ANÁLISE DA CONFIGURAÇÃO DA REINCIDÊNCIA NA CONDENAÇÃO PELO ART. 28 DA LEI 11.343/2006 (PORTE DE DROGA PARA USO PRÓPRIO)
1 de março de 2023ANALYSIS OF THE CONFIGURATION OF RECIDIVISM IN THE CONVICTION BY ART. 28 OF LAW 11.343/2006 (DRUG POSSESSION FOR PERSONAL USE)
Artigo submetido em 24 de fevereiro de 2023
Artigo aprovado em 28 de fevereiro de 2023
Artigo publicado em 01 de março de 2023
Cognitio Juris Ano XIII – Número 45 – Março de 2023 ISSN 2236-3009 |
Autora: Amanda Vieira Abreu [1] |
Resumo: O presente trabalho busca realizar uma breve abordagem acerca da aplicação do instituto da reincidência na prática do crime de porte ou posse de drogas para uso pessoal, tipificado no art. 28 da Lei nº 11.343/2006, abordando os aspectos relacionados às contravenções, que são infrações menos graves. Em recente julgado do Supremo Tribunal Federal, nos autos do RHC: 178512 SP, fixou-se o entendimento de queviola o princípio da proporcionalidade a consideração de condenação anterior pelo delito do art. 28 da Lei nº 11.343/2006 para fins de reincidência.
Palavras-Chave: reincidência; porte de droga para uso pessoal; contravenções; proporcionalidade.
Abstract: The present work seeks to carry out a brief approach about the application of the institute of recidivism in the practice of the crime of possession or possession of drugs for personal use, typified in art. 28 of Law nº 11.343/2006, addressing aspects related to misdemeanors, which are less serious infractions. In a recent judgment of the Federal Supreme Court, in the records of RHC: 178512 SP, the understanding was established that the consideration of previous conviction for the offense of art. 28 of Law No. 11.343/2006 for recidivism purposes.
Keywords: recidivism; possession of drugs for personal use; misdemeanors; proportionality
Inicialmente, cabe pontuar que o conceito de reincidência penal é previsto no art. 63 do Código Penal em conjugação com o art. 7º da Lei de Contravenções Penais. Vejamos:
Art. 63 – Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Art. 7º Verifica-se a reincidência quando o agente pratica uma contravenção depois de passar em julgado a sentença que o tenha condenado, no Brasil ou no estrangeiro, por qualquer crime, ou, no Brasil, por motivo de contravenção.
Assim, com fundamento nos dois dispositivos acima colacionados, é possível elencar três requisitos imprescindíveis para a configuração da reincidência, ordenados cronologicamente: a) um crime, cometido no Brasil ou em outro país; b) condenação definitiva, isto é, com trânsito em julgado, por esse crime; e c) prática de novo crime.
Importa destacar que a sequência de erros necessária para a reincidência, portanto, é um crime seguido de outro; uma contravenção seguida de outra; ou, ainda, um crime seguido de uma contravenção.
Por outro lado, da leitura dos artigos transcritos, infere-se que se a pessoa é condenada por uma contravenção, e, em seguida, cometer um crime, ela não será considerada reincidente no seu sentido técnico. A razão de ser desta diferenciação parte da idéia de que o primeiro erro não foi tão grave e, portanto, não deve sofrer consequências penais mais gravosas.
