EXCLUSÃO DE ACIONISTA: A PROTEÇÃO DA SOCIEDADE ANÔNIMA FECHADA CONTRA O SÓCIO FALTOSO

EXCLUSÃO DE ACIONISTA: A PROTEÇÃO DA SOCIEDADE ANÔNIMA FECHADA CONTRA O SÓCIO FALTOSO

5 de dezembro de 2023 Off Por Cognitio Juris

EXCLUSION OF SHAREHOLDER: PROTECTION OF A CLOSED LIMITED COMPANY AGAINST FAULTING MEMBER

Artigo submetido em 30 de novembro de 2023
Artigo aprovado em 4 de dezembro de 2023
Artigo publicado em 5 de dezembro de 2023

Cognitio Juris
Volume 13 – Número 52 – Dezembro de 2023
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Henrique de Oliveira Lima Braga [1]
Isabella Rodrigues Freitas [2]

Resumo: A legislação societária brasileira limita o direito de retirada do acionista na sociedade anônima, em contraposição à ampla liberdade para alienação das ações sem possibilidade de oposição por parte dos demais acionistas. Este regime foi criado para servir às sociedades anônimas típicas, entendidas como aquelas que  possuem vínculos societários estáveis baseados no preenchimento do capital social, não nas qualidades pessoais e subjetivas dos acionistas. Em tais sociedades, é vedada a exclusão do acionista. Contudo, é relevante a quantidade de sociedades anônimas denominadas “heterotípicas”, compreendidas como aquelas em que o caráter capitalista não predomina sobre a natureza pessoal das relações havida entre os sócios. Para estas, é relevante a adequação do tratamento legislativo, especialmente em relação à exclusão do acionista faltoso.   

Palavras-chave: Tipicidade societária. Sociedades empresárias. Dissolução parcial de sociedades. Sociedade anônima heterotípica. Exclusão de acionista.

Abstract: Brazilian corporate legislation limits the shareholder’s right to withdraw from a corporation, as opposed to the broad freedom to sell shares without the possibility of opposition from other shareholders. This regime was created to serve typical corporations, understood as those that have stable corporate bonds based on the fulfillment of the share capital, as opposed to personal and subjective qualities of the shareholders. In such companies, shareholder exclusion is forbidden. However, it is important to note the number of “heterotypical” corporations, understood as those in which the capitalist nature does not predominate over the personal nature of the relationships between the shareholders. For these companies, it is important to adapt the legislative treatment, especially in relation to the exclusion of defaulting shareholders.

Keywords: Corporate typicality. Business corporation. Companies’ dissolution. Heterotypical business corporation. Exclusion of shareholders.

Sumário: 1 Introdução. 2 Sociedades de pessoas e de capital. 3 Dissolução parcial de sociedade anônima. 4 Exclusão de acionista. 5 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro adotou o princípio da tipicidade societária. Ao celebrar contrato de sociedade, o agente econômico deve optar por um dos tipos previstos em lei. O contrato de sociedade celebrado para a constituição de um tipo não previsto em lei será nulo por faltar-lhe objeto lícito e possível, pois aos particulares não é dado criar novos tipos de sociedade.

Essa limitação à liberdade de contratação tem justificativas econômicas e jurídicas, as quais convergem para uma causa comum: a segurança do mercado e a proteção dos terceiros que se relacionam com as sociedades[3].

A definição de tipos em matéria societária busca assegurar a organização e o controle sobre a alocação de recursos no mercado e proteger os terceiros que contratam com a sociedade, pois lhes é dada a oportunidade de conhecer, desde logo, o regime de responsabilidade dos sócios[4].

Antes de celebrar contrato de sociedade, portanto, o agente econômico tem conhecimento de um rol de direitos e obrigações que regerão a vida social. Embora alguns tipos societários confiram maior liberdade de contratação aos sócios, as características obrigatórias de cada tipo não podem ser afastadas, sob pena de violar a segurança jurídica e econômica que fundamentou a divisão das sociedades em espécies pré-determinadas.

Neste artigo, serão analisadas as características das sociedades de pessoas (intuitu personae) e de capital (intuitu pecuniae) sob o ponto de vista da estabilidade do vínculo societário.

As sociedades capitalistas (sociedades anônimas) foram criadas para ter vínculos societários estáveis. Como o preenchimento do capital social importa mais do que a confiança havida entre os sócios e as qualidades subjetivas destes, estabeleceu-se um regime de contrapesos no qual as ações podem ser livremente transferidas, sem possibilidade de oposição dos demais acionistas ao ingresso de novos investidores no negócio (Lei 6.404/1976, art. 36), mas o direito de retirada – e a consequente descapitalização da sociedade para pagamento dos haveres do acionista retirante – foi limitado, ficando condicionado à configuração de alguma das hipóteses previstas no rol taxativo dos artigos 136 e 137 da Lei 6.404/1976 (Lei das S/A).

Assim, ao passo que a livre alienação da participação acionária garantiu a preservação do direito fundamental do acionista de não permanecer associado contra a sua vontade, a limitação das hipóteses de exercício do direito de retirada assegurou que as sociedades capitalistas se desenvolvessem sem que a alteração das qualidades pessoais dos acionistas impactasse o vínculo societário (daí a sua estabilidade) e o montante do capital investido na atividade empresária.

A estabilidade do vínculo das sociedades capitalistas também justifica a ausência de previsão legal para a expulsão do acionista faltoso. Os artigos 1.030 e 1.085 do Código Civil (CC) expressamente autorizam a exclusão do quotista “por falta grave no cumprimento de suas obrigações”[5], defesa esta inoponível ao acionista que, igualmente, cometer falta grave em detrimento da companhia. Para este acionista, a Lei das S/A estabelece outras punições, mas nenhuma delas interfere no vínculo societário – que permanece estável.

Ocorre que o arcabouço legal não acompanha o dinamismo das relações societárias. A partir do final da década de 1990, doutrina e jurisprudência se voltaram ao estudo das sociedades anônimas (de capital) que se comportavam como limitadas (de pessoas). É relevante o número de sociedades anônimas de capital fechado cujo elemento preponderante é a afeição pessoal havida entre os sócios (affectio societatis), e não o interesse pecuniário e impessoal de reunir capital para desenvolver uma atividade empresária.

