A RESPONSABILIDADE DOS ENTES DE DIREITO PÚBLICO NA TERCEIRIZAÇÃO: DA INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO
1 de dezembro de 2021THE RESPONSIBILITY OF PUBLIC LAW ENTITIES IN THE OUTSOURCING: THE REVERSAL OF THE PROBATOY BURDEN
Cognitio Juris Ano XI – Número 37 – Dezembro de 2021 ISSN 2236-3009 |
Resumo: O trabalho aborda o tema da terceirização no que se refere à responsabilidade dos entes de direito público na condição de tomadores de serviço dentro do panorama jurídico vivenciado e em diálogo com a tutela dos interesses e direitos trabalhistas. O estudo analisou a inviabilidade e incoerência de se atribuir o encargo probatório ao trabalhador terceirizado em relação à eventual culpa na escolha e na fiscalização da empresa prestadora de serviços pela Administração Pública. Assim, conclui-se que cabe ao ente público, na qualidade de tomadora de serviço, comprovar a efetiva fiscalização e o cuidado na escolha da empresa prestadora de serviços. Outrossim, concluiu-se pela necessidade de uma regulação específica da terceirização quando o tomador de serviços é o ente público, considerando os seus deveres legais e constitucionais e a própria finalidade da Justiça do Trabalho. A metodologia utilizada para a pesquisa é o método dedutivo.
Palavras-chave: Administração Pública; Ônus da prova; Trabalhador terceirizado.
Abstract: The paper deals with the topic of outsourcing with regard to the responsibility of public law entities as service takers within the legal landscape experienced and in dialogue with the protection of interests and labor rights. The study analyzed the infeasibility and incoherence of attributing the burden of proof to the outsourced worker in relation to the possible fault in the choice and supervision of the company providing services by the Public Administration. Thus, it is concluded that it is up to the public entity, as a service taker, to prove the effective supervision and care in the choice of the company that provides services. It is also concluded that there is a need for a specific regulation of outsourcing when the service provider is the public entity, considering its legal and constitutional duties and the very purpose of the Labor Court. The methodology used for the research is the deductive method.
Key words: Public administration; Burden of proof; Outsourced worker.
INTRODUÇÃO
Como modalidade de organização empresarial e administrativa moderna, a terceirização surge na dinâmica empresarial implementando a sistemática da transferência de atividades a outras empresas, a fim de atender aos preceitos capitalistas de redução de custo e máximo de produtividade.
Frente à grandiosidade do tema e sua constante expansão na seara trabalhista, o presente artigo aborda, sobretudo, a terceirização de serviços, que figure como parte tomadora destes serviços a Administração Pública.
Nessa senda, a utilização da terceirização como forma de redução de gastos implica, não raras vezes, na precarização do trabalho. Destaca-se o contexto na qual o trabalhador terceirizado se vê inserido após a rescisão de seu contrato de trabalho e eventual inadimplência da empresa prestadora de serviços. Ademais, sobressai a (ir)responsabilidade dos entes de direito público diante do inadimplemento das obrigações trabalhistas pela empresa contratada por processo de licitação.
Assim sendo, considerando que a terceirização com o ente público, na qualidade de tomador de serviços, carece de legislação específica, exige-se uma análise crítica dos preceitos constitucionais, legais, doutrinários e jurisprudenciais, com o fito de se concluir pela possibilidade e necessidade de inversão do ônus probatório quando do inadimplemento das obrigações trabalhistas pela empresa prestadora de serviços terceirizados.
Impende destacar, portanto, a decisão do Recurso Extraordinário 760.931-DF, que vedou a transferência automática aos entes públicos da responsabilidade do inadimplemento dos encargos trabalhistas pela empresa contratada. Assim, ao transferir o encargo probatório ao trabalhador terceirizado, a decisão da Corte Maior revela-se como fundamental para análise do tema da terceirização com a Administração Pública.
Por fim, cumpre salientar que o presente estudo parte de uma perspectiva humanista, baseando-se numa perspectiva que parte do trabalhador e vendo nele a figura central do processo de terceirização. Para tanto, o trabalho utiliza-se do método dedutivo.
1 CONCEITO, FINALIDADE E EVOLUÇÃO JURÍDICA DA TERCEIRIZAÇÃO
Inserido na dinâmica empresarial na época do toyotismo como uma nova forma de gerenciamento de estoques e flexibilização de produção, a terceirização representa uma expressão criada no âmbito privado, desprovido de origem jurídica, e utilizada em decorrência da primazia da especialização do serviço prestado e da qualidade do trabalho.
Com a costumeira erudição, Maurício Godinho Delgado (2016, p. 487) apresenta perspectiva interessante – a qual se adotará neste estudo -, na qual a terceirização encontra-se em um panorama interdisciplinar, afeto, principalmente, às disciplinas da Economia e do Direito.
Trata-se, portanto, de uma relação trilateral, em que o empregado presta serviços à empresa tomadora, mas mantém vínculo empregatício com a empresa terceirizante. Dessa forma, a empresa tomadora de serviços usufrui dos serviços prestados, mas não figura como empregadora do terceirizado, mantendo mero vínculo de natureza econômica.
A empresa prestadora de serviços, por sua vez, é contratada pela tomadora de serviços mediante relação contratual-civil ou contrato administrativo, e mantém vínculo empregatício com o trabalhador terceirizado, ainda que sem receber serviços deste (NEIVA, 2012).
Desse modo, fica evidente que a terceirização representa uma forma especial de relação juslaboral, em que figura trabalhador terceirizado, empresa prestadora de serviços (contratada) e empresa tomadora de serviços (contratante).
Quanto à finalidade da terceirização, é importante demonstrar a análise a partir da perspectiva de quem administra e a partir da situação do trabalhador no interior da terceirização, fazendo prevalecer esta última com base em um crivo crítico e, mormente, humanista.
Sob a perspectiva de quem administra, que adota a terceirização como prática necessária de modernização do Estado, destaca-se a visão de Dora Maria Ramos (2001, p. 57), a saber:
“O processo de terceirização é visto como um moderno meio de gestão da empresa, a qual são atribuídas muitas vantagens, dentre as quais destaca-se o ganho de agilidade proporcionado pela substituição de custos fixos, decorrentes da manutenção por vezes ociosa de estruturas internas destinadas a atividade de apoio, por custos variáveis.”
