A ANÁLISE DO ATIVISMO JUDICIAL COM BASE NO JULGAMENTO DA CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA E DA TRANSFOBIA NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO — ADO N. 26

A ANÁLISE DO ATIVISMO JUDICIAL COM BASE NO JULGAMENTO DA CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA E DA TRANSFOBIA NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO — ADO N. 26

28 de novembro de 2023 Off Por Cognitio Juris

THE ANALYSIS OF JUDICIAL ACTIVISM BASED ON THE TRIAL OF THE CRIMINALIZATION OF HOMOPHOBIA AND TRANSPHOBIA IN THE DIRECT ACTION OF UNCONSTITUTIONALITY BY OMISSION — ADO N. 26

Artigo submetido em 29 de setembro de 2023
Artigo aprovado em 10 de outubro de 2023
Artigo publicado em 28 de novembro de 2023

Cognitio Juris
Volume 13 – Número 50 – Novembro de 2023
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Anna Karina Omena Vasconcellos Trennepohl [1]
Eduardo Kazumi De Lorena Infante Vieira Kobayashi [2]

Resumo: O Poder Judiciário assumiu, no desenrolar da última década, papel central na dinâmica constitucional brasileira. A crescente ampliação do objeto da jurisdição constitucional, especialmente após o advento da Constituição Federal de 1998 transformou o Supremo Tribunal Federal em espaço-chave de proteção da autonomia do Direito e da própria democracia. Importantes questões da filosofia política, com ramificações significativas para a vida de muitas pessoas, adentram ao âmbito de atuação do Supremo Tribunal Federal. O julgamento de Ação de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO n. 26, que criminalizou a homofobia e a transfobia, equiparando-os ao racismo, instigou a discussão acerca dos limites interpretativos da constituição e a delimitação da atividade jurisdicional frente aos demais Poderes estatais. Isto é, até que ponto o Supremo Tribunal Federal está autorizado a agir de forma contra majoritária, em defesa da normatividade? O presente artigo busca, nesse sentido, analisar as opiniões doutrinárias a respeito do tema, também sob uma perspectiva filosófica, e, em seguida, proceder ao estudo do julgamento da ADO n. 26, para entender se esta foi ou não uma decisão decorrente de uma atuação ativista do Poder Judiciário.

Palavras-chave: Minorias; LGBTQIAPN+; Ativismo Judicial; Ação Direta Inconstitucionalidade Omissão n. 26.

Abstract:  Over the past decade, the Judiciary has played a crucial role in Brazil’s constitutional landscape. With the expansion of constitutional jurisdiction, particularly after the 1998 Federal Constitution, the Federal Supreme Court has become a vital institution for safeguarding the autonomy of the law and democracy itself. The Court deals with important political and philosophical questions that have significant implications for people’s lives. The recent decision in the Action of Unconstitutionality by Omission – ADO n. 26, which equated homophobia and transphobia with racism, has sparked discussions about the limits of constitutional interpretation and the scope of the Court’s jurisdictional activity vis-à-vis other state powers. In other words, to what extent can the Federal Supreme Court act against the majority, in defense of normativity? This article aims to examine the doctrinal opinions on the subject, including from a philosophical perspective, and analyze the ADO n. 26 decision, to determine whether it was a result of the Judiciary’s activism actions or not.

Keywords: Minorities; LGBTQIAPN+; Judicial activism; Direct Action Unconstitutionality Omission n.26.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Apesar da igualdade real ser um dos seus pilares da democracia, na prática, ela é difícil de ser estabelecida na forma ideal para que esta igualdade de fato se concretize. Dessarte, uma das funções das leis é justamente igualar as desigualdades. Contudo, as referidas leis podem ainda ser inexistentes ou insuficientes para tanto.

Para suprir a carência legislativa, que resulta em desigualdade entre indivíduos que deveriam ser tidos como iguais, surge a questão se esta poderia ser suprida pelos outros Poderes, que não o Poder Legislativo. Discute-se, portanto, como isso afetaria o caráter democrático da legislação que deveria ser elaborada pelos indivíduos eleitos para tanto, em que pese direitos humanos serem afetados por sua omissão.

No entanto, é importante destacar em que momento esta proatividade do Judiciário surgiu e quais limites deveriam balizar essa atuação não legislativa que visa suprimir uma lacuna legislativa.

Além disso, no que tange aos direitos humanos, quais decisões judiciais foram emblemáticas até o momento e podem justificar a necessidade de tal atuação pelos outros poderes, em especial o Poder Judiciário?

Desse modo, o presente artigo analisará o papel do Poder Judiciário como meio de efetivação dos direitos das minorias sociais, ou seja, daqueles que são excluídos por questões étnicas, financeiras, de gênero, sexualidade etc.

Consequentemente, fez-se a verificação das alterações ocorridas no Poder Judiciário com o advento da Carta Magna de 1988. Em seguida, foram relacionadas as dificuldades encontradas pelas minorias sociais para a garantia dos direitos constitucionalmente previstos e como tem ocorrido a atuação do Poder Judiciário, momento em que se examinou a questão dos conceitos existente sobre o ativismo judicial e o recente julgamento da ADO n. 26.

No que diz respeito à metodologia, adotou-se a vertente jurídico-sociológica com abordagem dedutiva, valendo-se da pesquisa bibliográfica e documental.

