A INCOMPATIBILIDADE DA EC Nº 125/2022 COM A FUNÇÃO PRIMORDIAL DO STJ DE UNIFICAR A INTERPRETAÇÃO DA LEI FEDERAL DE DIREITO PRIVADO EM DIVERGÊNCIA NOS TRIBUNAIS ESTADUAIS

A INCOMPATIBILIDADE DA EC Nº 125/2022 COM A FUNÇÃO PRIMORDIAL DO STJ DE UNIFICAR A INTERPRETAÇÃO DA LEI FEDERAL DE DIREITO PRIVADO EM DIVERGÊNCIA NOS TRIBUNAIS ESTADUAIS

10 de junho de 2023 Off Por Cognitio Juris

THE INCOMPATIBILITY OF EC No. 125/2022 WITH THE PRIMARY FUNCTION OF THE STJ TO UNIFY THE INTERPRETATION OF FEDERAL LAW IN DIVERGENCE IN THE STATE COURTS

Artigo submetido em 29 de maio de 2023
Artigo aprovado em 09 de junho de 2023
Artigo publicado em 10 de junho de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 47 – Junho de 2023
ISSN 2236-3009

.

Autor:
Regina Bonilha dos Santos[1]

.

Resumo

O presente artigo tem por objetivo precípuo analisar a função constitucional primordial do Superior Tribunal de Justiça de unificar a interpretação da lei federal em divergência nos tribunais estaduais, conforme a hipótese de cabimento do recurso especial prevista no artigo 105, inciso III, alínea “c”, da Constituição Federal, em contraposição com a Emenda Constitucional nº 125/2022 que instituiu a arguição de relevância como requisito de admissibilidade do recurso especial. 

Palavras-chave: Superior Tribunal de Justiça; recurso especial; arguição de relevância.

Abstract

The main objective of this article is to analyze the primordial constitutional function of the Superior Court of Justice to unify the interpretation of the federal law in divergence in the state courts, according to the hypothesis of appropriateness of the special appeal provided for in article 105, item III, item “c” , of the Federal Constitution, as opposed to Constitutional Amendment No. 125/2022, which instituted the claim of relevance as a requirement for the admissibility of the special appeal.

Keywords: Superior Justice Tribunal; special resource; relevance argument.

  1. Introdução

O Superior Tribunal de Justiça possui como função institucional a uniformização da interpretação da Lei Federal, cuja competência para tanto estão previstos do artigo 105 da Constituição Federal.

O referido dispositivo constitucional foi emendado pela EC 125/2022 com a inclusão dos parágrafos segundo e terceiro, os quais instituem a arguição de relevância como requisito de admissibilidade do recurso especial e, especificamente, no parágrafo terceiro apresenta um rol taxativa das hipóteses em que haverá relevância de que trata o parágrafo segundo.

Além disso, o presente trabalho, além de demonstrar que o recurso especial com fundamento na alínea “c” seria um instrumento de uniformização extremamente viável, almeja demonstrar que com a Emenda Constitucional nº 125/2022 a interposição do recurso especial pela alínea “c” em matéria de direito privado corre o risco de se tornar uma letra morta no ordenamento.

Ocorre que o rol constitucional tal como lançado cria uma barreira para a admissão do recurso especial que versem sobre matéria de direito privado, cuja interposição seja com fundamento na alínea “c”, inciso III, do artigo 105, da Constituição Federal, na medida em que somente o inciso III do parágrafo terceiro, que possui um critério monetário, aparenta ter o condão de possibilitar a admissão do recurso especial pela divergência de interpretação da lei federal de direito privado pelos tribunais estaduais.

Nesta seara, as hipóteses de relevância previstas na Emenda Constituição 125/2022 merecem análise individualizada com a finalidade de constatar se há compatibilidade entre elas e a função primordial do Superior Tribunal de Justiça de unificar a interpretação da lei federal, especificamente de direito privado, quando houver divergência de interpretação pelos tribunais estaduais.

Atualmente, a eficácia da Emenda Constitucional nº 125/2022 está suspensa por força do Enunciado Administrativo nº 8, aprovado pelo STJ, no qual condiciona a aplicação da Emenda até adata de entrada em vigor da lei regulamentadora prevista no artigo 2º da referida Emenda.

Deste modo, o presente trabalho limitar-se-á de como será o futuro do recurso especial com a efetiva entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 125/2022, com enfoque pessoal do cabimento do recurso especial para unificação da interpretação divergente da lei federal de direito privado pelos tribunais estaduais.

