A INSUFICIÊNCIA DE FERRAMENTAIS ATUAIS CAPAZES DE PROMOVER O ACESSO À JUSTIÇA
30 de dezembro de 2024THE LACK OF CURRENT TOOLS CAPABLE OF PROMOTING ACCESS TO JUSTICE
Artigo submetido em 17 de novembro de 2024
Artigo aprovado em 25 de novembro de 2024
Artigo publicado em 30 de dezembro de 2024
Cognitio Juris Volume 14 – Número 57 – Dezembro de 2024 ISSN 2236-3009 |
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Autor(es): Bruna Alcino Marcondes da Silveira[1] |
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Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar os principais entraves do acesso à justiça. Por meio de uma revisão bibliográfica, o artigo também traz um panorama das atuais ferramentas que se pretendem promotoras do acesso à justiça, analisando sua (in)eficiência, além de elencar algumas propostas de novos mecanismos capazes de fomentar o acesso à justiça e torná-lo mais eficaz.
Palavras-chave: Acesso à Justiça. Estado Democrático de Direito. Administração da Justiça. Política Judiciária. Políticas Públicas.
Abstract: The present article aims to analyze the main obstacles to access to justice. By analyzing the main legal authorities related to the theme, the article also provides an overview of the current tools that are intended to promote access to justice, analyzing their (in)efficiency, and lists some proposals for new mechanisms capable of fostering access to justice and making it more effective.
Keywords: Access to Justice. State of Law. Administration of Justice. Judicial Policy. Public Policies.
- Introdução
O Preâmbulo da Constituição Federal de 1988 instituiu o Estado Democrático com o objetivo de “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.
O art. 1ª, caput do mesmo diploma ainda estabeleceu que o país seria constituído como um “Estado Democrático de Direito”. Inegável, portanto, a intenção do legislador de implementar no Brasil um Estado, ao mesmo tempo, de Direito e Democrático.
Em linhas gerais, um Estado pode ser considerado um Estado de Direito ao se comprometer com o cumprimento das seguintes diretrizes: (i) primar pelo cumprimento da lei; (ii) possuir um sistema hierárquico de normas que preservam a segurança jurídica; (iii) respeitar obrigatoriamente a legalidade pela Administração Pública; (iv) manter a separação entre os poderes; (v) reconhecer a personalidade jurídica do Estado, a fim de assegurar as relações jurídicas com os cidadãos; (vi) garantir os direitos fundamentais; e (vii) promover o controle de constitucionalidade das leis (MORAES, 2017).
O Estado Democrático, por sua vez, pressupõe uma democracia representativa, além da garantia à universalização do voto e a necessidade de legitimação dos chefes de poderes (MORAES, 2017).
Assim, um Estado será considerado Democrático de Direito quando preenche tantos os requisitos de Estado de Direito, quanto os de Estado Democrático. Isso significa dizer que o Estado será regido pela legalidade, mas deverá reconhecer direitos e liberdades fundamentais, inerentes ao homem, como a dignidade da pessoa humana. Ainda, conforme leciona o professor Marco Antonio Marques da Silva (2017, n.p):
O Estado de Direito é o que tem como pedra de toque o governo segundo a vontade geral racional e onde se busca um objetivo comum, ou seja, a realização dos princípios da razão para a vida dos homens. Entretanto, a insuficiência da implementação do Estado de Direito reside na exclusão de valores e da ética como competências do Estado. A simples tradução do Estado como o domínio da lei não é suficiente. O Estado não pode estar alheio às experiências sociais. (…) É certo que deve existir uma ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, ou seja, onde se tenha a vigência de um sistema de normas democraticamente estabelecidas que rezem a lei como expressão da vontade geral; a divisão de poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário; a positivação de direitos e liberdades fundamentais e a busca pela realização material. Contudo, ainda é necessário, para vivenciar a democracia processual, que a todo acusado seja assegurada a igualdade para litigar em juízo.