Isso porque, se o réu for reincidente, sofrerá diversos efeitos negativos no processo penal. O principal deles é que, no momento da dosimetria da pena em relação ao segundo delito, a reincidência será considerada como uma agravante genérica (art. 61, I, do CP), fazendo com que a pena imposta seja maior do que seria devida caso ele fosse primário. In verbis:
Art. 61 – São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I – a reincidência; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Além de preponderar no concurso de circunstâncias agravantes (art. 67, CP), é possível listar outros efeitos da reincidência: impede a concessão da suspensão condicional da pena e a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito ou multa, na hipótese de crime doloso (cf. arts. 44, II ; 60, § 2º e 77, I, CP); aumenta o prazo de cumprimento da pena para obtenção do livramento condicional, se dolosa (art. 83, II); obsta que o regime inicial de cumprimento da pena seja aberto ou semi-aberto, salvo em se tratando de pena detentiva (art. 33, § 2º, b e c); produz revogação obrigatória do sursis na condenação por crime doloso (art. 81, I) e a revogação facultativa, na hipótese de condenação por crime culposo ou por contravenção (art. 81, § 1º); acarreta revogação obrigatória do livramento condicional, sobrevindo condenação a pena privativa de liberdade (art. 86) ou a revogação facultativa daquele benefício, em caso de crime ou contravenção, se não imposta pena privativa de liberdade (art. 87); revoga a reabilitação quando sobrevier condenação a pena que não seja de multa (art. 95); aumenta de um terço o prazo prescricional da pretensão executória (art. 110, caput); interrompe a prescrição (art. 117, VI) e impede o reconhecimento de algumas causas de diminuição de pena (v. g. arts. 155, § 2º – furto privilegiado; 170 – apropriação indébita privilegiada e 171, § 1º – estelionato privilegiado, CP).
A respeito do porte de droga para consumo pessoal, a Lei nº 11.343/2006 prevê o crime de posse/porte de droga para consumo pessoal nos seguintes termos:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Com a previsão dessa punição mais branda para as pessoas que são usuárias de drogas sem autorização ou em desacordo com a determinação legal, houve diversas discussões doutrinárias acerca da natureza jurídica do artigo 28 da Lei 11.343.
Com o advento da Lei de Drogas, Luis Flávio Gomes defendeu que a natureza jurídica da concuta tipificada no art. 28 seria de infração penal sui generis, pois não poderia ser considerado formalmente um crime, já que não prevê pena privativa de liberdade nem multa.
Sustentou o doutrinador que a justificativa para tal conclusão seria a de que segundo a lei de introdução ao Código Penal (DL 3.914/1941), artigo 1º, não se poderia classificar o artigo 28 da nova lei de drogas nem como crime e nem como contravenção. Não podendo ser crime pois não prevê pena de reclusão ou detenção e não podendo ser classificado como contravenção pois não prevê multa isolada e nem prisão simples. Veja-se:
Art. 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.
Leciona Gomes (2013, p. 122):
À luz do princípio da ofensividade, não existe crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado, ou seja, admite-se a intervenção do Direito Penal apenas quando houver uma lesão concreta ou real [não se admite a punição por crimes de perigo abstrato], transcendental [afetação contra terceiros], grave ou significativa [fatos irrelevantes devem ser excluídos do Direito Penal] e intolerável. Logo, por força da ausência de transcendentalidade da ofensa, não haverá crime diante da ofensa a bens jurídicos pessoais [v.g., tentativa de suicídio, autolesão, etc.]. Por isso, como o porte de drogas para consumo pessoal não ultrapassa o âmbito privado do agente, não se pode admitir a incriminação penal de tal conduta.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal não acolheu a tese da descriminalização. A Suprema Corte, no julgamento de Questão de Ordem no Recurso Extraordinário 430.105/RJ, entendeu que o art. 28 da Lei de Drogas, mesmo sem prever pena privativa de liberdade, continua definindo conduta criminosa. Assim, não houve uma descriminalização da conduta (abolitio criminis), mas sim uma despenalização. A despenalização ocorre quando o legislador prevê sanções alternativas para o crime que não sejam penas privativas de liberdade. Desse modo, a conduta de portar e consumir drogas continua tipificada e considerada ilícita, não houve uma legalização do uso de drogas.