  • A função institucional do Superior Tribunal de Justiça

Criado com o objetivo de desafogar o Supremo Tribunal Federal, à época da denominada crise do Supremo ou crise do recurso extraordinário, em razão da demasiada quantidade de recursos extraordinários submetidos ao seu crivo, o Superior Tribunal de Justiça recebeu a competência de se pronunciar em relação ao direito federal que não verse sobre direito constitucional, permanecendo com o Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição.

Nesta seara, o Superior Tribunal de Justiça recebeu a função institucional de guardar a validade e a uniformização da interpretação da lei federal não constitucional, respectivamente, previstas nas hipóteses de cabimento do recurso especial, conforme alíneas “a” e “c”, do inciso III, do artigo 105, da Constituição Federal. Nas palavras de Arruda Alvim[2]:

Por sua vez, ao Superior Tribunal de Justiça coube incumbência igualmente vital, qual seja, a de ser o guardião da inteireza do sistema jurídico federal não constitucional, assegurando-lhe a validade e bem assim, a uniformidade do entendimento.

Em relação ao objetivo inicial de desafogar o Supremo Tribunal Federal, a criação do Superior Tribunal de Justiça não atingiu o almejado, de modo que restou necessária a retomada de um filtro para admissão dos recursos extraordinários, conforme EC nº 45/2004, a conhecida repercussão geral, assunto que será mais bem abordado em tópico próprio.

O Superior Tribunal de Justiça foi instituído com base na fusão de duas espécies de tribunais, quais são, os chamados tribunais de cassação, como as Cortes de Cassação italiana e francesa, e o tribunal de rejulgamento, como a Suprema Corte americana, na medida em que o modelo brasileiro trouxe a função monofilática e uniformizadora dos tribunais de cassação e realizada o novo julgamento do caso, como a Suprema Corte.

Neste ponto, pode-se destacar a função monofilática, extraída da obra do jurista italiano Piero Calamandrei, atualmente reconfigurada com a noção de dialética /tendencial, de acordo com Bruno Dantas, na medida em que a busca pela mais adequada interpretação obedece um procedimento hermenêutico a ser empregado em consonância com o ordenamento jurídico.[3]  

Assim, há de se observar a necessidade de uniformizar o entendimento tido como mais adequado, uma vez que dentre a possibilidade de diversas interpretações, após a conclusão obtida pela operação da função nomofilácica, seja ela aplicada desde os juízes até os tribunais estaduais e federais.

A uniformização do entendimento mostra-se a premissa maior quando o assunto é o escopo do Superior Tribunal de Justiça, consagrando sua função nomofilácica com a sistemática do Código de Processo Civil vigente, especialmente no que dispõe o caput do artigo 926, na medida em que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

Pode-se dizer que a função nomofilácica e a função uniformizadora são indissociáveis, na medida que aquela decorre desta, com o fito de garantir os princípios da igualdade e isonomia. Nas palavras de Arruda Alvim[4]:

Daí a ser possível a compreensão de que os recursos para os tribunais superiores cumprem, ao lado da função nomofilácica (dialética ou tendencial), uma função uniformizadora, no sentido de que se prestam a garantir a uniformidade da aplicação e interpretação das regras, cláusulas gerais e princípios jurídicos (legais federais e constitucionais) em todo o território nacional. Assim, visa-se a preservar os princípios da igualdade ou isonomia.

A partir daí, decorre a função paradigmática do Superior Tribunal de Justiça, resultante da operação das duas funções acima mencionadas, que guarda relação com a característica suprema aos tribunais estaduais e federais, que consiste na última palavra acerca da interpretação ou validade do direito.

Com a sistemática cada vez mais presente do Common Law no sistema brasileiro, no qual, a partir de julgamento de casos concretos resultam em entendimentos vinculantes de recurso especiais repetitivos, súmulas e incidentes de resolução de demandas repetitivas, pode-se dizer que a função uniformizadora e paradigmática são o núcleo do Superior Tribunal de Justiça, enquanto norte para a aplicação do direito.

Em suma, partindo da criação do Superior Tribunal de Justiça como um escape para a grande demanda que assolava o Supremo Tribunal Federal, com a transferência da matéria federal não constitucional para sua égide, como visto, podem ser destacadas três funções do Superior Tribunal de Justiça, quais são, a função nomofilática, uniformizadora e a paradigmática.