No Brasil, os direitos e liberdades fundamentais estão assegurados no art. 5º da Constituição Federal, especificamente, o inciso XXXV do referido artigo, prevê como direito fundamental o acesso à justiça, ao determinar que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Segundo ensina CAPELLETTI (1988), o acesso à Justiça define “duas finalidades básicas do sistema jurídico” (CAPELLETTI, 1988, p. 8), o primeiro seria a possibilidade de as pessoas reivindicarem seus direitos e/ou resolver seus litígios e o segundo seria a finalidade de “produzir resultados que sejam individual e socialmente justos. (…) Sem dúvida, uma premissa básica será de que a justiça social, tal como desejada por nossas sociedades modernas, pressupõe o acesso efetivo” (CAPELLETTI, 1988, p. 13).
O conceito de acesso à justiça, entretanto, é mutável ao longo do tempo e espaço. Em governos mais liberais, por exemplo, em que prevalece a intervenção mínima do Estado (SADEK, 2011), o acesso à justiça costuma ser assegurado exclusivamente sob o ponto de vista formal, ou seja, a possibilidade de acionar o judiciário.
Sob tal ângulo, para se garantir o acesso à justiça é preciso que os seguintes requisitos estejam preenchidos: (i) celeridade do processo; (ii) respeito à ampla defesa e ao contraditório; (iii) publicidade dos atos processuais; (iv) oportunidade de recorrer; e (vi) motivação da sentença judicial (SILVA, 2001).
Por outro lado, o acesso à justiça também pode ser compreendido de forma mais abrangente, como sendo a principal forma de promoção efetiva de justiça social, democracia e equidade. Nessa concepção, é preciso uma atuação mais positiva do Estado, por meio da implementação de políticas públicas capazes de assegurar direitos fundamentais (RUIZ, 2017).
Independentemente do conceito, é incontroverso que o Brasil não alcançou, de forma satisfatória, nem mesmo o acesso à justiça sob o ponto de vista formal, com a implementação de medidas capazes de solucionar os conflitos de forma definitiva e satisfatória, culminando na pacificação social (DINAMARCO, 1993) e na justiça de forma geral (DINAMARCO, 2017). Nesse sentido:
(…) Isso porque é sabido que o direito processual é instrumento de tutela do direito material e deve, portanto, buscar efetividade no desempenho de sua função. Para tanto, deve adaptar suas técnicas de forma a melhor atender os direitos por ele veiculados. Afinal, a ‘natureza instrumental do direito processual impõe sejam seus institutos concebidos em conformidade com as necessidades do direito substancial. Isto é, a eficácia do sistema processual será medida em função da sua utilidade para o ordenamento jurídico material e para a pacificação social (BEDAQUE, 1998, p. 16).
O Brasil está ainda mais longe, portanto, de atingir o acesso à justiça social, com a garantia aos direitos fundamentais. É nesse contexto que nasce a judicialização de direitos fundamentais. O processo passa a ser um instrumento de atuação política, pois a obtenção da prestação jurisdicional é uma das formas (talvez a única) de materialização dos direitos e garantias individuais e sociais (RUIZ, 2017).
Com isso, surgem diversas propostas com o objetivo de repensar e elaborar instrumentos capazes de promover maior acesso à justiça, em alternativa à judicialização excessiva, como será visto no item II, a seguir.
- Política judiciária atual e tentativas para promover maior acesso à justiça
É possível afirmar que a doutrina é quase unânime ao defender que o acesso à justiça no Brasil é ineficaz, bem como em apontar os diversos obstáculos, como por exemplo: (i) o excessivo número de processos; (ii) a demora do judiciário no julgamento; (iii) os altos custos envolvidos com o processo; (iv) a falta de informação da população (principalmente a mais carente) em relação aos seus direitos; (v) o excesso de formalismo que cria entraves para a postulação em juízo (CAPELLETTI, 1988; COSTA, 2017a; PROCUPIUCK, 2013; RUIZ, 2017; SILVA, 2001).
