A FALTA DE ACESSIBILIDADE COMO FATOR DESENCADEADOR DE DEPRESSÃO NO AMBIENTE DE TRABALHO
10 de março de 2024LACK OF ACCESSIBILITY AS A TRIGGER FOR DEPRESSION IN THE WORKPLACE
Artigo submetido em 03 de março de 2024
Artigo aprovado em 07 de março de 2024
Artigo publicado em 10 de março de 2024
Cognitio Juris Volume 14 – Número 54 – Março de 2024 ISSN 2236-3009 |
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Autor(es): Leila Damasceno Ferreira Santos [1] |
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Resumo: Muito se tem discutido acerca da necessidade de se assegurar o cumprimento do direito ao meio ambiente do trabalho saudável. Especialmente nos últimos anos, ganhou destaque o aspecto psíquico da saúde dos trabalhadores, tendo em vista a previsão, feita pela Organização Mundial da Saúde, de que a depressão se tornará a doença mais comum do mundo até o ano de 2030. No presente artigo, se tratará especificamente sobre a questão da (falta de) acessibilidade como geradora de danos à saúde psíquica do trabalhador com deficiência. Com efeito, este trabalho visa a apresentar uma sugestão capaz de oferecer uma proteção maior ao trabalhador com deficiência, ao menos no que se refere à desnecessidade de comprovação do nexo de causalidade entre a depressão e a falta de acessibilidade reconhecida de determinado ambiente de trabalho, por meio da criação de um nexo de causalidade presumido. A pesquisa baseou-se em materiais bibliográfico-documentais, lançando-se mão da produção textual brasileira, em especial obras e artigos publicados em meio impresso ou em sítios na internet.
Palavras-chave: Depressão; nexo de causalidade; meio ambiente do trabalho; acessibilidade; pessoas com deficiência.
Abstract: Much has been discussed about the need to ensure compliance with the right to a healthy working environment. Especially in recent years, the psychological aspect of workers’ health has gained prominence, given the World Health Organization’s prediction that depression will become the most common disease in the world by 2030. This article will deal specifically with the issue of (lack of) accessibility as a cause of damage to the psychological health of disabled workers. In effect, this work aims to present a suggestion capable of offering greater protection to workers with disabilities, at least in terms of not having to prove the causal link between depression and the recognized lack of accessibility of a given work environment, by creating a presumed causal link. The research was based on bibliographic-documentary materials, using Brazilian textual production, especially works and articles published in print or on websites.
Keywords: Depression; occupational illness; work environment; accessibility; people with disabilities.
Introdução
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu que o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio ocorre em 10 de setembro. No mês que marca o início da primavera no Brasil, realizam-se campanhas de conscientização sobre o tema, que fazem parte do movimento internacional conhecido como “Setembro Amarelo”.
De acordo com o sítio eletrônico oficial da campanha brasileira, os registros de suicídio em nosso país se aproximam de 14 mil casos por ano, ou seja, em média 38 pessoas cometem suicídio por dia, sem contar com a subnotificação. É preciso notar que quase 100% dos casos de suicídio notificados estavam relacionados às doenças mentais[2], principalmente não diagnosticadas ou tratadas incorretamente, dentre a quais uma das mais comuns é a depressão.
De acordo com a OMS, o Brasil é o país com maior prevalência de depressão na América Latina, e o segundo com maior prevalência nas Américas. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde, a doença é a que mais gera incapacidade em todo o mundo e estima-se que mais de 300 milhões de pessoas, de todas as idades, sofram com esse transtorno[3].
Tendo em vista a gravidade da situação, surgiram debates também no âmbito trabalhista envolvendo a doença, que tem grande potencial incapacitante.
O debate mencionado exige que se evidencie o direito fundamental do trabalhador ao ambiente de trabalho saudável, como forma de se proteger a dignidade da pessoa humana.
Um dos temas que envolve a discussão diz respeito às doenças ocupacionais e a necessidade de estabelecimento de um nexo de causalidade, seja comprovado por meio de perícia ou presumido pela lei, entre o agravo à saúde e a atividade desenvolvida, ou o modo em que ela se desenvolve.