  • Cabimento do Recurso Especial para uniformização da interpretação divergente dos tribunais estaduais e federais, conforme alínea “c”, inciso III, do artigo 105, da Constituição Federal

De proêmio, fixa-se a premissa, para fins deste trabalho, que o cabimento do recurso especial pelas alíneas “a” e “c” são hipóteses de cabimento totalmente autônomas, de modo que não se entende que o cabimento do recurso especial pela alínea “c” é um mero reforço da hipótese de cabimento prevista na alínea “a”, que apenas facilita o ônus argumentativo, uma vez que a interpretação mais adequada não necessariamente pressupõe que a interpretação então aplicada contraria ou nega vigência a tratado ou lei federal.

Ademais, entende-se que a interposição de recurso especial com fundamento na interpretação divergente da lei federal da que lhe tenha atribuído outro tribunal, em verdade, é considerada uma hipótese de cabimento que instrumentaliza a função uniformizadora do Superior Tribunal de Justiça.

Nesta medida, a despeito do ilustre entendimento da Professora Tereza Arruda Alvim[5], concorda-se em parte quanto exposto abaixo:

Trata-se de uma hipótese especifica que privilegia a função uniformizadora do STJ, evidenciando que esse tribunal deve dar a última palavra a respeito da interpretação de lei federal, afastando eventuais interpretações divergentes existentes na jurisprudência dos tribunais. Em verdade, a hipótese é um reforço à alínea a, facilitando o ônus argumentativo do recorrente em relação à demonstração de contrariedade ou negativa de vigência da lei federal. Afinal, havendo a constatação de que há divergência entre Tribunais na interpretação de determinada lei federal, consequentemente se pressupõe que, pelo menos em um dos casos, há contrariedade à lei federal. Uma das interpretações ou, ainda, uma terceira, há de ser tida como a correta, devendo prevalecer.

 Traçando um paralelo entre a função nomofilácica e a gama de possibilidades interpretativas em torno de regras, cláusulas gerais e princípios jurídicos, não é correto afirmar que a interpretação tida como mais adequada pelo Superior Tribunal de Justiça em seus julgamentos, automaticamente, tornam as demais possibilidades como equivocadas no ponto de vista jurídico.

Não obstante, pode-se afirmar que a função nomofilácica guarda relação com a sistemática do sistema de precedentes introduzido no ordenamento brasileiro, prezando pela segurança jurídica, guardada sua aplicação enquanto considerada a mais adequada ao caso sub judice, porém, não invalidando, por exemplo, um posicionamento da contrário por parte da doutrina.

Nesta seara, eventual interpretação aplicada por um tribunal de um determinado estado, embora divergente em relação à interpretação utilizada por tribunal de outro estado, uma vez que, pela função monofilácica, seja dita como mais adequada a interpretação pelo primeiro tribunal, considerando a força do precedente, ainda que não vinculante, não torna a interpretação do segundo tribunal estadual incorreta, mas, apenas inaplicável do ponto de vista do sistema de precedentes.

Ademais, a interpretação mais adequada então escolhida pelo Superior Tribunal de Justiça não possui elementos exclusivamente normativos, na medida em que a motivação guarda, dentre outros, elementos de cunho social e ponderação de princípios divergentes conviventes em harmonia no ordenamento.

Outra situação hipotética que demonstra que se tratar de hipóteses de cabimento recursal totalmente autônomas é a possibilidade de eventual interpretação de uma lei federal dentro das mesmas circunstancias ser aplicada de forma divergente a depender da sua localização geográfica, guarda devidas peculiaridades locais.

Ou seja, sabendo-se que o Superior Tribunal de Justiça é guardião da lei federal no território nacional, eventual recurso especial admitido pela alínea “c”, na hipótese acima, ao final do julgamento pode ser desprovido, uma vez que não seria possível a uniformização da interpretação em razão de peculiaridades locais, o que não impossibilitou a interposição e admissão do recurso pela alínea “c”.

Veja-se que em ambos as situações hipotéticas apresentadas, não há que se falar em contrariedade ou negativa de vigência à lei federal, mas apenas em interpretação menos adequada ou inaplicável a uniformização por razões práticas regionais.

Contudo, é sabido que na prática, talvez em reposta à remota chance de admissão do recurso especial pela alínea “c”, a interposição com fundamento na referida alínea caiu e desuso, sendo usualmente praticada a interposição com a argumentação voltada à contrariedade e negativa de vigência à lei federal.

Diante do exposto, uma vez contextualizado o cabimento do recurso especial pela alínea “c”, inciso III, do artigo 105, da Constituição Federal, enquanto instrumento de uniformização da jurisprudência, pertinente adentrar na E/C nº 125/2022 que traz o filtro de arguição de relevância para admissão dos recursos especiais.