Não há, contudo, um consenso quanto à origem do problema. Uma parcela dos estudiosos aponta que a forma da administração da justiça, herança do Brasil colônia poder ser a causa (PROCUPIUCK, 2013). Outra parcela, entretanto, entende que a questão é mais abrangente, envolvendo toda a forma de gestão da política judiciária e adoção de políticas públicas (COSTA, 2017a).
Para análise da primeira linha de pensamento, vale primeiramente, um breve exame sobre o conceito de administração da justiça. Conforme defendido por DALLARI (2004), o conceito pode ser complexo e, na maioria das vezes, incompleto.
Para o autor, seria impreciso, por exemplo, entender a administração da justiça apenas como uma mera “atividade instrumental necessária à prestação jurisdicional, abrangendo desde a aquisição manutenção, acompanhamento e controle dos bens materiais e dos serviços burocráticos correlatos até a própria tramitação física de papéis, publicações, certidões, intimações e autos de processos” (DALLARI, 2004, p. 25).
DALLARI (2004) defende que tal significado estaria mais relacionado à administração do judiciário do que administração da justiça propriamente dita. Isso porque, a administração da justiça não pode estar limitada a questões burocráticas e institucionais do judiciário. Trata-se de um conceito mais amplo, que envolve questões ligadas à estrutura do judiciário e atendimento ao público, como o recrutamento de novos membros, sua forma de atuação, seu controle, sua ética, sua capacidade de tomar decisões, efetivamente, justas e eficazes.
A dificuldade de conceituação do tema está intrinsecamente ligada ao espaço mínimo (ou até inexistente) ocupado pelo assunto nos debates públicos e acadêmicos e a falta de adoção de medidas pelos diversos governos ao longo do tempo. A realidade é que a administração da justiça vem sendo negligenciada desde o Brasil colônia. Conforme explica PROCUPIUCK (2013):
A interdependência estrutural entre o Brasil e a metrópole desde o início da colonização decorria da transposição do sistema político-administrativo português para as colônias da América do Sul. Esse arranjo das instituições político-administrativas aliado à manutenção das instâncias decisórias sobre o governo colonial em Lisboa tornava o Brasil particularmente sensível aos reflexos de mudanças ocorridas na Administração da metrópole. O caráter estrutural das reformas em Portugal afetou tanto a comunicação político-administrativa quanto as modalidades de exercício de poder na relação metrópole e colônia.
Mesmo com a criação do Supremo Tribunal de Justiça e, mais tarde, com a instituição do Supremo Tribunal Federal, após a Proclamação da República, ainda imperava uma estrutura fragmentada, assentada em um vácuo regulatório (PROCUPIUCK, 2013).
Conforme ensina PROCUPIUCK (2013), em 1912, o acúmulo de processos no Supremo Tribunal Federal já era muito alto. Os 15 juízes que o compunham conseguiram julgar apenas 676 ações dos 903 acumulados de anos anteriores e dos 723 distribuídos naquele ano, ou seja, apenas 42%. Caso fossem considerados os 950 processos acumulados ao final de 1912 para serem julgados pelos 11 ministros, a estimativa é que levaria quase dois anos de trabalho excedente somente para julgar o acervo.
O excesso de demandas judiciais, contudo, não é exclusividade do Brasil. Ao longo dos anos, surgiram, ao redor do mundo, diversos esforços com o objetivo de desafogar o judiciário. Entre as décadas de 1960 e 1970, por exemplo, Mauro Cappelletti e Bryant Garth organizaram um estudo, denominado “Projeto Florença”, com a participação de vários países e profissionais das mais diversas formações (GALANTER, 2015). Eles identificaram que os avanços relacionados ao tema do acesso à justiça foram marcados por três ondas:
A primeira onda, iniciada em 1965 com os escritórios de advocacia de bairro do programa do Departamento de Oportunidades Econômicas (Office of Economic Opportunity), compreendeu a reforma de instituições para o provimento de serviços legais para os pobres. A segunda onda buscou ampliar a representatividade dos ‘interesses difusos’, tais como aqueles de consumidores e ambientalistas: começou nos Estados Unidos com o desenvolvimento de ‘escritórios de advocacia de interesse público’, mantidos por fundações, nos anos 1970. A terceira onda adveio nos anos 1970 com a mudança de foco para as instituições de processamento de disputas em geral, ao invés de simplesmente as instituições de representação legal; alternativas menos formais às cortes e aos procedimentos judiciais […] surgiram com relevante destaque […]. (CAPPELLETTI, 1988).