2. O PODER JUDICIÁRIO NO BRASIL APÓS A CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Constituição é uma regra básica, considerada como a primeira das ordens. No entanto, ela por si só não concretiza a justiça, mas mostra o caminho em que esta pode ser alcançada, com a adequada configuração da vida humana em sociedade.

Consoante o preâmbulo da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), o Brasil é um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Verifica-se, pois, no Texto Constitucional, um rol de direitos que, muitas vezes, não são efetivados pelo Estado, quando este não proporciona as condições necessárias para tanto, e, muitas vezes, o caminho perseguido para a sua efetividade é através do Poder Judiciário, o qual é um Poder que passou por diversas mudanças.

As mudanças no Poder Judiciário brasileiro ocorreram após o término do regime militar e o advento da Constituição Federal de 1988, momento em que foram recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, que deixaram de ser um departamento técnico especializado e passaram a desempenhar um papel político, ladeado pelo Executivo e Legislativo (Barroso, 2023, p. 382). Além disso, houve o aumento da demanda por justiça, tendo em vista o rol de direitos fundamentais, direitos sociais e das políticas públicas descritos na Constituição.

No ano de 2004 foi publicada a Emenda Constitucional — EC n. 45, que trouxe a Reforma do Judiciário, acarretando em diversas inovações, bem como muitas medidas a fim de torná-lo mais célere e eficiente, com mudanças na organização e no funcionamento da Justiça brasileira (Brasil, 2004).

Em uma dessas mudanças, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos passaram a ter posição constitucional quando aprovados sob o mesmo rito de emendas constitucionais.

É importante destacar que, na na primeira década de 2000 e parte da década de 2010, vários setores da sociedade, como grupos populares ou comunidades identitárias específicas, conquistaram direitos legais e ganharam maior consciência deles, adotando uma estratégia de mobilização e busca de acesso ao sistema judicial para exigir o cumprimento desses direitos (Gohn, 2022, p. 23).

Contudo, ante o princípio da inércia do Poder Judiciário, este não pode atuar, desde o início, proativamente, sem que tenha sido impulsionado. Todavia,  uma vez sendo instado, deve analisar as postulações de direitos subjetivos, em pretensões coletivas ou em processos objetivos. Teve-se, desse modo, a maior ênfase no processo de judicialização das ações coletivas, abrindo-se caminhos tanto para oportunidades, barreiras e movimentos sociais demandarem em juízo.

Como dito por Gohn (2022):

De forma geral, pode-se observar que nos últimos anos houve um esvaziamento dos espaços e conquistas democrática, como também um retraimento das ações coletivas em movimentos sociais, um crescimento de grupos mais híbridos e heterogêneos em coletivos, assim como uma judicialização das conquistas anteriores, como forma de resistência e protesto. A arena do Supremo Tribunal Federal passou a ser o grande vale de esperança para barrar as contínuas perdas e agressões aos direitos anteriormente conquistados (p. 222).

O acesso à justiça é principalmente reconhecido com a remoção de barreiras para a promoção de demandas que já são tidas como direitos (Galanter, 2015, p. 43). Há inúmeras barreiras de acesso à justiça para a população em geral, mas, quando se trata de minorias, elas são ainda maiores, tendo em vista a dificuldade de representação judicial. Com isso, busca-se através do direito ao acesso à justiça a efetivação de outros direitos.

3.  O PROTAGONISMO DAS CORTES CONSTITUCIONAIS NA CONTEMPORANEIDADE

Na linha do que foi descrito, pode-se dizer que a Constituição de 1988 estabeleceu a democracia constitucional no Brasil, consagrando, para além do catálogo de direitos fundamentais e sociais, uma nova divisão de Poderes com a instituição de uma Corte Constitucional cujas decisões passaram, após a Emenda Constitucional n. 45, de 2004, a ter efeito vinculante (Brasil, 2004).

A criação de uma jurisdição constitucional efetiva no Brasil, com amplos mecanismos de proteção de direitos fundamentais, estabeleceu um modelo misto de controle de constitucionalidade das leis, o qual é um verdadeiro ponto de inflexão na história constitucional brasileira.

Nota-se, nesse sentido, que a inexistência de uma jurisdição constitucional efetiva, ao longo da história brasileira, traduziu necessariamente a incapacidade de salvaguardar direitos e garantias fundamentais. Não é por outra razão que no desenrolar da última década, o Supremo Tribunal Federal assumiu, na dinâmica constitucional, papel central, quer em virtude do recrudescimento do autoritarismo, quer seja pela necessidade de garantia dos Direitos fundamentais e dos Direitos Humanos.

Desse modo, torna-se notória a crescente ampliação do objeto da jurisdição constitucional brasileira, bem como do surgimento de novas modalidades de decisão, a partir do advento da Constituição de 1988. Com isso, o Poder Judiciário passou a desempenhar extrema importância na garantia do pacto constitucional e das regras do jogo democrático, em especial em países de modernidade tardia, capitalismo periférico e recentes ou frágeis democracias, como alguns países da América Latina (Serrano, 2016, p. 1).