  • As hipóteses de relevância previstas na Emenda Constitucional nº 125/2022

Primeiramente cumpre frisar que o recurso especial por possuir previsão constitucional não pode ser limitado ou modificado por lei infraconstitucional, de modo que suas hipóteses de cabimento devem refletir claramente os valores e as funções do Superior Tribunal de Justiça de São Paulo.

Conforme demonstrado nos capítulos anteriores o Superior Tribunal de Justiça foi criado para desafogar o Supremo Tribunal Federal, porquanto a exorbitante quantidade de recursos extraordinários, no entanto, sua criação por si só não foi suficiente para resolver a situação do Supremo, bem como, tonou-se outro outra Corte Superior, cuja demanda de recursos especiais também se mostrou exorbitante.

Por esta razão, na seara do Supremo Tribunal Federal foi necessária a instituição de um filtro, a chamada repercussão geral para admissão do recurso extraordinário, pela Emenda Constitucional nº 45/2004, de modo que há tempos doutrinadores renomados, entre eles Arruda Alvim, Tereza Arruda Alvim, Eduardo Arruma Alvim e Nelson Nery Junior, aguardavam a instituição de um filtro para admissão dos recursos especiais.

Veja-se:

Com a Emenda Constitucional nº 45/2004, fora instituída a repercussão geral como requisito de admissibilidade, mas apenas em relação ao recurso extraordinário, sem estabelecer-se semelhante filtro para o recurso especial, o se mostra necessário para balizados doutrinadores.[6]

A Emenda Constitucional nº 125/2022 instituiu o filtro da arguição de relevância das questões de direito federal infraconstitucional para admissão do recurso, conforme parágrafo segundo integrado ao artigo 105, da Constituição, bem como trouxe no parágrafo terceiro um rol taxativo das hipóteses em que há relevância.

Ademais, importante mencionar que atualmente a emenda está suspensa, em razão do Enunciado Administrativo nº 8, aprovado pelo STJ, até que entre em vigor a lei regulamentadora que se refere o artigo segundo da emenda:

A indicação, no recurso especial, dos fundamentos de relevância da questão de direito federal infraconstitucional somente será exigida em recursos interpostos contra acórdãos publicados após a data de entrada em vigor da lei regulamentadora prevista no artigo 105, parágrafo 2º, da Constituição Federal.

Inicialmente com a entrada em vigor da emenda havia uma expectativa que a regulamentação do filtro de relevância seria feita pelo próprio Superior Tribunal de Justiça por resolução, no entanto, acertadamente, o Enunciado nº 8 demonstra que este não foi o caminho adotado pelo Tribunal.

Porém, dentro outras dúvidas, não se sabe ainda qual será órgão competente para fazer o reconhecimento da arguição de relevância, uma vez que a emenda dispõe que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento. Mas qual é o órgão competente para fazer tal juízo, o Pleno, a Corte Especial, as Seções ou Turmas?

Pois bem. Adentrando no objeto de estudo, fixa-se a premissa de que as hipóteses de relevância não se tratam de presunções, as quais, se assim fosse, dariam margem para discussão sobre seu enquadramento ou não. O texto constitucional é mandatório no sentido de afirmar que há relevância nos casos especificados no parágrafo segundo, ou seja, tratando-se de um rol taxativo, sobre o qual não cabe a análise subjetiva dos ministros, sob pena de ofensa à Constituição.

Para entendimento do tema, cumpre transcrever o rol taxativo de hipóteses em que há relevância constitucional:

Art. 1º O art. 105 da Constituição Federal passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 105. …………………………………………………………………………………………

§ 1º …………………………………………………………………………………………………

§ 2º No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento.

§ 3º Haverá a relevância de que trata o § 2º deste artigo nos seguintes casos:

I – ações penais;

II – ações de improbidade administrativa;

III – ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos;

IV – ações que possam gerar inelegibilidade;

V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça;

VI – outras hipóteses previstas em lei.”(NR)

Art. 2º A relevância de que trata o § 2º do art. 105 da Constituição Federal será exigida nos recursos especiais interpostos após a entrada em vigor desta Emenda Constitucional, ocasião em que a parte poderá atualizar o valor da causa para os fins de que trata o inciso III do § 3º do referido artigo.

Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

Há relevância nos casos expressos nos incisos do parágrafo 2º do artigo 105, os quais podemos ser classificados da seguinte forma: (i) em razão da matéria, os incisos I, II e IV, respectivamente, ações penais, de improbidade administrativa e que possam gerar inelegibilidade; (i) em razão do valor da causa, cujo valor ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos, inciso III; (iii) em razão das hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, inciso V; e, outras hipóteses previstas em lei, inciso VI.

Vislumbra-se que as hipóteses previstas pela Emenda Constitucional nº 125/2022 em que há relevância são delimitadas às matérias de direito público, possuem critério monetário ou ressalta a manutenção do entendimento já consolidado pelo próprio Superior Tribunal de Justiça e, por fim, demais casos previstos em lei.

Partindo da forma como está a emenda, ou seja, com as hipóteses existentes no momento presente, ressalvada eventuais hipóteses de relevância acrescidas pela lei regulamentadora ou outras leis especiais criadas futuramente, bem como aquelas que contrariar entendimento dominante do próprio Tribunal, é possível concluir que matérias de direito privado somente serão consideradas de relevância pelo critério de monetária, qual seja, valor da causa que ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos.

  • A incompatibilidade da Emenda Constitucional nº 125/2022 em razão do critério monetário como única possibilidade de admissão do recurso que verse sobre matéria de direito privado para unificar a interpretação divergente entre tribunais estaduais

Conforme exposto no tópico anterior, duas hipóteses previstas no rol taxativo da E/C nº 125/2022 demonstram que as matérias de direito privado somente serão admitidas em sede de recurso especial se contrariarem a jurisprudência dominante do próprio Tribunal Superior ou se o valor da causa ultrapassar o patamar de 500 (quinhentos) salários mínimos.

A incompatibilidade da Emenda Constitucional nº 125/2022 com os valores e funções do Superior Tribunal de Justiça traz outro questionamento em relação a possibilidade de que outras medidas tivessem sido criadas para tornar viável o julgamento da quantidade de recursos especiais que são submetidos à julgamento, tal como, o aumento de números de ministros, no entanto, a Emenda foi promulgada.

Neste sentido, veja-se que embora tenha ocorrido a tão aguardada criação do filtro de relevância para os recursos especiais, tal como apresentado, as matérias de direito privado, tais como questões contratuais, obrigacionais, de direitos reais, consumeristas, entre outras, encontrará verdadeira barreira instransponível de acesso ao Superior Tribunal de Justiça, salvo na hipótese de contrariar jurisprudência dominante da própria Corte ou ultrapassar o teto previsto.

Referida barreira certamente prejudicará não apenas os casos individuais de serem apreciados pelo Superior Tribunal de Justiça, mas, também, a formação de demanda para enquadramento dos recursos especiais para serem julgados pelo rito dos repetitivos.

O princípio da segurança jurídica e da isonomia tão almejados pelas funções atribuídas ao Superior Tribunal de Justiça para a uniformização do entendimento da lei federal no território nacional pode ser prejudicada pela limitação do acesso de determinadas matérias por cunho exclusivamente monetário.

Sabe-se que não é a primeira vez no histórico constitucional do Brasil que houve a inserção de critério monetário para admissão de recurso, ocorreu no caso do recurso de revista na Constituição Imperial de 1824, para a admissão do recurso de revista em face das sentenças proferidas caso o valor da causa excedesse o montante de 2.000$000.[7]

Contudo a Constituição Imperial não possuía os valores presentes da Constituição Federal vigente, tanto que o Superior Tribunal de Justiça assume o status de Tribunal Cidadão, porquanto suas decisões influenciam diretamente no cotidiano das pessoas.

Outrossim, do ponto de vista do que é relevante constitucionalmente, considerando as funções do Superior Tribunal de Justiça, já expostas nos capítulos anteriores, não é crível que um critério monetário seja parâmetro de relevância.

Partindo desta premissa, as matérias de cunho de direito privado são aquelas que mais estão presentes no dia a dia dos cidadãos brasileiros, mas, de forma totalmente, incompatível com os valores constitucionais, os filtros de arguição de relevância para admissão do recurso especial barram que tais materiais, em ações com valores abaixo de 500 (quinhentos) salários mínimos, tenham a palavra final por parte do Superior Tribunal de Justiça.

Restando às matérias de direito de privado exclusivamente o critério em razão do valor da causa, salvo a hipótese de contrariar jurisprudência dominante do próprio Superior Tribunal de Justiça, tem-se a elitização do Corte que tem como característica intrínseca a cidadania.

