BREVE ABORDAGEM ACERCA DOS CRIMES DE INJÚRIA RACIAL E RACISMO

BREVE ABORDAGEM ACERCA DOS CRIMES DE INJÚRIA RACIAL E RACISMO

1 de março de 2023 Off Por Cognitio Juris

BRIEF APPROACH TO CRIMES OF RACIAL INJURY AND RACISM

Artigo submetido em 24 de fevereiro de 2023
Artigo aprovado em 28 de fevereiro de 2023
Artigo publicado em 01 de março de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 45 – Março de 2023
ISSN 2236-3009

Autora:
Amanda Vieira Abreu [1]

Resumo: O presente artigo tem como escopo trazer breves considerações a respeito dos crimes de injúria racial e racismo, especificamente sobre a recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que equiparou o crime de injúria racial ao de racismo, abordando as diferenças conceituais apontados pela doutrina pátria entre os dois delitos e a imprescritibilidade do crime de injúria racial, como forma de conferir efetividade ao mandado constitucional de combate ao racismo estrutural no Brasil. Por fim, analisa a recentíssima alteração legislativa promovida pela Lei nº 14.532/2023, publicada em 11 de janeiro de 2023, em que o crime de injúria racial foi inserido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989).

Palavras-Chave: crimes injúria racial; racismo; equiparação; imprescritibilidade. 

Abstract: The purpose of this article is to bring brief considerations about crimes of racial injury and racism, specifically on the recent decision issued by the Federal Supreme Court that equated the crime of racial injury to that of racism, addressing the conceptual differences pointed out by the homeland doctrine between the two offenses and the imprescriptibility of the crime of racial injury, as a way of giving effect to the constitutional mandate to combat structural racism in Brazil. Finally, it analyzes the very recent legislative amendment promoted by Law nº 14.532/2023, published on January 11, 2023, in which the crime of racial injury was inserted in the Racism Law (Law 7.716/1989).

Keywords: crimes racial slurs; racism; equivalence; imprescriptibility.

Primordialmente, importa registrar que antes da edição da Lei nº 14.532/2023 os crimes de injúria racial e de racismo eram tratados como delitos distintos pela doutrina. Enquanto que o crime de injúria racial encontrava-se inserido no capítulo dos crimes contra a honra, previsto no art. art. 140, § 3º do Código Penal, o crime de racismo tem previsão art. 20 da Lei nº 7.716/89. Vejamos:

Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

(…)

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:

Pena – reclusão de um a três anos e multa.

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

Anteriormente à alteração promovida pela recente legislação, a doutrina, tradicionalmente, apontava as principais diferenças entre as duas infrações, a fim de evitar a confusão entre eles.

 No crime de injúria racial, o agente ofende, insulta, ou seja, xinga alguém utilizando elementos relacionados com a sua raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

Assim, a ofensa é praticada contra uma pessoa determinada ou um grupo determinado de indivíduos, como por exemplo cinco amigos negros, árabes etc. Neste tipo penal, a intenção do agente é atacar a honra subjetiva de uma pessoa ou de um grupo determinado de pessoas, utilizando os elementos já mencionados.

Tratava-se de crime de ação penal pública condicionada à representação da vítima, nos termos do disposto no art. 145, parágrafo único, do Código Penal.

Já no crime de racismo, o agente pratica algum ato discriminatório que faz com que a vítima fique privada de algum direito em virtude de sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, isto é, a intenção é segregar a pessoa ou um grupo de pessoas por conta de um dos elementos já mencionados.

Também pode ser caracterizado mediante uma ofensa verbal (sem um ato de segregação), desde que a ofensa seja dirigida a todos os integrantes de certa raça, cor, etnia, religião etc. 

O agente visa a atingir um determinado grupo ou coletividade e, geralmente, refere-se a crimes mais amplos, sendo o sujeito passivo indeterminado, como por exemplo quando se impede a entrada de negros em uma festa.

No crime de racismo o bem jurídico tutelado é a igualdade e se trata de crime de ação penal pública incondicionada.