Dessa forma, importantes questões da filosofia política, com ramificações significativas para a vida de muitas pessoas, adentram ao âmbito de atuação do Supremo Tribunal Federal. Veja-se, por exemplo, as discussões em torno de: células-tronco embrionárias (Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 3510), União homoafetiva (ADI 4.277), Cotas raciais (Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC 41 e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186), Direitos dos povos indígenas (Ação Popular/ Petição 3388 e Recurso Extraordinário – RE 1.017.365), Sistema político (ADCs 29 e 30, ADI 4.578), (ADIs 1.351 e 1.354); Cassação de mandato parlamentar (Mandado de Segurança – MS 32.326), Financiamento de campanha eleitoral (ADI 4.650), Descriminalização do aborto (Habeas Corpus 124.306) e interrupção da gravidez de feto anencefálico (ADPF 54/DF), Presunção de inocência (Habeas Corpus 126.292), Habeas Corpus (152.752 e a ADC 43/44), Federalismo (ADI 6341), Direito das minorias parlamentares (MS 26441 e MS 37760), para não citar tantos outros.

Nesse contexto, a jurisdição constitucional torna-se espaço-chave de proteção da autonomia do Direito e da própria democracia. Convém ressaltar que é o constitucionalismo, compreendido historicamente como instrumento civilizatório de limitação de poder, por meio da jurisdição constitucional, que coloca freios, racionaliza o poder e assegura ao cidadão a proteção de seus direitos fundamentais.

Peter Häberle assevera que a função da jurisdição constitucional consiste na limitação, racionalização e controle do poder estatal e social, na proteção das minorias e dos débeis e na reparação dos novos perigos para a dignidade humana. Dessa forma, pode-se elencar quatro funções primordiais a serem realizadas pela jurisdição constitucional: 1) Limitar o Poder Público – último ponto em que ocorre o controle dos atos do Poder Executivo; 2) Garantir a existência das minorias e assegurar a proteção dos direitos fundamentais previstos no texto constitucional e nos tratados internacionais que o Brasil seja signatário; 3) Corrigir os equívocos e omissões do Poder Legislativo, funções que a jurisdição constitucional adquiriu em virtude do recrudescimento das decisões manipulativas e aditivas; 4) Conferir, em termos dogmáticos, coerência e garantia a preservação da própria autonomia do Direito, mais precisamente, da própria Constituição federal pela jurisprudência advinda da jurisdição constitucional, desde que consistentemente fundamentada (Abboud, 2021a, p. 469).

Dessarte, não pairam dúvidas quanto à importância da atuação contramajoritária dos Tribunais e da afirmação de direitos fundamentais contra maiorias ocasionais, exercida por meio do controle de constitucionalidade.

Na atual quadra histórica, determinada pelo desenvolvimento e amadurecimento do Estado Democrático de Direito, torna-se imperiosa a proteção de conquistas civilizatórias, uma vez que o Direito adquire e carrega historicamente a dimensão de processo civilizador e racionalizador do poder (Abboud; Garbellini Carnio; Tomaz de Oliveira, 2020, p. 56–57), razão pela qual não se pode admitir o exercício arbitrário dos Poderes Executivo, Legislativo e, tampouco, o exercício discricionário do Poder Judiciário.

Tal constatação carrega consigo a dimensão fundamental que a atividade decisória exerce na dinâmica do Estado Democrático de Direito, em especial, na concretização dos direitos democraticamente produzidos pela sociedade. Isso significa que a decisão judicial é o momento não só de concretização dos direitos produzidos pela sociedade, como também, em última análise, a oportunidade de cumprimento da própria democracia, visto que o direito é produto do processo democrático.

Ocorre que o papel central das constituições na sociedade contemporânea, traduzida pelo protagonismo das cortes constitucionais, legítimas guardiãs de sua salvaguarda (Kelsen, 2003), revisitaram a discussão acerca dos limites da atuação deste Poder no exercício de sua função contramajoritária. Isto é, até que ponto o Supremo Tribunal Federal está autorizado a agir de forma contramajoritária, em defesa da normatividade?

Nesse diapasão, faz-se necessário enveredar pela análise da teoria da decisão judicial, visando demonstrar os fundamentos filosóficos necessários para a construção de uma teoria hermenêutica apta a enfrentar os contornos da atuação do Supremo Tribunal Federal.

4. BREVE ANÁLISE SOBRE OS CONCEITOS DE ATIVISMO JUDICIAL.

O recrudescimento em torno da polêmica do conceito de Ativismo Judicial não é nada original do hodierno contexto brasileiro, altamente polarizado. Já nos Estados Unidos, do século passado, travou-se verdadeiro embate entre Democratas e Republicanos em torno desse conceito.

Regressando então, em um comparativo histórico, percebe-se que o conceito de ativismo judicial, que teve seu nascedouro no contexto norte-americano, nem sempre apresentou um significado uníssono. Lá, os contornos do conceito estavam ligados à questão da judicial review e da judicial self restraint, isto é, à possibilidade de o Poder Judiciário realizar o controle constitucional das leis e os limites da separação de poderes.

Nessa toada, ao explicar o pensamento do jurista Christopher Wolfe, que identifica três grandes fases históricas do ativismo judicial, Abboud realiza a seguinte descrição:

A primeira está compreendida entre o advento da Constituição e o surgimento efetivo da judicial review, com o precedente Marbury vs. Madison. A segunda fase, de cariz mais restritivo, é marcada, de um lado, pelo declínio da judicial review e, do outro, por uma utilização crescente da posição originalista no controle de constitucionalidade das leis e atos do Estado. Por fim, a terceira se consolida a partir da segunda metade do século XX, com a atuação cada vez mais pronunciada da Suprema Corte dos EUA na proteção de direitos, assegurando, inclusive, aqueles que não teriam previsão expressa na constituição. Essa etapa é marcada, também, por decisões a favor da eliminação das discriminações raciais e sexistas, as quais tinham por mote a isonomia” (2021a, p. 1491).