No mesmo norte, Sergio Pinto Martins (2007, p. 44) aponta uma série de vantagens extraídas da terceirização. Enfatiza-se, a título de ilustração, a melhoria na qualidade do produto ou serviço vendido, bem assim sua produtividade. A delegação de atividades a outras empresas e a concentração de recursos pela empresa interposta acabam por reduzir os custos de produção e inserem a empresa no mercado competitivo. Tratam-se, em verdade, de consequências naturais da terceirização.
Singram no mesmo rumo as alterações advindas com a reforma trabalhista (Lei nº 13.467 de 2017), as quais extinguiram as limitações da terceirização às atividades-fim. Assim, não mais permanece a distinção entre atividade-meio e atividade-fim, de forma que a terceirização também poderá ser aplicada às atividades principais da empresa.
As interpretações aludidas possuem um enfoque predominantemente pragmático, que parte do pressuposto de que a terceirização consiste em uma forma de gestão mais racional. Contudo, importante não perder de vista que a terceirização, ao buscar constantemente uma valorização dentro da dinâmica de mercado, acaba por se desvincular da função histórica do Direito do Trabalho, que sempre foi – e é, ao menos em tese – o da proteção ao trabalhador.
Esse método de “eficiência de produção” não pode, em hipótese alguma, significar precarização das condições de trabalho, de maneira a ameaçar a finalidade primeira do ramo especializado trabalhista. Nesse sentido, o eminente professor Jorge Luiz Souto Maior se sobressai como ícone de repúdio à prática de terceirização. Com razão, o autor enumera uma série de malfazejos nocivos ao trabalhador terceirizados, a começar:
“Os autores que cuidam do assunto, defendendo a terceirização no setor público, falam de modernização do ente público, mas ou não têm a mínima ideia do que representa a terceirização no contexto da produção capitalista ou, tendo, assumem o risco de trazer tal perversidade para o âmbito público, só não se sabe para atender a qual finalidade.” (SOUTO MAIOR, 2005, p. 99)
Outrossim, ensina a melhor doutrina que o fenômeno da terceirização tem servido para alijar o trabalhador ainda mais dos meios de produção (SOUTO MAIOR, 2005, p. 103). Em outras palavras, o trabalhador terceirizado não se insere no contexto da empresa tomadora, vez que esta não sujeita o empregado a toda e qualquer espécie de subordinação, temerária com a geração de vínculo empregatício.
É que, diversamente da relação bilateral, a terceirização envolve três atores sociais, o que dificulta o reconhecimento do legítimo devedor. Além disso, o empregado terceirizado é diuturnamente inserido na sistemática da quarteirização, em que é incluída uma outra empresa interposta, mostrando-se malévolo com muito maior razão na persecução de seus direitos trabalhistas.
Nada obstante, a terceirização também ocasiona perda da identidade na organização sindical. Conforme cediço, o sindicato representa o mecanismo imprescindível para a consecução da promoção das condições sociais de trabalho.
Vistos sob prismas mais amplos, mais gravosa ainda é a prática da terceirização pela Administração Pública, que deixa de realizar concurso público para assolapar de vez os direitos trabalhistas, oriundos de tenebroso período histórico marcado por lutas e conquistas em prol de melhores condições de vida. Nesse sentido:
“Importante constatar, ademais, que a terceirização é examinada, unicamente sob os ângulos de visão do empresário ou, no caso da nossa investigação, do ente público, no que, aliás, não se tem nenhuma novidade, já que a história sempre é retratada com a perspectiva do vencedor. Mas, deixando de lado o aspecto econômico que o tema envolve, relevante parar para pensar o que a terceirização representa na vida dos empregados terceirizados.” (SOUTO MAIOR, 2005, p. 101)
Sendo assim, muito embora a sociedade contemporânea reclame por novas alternativas de otimização de produção, há de se refletir sobre os meios pelos quais o fará. Afinal, ao Direito do Trabalho cabe justamente garantir os direitos dos trabalhadores e frear a sociedade quando ela se envereda ao capitalismo selvagem.
Historicamente, o instituto da terceirização, no Brasil, é verificado a partir de 1950, em razão da vinda de multinacionais automobilísticas. Intensificou-se nas décadas de 60 e 70 com empresas de limpeza e conservação. Despontaram, então, as primeiras normas acerca da temática no país. A terceirização, ainda hoje, não desfruta de regulamento legislativo próprio, refutando-se, sobretudo, às Súmulas e às decisões dos Tribunais Superiores.
Nesse sentido, a Súmula nº 256 do Tribunal Superior do Trabalho de 1986 foi a primeira a se destacar ao vedar o exercício da terceirização, inclusive na Administração Pública (excepcionando os casos de trabalho temporário e de serviços de vigilância, previstos na lei nº 6.019 de 1974 e lei nº 7.102 de 1963), e reconhecer o vínculo empregatício direto com o tomador de serviços. Essa súmula, embora já revogada, ainda é aplicada às relações anteriores à Constituição Federal de 1988, conforme Orientação Jurisprudencial 321 da SDI-1 do TST.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o TST editou nova súmula para regular a temática. Portanto, foi criada a Súmula 331 do TST, em 1994, cujo texto atual, grifados por nossa autoria, se segue:
I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário;
II – A contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional;
III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20-6-83), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistentes a pessoalidade e a subordinação direta;
IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.
V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.
É relevante salientar que antes de apresentar mencionada redação, a Súmula nº 331 sofreu alterações em seu texto. Nesse espeque, houve o ajuizamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16 pela Procuradoria-Geral do Distrito Federal, a qual questionava a constitucionalidade da seção do art. 71, §1º da Lei 8.666 de 1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos) que aventa que “a inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento […]”.