Quanto à imprescritibilidade do crime de racismo nunca houve celeuma, uma vez que o texto da Constituição Federal é expresso nesse sentido:

Art. 5º (…)

XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

Contudo, quanto ao crime de injúria existia divergências na doutrina e jurisprudência se também seria imprescritível.

Em julgados recentes, o Superior Tribunal de Justiça vinha fixando o entendimento de que, com o advento da Lei n. 9.459 /97, que introduziu a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão. Segue precedentes nesse sentido:

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INJÚRIA RACIAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. EXISTÊNCIA NOS AUTOS DE CERTIDÃO EMITIDA POR SERVENTUÁRIO DA JUSTIÇA ABRINDO PRAZO PARA A RESPOSTA AO REFERIDO RECURSO. TEMPESTIVIDADE DO AGRAVO AFERIDA EM CONFORMIDADE COM A SÚMULA N.448 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF. DECISÃO EXTRA PETITA. INEXISTÊNCIA. VIOLAÇÃO DE ARTIGOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INVIABILIDADE EM RECURSO ESPECIAL. IMPRESCRITIBILIDADE DO DELITO DE INJÚRIA RACIAL. DECADÊNCIA. INEXISTÊNCIA, IN CASU. RECURSO DESPROVIDO. 1. Não há que se falar em cerceamento de defesa, porquanto consta dos autos documento assinado por serventuário da justiça certificando que, em 22.1.2015, as partes foram intimadas para responderem, no prazo de 5 (cinco) dias, o recurso de agravo em recurso especial. 2. O agravo é tempestivo, pois consoante a Súmula n.448 do Supremo Tribunal Federal: “O prazo para o assistente recorrer, supletivamente, começa a correr imediatamente após o transcurso do prazo do Ministério Público.” In casu, sequer consta nos autos a informação de que o Ministério Público tenha sido intimado pessoalmente da decisão que inadmitiu o recurso especial. 3. O recurso da parte adversa traz tópico específico acerca da prescrição, não havendo que se falar em decisão extra petita, no ponto. 4. Não cabe, na via do recurso especial, a análise de suposta violação de artigos da Constituição Federal. De acordo com o magistério de Guilherme de Souza Nucci, com o advento da Lei n. 9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão. 5. A injúria racial é crime instantâneo, que se consuma no momento em que a vítima toma conhecimento do teor da ofensa. No presente caso a matéria ofensivo foi postada e permaneceu disponível na internet por largo tempo, não sendo possível descartar a veracidade do que alegou a vítima, vale dizer, que dela se inteirou tempos após a postagem (elidindo-se a decadência). O ônus de provar o contrário é do ofensor. 6. A dúvida sobre o termo inicial da contagem do prazo decadencial, na hipótese, deve ser resolvida em favor do processo. Agravo Regimental desprovido. (STJ – AgRg no AREsp: 686965 DF 2015/0082290-3, Relator: Ministro ERICSON MARANHO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), Data de Julgamento: 18/08/2015, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 31/08/2015)

PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TEMPESTIVIDADE COMPROVADA. AGRAVO CONHECIDO. INJÚRIA RACIAL. CRIME IMPRESCRITÍVEL. OFENSA A DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA. MATÉRIA ANALISADA, EM CASO ANÁLOGO, PELO STF. AGRAVO REGIMENTAL PARCIALMENTE PROVIDO E INDEFERIDO O PEDIDO DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. 1. Comprovada a republicação da decisão de inadmissão do recurso especial, é reconsiderada a decisão que julgou intempestivo o agravo. 2. Nos termos da orientação jurisprudencial desta Corte, com o advento da Lei n. 9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão ( AgRg no AREsp 686.965/DF, Rel. Ministro ERICSON MARANHO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 18/08/2015, DJe 31/08/2015). 3. A ofensa a dispositivo constitucional não pode ser examinada em recurso especial, uma vez que compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal o exame de matéria constitucional, o qual já se manifestou, em caso análogo, refutando a violação do princípio da proporcionalidade da pena cominada ao delito de injúria racial. 4. Agravo regimental parcialmente provido para conhecer do agravo em recurso especial mas negar-lhe provimento e indeferir o pedido de extinção da punibilidade. (STJ – AgRg no AREsp: 734236 DF 2015/0153975-1, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 27/02/2018, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/03/2018)