No Brasil, além da influência do estudo promovido pelo Projeto Florença, a abertura política e o despertar dos movimentos sociais, entre 1970 e 1980, tiveram importante papel ao trazer o assunto para pauta de discussão (JUNQUEIRA, 1996).
Foi nesse contexto em que foram criados os Juizados Especiais de Pequenas Causas (atuais Juizados Especiais) (WATANABE, 1995). Eles foram desenvolvidos para “priorizar e dar acesso a quem era alijado do Poder Judiciário por obstáculos formais e financeiros” (ASPERTI, 2014, p. 160) e são marcados pela informalidade, desburocratização e, principalmente, pelo custo zero.
De fato, os Juizados Especiais possuem um papel importante no processamento de demandas de baixo valor e complexidade envolvidos, principalmente, demandas consumeristas, que poderiam aumentar ainda mais o acervo processual da justiça comum. Os Juizados Especiais ainda foram fundamentais para mitigarem os limites impostos para a população de baixa renda para o acesso formal à justiça, ou seja, à possiblidade de postular em juízo (ASPERTI, 2014). Contudo, como seria esperado, eles possuem papel limitado na promoção do acesso à justiça lato sensu.
Surgiram também formas alternativas para resolução dos conflitos como a mediação, a negociação, a conciliação e a arbitragem. O nascimento de tais métodos se deu em um contexto de “movimento de expansão de responsabilidades e remédios legais promovido pelas cortes e pelos legislativos nos anos decorridos entre o fim da Segunda Guerra Mundial” (GALANTER, 2015, p. 39). Ainda, conforme explica GALANTER (2015, p. 42):
O Judiciário adotou os Meios Alternativos de Solução de Conflitos vinculados (ou “anexados”, como dizem) aos foros judiciais como forma de reduzir o crescente número de processos e redirecionar casos que entendem não serem merecedores da sua atenção. Adicionalmente, o Judiciário tem sido amplamente favorável às iniciativas das partes privadas de enclausurar causas a fóruns alternativos de resolução de controvérsias, alguns independentes, outros não. Uma firme dieta anabólica de apoio governamental e empresarial tornou os Meios Alternativos de Solução de Conflitos não apenas amplamente maior que seus irmãos, mas cada vez mais distante deles.
Em que pese o uso dos meios alternativos de soluções de disputas, em um primeiro momento, aparentarem ser uma possível medida para mitigar o excesso de demandas no judiciário, eles tampouco foram eficazes para aumentar o acesso à justiça, tanto formal, quanto social, uma vez que continuaram centrados na cultura do litígio. Ao fim e ao cabo, ainda impactaram de forma pouco relevante o número de casos judiciais (GALANTER, 2015).
Atualmente, o foco dos esforços envolvendo a administração da justiça parece novamente ter se voltado para a adoção de medidas burocráticas de gestão de acervo processual e técnicas processuais capazes de diminuir o número de casos, que podem até limitar ainda mais o acesso ao judiciário.
São exemplos de medidas contemporâneas: (i) a inclusão de metas para redução do número de recursos; (ii) o aumento da mão de obra e de equipamentos; (iii) a digitalização dos processos; (iv) a adoção quase integral de julgamentos virtuais; (v) a criação do incidente de resolução de demandas repetitivas; (vi) a criação de filtros processuais; e (vii) a automatização de decisões (FRANCISCO, 2018).