É imprescidível destacar que não há unanimidade sobre o conceito de ativismo judicial.

Autores, como Barroso (2023, p. 416), entendem a ideia de ativismo judicial associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos dois outros Poderes.

Outros, no entanto, entendem que o conceito não é tão abrangente. Abboud (2022, p. 14), explica que o Ativismo Judicial é um fenômeno vazio de ideologia e adverte que:

Ativista, é toda decisão judicial que se fundamente em convicções pessoais ou no senso de justiça do intérprete, à revelia da legalidade vigente, entendida aqui como a legitimidade do sistema jurídico, e não como mero positivismo estrito ou subsunção rasteira do fato ao texto ou quando o juiz se nega a atuar.

Vê-se neste autor, assim como para muitos outros, que toda atuação judicial que ignore o texto da Constituição Federal ou de lei, tidas por constitucionais, é considerada ativista. Seria o caso, por exemplo, de um julgador que ignorasse a permissão para o aborto de feto, fruto de estupro, previsto no art. 128, II, do Código Penal, por razões de sua íntima convicção religiosa (Brasil, 1940).

Em outras, palavras, quando o julgador, conduz a centralização de elementos meta-jurídicos (eg., voz das ruas, vontade da maioria, consequencialismo, defesa de convicções íntimas, combate à corrupção a qualquer custo…) para fundamentar sua decisão, torna-se a atividade decisória ambiente fecundo para a disseminação do Ativismo Judicial.

De qualquer maneira, a “poluição semântica” em torno do que significa dizer se uma decisão é ou não ativista, justifica o desenvolvimento de um tópico voltado para este propósito.

Vemos, portanto, que juristas como Barroso entendem que ativismo é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e seu alcance (2023, p. 416) e outros, como Abboud, que defendem que, em termos qualitativos, toda decisão judicial ativista é ilegal e inconstitucional, porque desprovida de respaldo na Constituição Federal e na lei, fundamentando-se apenas na vontade do julgador (2022, p. 73).

Importante ressaltar, que embora importantes juristas, como Jeremy Waldron, defendam a impossibilidade de o Poder judiciário realizar o controle de constitucionalidade. Todavia, este é um debate que não se coaduna com o Direito brasileiro, haja vista previsão expressa na própria Constituição Federal, em seu art. 102[3] (Brasil, 1988).

Nesta forma, uma vez exercido ou não o controle da constitucionalidade, este, per se não seria uma ação ativista, já que encontraria respaldo no Texto Constitucional e na legislação infraconstitucional. É apenas a concretização da forma normativa constitucional.

Daí a importância de estabelecermos critérios para a atividade decisória, dentro dos quais será possível dizer se uma decisão é ou não ativista. Nesse intuito, é necessário discorrer acerca dos fundamentos filosóficos necessários para a construção de uma teoria hermenêutica apta a enfrentar o problema da discricionariedade na decisão judicial. É o que pretendemos nos tópicos seguintes.

5. O PROBLEMA FILOSÓFICO DA DISCRICIONARIEDADE

A teoria do Direito do século XX concentrou, por várias vezes, seus esforços no estudo de normas jurídicas e sua respectiva validade no sistema jurídico. A atividade decisória, contudo, demorou a assumir o papel central no estudo da teoria do direito, tal como se pode observar no maior expoente doutrinário da época, Hans Kelsen. Em sua doutrina pura do direito, Kelsen não deu grande importância ao estudo da interpretação e da decisão judicial (Müller, 2013, p. 51).

Isso se dá em razão de um detalhe que é muitas vezes despercebido na teoria kelseniana: a cisão entre direito e ciência do direito, e logo a cisão entre interpretação como ato de vontade e interpretação como ato de conhecimento (Kelsen, 2003, p. 392).

A primeira está relacionada à produção de proposições no âmbito da ciência do direito (em especial à dimensão sintática e semântica dos enunciados jurídicos), ao passo que a segunda diz respeito ao momento da aplicação e produção de normas pelo órgão aplicador do direito.

É justamente nesse modelo interpretativo que reside a discricionariedade positivista, amplamente conhecida: “a interpretação dos tribunais é um problema de vontade, no qual o intérprete sempre possui um espaço que poderá preencher no momento da aplicação da norma. É a chamada ‘moldura da norma’, que, no limite, pode até ser ultrapassada” (Streck, 2017, p. 18).

Aqui, não é nenhum exagero aproximar a interpretação como ato de vontade do decisionismo de Carl Schmitt (Müller, 2013, p. 66), “não só na perspectiva mais universal da filosofia do direito e da filosofia do Estado, mas também na perspectiva da hermenêutica Jurídica”. Eis o cerne do paradigma da filosofia da consciência.

Nesse sentido, é mister ressaltar que o direito não permite que o intérprete possa elaborar um texto de acordo com sua vontade. Eco (2018, p. 29) já chamara a atenção para os limites que o texto impõe à atividade interpretativa, e os perigos da intentio lectoris, que “desbasta o texto até chegar a uma forma que sirva a seu propósito”.

É preciso dar aos textos a sua devida importância e ressignificar o lugar da linguagem no direito. Para tanto, é necessário trazer à baila o problema da verdade, e a influência que os paradigmas filosóficos exercem sobre a atividade decisória.

Em outras palavras, o intérprete torna-se o dono dos sentidos, determinando arbitrariamente o significado das coisas. Eis o paradigma epistemológico da filosofia da consciência, que tanto influencia o pensamento jurídico dominante no plano nacional.