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. INJÚRIA RACIAL. ART. 140, § 3º, DO CP. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 107, IV, 109, V, E 117, I, TODOS DO CP. PLEITO DE RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO. INADMISSIBILIDADE. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DAS CORTES SUPERIORES. 1. Nos termos da orientação jurisprudencial desta Corte, com o advento da Lei n. 9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão (AgRg no AREsp n. 686.965/DF, Ministro Ericson Maranho (Desembargador Convocado do TJ/SP), Sexta Turma, julgado em 18/8/2015, DJe 31/8/2015) – (AgRg no AREsp n. 734.236/DF, Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 8/3/2018). 2. Agravo regimental improvido. (STJ – AgRg no REsp: 1849696 SP 2019/0348392-4, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 16/06/2020, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/06/2020)

Nesse trilhar, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), no bojo do HC 154248/DF, julgado em 28/10/2021, por oito votos a um, ficando vencido o ministro Nunes Marques, reafirmou a posição do Superior Tribunal de Justiça e decidiu que a injúria racial é uma modalidade do crime de racismo e, portanto, não pode estar sujeito aos prazos decadenciais que incidem sobre os crimes contra honra, subordinando-se ao inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal.

O Ministro Relator Edson Fachin discorreu acerca das diversas facetas do racismo no Brasil, valendo a pena transcrever, porque oportuno, o seguinte trecho do seu voto:

O conceito de racismo não se confunde com o de preconceito, nem com o de discriminação (embora estejam relacionados). Aquele consiste em processo sistemático de discriminação que elege a raça como critério distintivo para estabelecer desvantagens valorativas e materiais. O preconceito racial é juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertencem a um determinado grupo racializado, e que pode ou não resultar em práticas discriminatórias (ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Femininos plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2018. p. 25).

A discriminação racial, por sua vez, é a atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados. Portanto, a discriminação tem como requisito fundamental o poder, ou seja, a possibilidade de efetivo uso da força, sem o qual não é possível atribuir vantagens ou desvantagens por conta da raça (ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Femininos plurais. Belo Horizonte: Letramento, 2018. p. 25 ).

A já citada Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial define discriminação racial como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública”.

Acerca do ponto central da controvérsia dos autos, o Ministro Relator destacou que:

Nesta esteira, eis a questão central do presente habeas corpus: o crime de injúria racial é ou não uma forma de discriminação racial que se materializa de forma sistemática e assim configura o racismo e, como consequência, sujeita-se ou não à extinção da punibilidade pela prescrição?

A resposta é inequívoca, porquanto a impetração não merece prosperar.

Quando o sujeito ativo dirige ofensas ou insultos à vítima, ofendendo-lhe, conforme a lição de Guilherme de Souza Nucci ( Código Penal Comentado, 13. ed., Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2013, p. 723), deve, para que tal conduta se amolde à descrição típica do art. 140 do CP, macular-lhe a honra subjetiva, “arranhando o conceito que a vítima faz de si mesma”. Ao examinar os objetos material e jurídico do crime, o autor afirma que eles são coincidentes: ambos consistem na “honra e [na] imagem da pessoa, que sofrem com a conduta criminosa”.

No § 3º do art. 140 do CP, introduzido pela Lei 9459/1997, prevê-se a forma qualificada do delito, punida com reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa, para as situações em que à conduta ofensiva ou insultuosa se agreguem elementos atinentes, entre outros, à raça, cor, etnia, religião ou origem.