O surgimento e propagação desta espécie societária sui generis, posteriormente cunhada como “sociedade anônima heterotípica”, culminou na inclusão de dispositivo no Código de Processo Civil que autoriza a dissolução parcial da sociedade anônima de capital fechado sem que se configure qualquer das hipóteses de direito de retirada previstos nos artigos 136 e 137 da Lei das S/A:

Art. 599. […] § 2º. A ação de dissolução parcial de sociedade pode ter também por objeto a sociedade anônima de capital fechado quando demonstrado, por acionista ou acionistas que representem cinco por cento ou mais do capital social, que não pode preencher o seu fim.[6]

Houve, portanto, uma relativização da estabilidade do vínculo havido entre os acionistas, que se tornou mais frágil pelo que muitos classificam como uma nova hipótese de direito de retirada[7].  

O dispositivo legal, entretanto, se limitou a disciplinar o direito do acionista que pretende se retirar da sociedade por entender impossível o atingimento do fim social. A princípio, o §2º do art. 599 do Código de Processo Civil (CPC) não tutela os interesses do ente personalizado que precisa se defender do acionista cuja conduta põe em risco o mesmo bem da vida: a possibilidade de consecução do fim social.  

Diante desse cenário, este artigo se destina a estudar os remédios legais disponíveis à sociedade de capital (anônima) que encontra na conduta de seus acionistas um impeditivo à persecução do fim social, de modo a compreender se o mesmo fundamento que autoriza a retirada do acionista pode, também, se revelar um importante remédio para preservar a sociedade e a função social da empresa.

2 SOCIEDADES DE CAPITAL E DE PESSOAS: MECANISMOS DE DEFESA CONTRA O SÓCIO FALTOSO

As sociedades brasileiras se dividem entre sociedades de capital (intuitu pecuniae) e de pessoas (intuitu personae). O fator distintivo entre essas modalidades de sociedade é o elemento predominante para a sua constituição: o capital aportado pelos sócios ou a relação pessoal e a confiança mútua entre eles havida – a affectio societatis.

Toda sociedade é uma conjugação desses elementos. Não se concebe uma sociedade exclusivamente capitalista, em que o fator pessoal e a confiança mútua entre os sócios não concorra para a formação da vontade de perseguir conjuntamente o fim social. Igualmente, não é viável uma sociedade constituída sem capital, apenas com base na afeição pessoal dos sócios. O que definirá se uma sociedade é de capital ou de pessoas é a prevalência de um destes elementos sobre o outro.

Contratam uma sociedade capitalista aqueles que mais se preocupam com a capacidade econômica de seus sócios de aportarem capital para o desenvolvimento da empresa do que com as qualidades subjetivas destes. De outro lado, associam-se em sociedade de pessoas os agentes que possuem afeição pessoal e compartilham de confiança mútua para o desenvolvimento conjunto de uma empresa, sendo as características e qualidades pessoas dos sócios decisivas para o desenvolvimento da empresa.

Na definição de José Edwaldo Tavares Borba, “as sociedades de pessoas têm no relacionamento entre os sócios a sua razão de existir. A vinculação entre os sócios funda-se no intuitu personae, ou seja, na confiança que cada um dos sócios deposita nos demais”[8]. Por sua vez, nas sociedades de capital, inexiste esse personalismo, pois:

[…] o que ganha relevância nessa categoria de sociedades é a aglutinação de capitais para um determinado empreendimento”. Consequentemente, conclui o autor, “enquanto na sociedade de pessoas o quadro social deve manter-se constante, na sociedade de capitais a mutabilidade dos sócios é a regra.[9]

Ao passo que nas sociedades de pessoas o vínculo entre os sócios é instável, com possibilidade de desfazimento unilateral a qualquer tempo (desde que celebrada por tempo indeterminado), prevalece a estabilidade do vínculo no âmbito das sociedades capitalistas, cujos sócios apenas excepcionalmente têm o direito de quebrar o vínculo societário.

Como consequência, o exercício do direito de retirada é absolutamente distinto nas sociedades limitadas e anônimas – aqui utilizadas para representar, respectivamente, as sociedades de pessoas e de capital.

Nas limitadas celebradas por tempo indeterminado, o exercício do direito de retirada é livre e independe de justificativa pelo sócio retirante. É o que se extrai da primeira parte do artigo 1.029 do Código Civil, segundo o qual “qualquer sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de sessenta dias […]”[10]. Ou seja, a retirada é unilateral e injustificada, bastando ao quotista notificar os demais com antecedência mínima e, se estes não optarem pela dissolução total da sociedade[11], operar-se-á a retirada unilateral do quotista notificante.

De outro lado, para exercer o direito de retirada em uma sociedade anônima, o acionista deve necessariamente provar a ocorrência de alguma das hipóteses taxativas que autorizam o exercício deste direito, previstas nos artigos 136 e 137 da LSA – e, desde 2016, no art. 599, § 2º, do Código de Processo Civil. Justamente por se tratar de sociedade cujo principal elemento é o capital investido pelos acionistas, a descapitalização para pagamento de haveres é hipótese repudiada, que só deve ocorrer em casos extremos e autorizados em lei. A retirada imotivada, assim, é inconcebível.

A livre retirada nas sociedades de pessoas e a restrição deste direito nas sociedades de capital, entretanto, se contrapõem à liberdade de transmissão das participações societárias. Enquanto as quotas das limitadas não podem ser alienadas a terceiros com facilidade, dado que aos demais sócios pode não ser interessante o ingresso de um estranho no quadro societário e estes podem vetar a transferência da participação, as ações da companhia podem ser livremente negociadas, sem que os demais acionistas possam se opor ao ingresso de novos investidores no negócio.