É justamente dentro deste paradigma que se desenvolvem interpretações em desconformidade ao direito (e.g., o livre convencimento motivado, a livre apreciação da prova, a admissão da discricionariedade, interpretação sem limites), que para além de serem incompatíveis com o modelo de democracia constitucional, servem de atalho para se alcançar qualquer resultado decisório. Noutras palavras, o intérprete julga de acordo com sua própria subjetividade, abandonando a legalidade na formação de sua decisão. Eis o cerne da questão em torno do Ativismo Judicial.

6. FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DA TEORIA DA DECISÃO E A NECESSÁRIA DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA

 A partir da reviravolta linguística (pragmática) e em especial da virada ontológico-linguística, se introduziu na filosofia um novo paradigma que logrou superar a tradição aristotélico-tomista (metafísica clássica) e da filosofia da consciência (metafísica moderna), concebendo, para tanto, a linguagem como condição de possibilidade de acesso ao mundo, constituinte e constituidora do nosso modo-de-ser-no-mundo, deixando de ser um mero instrumento que se interpõe entre o sujeito e o objeto.

Com efeito, em Wittgenstein (Investigações filosóficas), há o abandono da ilusão metafísica do ideal da exatidão da linguagem. O significado de uma palavra deixa de ser determinado pela substância das coisas ou pelo sujeito da modernidade (solipsista), sendo dado pelo seu uso na linguagem.

Por conseguinte, expressões linguísticas têm sentido porque existem hábitos intersubjetivamente válidos que constituem as regras do jogo de linguagem. É justamente este acordo (intersubjetivo) entre os membros de uma comunidade que possibilita a comunicação. Eis o primeiro giro linguístico na filosofia, a virada pragmático-linguística, que estabelece o paradigma da intersubjetividade (Streck, 2014, p. 236).

Remando igualmente contra a corrente dos questionamentos metafísicos, que relegaram a um plano ôntico (ente) um problema necessariamente ontológico (ser), Martin Heidegger reacendeu a esquecida questão em torno do “ser”, lançando luz ao modo fenomenológico de compreensão e introduzindo uma nova reviravolta na filosofia, o giro ontológico-linguístico (Abboud; Tescari; Mantoanellim, 2018, v. 998, p. 561–582).

Desse jeito, em Heidegger o ser se apresenta aos homens através dos entes (e.g. acontecimentos, objetos, pessoas, leis), desvelando em cada evento, uma dentre tantas possibilidades de ser, sendo que em sua filosofia, o ente que dá sentido as coisas, responde pelo nome alemão Dasein (ser-aí): “um ser cujo ser consiste em compreender” (Abboud; Tescari; Mantoanellim, 2018, v. 998, p. 561–582).

O giro ontológico logra superar a ontologia da coisa (epistemologia da interpretação) pela ontologia da compreensão, a partir do deslocamento do ser humano (Dasein) para o interior da problemática ontológica.

Outrossim, é na e pela linguagem que acontece o evento de desvelamento do sentido do ser. Em outras palavras, a linguagem é o lugar onde o sentido do ser apresenta, através dos entes, uma faceta que só é possível em uma determinada ocasião particular. Com o transcorrer do tempo e a cada novo evento, o ser apresenta uma nova faceta.

Daí, podemos afirmar que o erro de toda metafísica foi crer que o ser se esgota em uma possibilidade, ou melhor, crer que seria possível defini-lo (preservar seu sentido) definitivamente.

O movimento, que amplia a unidade do sentido (do todo a partir do individual e do individual a partir do todo), constitui o denominado círculo hermenêutico (hermeneutische Zirkel). Isto é, aquele que vai do texto ao intérprete e regressa novamente ao texto para encontrar em cada movimento circular um elemento que enriquece a compreensão, até que se torne possível alcançar, por meio da assimilação do conteúdo do texto, uma fusão de horizontes (Streck, 2014, p. 467).

Nessa linha, cumpre explicitar que o horizonte (âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que pode ser visto a partir de um determinado ponto) nunca é fixo, mas mutável com o transcorrer do tempo. Desse modo, compreender significa operar uma mediação entre o presente e o passado, resultante do “contato do texto com novos horizontes históricos que são posteriores ao de sua produção” (Streck; Wermuth, 2015, p. 111–142). Tal distância temporal que se estabelece entre texto e intérprete deixa de ser considerada um abismo que os separa e os distancia e é o fundamento que sustenta o acontecer (elemento essencial para compreensão).

Não é por outra razão que a tarefa de interpretar textos jurídicos consiste sempre na concretização da lei, isto é, sua aplicação em cada caso concreto. Dessa forma, é importante notar que, diferentemente da velha tradição hermenêutica, em que o problema da aplicação era dividido em três etapas (compreensão, interpretação e aplicação), com Gadamer é um processo unitário, ou seja, interpretar não é um ato posterior e complementar à compreensão. Antes, compreender é sempre interpretar, e por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão (interpretar é compreender; compreender é aplicar). A aplicatio, por sua vez, (momento tão essencial e integrante do processo hermenêutico quanto a compreensão e a interpretação) constitui o espaço de atribuição de sentido (Sinngebung) (Streck, 2017, p. 20).