Nesse contexto, o presente estudo se propõe a apresentar um viés específico em que haveria ainda uma lacuna, que consiste na perquirição acerca da possibilidade de estabelecimento de um nexo de causalidade presumido, especificamente para o grupo das pessoas com deficiência, entre ambientes de trabalho que não atendem às exigências de acessibilidade e a depressão.
- A depressão como doença ocupacional
Embora possam ter origem em diversos fatores de vida, os episódios depressivos muitas vezes são desencadeados por situações experimentadas no ambiente de trabalho, ou ligadas à atividade laborativa desenvolvida. Isso porque o indivíduo adulto, em regra, costuma dedicar uma parcela significativa da sua existência a esse tipo de atividade, que lhe gera renda e lhe permite a subsistência.
No caso de alguns profissionais, existe uma presunção legal no sentido da natureza ocupacional dos transtornos de humor (F-30 a F-39), incluindo os episódios depressivos (CID: F-32). Essa presunção decorre da aplicação do nexo técnico epidemiológico previdenciário – NTEP, instituído pela lei nº 11.430/16.
O NTEP é estabelecido com base na significância estatística da associação entre o código da Classificação Internacional de Doenças – CID e o da Classificação Nacional de Atividade Econômica – CNAE. Ou seja, tendo em vista o elevado número de casos notificados de uma doença entre os profissionais de determinado ramo de atividade, optou-se por criar a presunção de nexo de causalidade entre a doença e o trabalho, com a respectiva inclusão na lista C do Anexo II do Regulamento da Previdência Social (Decreto nº 3.048/1999).
Assim, presente o NTEP, a depressão será considerada doença ocupacional. A fim de evitar esse efeito, caberá ao empregador comprovar que a enfermidade não está relacionada ao trabalho, invertendo-se, portanto, o ônus da prova.
Exemplificativamente, pode-se mencionar como exemplos de atividades econômicas que acarretam a presunção de natureza ocupacional da depressão: transporte rodoviário coletivo de passageiros, com itinerário fixo (municipal ou intermunicipal em região metropolitana); estacionamento de veículos; extração de alguns tipos de minerais; bancos múltiplos, com ou sem carteira comercial; limpeza em prédios e domicílios; administração pública em geral; justiça; segurança e ordem pública; e atividades de atendimento hospitalar.
O estabelecimento do NTEP, como resultado de uma relação percebida entre determinados agravos à saúde e as atividades laborais, portanto, não é resultado de algum tipo de acaso ou coincidência. Ainda que cada pessoa tenha características individuais próprias, inclusive genéticas, que podem influenciar no desenvolvimento da depressão, o legislador optou por utilizar a estatística como forma de se estabelecer a presunção (do nexo de causalidade), a fim de evitar que os trabalhadores sejam obrigados a apresentar provas diabólicas.
A estatística é a causa direta para estabelecimento do NTEP, mas é preciso, para os fins a que se propõe essa reflexão, questionar acerca das causas da estatística, ou seja, quais são os motivos pelos quais determinadas atividades laborais estão ligadas a um risco maior de desenvolvimento da depressão.
Apesar de não ser possível fazer essa análise individualmente, percebe-se, ao analisar a lista C do Anexo II do Regulamento da Previdência Social, que se incluem ali atividades excessivamente repetitivas, extenuantes e que expõem os trabalhadores a alguns riscos ambientais.
Conquanto a lista mencionada contemple muitas atividades laborais, grande parte dos trabalhadores se ocupam em afazeres que ainda não tiveram o nexo técnico epidemiológico estabelecido com a doença.
Nesse sentido, é preciso ter em vista que não apenas a atividade em si mesma pode ser desencadeadora de algum tipo de doença, mas também o modo pelo qual a atividade é realizado.
De fato, o conceito de doença ocupacional engloba duas categorias: doenças profissionais e doenças do trabalho. As primeiras são aquelas definidas no artigo 20, inciso I, da Lei n.8.213 de 24 de julho de 1991 como as produzidas ou desencadeadas pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social. Já as doenças do trabalho são, de acordo com o inciso II do mesmo dispositivo legal, aquelas adquiridas ou desencadeadas em função de condições especiais em que o trabalho é realizado, estando relacionadas diretamente às condições do ambiente.
Assim, seria caracterizada como doença do trabalho, por exemplo, a surdez originada em local de trabalho extremamente ruidoso.