Nesse caso, contrapõem-se os artigos 36 da Lei das S/A e 1.003 do Código Civil. O dispositivo da lei acionária consagra a liberdade de circulação das ações, com proposição no sentido de que os acionistas podem, pelo estatuto social, limitar a circulação de ações, mas jamais impedi-la. Por sua vez, o artigo 1.003 do Código Civil condiciona a cessão das quotas sociais à aprovação pela maioria dos demais quotistas, pelo que o ingresso de novos quotistas (e, consequentemente, a possiblidade de alienação da participação societária) é condicionada à aprovação da maioria.

Desse modo, historicamente, o acionista pode se desassociar pela simples venda das suas ações (LSA, art. 36), mas tem limitado o exercício do direito de retirada à configuração de alguma das hipóteses previstas taxativamente em lei (LSA, arts. 136 e 137). De outro lado, o quotista de sociedade limitada celebrada por tempo indeterminado tem o direito de se retirar da sociedade a qualquer tempo e sem justificar seus motivos (CC, art. 1.029), mas precisa da aprovação dos demais para transferir suas quotas a terceiros (CC, art. 1.003).

Essa discrepância entre o regime aplicável às sociedades de pessoas e de capital não importa apenas sob a ótica individual do sócio que deseja se desassociar. O grau de estabilidade do vínculo societário é também determinante para aferir os remédios dos quais a sociedade pode se valer para se proteger contra a conduta do sócio faltoso.

A instabilidade do vínculo societário das limitadas autoriza que a maioria dos quotistas delibere pela exclusão do sócio faltoso ou incapaz. A expulsão do sócio, expressamente autorizada pelos artigos 1.030 e 1.085 do Código Civil, é a medida a ser adotada para repelir a conduta antissocial do quotista que, por sua conduta desidiosa, prejudicar o desenvolvimento da empresa e colocar em risco o atingimento do fim social[12].

Pela sistemática do Código Civil, verificada a prática de falta grave por um quotista – cujo conceito não é tipificado, mas já foi amplamente estudado pela doutrina[13] –, podem os sócios representantes da maioria do capital social deliberar pela sua expulsão do quadro social, mediante o pagamento de seus haveres. 

O vínculo estável das sociedades anônimas, por sua vez, afastou da legislação qualquer menção à exclusão do acionista que cometer as mesmas faltas graves que justificam a expulsão do quotista da limitada.

Como explica Alfredo de Assis Gonçalves Neto, “nas sociedades por ações, os acionistas só podem deliberar sobre a exclusão de um deles por não pagamento do preço das ações subscritas ou adquiridas”[14]. Se o fator preponderante para a constituição da sociedade anônima é o investimento de capital pelos sócios, sendo irrelevantes as suas qualidades pessoais, é justificável que a falha em aportar referido capital seja a única causa de expulsão do sócio. Tanto que “não é prevista e nem poderia ser a exclusão por mau comportamento, porquanto não há previsão legal, na concepção de que o acionista é mero investidor”[15][16].

A falta de previsão legal para a exclusão de acionista de sociedade anônima também se justificava pelos próprios remédios alternativos que a Lei das S/A disponibiliza à maioria social e à própria companhia. Embora não autorize a exclusão do sócio mediante pagamento de seus haveres (como forma de preservação do capital investido), a lei acionária estabelece outras punições ao acionista cuja conduta faltosa possa prejudicar o desenvolvimento da empresa.

Para o acionista que incorrer em abuso de voto, o remédio legal é a responsabilização pelas perdas e danos que causar à companhia (LSA, art. 115, §3º). Idêntica medida é aplicável ao acionista controlador que causar dano à sociedade mediante abuso no exercício do poder de controle (LSA, arts. 117 e 246). A Lei das S/A autoriza, ademais, a invalidação dos votos proferidos de forma abusiva (LSA, art. 115, §4º), bem como a suspensão dos direitos do acionista que deixar de cumprir obrigação imposta pelo estatuto social (LSA, art. 120). A doutrina fala, ainda, na imposição de astreintes para compelir o acionista a cumprir seus deveres sociais[17].

A preferência pelas tutelas ressarcitória e anulatória sobre a exclusão como meios de defesa contra o acionista que descumpre seus devedores sociais tem como fundamento a própria natureza das companhias, que são (ou, ao menos, foram pensadas para serem), em regra, sociedades de capital.

Isto é, com o intuito de preservar o investimento feito pelos acionistas, a Lei das S/A estabelece formas de punição ao sócio faltoso que não implicam, diretamente, a descapitalização da companhia – o que não ocorre com as sociedades limitadas, para as quais a solução é a expulsão do quotista mediante o pagamento de seus haveres.

A sistemática criada pela Lei das S/A, contudo, tem a sua eficácia condicionada à manutenção do status quo que embasou a sua edição em 1976[18]. Para que haja sentido nas tutelas protetivas aplicáveis a cada tipo societário, é preciso que a realidade se adeque ao padrão geral considerados pelo legislador ao promulgar a lei, qual seja: a reunião em sociedades limitadas (intuitu personae) de pessoas que compartilham confiança mútua e interesse em promover uma empresa com base nas qualidades subjetivas dos sócios; e a constituição de sociedades anônimas (intuitu pecuniae)pelos agentes econômicos que objetivam o investimento impessoal em determinada atividade, cujo desempenho independe das qualidades subjetivas de cada acionista, mas apenas do capital por eles investido.  

Ocorre que que as sociedades brasileiras não se organizam necessariamente desta forma. Hoje, sabemos que predominam as “sociedades anônimas de pessoas”, que foram constituídas sob a forma de companhias, mas, na prática, se comportam como sociedades tipicamente intuito personae.

Esse fenômeno, que não foi considerado pelo legislador em 1976, deve iluminar o estudo do direito societário contemporâneo. É preciso compreender as consequências do surgimento destas sociedades anônimas sui generis para examinar se o regramento imposto às companhias pela Lei das S/A está em consonância com a realidade das sociedades brasileiras.

3 DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE ANÔNIMA

O regime societário brasileiro se limita à constituição de poucos tipos societários, concentrados nas sociedades simples, cooperativas, limitadas e anônimas – com grande destaque para as duas últimas. Os demais tipos societários, como as sociedades em comandita e em conta de participação, são praticamente inexistentes.