Segue a ementa do julgado no STF:
I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 – nova lei de drogas): natureza jurídica de crime. 1. O art. 1º da LICP – que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção – não obsta a que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime – como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 – pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora ( CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo “rigor técnico”, que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado “Dos Crimes e das Penas”, só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). 3. Ao uso da expressão “reincidência”, também não se pode emprestar um sentido “popular”, especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de “despenalização”, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107). II. Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva. III. Recurso extraordinário julgado prejudicado. (STF – RE-QO: 430105 RJ, Relator: SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 13/02/2007, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-004 DIVULG 26-04-2007 PUBLIC 27-04-2007 DJ 27-04-2007 PP-00069 EMENT VOL-02273-04 PP-00729 RB v. 19, n. 523, 2007, p. 17-21 RT v. 96, n. 863, 2007, p. 516-523)
Por oportuno, vale transcrever trecho do voto do Ministro Relator Sepúlveda Pertence:
“…a conduta antes descrita no art. 16 da L. 6.368/76 continua sendo crime sob a lei nova. Afasto, inicialmente, o fundamento de que o art. 1º do DL 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a L. 11.343/06 criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou detenção. A norma contida no art. 1º do LICP – que, por cuidar de matéria penal, foi recebida pela Constituição de 1988 como de legislação ordinária – se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção. Nada impede, contudo, que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime – como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 – pena diversa da “privação ou restrição da liberdade”, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de serem adotadas pela “lei” (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII).
IV De outro lado, seria presumir o excepcional se a interpretação da L. 11.343/06 partisse de um pressuposto desapreço do legislador pelo “rigor técnico”, que o teria levado – inadvertidamente – a incluir as infrações relativas ao usuário em um capítulo denominado “Dos Crimes e das Penas” (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). Leio, no ponto, o trecho do relatório apresentado pelo Deputado Paulo Pimenta, Relator do Projeto na Câmara dos Deputados (PL 7.134/02 – oriundo do Senado), verbis (www.camara.gov.br): “(…) Reservamos o Título III para tratar exclusivamente das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas. Nele incluímos toda a matéria referente a usuários e dependentes, optando, inclusive, por trazer para este título o crime do usuário, separando-o dos demais delitos previstos na lei, os quais se referem à produção não autorizada e ao tráfico de drogas – Título IV. (…) Com relação ao crime de uso de drogas, a grande virtude da proposta é a eliminação da possibilidade de prisão para o usuário e dependente. Conforme vem sendo cientificamente apontado, a prisão dos usuários e dependentes não traz benefícios à sociedade, pois, por um lado, os impede de receber a atenção necessária, inclusive com tratamento eficaz e, por outro, faz com que passem a conviver com agentes de crimes muito mais graves. Ressalvamos que não estamos, de forma alguma, descriminalizando a conduta do usuário – o Brasil é, inclusive, signatário de convenções internacionais que proíbem a eliminação desse delito. O que fazemos é apenas modificar os tipos de penas a serem aplicadas ao usuário, excluindo a privação da liberdade, como pena principal (…).” Não se trata de tomar a referida passagem como reveladora das reais intenções do legislador, até porque, mesmo que fosse possível desvendá-las – advertia com precisão o saudoso Ministro Carlos Maximiliano –, não seriam elas aptas a vincular o sentido e alcance da norma posta. Cuida-se, apenas, de não tomar como premissa a existência de mero equívoco na colocação das condutas num capítulo chamado “Dos Crimes e das Penas” e, a partir daí, analisar se, na Lei, tal como posta, outros elementos reforçam a tese de que o fato continua sendo crime. De minha parte, estou convencido de que, na verdade, o que ocorreu foi uma despenalização, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. O uso, por exemplo, da expressão “reincidência”, não parece ter um sentido “popular”, especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a incidência da regra geral do C.Penal (C.Penal, art. 12: “As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”). Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata de pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do 107 e seguintes do C.Penal (L. 11.343/06, art. 30). Assim, malgrado os termos da Lei não sejam inequívocos – o que justifica a polêmica instaurada desde a sua edição –, não vejo como reconhecer que os fatos antes disciplinados no art. 16 da L. 6.368/76 deixaram de ser crimes. O que houve, repita-se, foi uma despenalização, cujo traço marcante foi o rompimento – antes existente apenas com relação às pessoas jurídicas e, ainda assim, por uma impossibilidade material de execução (CF/88, art. 225, § 3º) e L. 9.605/98, arts. 3º 21/24) – da tradição da imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal.” (RE 430.105/RJ Rel. Min. Sepúlveda Pertence)
Nota-se que na decisão da Questão de Ordem do Recurso Extraordinário 430.635/RJ, o STF refutou completamente a tese de Luiz Flávio Gomes, que considerava ter ocorrido a descriminalização da conduta estipulada no art. 28 da atual Lei Antidrogas.