A classificação não é meramente doutrinária. Tendo em vista gozar dos mesmos efeitos de um acidente de trabalho, gerando a estabilidade de doze meses após a alta médica, conforme previsão contida no artigo 118 da Lei 8.213/91, é importante identificar quando uma doença é ocupacional.
Por esse motivo, em novembro de 2023 o Ministério da Saúde publicou a Portaria GM/MS Nº 1.999, para atualizar a Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT). Com a alteração, a lista do órgão passou a incluir, dentre outras doenças, a ansiedade, a depressão e a tentativa de suicídio.
Contudo, muito embora a lei tenha garantido direitos como o da estabilidade aos trabalhadores, e criado o NTEP para ajudar na caracterização das doenças profissionais, observa-se que existe uma lacuna no que diz respeito ao grupo social vulnerável das pessoas com deficiência.
2- Do direito fundamental a um meio ambiente de trabalho saudável
A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) foi aprovada em 1948, e com ela iniciou-se uma era marcada pelo conceito da dignidade da pessoa humana, que a partir de então passou a ser incorporada nos tratados e declarações de direitos humanos.
Cumpre mencionar que o conceito contemporâneo de saúde, de acordo com a Organização Mundial de Saúde – OMS, consiste no “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades” (OMS, 1946). Essa definição serviu como base para o art. 3º, alínea “e”, da Convenção nº 155 da Organização Internacional do Trabalho – OIT (1983), segundo a qual o “termo saúde, com relação ao trabalho, abrange não só a ausência de afecções ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene no trabalho” (OROGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1994). A Convenção foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 1.254/1994 (BRASIL, 1994).
Poucos anos antes, a Constituição Federal de 1988 trouxe a inovação consubstanciada na proteção ao meio ambiente, nele incluído o do trabalho, resguardando-se, por consequência, o direito à vida e dignidade humana do trabalhador.
O artigo 225 da Constituição Federal determina que:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL, 1988).
No mesmo sentido, o artigo 200 da Carta Magna prevê a responsabilidade do Sistema Único de Saúde na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
Para Júlio César de Sá da Rocha, o meio ambiente do trabalho é um “[…] locus dinâmico, formado por todos os componentes que integram as relações de trabalho e que tomam uma forma no dia-a-dia laboral”; não se restringe ao espaço interno da fábrica ou da empresa e alcança, por isso mesmo, o próprio local de morada ou o ambiente urbano; representa “[…] todos os elementos, inter-relações e condições que influenciam o trabalhador em sua saúde física e mental, comportamento e valores reunidos no locus do trabalho”; é o ponto de partida para que se assegure a saúde no trabalho, que representa o resultado da interação dos diversos elementos do ambiente (bens, maquinários, instalações, pessoas etc.), “[…] provocando ou não o bem-estar no trabalho” (ROCHA, 2013, p. 99-100).
Salutar trazer também o conceito sugerido por Ney Maranhão, para quem:
meio ambiente do trabalho é a resultante da interação sistêmica de fatores naturais, técnicos e psicológicos ligados às condições de trabalho, à organização do trabalho e às relações interpessoais que condiciona a segurança e a saúde física e mental do ser humano exposto a qualquer contexto jurídico-laborativo. Colocada em tais termos, nossa proposta visa a se alinhar com os alicerces teóricos até aqui firmados, em especial porque: (i) descreve não o ambiente, mas o meio ambiente, desconectando-se de qualquer viés físico-geográfico14; (ii) expressa um foco sistêmico do ente ambiental, incorporando a dinamicidade que lhe é inerente; (iii) conjuga fatores naturais e humanos, apartando-se de tônicas exclusivamente ecológicas; (iv) expõe com clareza todos os fatores de risco labor-ambientais (condições de trabalho, organização do trabalho e relações interpessoais), viabilizando maior amplitude na avaliação jusambiental da higidez do meio ambiente de trabalho; (v) centra sua estruturação em perspectiva humanista, na medida em que construída em torno da qualidade de vida do ser humano que dá cumprimento ao seu mister laboral, inclusive no que respeita à sua saúde mental; (vi) alcança o ser humano em qualquer condição jurídico-laborativa, ou seja, independentemente da existência do fenômeno hierárquico-subordinativo; (vii) açambarca a legítima proteção jurídica da qualidade da vida humana situada no entorno do ambiente de trabalho, também exposta, ainda que indiretamente, à agressiva propagação sistêmica de possíveis nocividades labor-ambientais.