Inobstante, como alerta Pedro Eugenio Pereira Bargiona, “não se verifica um esforço sistêmico para criar uma verdadeira teoria moderna para os tipos societários”[19], o que resulta, inevitavelmente, no “emprego de regras que, a priori, seriam destinadas a outro tipo societário, de modo que as características inicialmente esperadas para o tipo podem não corresponder à realidade da sociedade, na prática”[20].

Essa anomalia foi descrita como a “heterotipia” das sociedades, compreendida como o enquadramento de uma sociedade fora das características do tipo societário por ela adotado. Embora presente nas sociedades limitadas, a heterotipia assume maior relevância para o estudo das sociedades anônimas. Isso porque, por expressa disposição legal, as sociedades limitadas assumem natureza híbrida, podendo ser intuitu personae ou pecuniae de acordo com a vontade dos sócios. O artigo 1.057 do Código Civil autoriza os quotistas a regularem, no contrato social, o regime de cessão das quotas, tanto com relação à transferência inter vivos quanto causa mortis da participação societária. Trata-se de disposição que afeta diretamente a estabilidade do vínculo societário, que será mais forte – e, portanto, próximo daquele existente nas sociedades de capital – se os quotistas optarem por autorizar a livre transmissão das quotas sociais, ou mais flexível – típico de sociedades intuitu personae – se os sócios condicionarem o ingresso de novos quotistas à aprovação dos demais.

Para as sociedades anônimas, contudo, não existe (ou não deveria existir) tamanha liberdade de negociação. Há, no entanto, diversos sinais que podem ser observados para caracterizar a heterotipia das companhias fechadas, principalmente os relacionados ao grau de estabilidade do vínculo societário, à afeição dos sócios e ao modelo de gestão da empresa[21].

Como visto, as sociedades anônimas (de capital) são caracterizadas pela estabilidade do vínculo societário, o que pressupõe a limitação do direito de retirada em contraposição à liberdade de transmissão das ações. Se uma sociedade constituída sob a forma anônima, em seu estatuto social, estabelecer normas que limitem a transmissibilidade das participações societárias e facilitem o exercício do direito de retirada, aproximar-se-á das características de uma sociedade limitada intuitu personae – o que pode concorrer para a caracterização da heterotipia[22].

É absolutamente relevante para a configuração da heterotipia, ademais, a presença da afeição pessoal e confiança mútua entre os acionistas (affectio societatis) como fator determinante para a constituição da sociedade anônima, atrelada à indispensabilidade das qualidades pessoais dos acionistas (como seu conhecimento técnico sobre a área de atuação da sociedade) para o atingimento do fim social.

A valorização individual do acionista (e não do seu investimento), atrelada à adoção de medidas que tornam instável o vínculo societário, são as principais causas da heterotipia nas sociedades anônimas.

A identificação e delimitação das características que tornam uma sociedade “heterotípica” são essenciais pois permitem estabelecer as consequências desta qualificação e os parâmetros para sua incidência sobre os casos concretos.

Conforme indicado no capítulo anterior, a estabilidade do vínculo das sociedades de capital levou o legislador de 1976 a omitir da Lei das S/A a previsão de dissolução parcial da sociedade anônima. Contudo, nas últimas duas décadas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) sedimentou a jurisprudência no sentido do cabimento de tal modalidade de dissolução. E o arcabouço jurisprudencial inspirou o legislador de 2015 a positivar no Código de Processo Civil a permissão expressa de dissolução parcial das companhias fechadas, em substituição a uma hipótese tratada na Lei das S/A como causa de dissolução total das sociedades anônimas.

Embora tenha julgado “juridicamente impossível” o primeiro pedido de dissolução parcial de sociedade anônima, com o qual se deparou em 1993[23], a Corte Superior não tardou a autorizá-lo.

Em 2000, a Quarta Turma do STJ declarou por maioria a possibilidade de dissolução parcial de uma sociedade anônima familiar, aos fundamentos de que (i) teria havido a quebra da affectio societatis que embasou a criação da sociedade, a qual, embora constituída sob a modalidade anônima, tinha na relação pessoal dos sócios (familiares) o principal pilar de sua existência, e (ii) havia transcorrido período excessivo sem a distribuição de dividendos aos sócios, o que indica a impossibilidade de consecução do fim social[24].

Hoje podemos perceber a especial relevância deste julgado porque o segundo fundamento utilizado pelo voto vencedor, exaltado pelos votos que com este convergiram, pode ter iluminado a redação do dispositivo legal que, atualmente, autoriza a dissolução das sociedades anônimas.

A Lei das S/A estabelece, em seu artigo 206, inciso II, alínea “b”, que a sociedade anônima será totalmente dissolvida “quando provado que não pode preencher o seu fim”. A dissolução total da sociedade, contudo, não se coaduna com o princípio da preservação da empresa. Tratando-se de sociedade saudável, ou que enfrenta crise superável, o interesse público reside na resolução das controvérsias que a infligem para que esta siga cumprindo a sua função social, mediante geração empregos, circulação de riquezas e recolhimento de tributos. A dissolução total da sociedade deve ser interpretada como medida de exceção, pois dá início ao fim da vida social[25].

A dissolução parcial da sociedade, quando surgida para tutelar as sociedades de pessoas em geral, foi pensada justamente para servir como meio de preservação da função social da empresa. Nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho:

[o] princípio da preservação da empresa orientou a consolidação, na doutrina e na jurisprudência, da figura da dissolução parcial. Por meio dela, superam-se problemas surgidos entre os sócios, sem o comprometimento da existência da sociedade, e, em consequência, garantindo a preservação da atividade econômica da empresa por ela explorada […] as ações de dissolução total não são procedentes quando demonstrado que a sociedade explora, regularmente, a atividade econômica circunscrita em seu objeto Nesse caso, tem prevalecido a determinação judicial de solução dos conflitos intrassocietários, por meio da apuração de haveres do sócio descontente Somente no caso de limitadas inativas costuma se ainda conceder a dissolução total a pedido de sócio não majoritário.[26]

Foi com base nesta percepção que, em 2000, os Ministros da Quarta Turma do STJ autorizaram a dissolução parcial de uma sociedade anônima que, há anos, não distribuía dividendos.