Todos os esforços, contudo, parecem ter surtido o efeito oposto. O Brasil hoje possui quase 500.000 servidores empregados no judiciário[2] e tem uma despesa total anual de quase R$ 200 bilhões[3]. Contudo, conforme informações do CNJ[4], o Poder Judiciário finalizou o ano de 2022 com 81.4 milhões de processos em tramitação. Desses 21,7% estavam suspensos, ou seja, no final de 2022, existiam em trâmite mais de 63 milhões de ações judiciais[5]. O judiciário, portanto, segue ineficiente, burocrático, custoso e demorado.
Na teoria, a política judiciária deveria ser um instrumento para o alcance do direito material, mas na prática, é uma tentativa de gerir acervo, ainda assim, falha. A atual política judiciária cria ainda mais injustiça social, na medida que contribui para aumentar a falta de acesso de populações carentes e, ainda, usa recursos que reproduzem vieses humanos discriminatórios (LINDOSO, 2019).
É nesse sentido, inclusive, o entendimento da segunda linha de estudiosos sobre o acesso à justiça. Para eles, a origem dos obstáculos estaria na forma de gestão da política judiciária e, principalmente, na falta de debate e de adoção de políticas públicas. Conforme explicam ASPERTI, COSTA e GABBAY (2019, p. 154):
Dessa forma, a hipótese levantada é a de que o tema do acesso à justiça, em particular a necessidade de sua facilitação para indivíduos, grupos e conflitos marginalizados, deixou de se fazer presente nas escolhas políticas feitas no Brasil, que passaram a ser fortemente influenciadas por discursos que atribuíram significados ao acesso à justiça mais relacionados à ineficiência do Judiciário do que à pauta redistributiva. Considerando, assim, que os marcos legislativos mapeados neste artigo tiveram significativo impacto na conformação do Judiciário e do direito processual civil, o artigo analisará os textos e discursos legislativos em suas várias versões, identificando-se argumentos vencedores e vencidos, sempre com vistas a reconhecer as justificativas por detrás das escolhas políticas realizadas.
Para tais doutrinadores, a falta de acesso à justiça social se deve a uma associação de fatores, entre eles: (i) a criação de entraves para populações carentes; (ii) a ausência de mecanismos aptos a tratar adequadamente as demandas envolvendo questões da justiça distributiva; (iii) a falta de endereçamento de pautas que tratam de forma adequada demandas coletivas envolvendo direitos fundamentais; e (iv) a ausência de políticas públicas (COSTA, 2017a).
O cenário ainda é agravado pelo crescente uso de inteligência artificial que reproduz vieses humanos e, portanto, discriminatórios, aumentando ainda mais o abismo entre a população e o acesso aos seus direitos fundamentais (LINDOSO, 2019).
Consequentemente, a falta de acesso da população aos seus direitos, em razão da ausência de políticas públicas gera dois fenômenos: a intensa judicialização, e consequente jurisdicionalização, desses direitos e o exacerbado (e muitas vezes, inadequado) ativismo judicial (MARINHO, 2018).
É possível perceber que por atrás de cada ação coletiva e individual sobre um tema envolvendo acesso a um direito fundamental se esconde uma demanda de cunho social que deveria, na realidade, ser objeto de política pública, por exemplo: ações para garantir vagas para crianças em creches e escolas, que – na realidade – têm origem no direito fundamental à educação; e processos coletivos e individuais para fornecimento de determinados remédios pela rede pública de saúde, que – na verdade – estão relacionados diretamente ao direito constitucional à saúde (COSTA, 2017b).