Em novembro de 2010, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se no sentido da procedência da ADC e declarou a constitucionalidade do art. 71 da Lei 8.666 de 1993. Por óbvio, o resultado redundou em prejuízo dos direitos laborais pronunciados na Súmula 331 do TST, posto que a decisão o Tribunal afastava a responsabilidade objetiva do Estado em caso de terceirização.
Dessa sorte, com a atual redação da Súmula, a conclusão é de que, a princípio, o mero inadimplemento das obrigações trabalhistas pela empresa interposta não responsabiliza a Administração Pública, enquanto tomadora de serviços. Tratar-se-ia, portanto, de hipótese de irresponsabilidade estatal.
Assim, ao contrário do que ocorre nas relações privadas, a responsabilização subsidiária da Administração Pública depende de prova de sua culpa quanto à fiscalização do contrato de terceirização. Conforme elucida Henrique Franco Morita (2013, p. 33): “somente no caso em que a Administração Pública seja negligente com a fiscalização do cumprimento dos direitos trabalhistas por parte da empresa interposta”.
Ainda que tenha havido o reconhecimento da possibilidade de condenação estatal apenas em sede de subsidiariedade, foram propostas sucessivas Reclamações Constitucionais e interpostos numerosos Recursos Extraordinários perante o STF, apontando exatamente a violação da decisão proferida na ADC 16-DF.
Reconhecida a repercussão geral (tema 246), foi eleito como leading case o RE 760.931-DF, que fixou a seguinte tese:
“O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, §1º, da Lei nº 8.666/93.”
Desta feita, superada a atribuição automática da responsabilidade estatal pelo mero inadimplemento das obrigações pela empresa contratada, o RE se limitou a discutir a distribuição do encargo probatório, a direcionar, ainda que iuris tantum, a presunção acerca dos fatos específicos de cada caso concreto.
Não se definiu, contudo, se compete ao trabalhador terceirizado demonstrar a culpa da Administração, ou se à Administração demonstrar que não agiu com culpa e que se atentou a todas as medidas cabíveis e exigíveis legalmente.
2 RESPONSABILIDADE DOS ENTES DE DIREITO PÚBLICO PELO INADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS PELA EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS
O Recurso Extraordinário 760.931, que teve como Relatora a Ministra Rosa Weber, ajuizado pelo Distrito Federal, publicado inteiro teor no dia 12 de setembro de 2017, enfrentou questão relativa ao ônus da prova quanto ao cumprimento do poder-dever fiscalizatório insculpido na referida Lei de Licitações nas hipóteses de terceirização.
O Plenário da Corte Maior deu provimento e reconheceu o onus probandi da culpa in vigilando da Administração Pública recai sobre o trabalhador terceirizado. Este posicionamento, liderado pelo voto do Ministro Luis Fux, tem por esteio principal o princípio da presunção de legitimidade dos atos administrativos.
Em que pese posição prevalente deste julgamento, é fundamental destacar fragmentos dos votos vencidos, a fim de respaldar o objetivo último deste estudo. Medra, portanto, o voto enriquecedor da Ministra Relatora Rosa Weber (2017, p. 22):
“[…] se as necessidades da contratante são atendidas por esses trabalhadores, nada mais justo que o ônus decorrente da falta de fiscalização da execução do contrato recaia sobre o maior beneficiado pela mão de obra ofertada […]. A força de trabalho, uma vez entregue, não pode ser reposta, e a falta de contraprestação devida, independentemente de quem venha a arcar com esse pagamento, transforma o terceirizado em escravo moderno […]”
A Ministra, invocando os ensinamentos do professor e doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello, adverte que a presunção de legitimidade não afasta o encargo probatório quando a Administração estiver na guarda de determinados documentos relacionados ao cumprimento de deveres legais.
Nesse diapasão, adotando a teoria da culpa presumida, para o Estado se eximir da responsabilidade, caberia demonstrar que a sua omissão ou tardia ação não decorreu por negligência, imprudência, descaso ou imperícia. Solução compatível, pois como bem salientou Celso Antônio Bandeira de Melo (2013, p. 1182): “se a ordem jurídica quer a responsabilidade do Estado nos casos de mau funcionamento do serviço, há de se concluir que não a quer apenas nominalmente, mas efetivamente”.
Juntamente com a teoria da culpa presumida, a Ministra Relatora defendeu a aplicação de princípios processuais compatíveis com a Justiça do Trabalho – “em que a hipossuficiência do trabalhador na relação de direito material acaba sendo refletida no próprio acesso à Justiça e meios probatórios” (2017, p. 97-98), a saber: princípio da aptidão para a prova, princípio da cooperação e a técnica da distribuição dinâmica do ônus da prova.
Assim, a parte responsável pela produção probatória é a que apresenta melhores condições de realiza-la, pouco importando o ônus estabelecido pela norma processual. Trata-se do princípio da aptidão para a prova e também expressão do princípio da igualdade no processo.
Ademais, o princípio da cooperação determina que constitui dever de todos os participantes da relação processual colaborar para a obtenção de decisão de mérito justa, efetiva e em tempo razoável. Logo, a atuação positiva do juiz é fulcral para dirimir o massacre do direito da parte hipossuficiente ou o desequilíbrio da relação processual.
A distribuição dinâmica do ônus da prova surge como técnica que, considerando a capacidade probatória de cada parte, funciona como antídoto para a chamada “prova diabólica”. Ora, imputar o trabalhador prova de fato negativo (a não fiscalização) constitui regra francamente vedada pela lógica jurídica, tendo em vista ser impossível no mundo dos fatos. Equivaleria, por corolário, à irresponsabilidade estatal (COELHO; DAS NEVES, 2017, p. 6).
Seria igualmente lógico concluir pela impossibilidade de a Administração Pública, na qualidade de tomadora de serviços, provar fato negativo de sua parte. Todavia, cabe destacar, por oportuno, que à Administração compete diversos deveres, impostos pela legislação ordinária e constitucional, para se buscar efetivo cumprimento dos direitos dos trabalhadores terceirizados, ainda que através de fiscalização da empresa por ela contratada.