Ingo Wolfgang Sarlet pontua que o direito à qualidade de vida e o direito ao meio ambiente, embora tenham titularidade difusa ou coletiva, permanecem com sua dimensão individual preservada, reclamando novas técnicas de garantia e proteção.
Ao trazer o tema para o debate, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNUMAD), que ocorreu no Rio de Janeiro, em 1992 (Rio-92), afirmou a necessidade de implementação do desenvolvimento sustentável, com prioridade para a proteção ao meio ambiente de trabalho, ao meio ambiente conexo e à promoção do desenvolvimento econômico e social.
Ainda, na Primeira Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, exarou-se o Enunciado 39, segundo o qual: “É dever do empregador e do tomador dos serviços zelar por um ambiente de trabalho saudável também do ponto de vista da saúde mental, coibindo práticas tendentes ou aptas a gerar danos de natureza moral ou emocional aos seus trabalhadores, passíveis de indenização”.
Ora, é inegável que a saúde mental tem tanta importância quanto à física, e que os agravos ocorridos no meio ambiente de trabalho que ferem a higidez psíquica dos indivíduos ferem a dignidade da pessoa humana da mesma forma que um acidente que causasse lesão corporal.
Ademais, é preciso ter em vista que as doenças psíquicas vêm sendo cada vez mais notadas, o que levou a Organização Mundial da Saúde, inclusive, a denominar a depressão como “o mal do século” e estimar que, até 2030, deve se tornar a doença mais comum no mundo. Nesse contexto, “agora o novo desafio deste século, na gestão dos recursos humanos e na preocupação da qualidade de vida na empresa, é com o estresse psíquico; para muitos, esta é a nova enfermidade da modernidade.” (ALMEIDA; GUTIERREZ; MARQUES, 2012, p. 93).
Nesse contexto, criou-se O Fator Acidentário de Prevenção – FAP, que consiste em um multiplicador, atualmente calculado por estabelecimento, utilizado para calcular o grau de acidentalidade nos ambientes de trabalho. O FAP incide, então, sobre a folha de salários das empresas para custear aposentadorias especiais e benefícios decorrentes de acidentes de trabalho, de forma que se torna um incentivo a que os empregadores zelem pela saúde dos meios ambientes de trabalho, cumprindo a obrigação prevista na lei. O FAP varia anualmente e é calculado sempre sobre os dois últimos anos de todo o histórico de acidentalidade e de registros acidentários da Previdência Social.
Por meio da utilização do FAP, as empresas que registram maior número de acidentes ou doenças ocupacionais, pagam mais à Previdência. Por outro lado, no caso de nenhum evento de acidente de trabalho, a empresa é bonificada com a redução de 50% da alíquota.
3 – Acessibilidade como fator essencial para a saúde no trabalho das pessoas com deficiência
Mais cedo, mencionamos que, muito embora a lei tenha previsto o NTEP para ajudar na caracterização das doenças profissionais, observa-se que existe uma lacuna no que diz respeito ao grupo social vulnerável das pessoas com deficiência.
De fato, para as pessoas com deficiência, um ambiente de trabalho saudável, além de possuir todas as características que assegurem o bem-estar dos demais trabalhadores, deve ser acessível.
Isso porque um ambiente que não atenda aos parâmetros de desenho universal e não seja acessível para todas as pessoas, certamente carrega o potencial de desencadear agravos à saúde dos trabalhadores, especialmente em seu aspecto psíquico.
Imagine-se, por exemplo, uma pessoa surda que trabalha em um ambiente sem acessibilidade comunicacional, ou seja, em que seus pares e superiores não sabem se comunicar em libras, e em que não existem intérpretes para intermediar essa comunicação.
É fácil notar que a situação geraria isolamento social, bem como afetaria a sensação de pertencimento do trabalhador e possivelmente sua autoestima, ao aumentar o estigma social que essas pessoas já carregam. Nesse caso, o trabalhador surdo passaria o expediente inteiro apenas trabalhando, sem poder se comunicar com as pessoas ao seu redor, nem mesmo nos intervalos intrajornada e nas pausas, comumente utilizados também para a socialização.