Quando o judiciário já está altamente demandado com ações individuais e coletivas e a sociedade segue insatisfeita com as soluções insuficientes, não é raro que determinado tema passe ser objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, “rejudicializando” a questão que deveria ser foco do legislativo (MARINHO, 2018). E pior: ganhando contornos políticos, por exemplo: (i) a descriminalização do porte de drogas; (ii) a prisão em segunda instância; (iii) a revisão da vida toda (INSS); (iv) a regulação das redes sociais; (v) a descriminalização do aborto; (vi) a demarcação das terras indígenas.
Nesse contexto, diversos estudos foram elaborados para tentar criar propostas capazes de fomentar o acesso à justiça, como será tratado no item “III” a seguir.
- Possíveis soluções propostas para fomentar o acesso à justiça
Resta claro que o direito ao acesso à justiça, previsto no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, que deveria resguardar a acesso aos direitos e liberdades fundamentais constitucionais, está muito distante de ser implementado na prática (MARINHO, 2018).
Diante de tal contexto, surgem diversas propostas para fomentar o acesso à justiça com foco no aumento de debate de políticas públicas, através da redefinição do contraditório e a implementação de processos estruturais[6], capazes de gerarem mudanças profundas nas instituições (COSTA, .2017a).
Em primeiro lugar, é preciso repensar o uso dos métodos tradicionais de resolução de disputas e como aprimorá-los, inclusive, tornando-os mais eficientes, diversos e capazes de tomarem decisões mais eficazes. Nesse sentido:
o acesso à justiça tem, portanto, uma dimensão substancial de transformação social pela efetivação de direitos e tem também uma dimensão procedimental, relacionada a ampliação, racionalização e controle do aparato (instituições e procedimentos) governamental de realização dos direitos (ASPERTI, COSTA e GABBAY, 2019, p. 156).
ASPERTI, COSTA e GABBAY (2019) também defendem o uso da litigância estratégia como ferramenta para o avanço de pautas voltadas para o interesse público. Nesse sentido:
Um bom exemplo é a litigância estratégica de interesse público, que no Brasil tem sido responsável pelo avanço, via Poder Judiciário, de algumas pautas voltadas à implementação de direitos sociais e de direitos de minorias. Outra via possível está no âmbito de iniciativas legislativas ou mesmo interpretações jurisprudenciais voltadas a fortalecer a ação coletiva, modelo mais apto a resolver macrolitígios de forma participativa, garantindo o mínimo de representatividade e paridade de armas para a legitimidade política da solução judicial. Por fim, a adoção de técnicas voltadas a desjudicializar demandas de cobranças em massa e a desestimular condutas ilícitas pelos grandes litigantes, como os danos punitivos, poderiam ser alternativas para desestabilizar a gestão estratégica de demandas “pelos que tem” (ASPERTI, COSTA e GABBAY, 2019, p. 177).
Em segundo lugar, é necessário a democratização do processo, através da alteração da técnica processual com a incrementação de mecanismos que levem em conta e legitimem as decisões tomadas pelos grupos interessados nas determinadas pautas (e que não necessariamente são partes no processo), através, por exemplo, de realização de audiências públicas e da intervenção de determinadas entidades como amicus curiae (COSTA, 2017a).
Assim, a implementação de políticas públicas e a reconstrução da forma de se pensar o acesso à justiça passa obrigatoriamente pela combinação e convivência entre os diversos interesses e escolhas políticas, além da atuação da sociedade civil e das entidades do terceiro setor (ASPERTI, COSTA e GABBAY, 2019).
Em tal ponto, contudo, reside a grande dificuldade de difícil solução: a conhecida dicotomia entre o interesse público e os interesses pessoais dos governantes.
Essa dicotomia, inclusive, foi objeto de estudo ao longo do tempo. Na antiguidade, a ética e a política eram indissociáveis. Nos estudos de Aristóteles e Platão, os governantes deveriam ser sábios, justos e virtuosos. No Renascimento, contudo, com o deslocamento do homem para o centro do universo, houve uma dissociação entre ética e política. Maquiavel, por exemplo, defendia que os governantes nem sempre agiam eticamente, pois era necessária a adoção de estratégias que poderiam distorcer a realidade dos fatos (DINIZ, 1999).