Todavia, mesmo tendo o STF se posicionado no sentido de que o porte/posse de drogas para consumo pessoal continua sendo crime, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus RHC 178512 AgR/SP em 22/3/2022, a Corte entendeu que a condenação, com trânsito em julgado, pelo delito de porte de drogas para consumo próprio (art. 28 da Lei nº 11.343/2006) não gera reincidência.
Segundo o citado precedente jurisprudencial, viola o princípio da proporcionalidade a consideração de condenação anterior pelo delito do art. 28 da Lei nº 11.343/2006, “porte de droga para consumo pessoal”, para fins de reincidência.
Como já explanado em linhas anteriores, considerando que o art. 63 do Código Penal é expresso ao se referir à prática de novo crime, isto é, o agente tem que ter sido condenado por crime anterior, a condenação anterior por contravenção penal não gera reincidência. Assim, um indivíduo condenado por contravenção penal, se praticar em seguida um crime, quando for julgado, não se aplicará a ele a agravante da reincidência.
E se a contravenção é punida com prisão simples e/ou multa (art. 5º, do DL 3688/41) e o art. 28 da Lei de Drogas é punido apenas com “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”, sendo que, em nenhuma hipótese, a prática do crime do art. 28 da Lei de Drogas poderá gerar condenação que leve à prisão, é possível concluir que as penas previstas para as contravenções são mais gravosas do que as sanções cominadas para o art. 28 da Lei de Drogas.
Nessa contextura, se as sanções do art. 28 da Lei de Drogas são menos graves que as das contravenções, não se mostra proporcional e razoável considerar que o art. 28 da Lei de Drogas gera reincidência, enquanto que a contravenção penal não tem esse efeito negativo.
Essa foi a linha de argumentação adotada pelo Supremo Tribunal Federal:
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. DOSIMETRIA. REINCIDÊNCIA ASSENTADA EM ANTERIOR REGISTRO DE INCIDÊNCIA AO ART. 28 DA LEI 11.343/2006. ILEGALIDADE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO APTA A JUSTIFICAR A MAJORAÇÃO DA REPRIMENDA. DESPROPORCIONALIDADE. ORDEM CONCEDIDA. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. MANUTENÇÃO DO DECISIUM. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A inexistência de argumentação apta a infirmar o julgamento monocrático conduz à manutenção da decisão agravada. 2. Conquanto não ultimado o julgamento do RE 635.659 (Relator Ministro Gilmar Mendes), que discute a constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006, revela-se desproporcional considerar condenação anterior pela prática de porte de droga para consumo próprio como causa hábil a configurar reincidência e afastar a incidência do redutor do art. 33, § 4º, da Lei de Drogas. 3. Não se afigura razoável permitir que uma conduta que possui vedação legal quanto à imposição de prisão, a fim de evitar a estigmatização do usuário de drogas, possa dar azo à posterior configuração de reincidência 4. Além de aparente contrariedade com a própria teleologia da Lei 11.343/2006, no que diz respeito à forma de tratamento que deve ser conferida ao usuário de drogas, deve-se ponderar ainda que a reincidência depende, segundo consolidada jurisprudência desta Corte, da constatação de que houve condenação criminal com trânsito em julgado, o que, em grande parte dos casos de incidência do art. 28 da Lei 11.343/2006 não ocorre. 5. Cumpre registrar que, nos termos do art. 63 do Código Penal, verifica-se a reincidência “quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior” (grifo nosso). Portanto, o conceito de reincidência reclama a condenação pela prática de um segundo crime após anterior com trânsito em julgado – e não contravenção penal, por exemplo. 6. O art. 28 da Lei 11.343/2006, por não cominar pena de reclusão ou detenção, não configura crime nos termos da definição contida na Lei de Introdução ao Código Penal, e, assim, não tem a condão de gerar reincidência, instituto disciplinado no Código Penal. 7. Agravo regimental desprovido. (STF – RHC: 178512 SP 0103280-66.2019.3.00.0000, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 22/03/2022, Segunda Turma, Data de Publicação: 20/06/2022)
Segue trecho do Voto do Ministro Relator Edson Fachin:
No julgamento da Questão de Ordem no RE 430.105/RJ (Relator Sepúlveda Pertence, DJe 27.04.2007), a Primeira Turma do STF firmou a orientação de que a conduta prevista no 28 da Lei 11.343/2006 continua sendo crime, apesar de ter havido a despenalização do tipo com o advento da referida lei.