Nesse caso, cabe-nos questionar se, caso desenvolvesse depressão, não seria o caso de se aplicar ao trabalhador também uma presunção de nexo de causalidade e aqui defendemos que a resposta é afirmativa.
A Lei 13.146/15, em seu artigo 34, garante que a pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. O §1º do dispositivo legal mencionado determina a responsabilidade das organizações neste aspecto: “as pessoas jurídicas de direito público, privado ou de qualquer natureza são obrigadas a garantir ambientes de trabalho acessíveis e inclusivos”. O artigo 56, por sua vez, esclarece que as edificações públicas e privadas de uso coletivo já existentes devem garantir acessibilidade à pessoa com deficiência em todas as suas dependências e serviços, tendo como referência as normas de acessibilidade vigentes.
Nesse contexto, é preciso recordar que a acessibilidade dos locais de trabalho não se restringe apenas ao seu viés arquitetônico, mas inclui também outras formas, como a acessibilidade atitudinal, estrutural e comunicacional. O desrespeito a qualquer um desses aspectos representa omissão no que se refere à inclusão.
Ademais, é fundamental entender a inexistência de acessibilidade como uma questão inerente à discriminação, e que com ela se relaciona de maneira simbiótica e retroalimentar. Com efeito, o desrespeito do direito de ir-e-vir das pessoas com deficiência representa verdadeiro entrave ao exercício da cidadania, comprometendo a circulação e empobrecendo a interação social. Assim como a discriminação, o direito à acessibilidade também possui caráter instrumental, e sua inobservância interdita diversas vias, além daquelas de circulação: as vias do direito à saúde, à educação, à própria perspectiva da sociabilidade e também do direito ao trabalho[4].
A questão abrange, outrossim, a obrigação do empregador de promover adaptações razoáveis (art. 3º, VI, da Lei nº 13.146/2015; art. 3º, VI, da Resolução nº 401 de 2021 do CNJ e art. 2º da a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo)[5] e a necessidade de utilização do desenho universal nos locais de trabalho (art. 3º, II, da Lei nº 13.146/2015; art. 3º, V, da Resolução nº 401 de 2021 do CNJ; e art. 2º da a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo)[6]. Inclui, ainda, a maneira de chegar ao trabalho, levando em consideração as condições objetivas de cada localidade e dos meios de transporte públicos disponíveis.
Nas palavras elucidativas de Isabel Lima, Ana Lima e Perla Villaverde,
Morar em uma cidade constitui uma possibilidade afiançada de dispor daquilo que o espaço urbano faculta. O ir-e-vir, portanto, na autorização do público do transporte coletivo, ancora o contraponto do limite discriminatório do não poder ir-e-vir para aqueles que enfrentam limites físicos concretos de locomoção, e que demandam o apoio material ou humano para acessar aquilo que lhe é de direito. As barreiras, de formas objetivas ou não, vão alem da paisagem arquitetônica: impedem construções simbólicas de aspectos coletivos e societários que possibilitem um ideário de diversidade.
Este encarceramento, mais do que simbólico, ao qual as pessoas com deficiência estão expostas não é resultado de suas lesões, mas de odo um ambiente hostil à diversidade física. Tal posicionamento denuncia a incapacidade social em prever e incorporar estas diferenças, trazendo o seguinte questionamento: ‘Seria um corpo com lesão que limitaria a participação social ou seriam os contextos poucos sensíveis à diversidade que segregaria o deficiente?’[7].
Estamos diante, nesse caso, de verdadeiro “apartheid social”.
Feita toda essa reflexão, apontamos para a necessidade de se criar uma presunção legal de causalidade, à semelhança do que foi feito por meio do NTEP, para os trabalhadores com deficiência que exerçam suas atividades em ambientes de trabalho reconhecidamente inacessíveis.
Conforme explicitado anteriormente, o modo de realização do labor é responsável pela caracterização das doenças do trabalho. Assim, tendo em vista que o modo de realizar o trabalho num ambiente inacessível, para pessoas que necessitam de acessibilidade, é inadequado, discriminatório, segregador e estigmatizante, defende-se a aplicação, nesses casos, da presunção de adoecimento laboral, com todas as suas consequências jurídicas, que incluem a estabilidade para o trabalhador e a penalização em relação ao FAP.