Desse modo, a prática do crime de injúria racial traz em seu bojo o emprego de elementos associados ao que se define como raça, cor, etnia, religião ou origem para se ofender ou insultar alguém. Em outras palavras, a conduta do agente pressupõe que a alusão a determinadas à honra ou à imagem alheia, à violação de direitos que, situados, em uma perspectiva civilista, no âmbito dos direitos da personalidade, decorrem diretamente do valor fundante de toda a ordem constitucional: a dignidade da pessoa humana.

A injúria racial consuma os objetivos concretos da circulação de estereótipos e estigmas raciais ao alcançar destinatário específico, o indivíduo racializado, o que não seria possível sem seu pertencimento a um grupo social também demarcado pela raça. Aqui se afasta o argumento de que o racismo se dirige contra grupo social enquanto que a injúria afeta o indivíduo singularmente. A distinção é uma operação impossível, apenas se concebe um sujeito como vítima da injúria racial se ele se amoldar aos estereótipos e estigmas forjados contra o grupo ao qual pertence.

Ademais, já assentei aqui que o ponto de partida para os deslinde do objeto do presente habeas corpus é a compreensão acerca do significado de discriminação racial e da sua forma de materialização.

Inegável que a injúria racial impõe, baseado na raça, tratamento diferenciado quanto ao igual respeito à dignidade dos indivíduos. O reconhecimento como conduta criminosa nada mais significa que a sua prática tornaria a discriminação sistemática, portanto, uma forma de realizar o racismo.

Tal agir significa, portanto, a exteriorização de uma concepção odiosa e antagônica a um dos mais fundamentais compromissos civilizatórios assumidos em diversos níveis normativos e institucionais por este país: a de que é possível subjugar, diminuir, menosprezar alguém em razão de seu fenótipo, de sua descendência, de sua etnia. Trata-se de componente indissociável da conduta criminosa em exame, o que permite enquadrá-la tanto no conceito de discriminação racial previsto no diploma internacional quanto na definição de racismo já empregada pelo Supremo Tribunal Federal no voto condutor do julgamento do HC 82.424.

A atribuição de valor negativo ao indivíduo, em razão de sua raça, cria as condições ideológicas e culturais para a instituição e manutenção da subordinação, tão necessária para o bloqueio de acessos que edificam o racismo estrutural. Também ampliam o fardo desse manifesto atraso civilizatório e tornam ainda mais difícil a já hercúlea tarefa de cicatrizar as feridas abertas pela escravidão para que se construa um país de fato à altura do projeto constitucional nesse aspecto.

Mostra-se insubsistente, desse modo, a alegação de que há uma distinção ontológica entre as condutas previstas na Lei 7.716/1989 e aquela constante do art. 140, § 3º, do CP. Em ambos os casos, há o emprego de elementos discriminatórios baseados naquilo que sóciopoliticamente constitui raça (não genético ou biologicamente), para a violação, o ataque, a supressão de direitos fundamentais do ofendido. Sendo assim, excluir o crime de injúria racial do âmbito do mandado constitucional de criminalização por meras considerações formalistas desprovidas de substância, por uma leitura geográfica apartada da busca da compreensão do sentido e do alcance do mandado constitucional de criminalização é restringir-lhe indevidamente a aplicabilidade, negandolhe vigência.

O ministro Alexandre de Moraes também destacou que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (artigo 3º, IV, da Constituição). Além disso, lembrou que o país deve pautar suas relações internacionais pelo “repúdio ao terrorismo e ao racismo” (artigo 4º, VIII, da Constituição).