Nesse carril, o dever dos entes de direito público de fiscalizar o cumprimento de direitos trabalhistas terceirizados decorre, em princípio, de dispositivos da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 8.666 de 1993). Por sua vez, o padrão fiscalizatório, referente à extensão e profundidade deste dever fiscalizatório, encontra respaldo na integração deste diploma legal com preceitos da Instrução Normativa (IN) n. 02 de 2008, alterados pela Instrução Normativa n. 03 de 2009, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), que regulamentam a matéria na esfera da Administração Pública Federal.
A exórdio, insta perscrutar a culpa in eligendo e culpa in vigilando dos entes públicos dentro da relação de terceirização. A incidência ou não de culpa para a Administração é decidida sempre em um caso concreto, conforme decidido pelo STF. Entretanto, a sua responsabilização pelo acompanhamento e fiscalização emerge da própria finalidade da lei.
As empresas participantes do processo de licitação, uma vez cientes do cumprimento da fiscalização efetiva por parte do ente público, somente participarão se possuírem reais condições de honrar a proposta apresentada em sua integralidade, inclusive o cumprimento das consequentes obrigações trabalhistas.
A culpa in eligendo recai, portanto, na responsabilidade da Administração de escolher bem a empresa que fará parte da relação de terceirização dentre aquelas participantes do processo de licitação. Ora, em outras palavras, trata-se de simplesmente cumprir com o princípio da legalidade e fazer valer a finalidade do ordenamento jurídico, de forma a se prevenir a realização de licitação para auferir vantagens e burlar a legislação trabalhista pelo contratante.
Inconveniente seria escusar a Administração Pública de responsabilidade considerando ser ela a maior beneficiária dos serviços terceirizados oferecidos e também por ser a responsável pela contratação da empresa prestadora de serviços. José Ribeiro de Campos (2006, p. 64) afirma que não se pode interpretar a lei de modo a facilitar a fraude. Em verdade, a fraude é mais grave quando praticada pela Administração Pública. Assere, nessa toada:
“Ocorrido o dano pecuniário, irradia-se a responsabilidade para a tomadora, responsabilidade que, entendo, é solidária, posto que a condenação subsidiária apenas impõe mais um fardo ao trabalhador, qual seja, o de peregrinar tresloucadamente em busca de quem já demonstrou estar proício a lesá-lo, seja pela má-fé, seja pela parca envergadura financeira e patrimonial.” (CAMPOS, 2006, p. 72)
Soa teratológico que os efeitos da culpa in eligendo dos entes públicos recaiam sobre os trabalhadores terceirizados, de forma que os obriguem a produzir prova em relação à conduta negligente da Administração (em um processo licitatório que o terceirizado sequer participou) e, principalmente, de tal maneira que tenha como resultado o não pagamento de suas obrigações trabalhistas.
Com efeito, destaca-se:
“Ora, a entidade estatal que pratique terceirização com empresa inidônea (isto é, empresa que se torne inadimplente com relação a direitos trabalhistas) comete culpa in eligendo (má escolha do contratante), mesmo que tenha firmado a seleção por meio de processo licitatório (escolha licitada de empresa inidônea, manifestamente descumpridora de obrigações trabalhistas, sem lastro econômico e financeiro para gerir centenas ou milhares de contratos de terceirização, ou exemplo similar, obviamente não provoca a elisão de culpa in eligendo…). Ainda que não se admita essa primeira dimensão da culpa (dimensão in eligendo da culpa), incide, no caso, outra dimensão, relativa à culpa in vigilando (má fiscalização das obrigações contratuais e seus efeitos). Passa, desse modo, o ente do Estado a responder pelas verbas trabalhistas devidas apelo empregador terceirizante no período de efetiva terceirização.” (DELGADO, 2018, p. 577-578)
No que tange à análise da culpa in vigilando, há quem defenda que inexiste um único dispositivo na Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 8.666 de 1993) que confere ao ente público o dever de acompanhar e fiscalizar o cumprimento das obrigações trabalhistas por parte da contratada, como ocorre com as prestações previdenciárias e do FGTS.
Seguindo este raciocínio, se a Administração observar as regras contidas nos artigos 55 e 67 da Lei 8.666 de 1993, referentes ao adimplemento do contrato na forma e sob as condições pactuadas, não há que se falar em responsabilidade pela satisfação dos encargos trabalhistas devidos pela empresa contratada, tendo em vista que o inadimplemento desses não caracteriza inexecução contratual.
Nessa esteira:
“Ademais, é bom lembrar que a maior parte dos órgãos e entidades da Administração Pública não possui quadro técnico suficiente e qualificado para supervisionar detalhadamente todos os seus serviços terceirizados, de maneira que, prevalecendo o entendimento quanto à responsabilidade subsidiária da Administração, seria o ente público obrigado a contratar empresa fiscalizadora para gerenciar as prestadoras de serviços, num processo de quarteirização que, embora legalmente admitido, soaria absurdo do ponto de vista do uso racional dos recursos públicos. A assunção de um regime de responsabilidade, por conseguinte, contribuiria para aumentar o nível de incerteza nos custos dos contratos públicos de terceirização de serviços, com evidentes e indesejados reflexos negativos na eficiência administrativa do Estado.” (HASS, 2011, p. 154)
É interessante perceber, aqui, que a terceirização novamente é examinada unicamente sob a visão do empresário ou, neste caso, do ente público. A preocupação com a elevação de gastos públicos e com a dificuldade de se garantir eficiência administrativa, de fato, é de se considerar. Entretanto, beira ao primitivismo histórico, cultural e humano priorizar a gestão administrativa em detrimento da garantia de direitos trabalhistas. Trata-se não só de uma inversão de valores, mas também de hipótese que ameaça expungir direitos individuais mínimos.
Revela-se contraditório considerar que a Administração, na qualidade de tomadora de serviços, não detém de ferramentas, recursos e gestão de pessoal para realizar a devida fiscalização de um contrato que celebrou com outra empresa e, em outro giro, ignorar as condições do trabalhador terceirizado – que é naturalmente parte hipossuficiente – em demonstrar a culpa na fiscalização ou na má escolha da empresa prestadora de serviços.