Transportando essa questão para a hermenêutica jurídica, isso quer dizer que a tarefa de interpretar a lei passa a ser uma atribuição (produção) de sentido e não uma mera reprodução. Daí que a interpretação deixa de ser um mero procedimento silogístico-subsuntivo, ou seja, não existe norma ante casum, pois a norma exsurge somente diante do caso concreto (Nery Junior, 2004, p. 43).

Eis o paradigma filosófico fundamental para a apreensão da concepção pós-positivista de norma jurídica, necessária para a adequada compreensão da teoria estruturante do direito de Friedrich Müller e da crítica hermenêutica do direito de Lenio Streck.

A teoria estruturante do direito de Friedrich Müller repousa na ideia de que a norma, objeto da interpretação, resulta de um complexo processo denominado concretização, em que são envolvidos o programa normativo (Normprogramm) e o âmbito normativo (Normbereich). O primeiro, sendo constituído pelos elementos linguísticos do processo concretizador, quer dizer, os enunciados jurídicos abstratos (Constituição e leis) e ante casum. Ao passo que o segundo é composto pelos elementos não linguísticos do processo concretizador, ou seja, pelo recorte da realidade social que o próprio programa normativo cria como seu campo de regulamentação (estrutura básica relevante pelo programa normativo).

Daí que não é mais possível a confusão entre texto normativo e norma (Nery Junior, 2004, p. 43), visto que a norma traduz, segundo a teoria estruturante do direito, o produto resultante da interpretação do texto normativo ao caso concreto (Canotilho, 2004)[4].

Em outras palavras, a norma (ser) se apresenta através do texto (ente), desvelando em cada caso concreto, uma dentre tantas possibilidades de ser-do-texto. O texto, por sua vez, ponto de partida para o processo de concretização, traça os limites para as variantes interpretativas que alcançarão a produção da norma. Outrossim, é na e pela linguagem, que acontece o evento de desvelamento da norma[5].

Em suma, a teoria da decisão exposta pode ser decomposta, de acordo com Georges Abboud, em cinco proposições fundamentais: (i) texto e norma são distintos; (ii) a interpretação do direito é um ato produtivo, condicionado pela historicidade; (iii) a decisão judicial é sempre interpretativa, e não silogística; (iv) a teoria do direito tem função normativa; e (v) não existe discricionariedade judicial na solução das questões jurídicas (Abboud; Garbellini Carnio; Tomaz de Oliveira, 2020, p. 454).

Tal constatação possibilita repensar os parâmetros nos quais a atividade decisória é realizada, bem como aprimorar, no âmbito dogmático, os mecanismos de controle de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), apontando erros e acertos.

Dessarte, no intuito de tornar este estudo aplicável a um caso concreto, teremos em vista analisar como o STF estabelece os contornos da atuação contramajoritária, em especial em relação aos crimes de ódio que atingem a população LGBTQIAPN+.

7. A DIFICULDADE DE ACESSO À JUSTIÇA PARA A EFETIVAÇÃO DE DIREITOS DAS MINORIAS SOCIAIS

O § 1º do art. 5º da Constituição Federal de 1988 (CF/88) dispõe que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Dizer que um direito é imediatamente aplicável é afirmar que tal preceito não reclama, ou seja, independe de qualquer ato legislativo ou administrativo que antecede a decisão na qual se consume sua efetividade (Grau, 2018, p. 309).

Isso não quer dizer que o Texto Constitucional garanta que estas normas tenham eficácia social ou efetividade, sendo, muitas vezes, necessária a atuação do judiciário para ser imposta sua pronta efetivação. Ainda assim, nada pode assegurar que as decisões do daquele poder sejam executadas pelos seus destinatários (Grau, 2018, p. 316).

Isso ocorre porque nenhum direito, seja aquele dos indivíduos, seja aquele dos povos, está diretamente protegido de violação ou denegação, uma vez que, contra o interesse do titular do direito, coloca-se sempre o interesse do seu desrespeitador (Ihering, 2019, p. 35).

Entretanto, apesar de contarmos com o Poder Judiciário mais forte, em relação ao que existia antes da promulgação da CF/88, tem-se uma justiça que privilegia quem detém recursos econômicos para pleitear a efetividade de direitos judicialmente em detrimento das minorias sociais, o que vai contra o princípio da igualdade prevista como valor supremo no preâmbulo e dispositivos constitucionais.

Dessa maneira, para a maioria da população o acesso ao Poder Judiciário ainda é algo inatingível quando não se despende de recursos necessários, mesmo com a existência de Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia.

Conforme o art. 98, §1º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), no prazo de oito anos, a contar da edição da Emenda Constitucional n. 80/2014, a União, os Estados e o Distrito Federal deveriam ter Defensores(as) Públicos(as) em todas as unidades jurisdicionais, proporcionalmente à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população (art. 98, caput do ADCT) (Brasil, 2014). Contudo, segundo pesquisa nacional sobre a Defensoria Pública, atualmente, o território brasileiro possui 2.307 comarcas regularmente instaladas e apenas 1.286 comarcas são regularmente atendidas pela Defensoria Pública, representando 49,8% do quantitativo total (Brasil, 2023).

Incumbe, pois, ao Sistema da Justiça, rever sua atuação a fim de minimizar este darwinismo social, em que há uma sociedade com integrantes superiores e com acesso ao Poder Judiciário para buscar a efetividade dos seus direitos constitucionalmente previstos e outra sociedade relegada neste sentido, já que muitas vezes os direitos ofendidos atingem a dignidade da pessoa humana.