Consoante o citado Ministro, a Constituição considera inafiançável e imprescritível a prática do racismo, que se refere não apenas a um tipo penal nomeado “racismo”, valendo também para abarcar delitos como a injúria racial, devendo se pautar em uma interpretação que permite uma efetivação plena do combate ao racismo no Brasil. In verbis:

Entendo que devemos dar aqui a interpretação que venha a permitir a efetivação plena do combate ao racismo previsto pela Constituição, porque somente com essa interpretação plena, que permita a efetivação do combate ao racismo, nós poderemos produzir efetivos e inúmeros resultados positivos para extirpar essa prática secular no Brasil, promovendo – e aqui vem a ideia de reparação, de redistribuição, de reconhecimento – uma espécie de compensação pelo tratamento aviltante historicamente aplicado à população negra no Brasil – a ideia de reparação -, viabilizando, dessa forma, um acesso diferenciado à responsabilização penal daqueles que tradicionalmente vêm desrespeitando e discriminando os negros – a ideia de redistribuição. E somente com isso nós poderemos atenuar, por meio dessas condenações penais – e aqui sempre o sentido de retribuição, mas o sentido de prevenção também -, esse sentimento de inferiorização que as pessoas racistas querem impor às suas vítimas.

Concluiu seu voto nos seguintes termos: “Em conclusão, negar ao crime de injúria qualificada a imprescritibilidade equivaleria a diminuir a máxima efetividade das normas constitucionais, às quais deve ser atribuído o sentido de maior eficiência possível, conforme as regras hermenêuticas de interpretação constitucional. Assim, para garantir a supremacia incondicional do texto constitucional em relação a todo o ordenamento jurídico e sua força normativa inquestionável, deve o art. 140, § 3º, do Código Penal ser interpretado no sentido de ser imprescritível a punibilidade da conduta nele prevista, por força do art. 5º, XLII, da CF.”

O posicionamento foi seguido pelos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux.

No mesmo sentido, o Ministro Luís Roberto Barroso ressaltou os efeitos sociais do racismo e pontuou que, ainda que com atraso, o país está reconhecendo a existência do racismo estrutural, salientando que não são apenas as ofensas, pois muitas vezes a linguagem naturalizada embute um preconceito.

Assim, afirmou que: “Estamos todos, no Brasil, precisando passar por um processo de reeducação nessa matéria. Quando digo todos é para a gente também ter autopercepção de quando, eventualmente, reproduzimos comportamentos indesejáveis. De modo que penso que a condescendência de considerar aqui uma prescrição reduzida e impedir a possibilidade de repreensão adequada seria uma má solução. Ainda que se admitisse, pela literalidade dos textos, a possibilidade de mais de uma interpretação razoável, penso que a Constituição impõe a interpretação que ajuda no enfrentamento ao racismo estrutural brasileiro.”

Também para a ministra Rosa Weber, as ofensas decorrentes da raça, da cor, da religião, da etnia ou da procedência nacional se inserem no âmbito conceitual do racismo e, por este motivo, são inafiançáveis e imprescritíveis.

A Ministra Cármen Lúcia opinou que, mesmo no caso de injúria racial, a vítima não é apenas a pessoa ofendida, mas toda a humanidade.

Por usa vez, o Ministro Lewandowski declarou que o racismo não se limita às condutas previstas pela Lei 7.716/1989. Ressaltou que a Constituição Federal, ao estabelecer que a prática de racismo é imprescritível, não estipulou nenhum tipo penal. Segundo ele, isso ocorre porque, ao longo do tempo, essas condutas criminosas se diversificam e é necessário que os delitos específicos sejam definidos pelo Congresso Nacional. Lembrou ainda que o Brasil é signatário de tratados e convenções internacionais em que se compromete a combater o racismo.

Dessa forma, para a Suprema Corte, não há distinção ontológica entre as condutas previstas na Lei nº 7.716/89 e aquela que era prevista no art. 140, § 3º, do Código Penal, já que, em ambos os casos, há o emprego de elementos discriminatórios baseados naquilo que sociopoliticamente constitui raça, para a violação, o ataque, a supressão de direitos fundamentais do ofendido.

Assim, se extrai do precedente que excluir o crime de injúria racial do âmbito do mandado constitucional de criminalização por meras considerações formalistas desprovidas de substância, por uma leitura geográfica apartada da busca da compreensão do sentido e do alcance do mandado constitucional de criminalização, é restringir-lhe indevidamente a aplicabilidade, negando-lhe vigência.