A constitucionalidade do referido dispositivo está sendo questionada nos autos do RE 635.659 (Relator Gilmar Mendes) na sistemática da repercussão geral. Em 09.12.2011, o Tribunal reconheceu a repercussão geral do tema. Na sessão de 20.08.2015, o Relator votou pelo provimento do recurso extraordinário, declarando a inconstitucionalidade do referido dispositivo. Em 10.09.2015, manifestei-me pelo provimento parcial do recurso e o Ministro Roberto Barroso acompanhou integralmente o Relator. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do Ministro Teori Zavascki. Atualmente, aguarda-se oportuna inclusão em pauta.
A despeito de não haver posicionamento definitivo acerca da matéria no âmbito desta Suprema Corte, ao meu entender, revela-se desproporcional considerar condenação anterior pela prática de porte de droga para consumo próprio para configurar reincidência e para afastar a incidência do redutor do art. 33, § 4º, da Lei de Drogas. Isso porque não há cominação à pena privativa de liberdade.
art. 28 da Lei de Drogas são: advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. O descumprimento de quaisquer dessas medidas tampouco implica restrição à liberdade do apenado. Nesse caso, nos termos do art. 28, § 6º, da Lei 11.343/06, a consequência poderá ser, sucessivamente, admoestação verbal ou multa.
Nesse contexto, se o legislador excluiu a cominação de pena privativa de liberdade para o tipo art. 28 da Lei de Drogas, não parece razoável que condenação anterior repercuta negativamente na dosimetria.
Destaco que, por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1.672.654/SP, de relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, a Sexta Turma do STJ, à unanimidade, passou a adotar o entendimento de que “a consideração de condenação anterior com fundamento no artigo 28 da Lei nº 11.343/06 para fins de caracterização da reincidência viola o princípio constitucional da proporcionalidade.”
Colho do bem lançado voto da Ministra-Relatora (grifei):n “(…) revendo meu posicionamento, tenho que a consideração de condenação anterior com fundamento no artigo 28 da Lei nº 11.343/06 para fins de caracterização da reincidência viola o princípio constitucional da proporcionalidade.
É que, como é cediço, a condenação anterior por contravenção penal não gera reincidência pois o artigo 63 do Código Penal é expresso ao se referir à pratica de novo crime ao dispor: Art. 63 – Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.
E, se a contravenção penal, punível com pena de prisão simples, não configura reincidência, resta inequivocamente desproporcional a consideração, para fins de reincidência, da posse de droga para consumo próprio, que conquanto seja crime, é punida apenas com “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”, mormente se se considerar que em casos tais não há qualquer possibilidade de conversão em pena privativa de liberdade pelo descumprimento, como no caso das penas substitutivas .