O critério monetário apresenta outras dúvidas, como a questão dos valores limítrofes a 500 (quinhentos) salários mínimo, se será considerado o valor histórico à época do ajuizamento da ação ou deverá ser atualizado para o momento da interposição do recurso especial, bem como, nos casos em que a causa possa não atingir o referido valor, mas, eventualmente, a condenação possa ultrapassar o limite. Veja-se que são pontos que talvez sejam esclarecidos pela lei regulamentadora da Emenda ou somente a prática com decisões sobre o tema criará balizas para sua aplicação.

Ademais, considerando o cabimento do recurso especial para a unificação da interpretação da divergência de entendimento entre tribunais regionais, já subvalorizado pela sistemática atual, na qualidade de instrumento da uniformização da jurisprudência, será inutilizado para as matérias de direito privado considerando o rol taxativo apresentado pela Emenda.

Contudo, considerando a premissa de que os fundamentos das alíneas “a” e “c” são totalmente autônomos, restará uma saída aos recursos especiais interpostos com fundamento da alínea “a”, que é aquele que contrariar a jurisprudência dominante do próprio Tribunal Superior.

Diante do exposto, a interposição de recurso especial que versem sobre matéria de direito privado com fundamento na divergência de interpretação da lei federal por tribunais regionais, eventualmente, poderá ser admitido se enquadrado no filtro da arguição de relevância pelo critério monetário do valor da causa ultrapassar 500 (quinhentos) salários mínimos, uma vez que as demais hipóteses não incluem direito privado.

  • Conclusão

Restou demonstrada a incompatibilidade da função constitucional primordial do Superior Tribunal de Justiça de unificar a interpretação da lei federal em divergência nos tribunais estaduais, conforme a hipótese de cabimento do recurso especial prevista no artigo 105, inciso III, alínea “c”, da Constituição Federal, em contraposição com a Emenda Constitucional nº 125/2022 que instituiu a arguição de relevância como requisito de admissibilidade do recurso especial.

Pois, o rol constitucional tal como lançado cria uma barreira para a admissão do recurso especial que versem sobre matéria de direito privado, cuja interposição seja com fundamento na referida alínea, na medida em que somente o inciso III do parágrafo terceiro, que possui um critério monetário, tem força de possibilitar a admissão do recurso especial pela divergência de interpretação da lei federal de direito privado pelos tribunais estaduais.

Outrossim, por se tratar um tema relativamente novo, cuja aplicação encontra-se suspensa, não há material recente sobre o tema publicado pelos doutrinadores que aguardavam que fosse instituído um filtro de arguição de relevância no recurso especial, assim como existe no recurso extraordinário com a repercussão, de maneira que se arrisca que futuros questionamentos e críticas, principalmente, em relação ao critério monetário surgirão em breve.

Deste modo, conclui-se que o filtro de arguição de relevância que estipula a superação do valor da causa de 500 (quinhentos) salários mínimos, é o único filtro dentre aqueles apresentados no rol taxativo da Emenda capaz de possibilitar a admissão do recurso especial que verse sobre matéria de direito privado interposto com fundamento na alínea “c”, do inciso III, do artigo 105, da Constituição Federal, tratando-se de uma verdadeira limitação ao acesso à justiça, bem como fere o princípio constitucional da igualdade e da isonomia.

Referências bibliográficas

ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo: Processo de Conhecimento: Recursos: Precedentes. 20 ed. Thomson Reuter Brasil, 2021.

CAMPBELL, Mauro. Arruda Alvim, Eduardo. Veigas Neves, Guilherme Pimenta. Tesolin, Fabiano. Recurso Especial. Curitiba, PR. Editora Direito Contemporâneo, 2022.


[1] Graduação em Direito (2013) – Universidade Nove de Julho. Pós-Graduação: Direito Imobiliário (2015) – Fundação Getulio Vargas. Mestranda – PUC/SP Núcleo de Direito Civil Comparado. Advogada.

[2] ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo: Processo de Conhecimento: Recursos: Precedentes. 20 ed. Thomson Reuter Brasil, 2021, p. 1546.

[3] Idem, p. 1549.

[4] Idem, p. 1551.

[5] Idem, p. 1598.

[6] CAMPBELL, Mauro. Arruda Alvim, Eduardo. Veigas Neves, Guilherme Pimenta. Tesolin, Fabiano. Recurso Especial. Curitiba, PR. Editora Direito Contemporâneo, 2022.

[7] ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo: Processo de Conhecimento: Recursos: Precedentes. 20 ed. Thomson Reuter Brasil, 2021, p. 1532.