A medida foi adotada como forma de preservação da função social da empresa, pois entendiam os Ministros que a hipótese dos autos (ausência reiterada de distribuição de dividendos) se adequaria à previsão contida no artigo 206, inciso II, alínea “b”, da Lei das S/A, cuja aplicação ensejaria a dissolução total da sociedade. Mas, para evitar a dissolução total e, com isso, preservar a função social da empresa, entenderam os Ministros por bem determinar a dissolução parcial da companhia, como medida alternativa à sua extinção.

Pouco após, a Terceira Turma do STJ, em acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi, tornou a autorizar a dissolução parcial de sociedade anônima como alternativa à dissolução total com base na preservação da função social da empresa[27].

A grande inovação no tema, contudo, veio a ocorrer em 2006, com o julgamento dos embargos de divergência n. 111.294/PR pela Segunda Seção da Corte Superior. Na ocasião, a Corte reconheceu a prevalência de “sociedades limitadas travestidas de anônimas” e autorizou a dissolução parcial com base na quebra da affectio societatis, ao fundamento de que a ausência deste elemento impediria a consecução do fim social. Assim, como medida alternativa à dissolução total prevista na alínea “b” do inciso II do artigo 206 da Lei das S/A, decidiram os Ministros pela dissolução parcial da sociedade sub judice, com o escopo de preservar a função social da empresa[28].

Ou seja, o fundamento para a dissolução parcial da sociedade anônima sempre foi a necessidade de preservação da função social empresa. Quando constatado que o fim social não poderia ser atingido (seja pela ausência reiterada de distribuição de dividendos ou pela quebra da affectio societatis), a dissolução parcial surgia como alternativa à dissolução total prevista no artigo 206, II, “b”, da Lei das S/A.

O tema, conduto, nunca foi pacífico em meio à doutrina especializada. Ao passo que Bulhões Pedreira e Lamy Filho defendem que a dissolução parcial da companhia é possível “quando o acionista exerce o direito de pedir a dissolução total com fundamento numa das hipóteses do art. 206, II, da LSA, e o juiz, para preservar a sociedade anônima, concede apenas a dissolução parcial”[29], Fábio Ulhoa Coelho é firme ao asseverar que a companhia pode ser parcialmente dissolvida apenas em uma hipótese, qual seja o exercício do direito retirada pelo herdeiro do acionista falecido, o qual não manifestou sua vontade de participar do quadro societário. Aos demais, que quiseram participar da sociedade anônima, entende o autor que não é legítimo o pedido de dissolução parcial[30].

Inobstante as eloquentes argumentações, a jurisprudência do STJ fez surgir a norma inscrita no § 2º do artigo 599 do Código de Processo Civil, que autoriza a dissolução parcial da sociedade anônima de capital fechado “quando demonstrado, por acionista ou acionistas que representem cinco por cento ou mais do capital social, que não pode preencher o seu fim.”

O texto é idêntico ao do artigo 206, II, “b”, da Lei das S/A, o que faz crer que, de fato, o intuito da norma é substituir[31] a hipótese de dissolução total pela parcial, à luz do princípio constitucional de preservação da empresa:

Quadro 1 – Comparação entre o artigo 599, §2º, do Código de Processo Civil e o artigo 206, inciso II, alínea “b”, da Lei das S/A

Artigo 206, II, “b”, da Lei das S/AArtigo 599, §2º, do CPC
Dissolve-se a companhia: […] II – por decisão judicial: […] b) quando provado que não pode preencher o seu fim, em ação proposta por acionistas que representem 5% (cinco por cento) ou mais do capital social.A ação de dissolução parcial de sociedade pode ter também por objeto a sociedade anônima de capital fechado quando demonstrado, por acionista ou acionistas que representem cinco por cento ou mais do capital social, que não pode preencher o seu fim.

Fonte: Elaboração própria.

Em nosso sentir, entretanto, a principal questão a ser debatida é a interpretação que deve ser conferida ao texto legal. O dispositivo autoriza o acionista titular de mais de 5% do capital social a requerer a dissolução parcial quando a companhia de capital fechado não puder “preencher o seu fim”. É necessário, portanto, compreender o que se entender pelo “fim” da sociedade anônima, para então delimitar as hipóteses de cabimento da dissolução parcial[32].

O fim de uma companhia é geração de lucro para distribuição entre os acionistas (fim mediato). Mas, para tanto, é preciso desempenhar uma atividade profissional e organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços (fim imediato). Sem desempenhar a atividade à qual se propõe, a sociedade não gera lucro. E, se não gera lucro, não distribui dividendos aos acionistas[33].

O “fim” de uma sociedade, portanto, está atrelado, em primeiro plano, à capacidade de geração de lucro pelo desempenho do objeto social. Se a sociedade não puder exercer a atividade à qual se propôs, não gerará lucro e, consequente, não remunerará os acionistas – o que lhe retira por completo a razão de existir.

Ocorre que é perfeitamente possível que uma sociedade lucrativa, por opção dos próprios acionistas, deixe de distribuir dividendos por determinado período. Seja em razão da necessidade de geração de caixa ou da intenção de realizar um investimento futuro, podem os sócios deliberar a retenção de dividendos pelo prazo que bem entenderem, sem que isso, à primeira vista, caracterize a impossibilidade de atingimento do fim social.

Da mesma forma, é concebível uma sociedade anônima de capital fechado na qual haja grandes divergências entre os sócios, mas cuja atividade seja regularmente desempenhada e cujos acionistas sejam satisfatoriamente remunerados. A quebra da affectio societatis não necessariamente inviabiliza o fim social.

Portanto, a nosso ver, embora a incapacidade de preenchimento do fim social mais se relacione com a impossibilidade de desempenho do objeto social do que com a distribuição satisfatória de dividendos aos acionistas, é inegável que o fim social é uma conjugação de ambos os elementos, pelo que a presença individual de apenas um deles não deve justificar a dissolução parcial das companhias.