De fato, um dos efeitos positivos da medida seria a repercussão na alíquota do Fator Acidentário de Prevenção, de modo que as empresas tivessem mais esse incentivo para prevenir esses agravos à saúde e cumprir a obrigação legalmente imposta de garantir a acessibilidade em todos os locais de trabalho.
Ademais, sob a perspectiva do empregador, a iniciativa incentivadora da prevenção também seria benéfica. De acordo com um estudo feito pela OMS, que estimou os custos de tratamento e os resultados de saúde em 36 países de diferentes níveis de renda para o período de 2016 a 2030, baixos níveis de reconhecimento e acesso a cuidados para a depressão e a ansiedade acarretam uma perda econômica global de um trilhão de dólares americanos por ano.
Perdem os indivíduos quando não podem trabalhar, ou trabalham em condições inadequadas; perdem as empresas que são atingidas quando os funcionários se tornam menos produtivos e são incapazes de desempenhar suas funções; e também os Estados, onerados com mais gastos destinados à saúde e à previdência.[8]
Considerações Finais
Como visto, o trabalhador tem o direito fundamental a um ambiente de trabalho saudável em todos os aspectos, incluindo aqueles que possam gerar agravos à sua saúde mental.
No caso do trabalhador com deficiência, é inquestionável que o ambiente de trabalho, para ser considerado saudável, necessita ser também acessível e inclusivo, conforme estabelecido em lei.
Caso a pessoa com deficiência trabalhe em local sem a acessibilidade adequada, em qualquer de suas formas, reconhece-se que está submetida a um ambiente segregador, discriminatório e potencialmente estigmatizante.
Dessa forma, na hipótese de desenvolver determinadas doenças psíquicas, em especial a depressão, defende-se a necessidade de se presumir o nexo de causalidade entre sua enfermidade e o modo pelo qual o trabalho é executado, reconhecendo-se a natureza ocupacional de eventual afastamento.
Essa medida parte do pressuposto lógico de que, da mesma forma que algumas doenças foram incluídas nas listas da Previdência Social como presumidamente decorrentes de determinadas atividades profissionais ou modo pelos quais elas são realizadas, caso houvesse uma atenção do Poder Público quanto aos efeitos deletérios da falta de acessibilidade para as pessoas com deficiência, essa correlação também poderia ser encontrada.
Ademais, essa medida revela-se não apenas importante, mas essencial na medida em que se entende que as pessoas com deficiência precisam de uma proteção especial também no que se refere à saúde mental, considerando que já são vítimas de uma sociedade brasileira estruturalmente discriminatória e segregadora.
Referências
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[1] Auditora-fiscal do trabalho. Mestranda em Direito pela PUCSP. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela FGV/SP. Especialista em Psicologia Positiva, Ciência do Bem-Estar e Autorrealização pela PUC/RS. Bacharel em direito pela UFBA.
[2] Disponível em: <https://www.setembroamarelo.com/ >.
[3] Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/setembro/na-america-latina-brasil-e-o-pais-com-maior-prevalencia-de-depressao>.
[4] Políticas Públicas e pessoa com deficiência: direitos humanos, família e saúde. Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima, Isabela Cardoso de Matos Pinto, Silvia de Oliveira Pereira (organizadoras). Salvador: EDUFBA, 2011, p. 263.
[5] Lei 13.146/2015: “Art. 3º. Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se: (…) VI – adaptações razoáveis: adaptações, modificações e ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional e indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que a pessoa com deficiência possa gozar ou exercer, em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos e liberdades fundamentais”.
No mesmo sentido, o Art. 3º, VI, da Resolução 401 do CNJ, de 16 de junho de 2021 e o art. 2º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo.
[6] Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se: (…) II – desenho universal: concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva”.
[7] Políticas Públicas e pessoa com deficiência: direitos humanos, família e saúde. Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima, Isabela Cardoso de Matos Pinto, Silvia de Oliveira Pereira (organizadoras). Salvador: EDUFBA, 2011, p. 266-268.
[8] Disponível em: <https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5385:com-depressao-no-topo-da-lista-de-causas-de-problemas-de-saude-oms-lanca-a-campanha-vamos-conversar&Itemid=839>.