Assim, há que se perquirir a (des)organização do sistema. A insuficiência de recursos financeiros e gestacional da Administração não pode gerar efeitos negativos ao trabalhador terceirizado. Ora, se os entes públicos alegam não dispor de condições mínimas de fiscalização de um contrato a ser celebrado, não se admite sequer a consideração de oficializar contrato administrativo fadado ao fracasso. A complexidade do tema, portanto, recai (ou ao menos deveria recair) no âmbito administrativo, e não trabalhista.
São numerosos os dispositivos inseridos na Lei n. 8.666 de 1993 a atribuírem dever jurídico ao poder público pela fiscalização e acompanhamento da fiel execução dos serviços contratados. Dentre eles, fulcral destacar o art. 58, inciso III, que confere à Administração a prerrogativa de fiscalizar a execução dos contratos administrativos[3], bem como o art. 67, que determina:
Art. 67 – A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações pertinentes a essa atribuição.
§1º – O representante da Administração anotará em registro próprio todas as ocorrências relacionadas com a execução do contrato, determinando o que for necessário à regularização das faltas ou defeitos observados.
Como evidente, cabe à Administração dispor de um representante para o acompanhamento e fiscalização da execução do contrato, realizando as devidas ocorrências que exigirem regularização. Caso haja desfalque de representação ou se não forem demonstrados os registros das faltas ou defeitos observados, constituir-se-á base legal para fundamentar a culpa in vigilando da Administração nos casos de inadimplemento das obrigações trabalhistas terceirizantes.
Nessa esteira, Maurício Godinho Delgado (2018, p. 566) ensina:
“É bem verdade que a culpa, no presente tema – caso mantido o debate em patamar estritamente técnico -, desponta como manifestamente presumida, em virtude de haver evidente dever legal de fiscalização pelo tomador de serviços relativamente ao cumprimento de obrigações constitucionais, legais e contratuais trabalhistas pelo prestador de serviços, obrigações em geral vinculadas a direitos fundamentais da pessoa humana (o dever de fiscalização está até mesmo expresso, por exemplo, no art. 67, caput e §1º, da Lei de Licitações).”
Ademais, a Lei n. 8.666 de 1993 também traz exigências para o processo licitatório, a começar pela fase de habilitação. Dessa forma, o art. 27 e o art. 29, inciso IV preceituam:
Art. 27 – Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a: […]
IV – regularidade fiscal e trabalhista
Art. 29 – A documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista, conforme o caso, consistirá em: […]
IV – prova de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), demonstrando situação regular no cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei;
V – prova de inexistência de débitos inadimplidos perante a Justiça do Trabalho, mediante a apresentação de certidão negativa, nos termos do Título VII-A da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei n. 5.452 de 1º de maio de 1943.
Pois bem, é dever da Administração analisar se a empresa a ser escolhida para prestar serviços terceirizados possui reais condições para honrar e garantir as obrigações estabelecidas em contrato. Da mesma forma, cabe à Administração, uma vez eleita a empresa contratante, acompanhar e fiscalizar a execução do contrato por meio de um representante.
Enquanto a Lei de Licitações (Lei n. 8.666 de 1993) estabelece regras gerais em relação ao dever fiscalizatório contratual, a Instrução Normativa (IN) n. 02 de 30 de abril 2008 do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão interpreta e especifica estas regras, apresentando um padrão de fiscalização que busca harmonizar com a eficiência das técnicas de controle e efetividade dos direitos fiscalizados.
A IN. 02 de 2008 prevê, em seu art. 19, os cuidados a serem tomados já no edital de licitação para a contratação de serviços contínuos com exclusividade de mão de obra, com destaque ao inciso XVIII, cuja redação se apresenta: “disposição prevendo que a execução completa do contrato só acontecerá quando o contratado comprovar o pagamento de todas as obrigações trabalhistas referente à mão de obra utilizada, quando da contratação de serviço continuado com dedicação exclusiva de mão de obra”.
Em reforço, o art. 19-A, inserido pela Instrução Normativa n. 03 de 15 de outubro de 2009, permite mediante previsão editalícia e contratual, que a Administração Pública receba autorização prévia da empresa contratada para promover ordinariamente o provisionamento e a retenção de valores referentes ao preço do contrato, a fim de ocorrer o pagamento direto das férias, gratificação natalina, verbas rescisórias e depósito de FGTS dos empregados da empresa terceirizada. Além disso, permitem-se o desconto nas faturas e o pagamento direto de eventuais direitos trabalhistas que não vierem a ser adimplidos pela empresa contratada.
No âmbito da execução do contrato administrativo estabelecido, incumbe ao ente público contratante especificar as responsabilidades da empresa contratada e fiscalizar o cumprimento integral destas obrigações, como bem determinado pela Lei n. 8.666 de 1993. Demais disso, o art. 34 da IN n. 02 de 2008 determina que, na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas e sociais, sejam exigidas comprovações de todas as obrigações dispostas na CLT.
Apresentados os limites do dever da Administração Pública em fiscalizar e acompanhar o cumprimento dos direitos dos trabalhadores terceirizados, conclui-se que a inobservância deste encargo implica a responsabilidade do ente público pelo inadimplemento dos direitos que, em tese, deveriam ser fiscalizados. Ocorre que esta responsabilidade não se limita a demonstrar, de forma leviana, a formalização dos vínculos de emprego, pois o padrão fiscalizatório retratado exige o envolvimento direto e diário dos entes públicos com a rotina das práticas trabalhistas da empresa contratada (VIANA; DELGADO; AMORIM, 2011, p. 83).
Resta imperativo, portanto, que a Justiça do Trabalho perquira a respeito da responsabilidade da Administração Pública dentro dos limites constitucionais e legais apresentados no presente capítulo. Singra neste rumo o equilíbrio que se deve ser estabelecido na interpretação destes preceitos ora em exame, de maneira a se ajustarem ao conjunto da ordem jurídica a que estão submetidos.
3 INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NA TERCEIRIZAÇÃO COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Para aferir a responsabilidade dos entes públicos, é fundamental a perfeita adequação do órgão público às normas que disciplinam o processo de licitação e a sua fiscalização do contrato. Entretanto, a questão reside no ônus em se comprovar esta adequação.
