de gênero.

Neste sentido, a transgeneridade é fenômeno que comporta as pessoas que não se identificam com o gênero imposto e orientado pelo sexo ao nascer.

Ainda, a mulher transgênero é a pessoa que ao nascer foi imposto o gênero masculino a ela, entretanto, por superveniência da inadequação disto, o indivíduo se identifique como sendo uma mulher, dentro do espectro de gênero feminino.

A comunidade transgênero é um setor que é e foi historicamente ostracizado e segregado, que sofreu e sofre muita violência que tem por fundamento preconceito, discriminação transfóbica orientada em razão de extirpar da sociedade a existência de pessoas transgênero.

Em que pese todo o preconceito sofrido, o Estado Democrático de direito combinado com lutas constantes pela militância trans, adquiriu muitos direitos em favor deste recorte populacional, como a possibilidade de retificação do nome, ou adoção de nome social, bem como a criminalização da transfobia na forma da lei 7.716/89.

A Lei Maria da Penha foi criada com o intuito de proteger a mulher em situação de violência doméstica ou familiar, com mecanismo e órgãos próprios instituídos pela lei. Em seu artigo 5º, estabelece que a lei abarca qualquer forma de violência comissiva ou omissiva baseada em gênero, que, portanto, em teoria abarca pessoas transgênero sem qualquer impedimento ou interpretação mais extensa.

Findando, como já demonstrado, os tribunais, a doutrina e a lei caminham em mesmo sentido: o de tratar a mulher transgênero como indivíduo tutelado pela Lei Maria da Penha, assim como qualquer outra mulher, colocada a salvo de qualquer forma de violência baseada em seu gênero bem como reforçando o reconhecimento da identidade de gênero dos indivíduos.

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[1] Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Educacional de Medianeira – UDC.

[2] Doutor em Direito pela Universidade de Marília – UNIMAR, Mestre em Direito Processual e Cidadania na Universidade Paranaense – UNIPAR, Especialização Latu Sensu pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná, Especialização em Docência no Ensino Superior, Especialização em Gestão Pública e Graduação em Direito pela Universidade Paranaense. Advogado, e Professor da Faculdade Educacional de Medianeira – UDC/Medianeira.

[3] Doutora em Desenvolvimento Sustentável. Mestre em Direito. Professora do Curso de Direito da Faculdade Educacional de Medianeira – UDC Medianeira.