Há de se considerar, ainda, que a própria constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que está cercado de acirrados debates acerca da legitimidade da tutela do direito penal em contraposição às garantias constitucionais da intimidade e da vida privada, está em discussão perante o Supremo Tribunal Federal, que admitiu Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 635.659 para decidir sobre a tipicidade do porte de droga para consumo pessoal, ocasião em que o ilustre relator, Ministro Gilmar Mendes, votando pela descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, consignou que “Assim, tenho que a criminalização da posse de drogas para uso pessoal é inconstitucional, por atingir, em grau máximo e desnecessariamente, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas várias manifestações, de forma, portanto, claramente desproporcional.”
Assim, em face dos questionamentos acerca da proporcionalidade do direito penal para o controle do consumo de drogas em prejuízo de outras medidas de natureza extrapenal relacionadas às políticas de redução de danos, eventualmente até mais severas para a contenção do consumo do que as medidas previstas atualmente, que reconhecidamente não têm apresentado qualquer resultado prático em vista do crescente aumento do tráfico de drogas, tenho que o prévio apenamento por porte de droga para consumo próprio, nos termos do artigo 28 da Lei de Drogas, não deve constituir causa geradora de reincidência.”
Observo, ainda, a existência de precedentes monocráticos desta Suprema Corte nessa linha: HC 179.523, Relator Alexandre de Moraes, DJe 19.12.2019; HC 170.906, Relator Ricardo Lewandowski, DJe 31.05.2019; HC 173725, Relator Ricardo Lewandowski, DJe 22.08.2019 e HC 148353 TA, Relatora Rosa Weber, DJe 14.10.2019.
Ante o exposto, considerando que a condenação pelo art. 28 da Lei 11.343/06 foi a única motivação para o agravamento na segunda fase da dosimetria, conforme consta do acórdão do Tribunal local, afasto a reincidência.
No âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já havia julgados nesse sentido:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. CONDENAÇÃO ANTERIOR PELO DELITO DO ARTIGO 28 DA LEI DE DROGAS. CARACTERIZAÇÃO DA REINCIDÊNCIA. DESPROPORCIONALIDADE. 1. À luz do posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal na questão de ordem no RE nº 430.105/RJ, julgado em 13/02/2007, de que o porte de droga para consumo próprio, previsto no artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, foi apenas despenalizado pela nova Lei de Drogas, mas não descriminalizado, esta Corte Superior vem decidindo que a condenação anterior pelo crime de porte de droga para uso próprio configura reincidência, o que impõe a aplicação da agravante genérica do artigo 61, inciso I, do Código Penal e o afastamento da aplicação da causa especial de diminuição de pena do parágrafo 4º do artigo 33 da Lei nº 11.343/06. 2. Todavia, se a contravenção penal, punível com pena de prisão simples, não configura reincidência, resta inequivocamente desproporcional a consideração, para fins de reincidência, da posse de droga para consumo próprio, que conquanto seja crime, é punida apenas com “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”, mormente se se considerar que em casos tais não há qualquer possibilidade de conversão em pena privativa de liberdade pelo descumprimento, como no caso das penas substitutivas. 3. Há de se considerar, ainda, que a própria constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, que está cercado de acirrados debates acerca da legitimidade da tutela do direito penal em contraposição às garantias constitucionais da intimidade e da vida privada, está em discussão perante o Supremo Tribunal Federal, que admitiu Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 635.659 para decidir sobre a tipicidade do porte de droga para consumo pessoal. 4. E, em face dos questionamentos acerca da proporcionalidade do direito penal para o controle do consumo de drogas em prejuízo de outras medidas de natureza extrapenal relacionadas às políticas de redução de danos, eventualmente até mais severas para a contenção do consumo do que aquelas previstas atualmente, o prévio apenamento por porte de droga para consumo próprio, nos termos do artigo 28 da Lei de Drogas, não deve constituir causa geradora de reincidência. 5. Recurso improvido. (STJ – REsp: 1672654 SP 2017/0122665-7, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 21/08/2018, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/08/2018)