Isto é, a ausência de repartição dos lucros entre os acionistas não deve, por si só, justificar a dissolução parcial da sociedade anônima heterotípica[34][35]. Igualmente, a simples quebra da affectio societatis não é causa de dissolução parcial[36]. Apenas a conjugação destes fatores é capaz de tornar impossível o seu fim, o qual, como visto, é atingido quando a sociedade desempenha o seu objeto social, gera lucro e o reparte entre os acionistas. 

4 EXCLUSÃO DE ACIONISTA

A conclusão alcançada acima não resolve a problemática da expulsão do acionista da sociedade anônima de capital fechado, mas fornece o substrato jurídico para interpretá-la.

A leitura fria do artigo 599, § 2º, do Código de Processo Civil conduz o intérprete pragmático à conclusão de que a dissolução parcial da sociedade anônima deve partir exclusivamente do acionista que deseja se retirar da sociedade. O dispositivo legal não abre espaço para interpretação no sentido de que a maioria dos sócios tem o direito de excluir do quadro social o acionista que cometer falta grave e colocar em risco a continuidade da empresa – como autorizam os artigos 1.030 e 1.085 do Código Civil para as sociedades limitadas.

Igualmente, conforme exposto no Capítulo I supra, a Lei das S/A tampouco autoriza a expulsão do sócio faltoso. A estabilidade do vínculo das sociedades tipicamente intuitu pecuniae demanda a adoção de outras medidas protetivas, como as tutelas ressarcitórias e anulatórias citadas anteriormente, as quais (em tese) seriam suficientes para repelir a conduta antissocial sem descapitalizar a companhia.

Ocorre que, com o avanço do direito societário e constatação por lei, doutrina e jurisprudência de que o status quo que embasou a edição da Lei das S/A na década de 1970 não corresponde à realidade das sociedades brasileiras, é forçoso cogitar que, talvez, a alteração legislativa de 2016 tenha sido insuficiente.

Se foi com base na jurisprudência do STJ que reconhecera a prevalência das “sociedades limitadas travestidas de anônimas”[37] que o ordenamento jurídico passou a autorizar a dissolução parcial da companhia fechada cujo fim não puder ser atingido, por que relutar em admitir que o acionista cuja conduta resultar na impossibilidade de atingimento do fim social (i.e., o mesmo elemento tutelado pelo CPC), deva ser excluído como meio de preservação da função social da empresa?

Como explica Modesto Carvalhosa, o fundamento para a expulsão dos sócios de sociedades limitadas é “o inadimplemento do dever de coloração do sócio que possa resultar em efetivo e atual prejuízo da atividade social, com o consequente rompimento da affectio societatis[38].

Ora, se admitirmos que existem sociedades anônimas cuja constituição tem como base a affectio societatis (as sociedades heterotípicas) e que, para estas, é possível a dissolução parcial nos casos em que não for possível atingir o fim social, é perfeitamente razoável argumentar pelo cabimento da exclusão do acionista que, por sua conduta faltosa, colocar em risco o atingimento deste mesmo bem tutelado: o fim social.

Marcelo Von Adamek vai além. Para o comercialista, a exclusão de acionista tem cabimento não apenas nas sociedades anônimas heterotípicas, mas também nas companhias intuitu pecuniae. Nesse caso, a quebra do dever de lealdade (aplicável igualmente às sociedades de pessoas e de capital) justificaria a expulsão do acionista, independentemente da ocorrência da heterotipia[39]:

[…] a construção, reconhece-se, é também controvertida. Mas tem a vantagem de colocar a discussão no plano mais objetivo e, por isso, não depender do prévio enquadramento da sociedade anônima como “pessoas”: de pessoas ou de capitais, o sócio que descumpre o dever de lealdade societária incorre em situação de descumprimento e, pelo instituto da resolução do contrato (resolução do vínculo societário, poderia, como ultima ratio, ser então excluído.[40]

Alfredo de Assis Gonçalves Neto, por sua vez, defende o absoluto descabimento da exclusão de sócios no âmbito das companhias. Para o autor, nem mesmo o acionista que figurar como administrador ou controlador pode ser expulso, dado que a Lei das S/A estabelece punições específicas para as faltas cometidas no exercício destas funções[41]:

A companhia, como sociedade de capital vive a cavaleiro da situação pessoal de seus acionistas salvo quando o acionista ocupa cargo de administração, mas, nesse caso, o corretivo legal está no afastamento do administrador – ou se preferir – na exclusão do administrador do cargo que ocupa e, eventualmente, na apuração de sua responsabilidade civil e penal. Ele, no entanto, continua acionista até desfazer-se de suas ações e ninguém pode interferir em seus direitos de propriedade sobre elas. […] Situação peculiar, que deve merecer análise em cada caso concreto, é a do acionista controlador, pelo fato de exercer poder de orientar os destinos da sociedade. Mesmo nesse caso, não há de se falar em exclusão dele, mas de sua responsabilização com a adoção de medidas que reduzam o seu poder de controle sobre os atos da companhia.[42]

A nosso ver, a melhor solução é intermediária e deve se ater aos limites impostos pelo Código de Processo Civil para a dissolução parcial das sociedades anônimas, combinados com a análise caso a caso da realidade da companhia sub judice: a exclusão de acionista pode ser admitida (i) no âmbito de sociedades anônimas de capital fechado – vedada a disciplina para as companhias abertas, (ii) caracterizadas como sociedades anônimas heterotípicas ou “de pessoas” – análise esta que deve ser realizada caso a caso – e (iii) em detrimento do acionista cuja conduta colocar em risco o bem tutelado pelo artigo 599, § 2º, do Código de Processo Civil, qual seja a possibilidade de atingimento do fim social – este que deve ser compreendido como a conjugação do desempenho do objeto social (fim imediato) e da geração de lucros e repartição entre os acionistas (fim medito).