Neste ponto, transcrevo a seguir a ementa do julgado em questão:

HABEAS CORPUS. MATÉRIA CRIMINAL. INJÚRIA RACIAL (ART. 140, § 3º, DO CÓDIGO PENAL). ESPÉCIE DO GÊNERO RACISMO. IMPRESCRITIBILIDADE. DENEGAÇÃO DA ORDEM. 1. Depreende-se das normas do texto constitucional, de compromissos internacionais e de julgados do Supremo Tribunal Federal o reconhecimento objetivo do racismo estrutural como dado da realidade brasileira ainda a ser superado por meio da soma de esforços do Poder Público e de todo o conjunto da sociedade. 2. O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo, seja diante da definição constante do voto condutor do julgamento do HC 82.424/RS, seja diante do conceito de discriminação racial previsto na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. 3. A simples distinção topológica entre os crimes previstos na Lei 7.716/1989 e o art. 140, § 3º, do Código Penal não tem o condão de fazer deste uma conduta delituosa diversa do racismo, até porque o rol previsto na legislação extravagante não é exaustivo. 4. Por ser espécie do gênero racismo, o crime de injúria racial é imprescritível. 5. Ordem de habeas corpus denegada. (STF – HC: 154248 DF 0067385-46.2018.1.00.0000, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 28/10/2021, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 23/02/2022)

Por fim, em recentíssima alteração legislativa promovida pela Lei nº 14.532/2023, publicada em 11 de janeiro de 2023, o crime de injúria racial foi inserido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989), com pena de reclusão de 2 a 5 anos. Veja-se:

Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.     (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.       (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)

Portanto, pode-se concluir que a nova lei está em conformidade com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal que havia equiparado o crime de injúria racial ao de racismo.

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. v. 2. 21.ed., São Paulo: Saraiva, 2021.

FERNANDES, Fernando Augusto. Injúria racial, crimes contra a democracia e as ofensas a Zanin. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2023-jan-13/fernando-fernandes-injuria-racial-ofensas-advocacia>. Acesso em: 20 jan. 2023.

GRECO, Rogerio. Curso de Direito Penal. v. 2. 18.ed., Niterói: Impetus, 2021

Injúria racial é crime imprescritível, decide STF. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=475646&ori=1>. Acesso em: 20 jan. 2023.

LIMA, Paolo. Injúria Racial se torna imprescritível: veja os efeitos da decisão. Disponível em: <https://noticias.cers.com.br/noticia/injuria-racial-se-torna-imprescritivel/ >. Acesso em: 20 jan. 2023.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. A nova Lei nº 14.532/23 e o crime de injúria racial. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2023-jan-13/romulo-moreira-lei-1453223-crime-injuria-racial?fbclid=PAAaZ6v2BKuNVO6WakAvFjup7xNIxqOselKlX0PAqcS-ZDFJrCBHvl6XNAJyQ >. Acesso em: 20 jan. 2023.

NUCCI, Guilherme. Só quem nunca sofreu racismo na vida que pensa que isso é mera injúria. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2015-out-27/guilherme-nucci-quem-nunca-sofreu-racismo-acha-isso-injuria>. Acesso em: 20 jan. 2023.

RODAS, Sérgio. STF equipara injúria racial a crime de racismo, considerando-a imprescritível. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-out-28/stf-equipara-injuria-racial-racismo-considerando-imprescritivel>. Acesso em: 20 jan. 2023.

VAZ, Daniel Ribeiro. Racismo x Injúria Racial: Uma análise sob a ótica do Direito Civil Constitucional. Artigos JusBrasil. 2012. Disponível em <http://danielvaz2.jusbrasil.com.br/artigos/121816638/racismo-x-injuria-racial-uma- analise-sob-a-otica-do-direito-civil-constitucional> Acesso em 20 jan. 2023.


[1] Graduada pelo Curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe. Pós-graduada pelo Curso de Direito Penal da Faculdade Signorelli. Atualmente Servidora Pública Federal no Tribunal Regional Federal da 5ª Região.