Para Hannah Arendt (2011), foi a partir da modernidade que houve um total rompimento dos laços com a polis e um desencontro entre ética e política, notadamente marcada pela “falsidade deliberada dos políticos”. Segundo a autora:
Jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem uma com a outra, e até hoje ninguém, que eu saiba, incluiu entre as virtudes políticas, a veracidade. Sempre se consideraram as mentiras como ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista. Por que é assim? E o que isso significa, por um lado, para a natureza e dignidade do âmbito político e, por outro, para a natureza e dignidade da verdade e da veracidade? É da essência, mesma da verdade, ser impotente e da essência, mesma do poder, ser enganador? (ARENDT, 2011, pp.227-228).
A verdade é que, no Brasil atual, parece utópico pensar um Estado dotado de consciência ética capaz de guiar as decisões políticas de forma a garantir o acesso da população aos seus direitos fundamentais. Fica quase impossível, portanto, não se alinhar ao pessimismo de BOBBIO (1984) que defendia um dualismo intrínseco entre a ética e a política.
Para o autor, “não só a história dos justos e a história dos poderosos são paralelas que não se encontram, mas até agora a história que se celebrou e cujos triunfos continuam se celebrando não é a primeira, mas a segunda” (BOBBIO, 1984, p. 140).
- Conclusão
É incontroverso que judiciário atual não apresenta mecanismos aptos a tratar adequadamente as demandas envolvendo questões da justiça distributiva. As ações implementadas, exclusivamente burocráticas e focadas na gestão do acervo, não tem qualquer interesse em promover a discussão de políticas públicas que possam enderençar demandas coletivas e individuais. Dessa forma, não é somente esperado, como é justificável (ainda que não desejável) o excesso de jurisdicionalização dos direitos fundamentais.
A população, desprovida de qualquer expectativa de ser atendida em suas necessidades mais básicas, se vê sem saída e obrigada a ajuizar demandas demoradas, custosas e, muitas vezes, ineficientes.
Nesse contexto, abundam as ações envolvendo vagas em creche, obtenção de remédios de alto custo, aposentadoria, definição de alíquotas de determinados impostos, vazamento de dados em plataformas, entre outras. A judicialização excessiva abre espaço para o ativismo judicial exacerbado, o qual, por sua vez, é perigosamente atrelado a uma atuação marcada por interesses políticos.
Assim, de um lado, o executivo, que deveria ser responsável por materializar os direitos sociais – vale dizer, todos já garantidos pela Constituição Federal -, passou apenas a se preocupar com seus interesses individuais e privados, que privilegiam essencialmente setores que possam garantir a manutenção do poder. De outro lado, o judiciário, em uma tentativa, no mínimo, sinuosa, de “fazer justiça”, passou a legislar, sem também deixar de lado sua própria agenda política de manutenção no poder.
A realidade é que enquanto o poder se mantiver concentrado apenas em indivíduos com ideais individualistas e completamente desvinculados de uma atuação pautada na moral, na ética e na promoção de justiça social, restará à população seguir litigando – e inundando o judiciário com mais ações – com o objetivo de tentar obter, na prática, aquilo que há anos está previsto tão claramente na Lei.
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[1] Mestranda em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2015). Bacharel em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero (2011). Advogada em Trench, Rossi Watanabe. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9140096063137807. Telefone: (11) 987455844. E-mail: brunalcino@gmail.com
[2] BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2023. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/02/justica-em-numeros-2023-16022024.pdf. Acesso em: 10. abril.2024.
[3] Idem.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] Owen Fiss (2004, p. 25) define “processos estruturais” da seguinte forma: “o processo judicial de caráter estrutural é aquele no qual um juiz, enfrentando uma burocracia estatal no que tange aos valores de âmbito constitucional, incumbe-se de reestruturar a organização para eliminar a ameaça imposta a tais valores pelos arranjos institucionais existentes”.