Essa posição, aliás, se coaduna com a decisão tomada pelo STJ em 2011 (portanto, antes edição do art. 599, § 2º, do CPC) no âmbito do recurso especial nº 917.531/RS. Na ocasião, a Quarta Turma autorizou a exclusão de acionistas do quadro de uma companhia fechada familiar, ao fundamento de que a conduta faltosa destes, para além de caracterizar a quebra da affectio societatis, colocava em risco o “exercício da empresa”, o que justificaria a expulsão como forma de preservar a função social da empresa:

DIREITO SOCIETÁRIO E EMPRESARIAL. SOCIEDADE ANÔNIMA DE CAPITAL FECHADO EM QUE PREPONDERA A AFFECTIO SOCIETATIS. DISSOLUÇÃO PARCIAL. EXCLUSÃO DE ACIONISTAS. CONFIGURAÇÃO DE JUSTA CAUSA. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO DIREITO À ESPÉCIE. ART. 257 DO RISTJ E SÚMULA 456 DO STF. 1. O instituto da dissolução parcial erigiu-se baseado nas sociedades contratuais e personalistas, como alternativa à dissolução total e, portanto, como medida mais consentânea ao princípio da preservação da sociedade e sua função social, contudo a complexa realidade das relações negociais hodiernas potencializa a extensão do referido instituto às sociedades “circunstancialmente” anônimas, ou seja, àquelas que, em virtude de cláusulas estatutárias restritivas à livre circulação das ações, ostentam caráter familiar ou fechado, onde as qualidades pessoais dos sócios adquirem relevância para o desenvolvimento das atividades sociais (“affectio societatis“). (Precedente: EREsp 111.294/PR, Segunda Seção, Rel. Ministro Castro Filho, DJ 10/09/2007) 2. É bem de ver que a dissolução parcial e a exclusão de sócio são fenômenos diversos, cabendo destacar, no caso vertente, o seguinte aspecto: na primeira, pretende o sócio dissidente a sua retirada da sociedade, bastando-lhe a comprovação da quebra da “affectio societatis“; na segunda, a pretensão é de excluir outros sócios, em decorrência de grave inadimplemento dos deveres essenciais, colocando em risco a continuidade da própria atividade social. 3. Em outras palavras, a exclusão é medida extrema que visa à eficiência da atividade empresarial, para o que se torna necessário expurgar o sócio que gera prejuízo ou a possibilidade de prejuízo grave ao exercício da empresa, sendo imprescindível a comprovação do justo motivo. 4. No caso em julgamento, a sentença, com ampla cognição fático-probatória, consignando a quebra da “bona fides societatis“, salientou uma série de fatos tendentes a ensejar a exclusão dos ora recorridos da companhia, porquanto configuradores da justa causa, tais como: (i) o recorrente Leon, conquanto reeleito pela Assembleia Geral para o cargo de diretor, não pôde até agora nem exercê-lo nem conferir os livros e documentos sociais, em virtude de óbice imposto pelos recorridos; (ii) os recorridos, exercendo a diretoria de forma ilegítima, são os únicos a perceber rendimentos mensais, não distribuindo dividendos aos recorrentes. 5. Caracterizada a sociedade anônima como fechada e personalista, o que tem o condão de propiciar a sua dissolução parcial – fenômeno até recentemente vinculado às sociedades de pessoas -, é de se entender também pela possibilidade de aplicação das regras atinentes à exclusão de sócios das sociedades regidas pelo Código Civil, máxime diante da previsão contida no art. 1.089 do CC: “A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código.” 6. Superado o juízo de admissibilidade, o recurso especial comporta efeito devolutivo amplo, porquanto cumpre ao Tribunal julgar a causa, aplicando o direito à espécie (art. 257 do RISTJ; Súmula 456 do STF). Precedentes. 7. Recurso especial provido, restaurando-se integralmente a sentença, inclusive quanto aos ônus sucumbenciais.[43]

Com efeito, pelas mesmas razões que entendemos inviável autorizar a dissolução parcial da sociedade anônima a pedido do sócio retirante pela mera configuração da quebra da affectio societatis, concluímos que tal não pode justificar a exclusão de um acionista pela maioria[44]. A expulsão do acionista deve ser medida absolutamente excepcional, à qual não se deve estender indistintamente a disciplina aplicável às limitadas. As causas que justificam a exclusão de um quotista não justificam, igualmente, a expulsão de um acionista.

Para o último, a exclusão deve ocorrer apenas e tão somente nos casos em que a conduta do sócio comprovadamente colocar em risco o atingimento do fim social – conceito que deve ser compreendido, conforme exposto, como a conjugação do exercício do objeto social (empresa) e da busca pelo lucro com posterior repartição entre os acionistas.

Assim, o sócio que insistentemente atravancar as deliberações sociais, faltar injustificadamente às assembleias, exercer abusivamente o direito de veto ou que, por qualquer outro meio, tornar impossível o desempenho da atividade exercida pela sociedade e, por conseguinte, inviabilizar que esta lucre e remunere os demais acionistas, estará sujeito a expulsão.

Ambos os fatores devem se fazer presentes. Não deve ser expulso o acionista que, embora atue fora dos padrões esperados de um sócio, não inviabilize por completo o atingimento do fim social – o que, inclusive, já foi reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça[45][46]. A expulsão deve ser analisada caso a caso, devendo ser deferida de forma excepcional e apenas quando o sócio deliberadamente impossibilitar a consecução do fim social, o que deve ser exaustivamente provado e confirmado pelos sócios que pretendem a expulsão.

Para tanto, o conceito de “fim” da sociedade anônima deve ser o mesmo aplicado à dissolução parcial requerida pelo acionista (CPC, art. 599, § 2º), qual seja: a conjugação entre os fins mediato e imediato, consistentes no desempenho da atividade empresária com o escopo de geração de lucro a ser repartido entre os acionistas.

5 CONCLUSÃO

A prática societária releva que, ao contrário do que foi pensado pelos editores da Lei das S/A, as sociedades anônimas não são exclusivamente constituídas por agentes econômicos que pretendem realizar um investimento impessoal em determinada atividade. As sociedades anônimas de capital fechado são, em larga escala, utilizadas por pessoas que possuem afeição pessoal e compartilham interesse mútuo em desenvolver determinada atividade empresarial, mas, por razões de ordem prática, não pretendem fazê-lo sob a roupagem de uma sociedade limitada.