A par da perspectiva da teoria da culpa presumida mencionada na tese do STF quando do julgamento do Recurso Extraordinário 760.931, concorrem para a conclusão de que o encargo probatório cabe à Administração Pública os princípios que orientam o ônus probatório. Há mister, portanto, que se desenvolva a teoria do ônus da prova adequando às regras do processo do trabalho, mais especificamente, à relação de terceirização com a Administração Pública.
Para que se possa analisar o ônus da prova, é indispensável destacar que o encargo probatório é precedido logicamente pelo ônus da alegação. Portanto, não obstante o juiz detenha poder para determinar ex officio a produção de provas, incumbe precipuamente à parte, em razão do princípio do dispositivo, alegar os fatos que fundamentam a sua pretensão. Contudo, fato é que nem sempre a parte que invoca os fatos possui condições suficientes para produzir provas que os sustentem.
Assim, caso a parte não se desincumba do ônus a ela atribuído por lei, não lhe acarretará prejuízos de automático, tendo em vista que o juiz sopesará todas as provas constantes dos autos, não obstante quem as houver produzido.
A CLT, ao disciplinar o ônus da prova, estabelece a máxima em seu art. 818, segundo a qual “a prova das alegações incumbe à parte que as fizer”. Embora já sedimentada na doutrina e jurisprudência trabalhista, a reforma trabalhista (Lei n. 13.467 de 2017) complementou o regime do ônus da prova e estabeleceu expressamente a incumbência do autor de provar os fatos constitutivos e do réu, os fatos extintivos, modificativos e impeditivos do direito do autor (incisos I e II do art. 818 da CLT). Assim, trata-se da regra geral que disciplina o onus probandi.
Singra neste rumo a doutrina de Giuseppe Chiovenda, a qual fundamenta a distribuição do encargo probatório. Segundo o processualista italiano, incumbe a cada parte, com base no princípio do interesse, alegar e provar aquilo que pretende ser sopesado pelo julgador. Nesse contexto, Cândido Rangel Dinamarco (2015, p. 71-72) ensina:
“A síntese dessas disposições consiste na regra de que o ônus da prova incumbe à parte que tiver interesse no conhecimento do fato a ser provado (Chiovenda), ou seja, àquela que se beneficie desse reconhecimento; essa fórmula coloca adequadamente o tema do onus probandi no quadro do interesse como mola propulsora da efetiva participação dos litigantes, segundo o empenho de cada um em obter a vitória.”
Transferindo para o plano da relação do trabalhador terceirizado e da Administração Pública, a teoria estática do ônus da prova não confere paridade de armas no processo frente ao encargo desmedido atribuído ao reclamante (trabalhador terceirizado) de se provar o cumprimento e fiscalização do contrato pela Administração Pública. Basta que a prova a ser produzida seja insuficiente ou inexistente para que a ré (no caso, Administração Pública) obtenha sucesso na demanda e se desvencilhe de qualquer responsabilidade.
Imperativo perpassar sob um crivo mais crítico a respeito da repartição do encargo probatório. A distribuição, prévia e abstrata, do ônus da prova pondera apenas a posição ocupada pelas partes na relação jurídico-processual, a natureza dos fatos deduzidos e o interesse em prová-los. Fato é que o interesse da parte nem sempre se revela suficiente, posto que, não raras vezes, não há condições de perfazê-lo.
Não se pode desconsiderar a dificuldade ou impossibilidade encontrada pela parte onerada em produzir a prova. Assim, “o critério geral, em virtude de figurar como expediente para a vedação do non liquet, está mais preocupado com a prolação de uma decisão judicial do que com a tutela do direito substancial ameaçado de lesão ou lesado” (MESACASA, 2015, p. 38).
Nesse ínterim, a CLT, da mesma forma que prevê a teoria estática do ônus da prova, passou a admitir a incidência da teoria dinâmica do ônus probatório com o advento da reforma trabalhista. Sendo assim, os parágrafos do art. 878 trata da possibilidade de o julgador atribuir, no caso concreto, o ônus da prova àquele que possui melhores condições de produzi-la. Neste caso, ao revés de recair o princípio do interesse, aplica-se o princípio da melhor aptidão para a prova.
Em adminículo, afasta a ideia individualista e patrimonialista do processo, proporcionando uma visão solidária do ônus da prova, com o fito de o juiz alcançar a verdade através da colaboração das partes na produção das provas.
Partindo da realidade laboral do trabalhador terceirizado e com base na sua dificuldade – senão impossibilidade – em produzir provas que comprovem o cumprimento e fiscalização eficazes e fidedignos do contrato realizado com a Administração Pública, fulcral a busca por um equilíbrio processual.
Desta feita, considerando a imersão do trabalhador terceirizado a uma realidade laboral exaustiva, onde nem sempre possui conhecimento de quem é seu empregador direto, não é exagero afirmar que atribuir a ele o ônus de produzir provas do real cumprimento de seu contrato de trabalho representa a válvula de escape para a não responsabilização dos entes públicos.
Trata-se, por outro viés, de impedir o acesso à justiça sob o manto de proporcionar aos entes públicos prerrogativa que não se admite dentro do Direito do Trabalho. Afastar a responsabilidade do Estado significa deixar o trabalhador ao desamparo, numa atitude excessiva, desproporcional e afrontosa ao mínimo existencial (HASS, 2011, p. 140).
É nesse sentido que o direito fundamental à prova ultrapassa os limites formais e apresenta-se como garantia do direito das partes de se valerem amplamente dos meios de prova adequados para a guarida de seus interesses.
Ademais, o princípio da igualdade substancial também constitui um mecanismo de técnica de distribuição do onus probandi, diante da necessidade de adequação ao procedimento probatório das peculiaridades do caso concreto, mormente no processo trabalhista, sopesando as desigualdades existentes entre as partes em relação à produção de provas.
Na relação de terceirização com os entes públicos, as partes encontram-se, ainda mais, numa situação de desigualdade. Se por um lado o trabalhador se encontra em sua condição natural de vulnerabilidade, a Administração Pública detém de prerrogativas conferidas com base em uma interpretação extensiva (e equivocada) de dispositivos restritivos.