Ihering (2019, p. 16) propõe que a luta pelo direito não ocorra em todos os casos, mas somente naqueles nos quais a agressão ao direito implica, igualmente, o desrespeito da pessoa humana, principalmente quando se trata de minorias.

O conceito de minorias não é quantitativo, mas diz respeito às relações de poder presentes na sociedade. Minorias são grupos não hegemônicos, que se encontram em situação de opressão ou de maior vulnerabilidade no âmbito das relações sociais. (Sarmento, 2021, p. 152)

Caso fôssemos considerar minorias de forma numérica, o resultado seria diverso. Quantitativamente, segundo o 12º Boletim de Desigualdades nas Metrópoles, de abril de 2023, a razão de rendimentos entre os 10% mais ricos e os 40% mais pobres, alcançou 31,2%, no 4º trimestre de 2022. Isso significa que os 10% mais ricos ganhavam, em média, 31,2 vezes mais que os 40% mais pobres (Salata; Ribeiro, 2023, p. 4).

As minorias aqui referidas são aquelas vítimas de violência social e estatal, sem acesso adequado a serviços públicos, submetida a riscos desproporcionalmente, os quais são: mulheres, negros, pobres, pessoas com deficiências, presos, LGBTQIAPN+; crianças e adolescentes; pessoas que se encontram vivendo nas ruas.

8.  O JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO — ADO N. 26

O STF já se manifestou, ante a ausência de legislação em diversas matérias relacionadas às minorias, a exemplo,  do casamento entre pessoas do mesmo sexo, na Ação Direta de Inconstitucionalidade — ADI 4277 (Brasil, 2011a) e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 132 (Brasil, 2011b); realização do aborto até o terceiro mês da gestação no Habeas Corpus 124.306 (Brasil, 2016) e para a distinção de cotas raciais ADC 41 (Brasil, 2018).

No que diz respeito ao casamento de pessoas do mesmo sexo ainda há omissão legislativa quanto a esse tema, existindo até o momento apenas Resolução n. 175 do Conselho Nacional de Justiça — CNJ (Brasil, 2013).

Sobre o aborto há ainda outra ADPF 442, que almeja a sua descriminalização até a 12ª semana da gestação (Brasil, 2017).

Após a propositura da ADC 41 sobre as cotas raciais, houve a alteração da Lei n. 12.711/2012 (Brasil, 2012) pela Lei n. 13.409/2016.

Neste momento, o objeto da análise é o julgamento do STF que equiparou a homofobia aos crimes de racismo e injúria racial, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO n. 26 e no Mandando de Injunção n. 4.733 (Brasil, 2019), reconhecendo-se a omissão legislativa em tipificar os crimes de ódio que atingem a população LGBTQIAPN+.

No julgamento em questão, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a mora inconstitucional do Congresso Nacional em relação à criminalização específica dos crimes de discriminação por identidade de gênero e orientação sexual. Conferiu também interpretação conforme a Constituição ao termo raça, assentando que a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual são espécies de racismo, puníveis segundo as determinações da Lei n. 7.716/96 (Brasil, 2019).

Além disso, em 21 de agosto de 2023, o plenário do STF formou maioria no julgamento dos embargos de declaração apresentados na ADO n. 26, para que o preconceito contra pessoas transexuais também seja tratado sob a perspectiva de injúria racial, da mesma forma que ocorreu com a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero e determinou a aplicação, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional legisle a respeito.

As críticas ao julgamento da criminalização da homofobia e transfobia pelo STF giram em torno da suposta criação de tipo penal sem lei antecedente, e que, desse modo, estaria o Poder Judiciário usurpando função legislativa, criando um tipo penal por analogia.

Para fazer esta análise, é necessário definir se o julgamento da ADO n. 26 ocorreu  em sede de ativismo judicial.

Isso depende do conceito de ativismo judicial aplicado, conforme já explicitado. Mas, caso não seja considerado um julgamento em sede de ativismo judicial, o que seria então?

Para a obtenção destas respostas, é relevante a descrição do contexto que ensejou o referido julgamento.

Um levantamento realizado por pesquisadores da UNESP e da USP e publicado na revista científica Nature Scientific Reports, em junho de 2022, demonstra que 12% da população brasileira, ou seja, cerca de 19 milhões de pessoas se declaram assexuais, lésbicas, gays, bissexuais e transgênero.

De outro lado, conforme o levantamento do Observatório de mortes e violência LGBTI+ no Brasil, apenas no ano de 2022 houve 273 crimes contra de pessoas integrantes da população LGBTQIAPN+, violentamente, e, mais de 83% deste número foi de homicídios (Observatório…, 2023).

Ou seja, havia uma questão envolvendo direitos fundamentais das minorias, no caso, a população LGBTQIAPN+, carente de legislação que tratasse do tema, com expressa omissão legislativa.

No caso em questão, se o STF evitasse tratar de temas contemporâneos, invocando a ausência de legislação sobre o tema, aí sim estaria atuando de forma ativista negativa, ou seja, justificando a ausência de legislação para não decidir sobre determinado assunto.

Por esta razão, vê-se que, no julgamento da ADO n. 26, o STF: a) reconheceu o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa, destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBTIAPN+; b) declarou, em consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional do Poder Legislativo da União e c) determinou que fosse cientificado o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o art. 103, § 2º[6], da Constituição c/c o art. 12-H, “caput”, da Lei n. 9.868/99.