A respeito da violação do princípio constitucional da proporcionalidade, Masson pontua que (2019, p. 42-43):
É desproporcional o reconhecimento da reincidência no delito de tráfico de drogas que tenha por fundamento a existência de condenação com trânsito em julgado por crime anterior de posse de droga para uso próprio. A questão em comento consiste em verificar se a condenação com trânsito em julgado por crime anterior de posse de droga para uso próprio gera reincidência para o crime de tráfico de drogas. Este Superior Tribunal de Justiça vem decidindo que a condenação anterior pelo crime de porte de droga para uso próprio (conduta que caracteriza ilícito penal) configura reincidência, o que impõe a aplicação da agravante genérica do artigo 61, inciso I, do Código Penal e o afastamento da aplicação da causa especial de diminuição de pena do parágrafo 4º do artigo 33 da Lei n. 11.343/2006, à falta de preenchimento do requisito legal relativo à primariedade. Ocorre, contudo, que a consideração de condenação anterior com fundamento no artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 para fins de caracterização da reincidência viola o princípio constitucional da proporcionalidade. É que, como é cediço, a condenação anterior por contravenção penal não gera reincidência pois o artigo 63 do Código Penal é expresso ao se referir à pratica de novo crime. Assim, se a contravenção penal, punível com pena de prisão simples, não 1.13.1. configura reincidência, resta inequivocamente desproporcional a consideração, para fins de reincidência, da posse de droga para consumo próprio, que conquanto seja crime, é punida apenas com ‘advertência sobre os efeitos das drogas’, ‘prestação de serviços à comunidade’ e ‘medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo’, mormente se se considerar que em casos tais não há qualquer possibilidade de conversão em pena privativa de liberdade pelo descumprimento, como no caso das penas substitutivas. Há de se considerar, ainda, que a própria constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas está em discussão perante o Supremo Tribunal Federal, que admitiu Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n. 635.659 para decidir sobre a tipicidade do porte de droga para consumo pessoal. Assim, em face dos questionamentos acerca da proporcionalidade do direito penal para o controle do consumo de drogas em prejuízo de outras medidas de natureza extrapenal relacionadas às políticas de redução de danos, eventualmente até mais severas para a contenção do consumo do que as medidas previstas atualmente, que reconhecidamente não têm apresentado qualquer resultado prático em vista do crescente aumento do tráfico de drogas, tenho que o prévio apenamento por porte de droga para consumo próprio, nos termos do artigo 28 da Lei de Drogas, não deve constituir causa geradora de reincidência.
Portanto, diante de todas as considerações feitas, certo é que não se afigura razoável permitir que uma conduta que possui vedação legal quanto à imposição de prisão, a fim de evitar a estigmatização do usuário de drogas, possa dar azo à posterior configuração de reincidência.
REFERÊNCIAS
BARREIROS, Yvana Savedra de Andrade . A reincidência no sistema jurídico brasileiro Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/10763/a-reincidencia-no-sistema-juridico-brasileiro>. Acesso em: 22 jan. 2022.
GOMES, Luiz Flávio. Lei de drogas comentada. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
GRECO FILHO, Vicente; RASSI, João Daniel. Lei de Drogas anotada: Lei n. 11.343/2006. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado – Parte Geral. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. v. 1.
MASSON, Cleber. Lei de Drogas: aspectos penais e processuais. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019. E-Book. Acesso restrito via Minha Biblioteca
RODAS, Ségio. Posse de droga para uso pessoal não conta para reincidência, decide STF. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2022-mar-23/posse-droga-uso-pessoal-nao-conta-reincidencia >. Acesso em: 22 jan. 2022.
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Reincidência: requisitos e constitucionalidade. Disponível em: < https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/a-doutrina-na-pratica/agravantes-e-atenuantes-genericas-1/reincidencia/requisitos-e-constitucionalidade >. Acesso em: 22 jan. 2022.
[1] Graduada pelo Curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe. Pós-graduada pelo Curso de Direito Penal da Faculdade Signorelli. Atualmente Servidora Pública Federal no Tribunal Regional Federal da 5ª Região.