Assim sendo, razoável a atribuição do ônus probatório àquele que possui melhores condições de produzi-las, almejando sempre suprir a deficiência existente dentro da relação processual trabalhista. Em observância ao princípio da cooperação, as provas produzidas nos autos, seja por determinação judicial ou pelas partes, pertencem ao processo – e não a quem as produziu, de maneira que a distribuição do ônus da prova importa, em verdade, na busca pela verdade fática.
Nessa senda, destaca-se jurisprudência erudita que versa sobre o tema (BRASIL, 2013):
“TERCEIRIZAÇÃO. SÚMULA N. 331/TST. ÔNUS DA PROVA. OMISSÃO DO PRODER PÚBLICO NA PROVA DA FISCALIZAÇÃO. PRINCÍPIO DA APTIDÃO DA PROVA. CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO QUE REVELAM CULPA IN VIGILANDO, DIANTE DA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS TRABALHISTAS. ARRASTAMENTO DA RESPONSBILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA, AUTÁRQUICA OU FUNDACIONAL COM BASE NO ART. 37, XXI, CF E ART. 58, III, 67 CAPUT E §1º, E 82 DA LEI N. 8.666/93 C/C ARTS. 186, 927, CAPUT E 944 DO CC. (…) Havendo inadimplência das obrigações trabalhistas que tenha como causa a falta de fiscalização pelo órgão público contratante, o Poder Público é responsável. Logo, a excludente de responsabilidade incide, apenas, na hipótese em que o Poder Público contratante demonstre ter, no curso da relação contratual, fiscalizado o adequado cumprimento das cláusulas e das garantias das obrigações trabalhistas pela fornecedora da mão de obra, o que lhe incumbe nos termos do art. 37, inciso XXI, da CF e art. 58, III, e 67, caput e §1º, sob pena de responsabilidade civil prevista no art. 82, ambos da Lei das Licitações. Ressalte-se que nos termos do princípio da aptidão da prova, deve ser imputado o ônus de provar, à parte que possui maior capacidade para produzi-la, no caso, o Poder Público. Resta clara sua aplicação no processo do trabalho, diante da teoria do diálogo das fontes com o sistema de defesa do consumidor, e que autoriza a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6º, VIII do CDC, ‘[…] quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências’. A ausência de prova da fiscalização por parte da Administração Pública (art. 818 CLT e 333 CPC) quanto ao correto cumprimento das obrigações trabalhistas pela empresa terceirizada licitada, devidas aos seus empregados, evidencia a omissão culposa da Administração Pública, o que atrai a sua responsabilidade, porque todo aquele que causa dano pratica ato ilícito e fica obrigado a reparar (art. 82, da Lei 8.666/93 c/c arts. 186, 927 e 944 CC/02).” (TRT/SP 000087792620105020050 – RO – Ac. 4ªT. – 20130334736 – Relª Ivani Contini Bramante – DOE 18.4.2013) (grifo nosso)
De mais a mais, nas terceirizações realizadas entre entes privados, subsiste responsabilidade subsidiária do tomador de serviços em caso de inadimplemento das verbas trabalhistas pela empresa prestadora de serviços. Com fulcro no art. 5º da Constituição Federal, se todos são iguais perante a lei, não há sentido, à luz do princípio da isonomia, que a Administração se exima de qualquer responsabilidade quanto ao adimplemento das verbas trabalhistas (SILVA, 2011, p. 119).
O ordenamento jurídico do país não está fatiado em comportamentos estanques, de tal forma que as leis se articulam como vasos comunicantes tendo por escopo o balizamento da conduta social (GERMIGNANI, 2011, p. 45). Assim, ainda que a culpa dos entes públicos não seja presumida, teria sim o tomador de serviços estatal o ônus processual de comprovar seu pleno zelo e exação quanto ao adimplemento de seu dever fiscalizatório (DELGADO, 2018, p. 566).
O que se verifica, no entanto, é que a Administração Pública invoca as prerrogativas a ela conferidas apenas quando conveniente. É indiscutível que, em se tratando de relação com o trabalhador terceirizado, o ente público não só possui mais capacidade processual e material de se produzir provas, mas também possui o dever de fazer jus ao contrato celebrado.
Ao pleitear os seus direitos trabalhistas, o trabalhador terceirizado encontra-se inapto a produzir provas suficientes de que não houve fiscalização ou de que a escolha da empresa prestadora foi inidônea quando do processo de licitação. Ora, o trabalhador sequer possui condições de acompanhar o processo licitatório, precedente de qualquer relação com ele pactuada. Demais disso, as provas quanto à fiscalização do contrato permanecem à disposição tão somente dos entes públicos, cujo dever a eles se impõe.
Inconcebível, portanto, a justificação do encargo probatório à parte hipossuficiente sob a égide de que “representaria um potencial de incremento ao risco aos cofres públicos” (RAMOS, 2001, p. 152). Da mesma forma, teratológico afirmar que o dano sofrido pelos trabalhadores da contratada não tem nexo causal com ação ou omissão anti-jurídica perpetrada pela Administração (RAMOS, 2001, p. 149). Perspectivas semelhantes revelam-se como reflexo de uma sociedade passiva e inerte (talvez impotente), familiarizada com injustiças sociais praticadas por quem mais deveria combate-las.
Trata-se, em verdade, de dar lógica ao sistema como um todo e fazer valer a mens legis, de tal forma que a responsabilização pelos encargos trabalhistas esteja em consonância com o ordenamento jurídico. É fundamental que se questione os privilégios injustificáveis conferidos à Administração Pública, partícipe da dinâmica empresarial, utilizados para se escusar de cumprir com suas obrigações.
O caráter omissivo da conduta estatal desafia presunção relativa de culpa da Administração, cabendo ao ente público demandado o ônus de comprovar a fiscalização contratual eficiente. A imputação do onus probandi ao trabalhador demandante de prova impossível, equivale, em consequência, à irresponsabilidade estatal.