Enquanto isso, deu-se interpretação conforme a Constituição, em face dos mandados constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, independentemente da forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei n. 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional, que somente seria aplicável, a partir da data em que se concluiu o referido julgamento.

Desse modo, não houve usurpação da atividade legislativa, até porque a legislação ainda é inexistente. Houve a declaração da omissão com fulcro em atuação originária do STF prevista na CF, não havendo, portanto, que se falar em ativismo judicial.

Em sentido contrário, Barroso (2023, p. 416) exemplifica esse julgamento como uma postura ativista do STF, por ser a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, tanto em caso de inércia do legislador, como no de políticas públicas insuficientes.

Com base em tudo que aqui foi exposto, entende-se que o julgamento em testilha da ADO n. 26, assim como outros que tenham respaldo na atuação originária do STF, não seriam atuação de ativismo judicial, e sim, atuação prevista em sede constitucional e com procedimento previsto em lei.

Por fim, é bom destacar a existência de mais de 17 projetos de Lei no Poder Legislativo Federal, que tratam da matéria, conforme foram relacionados no voto da ADO n. 26, além das propostas que já foram feitas e arquivadas ao longo dos anos, e que, após o referido julgamento e sua ciência pelo Poder Legiferante, poderiam ter seu curso mais célere, a fim de que entrassem em vigor e, dessa forma, regulamentassem o que está temporariamente decidido em sede judicial.

Contudo, passados mais de três anos desde o julgamento da ADO n. 26, a ausência da legislação que trate da matéria ainda persiste.

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal concede importante papel ao Poder Judiciário, principalmente ao Supremo Tribunal Federal, a quem incumbe a atribuição de analisar a constitucionalidade da legislação posterior ao Texto Constitucional ou a omissão legislativa.

Também é relevante a atuação do Poder Judiciário quando direitos fundamentais deixam de ser efetivados em razão de falta de arcabouço legislativo ou existência de políticas públicas correlatas.  Neste ponto, é inegável que o Supremo Tribunal Federal têm cumprido com seu papel constitucional, em especial na proteção das minorias e na reparação dos novos perigos para a dignidade humana. Nessa senda, é importante enfatizar as quatro funções primordiais a serem realizadas pela jurisdição constitucional: 1) Limitar o Poder Público – último ponto em que ocorre o controle dos atos do Poder Executivo; 2) Garantir a existência das minorias e assegurar a proteção dos direitos fundamentais previstos no texto constitucional e nos tratados internacionais que o Brasil seja signatário; 3) Corrigir os equívocos e omissões do Poder Legislativo, funções que a jurisdição constitucional adquiriu em virtude do recrudescimento das decisões manipulativas e aditivas; 4) Conferir, em termos dogmáticos, coerência e garantia a preservação da própria autonomia do Direito, mais precisamente, da própria Constituição federal pela jurisprudência advinda da jurisdição constitucional, desde que consistentemente fundamentada.

Contudo, há de se fazer a distinção de quando a atuação judiciária ocorre de acordo com o disposto pelo Legislativo e quando ultrapassa suas funções, atingindo a esfera dos outros poderes, principalmente os poderes que são democraticamente eleitos .

É importante, desta forma, estabelecer o conceito de ativismo judicial como a atuação discricionária do julgador, para além do disposto na lei ou a contrariando, baseando-se apenas em suas convicções pessoais ou no senso de justiça do intérprete, sem respaldo na legislação vigente. E, ao contrário do afirmado por alguns doutrinadores, não seria ativismo judicial quando o julgador, ante a ilegalidade do texto legislativo ou sua omissão, agisse consoante a previsão do texto constitucional, tal como ocorre em sede de controle da constitucionalidade.

Tal atitude proativa do Poder Judiciário, uma vez instado, é de fundamental importância, principalmente quando é necessária para a concretização de direitos fundamentais de minorias, tal como ocorreu na ADO n. 26, a fim de que fosse suprida a omissão legislativa enquanto esta perdurar.

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[1] Promotora de Justiça no Ministério Público da Bahia (MP/BA), Colaboradora da Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), ex-coordenadora do Centro de Apoio da Infância e Adolescência do (MP/BA), pós-Graduada em Direito, pós-graduanda em Infância e Juventude pela Fundação Escola Superior do Ministério Público — FMP —  e mestranda em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). E-mail: annatrennepohl@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0402523193864050. ORCID: https://orcid.org/0009-0000-8646-3062.

[2] Advogado no Lacerda Gama Advogados Associados, mestrando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). E-mail: eduardokazumi.ek@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6816815795184331.

[3]   “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I — processar e julgar, originariamente:

a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal

[…]

p) o pedido de medida cautelar das ações diretas de inconstitucionalidade;

q) o mandado de injunção, quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal;

[…]

III — julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.

d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.      

§ 1º A arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.     

§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal” (Brasil, 1988).

[4] “Norma é o sentido ou significado adscrito a qualquer disposição. Disposição é parte de um texto ainda a interpretar; norma é parte de um texto interpretado” (Canotilho, 2004, p. 1202).

[5] Vale destacar a posição de Castanheira Neves ao dispor que: “o direito é linguagem, e terá de ser considerado em tudo e por tudo como uma linguagem. O que quer que seja e como quer que seja, o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque, o direito é-o numa linguagem e como linguagem — propõe-se sê-lo numa linguagem”. (Abboud; Garbellini Carnio; Tomaz de Oliveira, 2020, p. 515).

[6] “Art. 103.[…]

§ 2º Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias” (Brasil, 1988).