Em outras palavras, manter esse ônus ao empregado, por obediência cega à letra de lei, significaria privilegiar a Administração desidiosa com suas responsabilidades administrativas. Dessa forma, a distribuição dinâmica do ônus da prova nada mais é do que uma concretização do direito à tutela judicial efetiva, no sentido de um acesso à jurisdição plena e justa. Deve-se, portanto, repelir toda interpretação formalista e desproporcional de elementos procedimentais que conduzam a dificultar a efetividade da jurisdição.
Mauricio Godinho Delgado (2020, p. 583-584) defende, de forma ímpar, que mesmo que não se considere presumida a culpa in vigilando, teria o tomador de serviços estatal o ônus processual de comprovar seus plenos zelo e exação quanto ao cumprimento de seu dever fiscalizatório. Prossegue alegando que esse ônus de se comprovar a fiscalização e vigilância do contrato representa, ao fim e ao cabo, fato impeditivo do direito do autor da ação, que pleiteia a responsabilização da entidade pública. Se não bastasse, essa entidade é que ostenta a aptidão para a prova documental pertinente, por ter o dever legal de acompanhar, com eficiência, o cumprimento desse contrato e de seu complexo de obrigações pela empresa contratada – e não o trabalhador.
Por fim, vale destacar que esse ônus processual da entidade pública de comprovar seus plenos zelo e exação quanto ao adimplemento de seu dever fiscalizatório foi reconhecido de maneira expressa por decisão da SDI-1 do TST, prolatada em 12/12/2019, de relatoria do Ministro Cláudio Brandão.
O fundamento da decisão foi respaldado no princípio da aptidão para a prova, que vincula o ônus a quem possui mais e melhores condições de produzi-la. Neste caso, de acordo com o Ministro relator, “certamente não é o trabalhador, que sequer consegue ter acesso à documentação relativa à regularização das obrigações decorrentes do contrato” (TST, 2019).
Em recente decisão pelo Plenário do STF (11/12/2020), o Tribunal, por maioria, reputou constitucional a questão do ônus da prova na terceirização pela Administração Pública (RE 1298647).
Com efeito, resta patente a necessidade de ratificação por parte da Corte Maior no sentido de se admitir a inversão do ônus da prova como mecanismo compensatório da hipossuficiência processual do trabalhador terceirizado com a Administração Pública. Vale dizer que a injustiça não está na regra, mas na sua peculiar concretude em certos contextos. Portanto, mister se faz uma estratégia protetiva aos direitos trabalhistas.
CONCLUSÃO
O tema da terceirização na Administração Pública encerra inúmeros embates doutrinários e jurisprudenciais. Objetivando uma alternativa de o Estado se adaptar à nova realidade econômica e política, a terceirização apresenta-se, não raro, como razão de precarização e flexibilização dos direitos trabalhistas.
A terceirização expunge inúmeros direitos trabalhistas e dá azo a abusos mascarados. Sendo assim, a realidade apresentada se justifica pela própria deficiência legislativa e judiciária acerca do assunto, que permite interpretações diversas (KIAN, 2006, p. 237).
Nesse contexto, este trabalho enfatizou o panorama atual das relações de terceirização com os entes públicos, sobrelevando, a partir de uma visão humanista, suas repercussões no mundo fático-jurídico, sobretudo no que tange à tutela dos interesses trabalhistas.
Diante da situação do trabalhador terceirizado dentro da dinâmica empresarial, buscou-se elencar os fundamentos legais e doutrinários que legitimam a atribuição de responsabilidade pelo inadimplemento das obrigações da contratada. Assim, a atribuição à Administração, como tomadora de serviços, o encargo de comprovar efetiva fiscalização e cuidado na escolha da empresa prestadora de serviços revela-se como alternativa viável ante a sistemática e finalidade da Justiça do Trabalho.
Para tanto, necessário se demonstrou discorrer sobre o tema processual do ônus da prova, não se desvinculando das consequências de se incumbir ao trabalhador o ônus de provar exercício negativo da Administração.
Cumpre salientar que o objetivo geral desta pesquisa foi cumprido, a saber, o de ensejar a reflexão multifacetada da terceirização no âmbito da Administração Pública frente ao ônus probatório de sua responsabilidade pelo inadimplemento das obrigações trabalhistas da contratada.
Urge, portanto, a necessidade de estipular critérios objetivos de fiscalização e escolha na empresa prestadora de serviços, a fim de se evitar interpretações subjetivas que dê margem para isenção de responsabilidade na relação de terceirização com os entes públicos.
De mais a mais, ainda que por ora já subsista posicionamento da Corte Maior brasileira em sentido contrário, a proposta de inversão do ônus da prova na relação de terceirização com os entes públicos apresenta-se como solução lógica e necessária que merece ser considerada. Ademais, a simples reflexão quanto aos rumos que o Direito do Trabalho tem apresentado, como ramo especializado criado em prol do trabalhador, é fundamental para o desenvolvimento de um senso crítico e de uma capacidade de indignação.
Afinal, conforme ensinamento de Caio Mário da Silva Pereira (1980, p. 8), ninguém tolera que o poder econômico, dia a dia mais abusivo, proclame o enriquecimento como filosofia de vida. Ninguém aprova o sacrifício uniformemente acelerado dos valores morais. Ninguém concorda, mas todos sabem que existe. Existe, porque há uma ordem jurídica que o tolera. E tolera porque os homens de responsabilidade não querem repensar o problema.
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[1] Graduada em Direito (2018), pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pós-graduada em Direito Imobiliário pela Faculdade Damásio (2020). Membro integrante do Grupo de Pesquisa em Direito do Trabalho, no IDCC (2021). Membro do Núcleo Jovem da OAB/Londrina.
[2] Doutor em Direito das Relações do Trabalho (PUC-SP). Docente dos Programas de Doutorado/Mestrado da Universidade de Marilia. Docente do Curso de Graduação em Direito da Universidade de Londrina. Autor de várias obras jurídicas. Advogado em Londrina.
[3] Art. 58 – O regime jurídico dos contratos administrativos instituídos por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de: […] III – fiscalizar-lhes a execução.