Embora distante do conceito de “companhia” pensado pelo legislador de 1976, essa é a realidade que deve pautar a interpretação das normas de direito societário.

Assim sucedeu com o instituto da dissolução parcial das sociedades anônimas, que não possui previsão na Lei das S/A, mas, devido à evolução da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, hoje é expressamente autorizada pelo artigo 599, § 2º, do Código de Processo Civil.

Em nosso sentir, idêntica evolução deve ocorrer com relação aos remédios dos quais os sócios dispõem para repelir as atitudes antissociais de seus pares.

Se é certo que a lei das companhias foi pensada para regulamentar exclusivamente as sociedades de vínculo estável (intuitu pecuniae), mas, agora, vivemos em meio a um sem-número de companhias cujos vínculos societários são instáveis (intuitu personae), é forçoso concluir que as regras decorrentes desta presunção precisam ser revistas.

Dentre tais regras, destacam-se às relativas às formas pelas quais a sociedade e os acionistas têm para se defender do sócio que assume conduta contrária ao interesse social.

Justamente por se prestar à regulamentação de sociedades de vínculo estável, todos os remédios previstos pela Lei das S/A foram pensados para repelir a atitude antissocial sem quebrar o vínculo societário, de modo a evitar a descapitalização da sociedade.

Contudo, com a proliferação das sociedades anônimas heterotípicas, de vínculo instável, não há razão para permitir a permanência indefinida do sócio faltoso no quadro societário, especialmente diante da baixa eficácia das tutelas previstas na Lei das S/A como meios de punição a tais acionistas.

A mesma lógica que levou o legislador de 2015 a permitir a dissolução parcial da sociedade anônima que não puder atingir o seu fim deve autorizar a expulsão do acionista que, por sua conduta faltosa, impossibilite que a companhia atinja este mesmo fim social, como forma de preservação da função social da empresa.

Referida expulsão, entretanto, deve ser absolutamente excepcional, analisada caso a caso e autorizada apenas quando restar comprovado que o fim social (compreendido como conjunção do objeto social e da capacidade de lucro a ser repartido entre os acionistas) não puder ser atingido em razão da conduta do respectivo acionista.

Nessa hipótese, o princípio da preservação da empresa exige a quebra do vínculo societário, medida que não deve ser obstada pela rigidez de uma lei editada ao tempo que não se tinha ciência de que o futuro do direito societário seriam as sociedades anônimas “de pessoas”.

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[1] Brasil. E-mail: isabella.r.freitas@gmail.com. Mestranda em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Bacharela em Direito pela PUC-SP. Advogada.

[2] Brasil. E-mail: henrique.braga@sobadv.com.br. Mestrando em Direito Comercial pela PUC-SP; Bacharel em Direito pela PUC-SP. Advogado.

[3] MITSUYA, Fernando Akiyo. Tipicidade Societária: o contrato de sociedade no direito brasileiro. 2012. Monografia (Bacharelado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/21188/21188.PDF. Acesso em: 23 Nov. 2023.

[4] PELA, Juliana Krueger. As Golden Shares no Direito Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2012.

[5] BRASIL. Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. DOU, Brasília/DF, [2023]. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm. Acesso em: 24 Nov. 2023. Online.

[6] BRASIL. Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. DOU, Brasília/DF, [2023]. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm. Acesso em: 24 Nov. 2023. Online.

[7] A causa de tal dissolução parcial – impossibilidade de persecução do fim social –, em verdade, era antes tratada como fundamento para a dissolução total da sociedade anônima, na forma da revogada alínea “b” do inciso II do artigo 206 da Lei das S/A.

[8] TAVARES BORBA, José Edwaldo. Direito Societário. 13. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 88.

[9] Ibid. p. 88.

[10] BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. DOU, Brasília/DF, [2023]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 25 Nov. 2023. Online.

[11] O parágrafo único do artigo 1.029 do Código Civil autoriza os quotistas de sociedade limitada a dissolvê-la totalmente no prazo de 30 dias subsequentes ao recebimento da notificação de retirada de um dos quotistas. O dispositivo protege as sociedades cujo capital social é formado majoritariamente – ou em grande parte – pelas quotas do sócio retirante. Nesse caso, o pagamento dos haveres do quotista retirante e a continuidade da atividade empresarial sem a sua participação podem se revelar inviáveis, o que demanda a dissolução da sociedade. Nesse sentido, cf.: GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 9. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

[12] A exclusão do quotista de sociedade limitada também é autorizada nas hipóteses de (i) incapacidade superveniente (CC, art. 1.030, caput); (ii) falência do quotista (CC, art. 1.030, parágrafo único); e (iii) liquidação da quota por credor do sócio (CC, art. 1.030, parágrafo único c.c. art. 1.026).

[13] Para Arnoldo Wald, “justa causa deve fundar-se em atos do sócio que possam afetar direitos e interesses da sociedade e até a sua continuidade e solidez, como seriam os relacionados a gestão danosa ou fraudulenta, uso indevido de firma, quebra dos deveres fiduciários e de lealdade em relação à sociedade, usurpação de oportunidade de negócio da empresa, e outros motivos graves, que acabam redundando na quebra da affectio societatis por ato do sócio”. (WALD, Arnoldo. Comentários ao Novo Código Civil: Vol. XIV (arts. 966 a 1.195) –Do direito de empresa. Sálvio de Figueiredo Teixeira (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 234).

Marcelo Fortes Barbosa et al., por sua vez, elucidam que “um sócio pratica uma falta grave quando simplesmente deixa de prestar a contribuição ajustada sob a forma de serviço, quando divulga informações confidenciais ou quando pratica atos de gestão ilícitos ou com violação do próprio con­trato social. Nessas circunstâncias, a exclusão pre­serva a sociedade simples e viabiliza o prossegui­mento do empreendimento”. (BARBOSA, Marcelo Fortes et al. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Cezar Peluso (Coord.). 12. ed. Barueri: Manole, 2018. p. 991).

[14] GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 9. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 308.

[15] GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 9. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 308.

[16] Fábio Ulhoa Coelho analisou o tema sob o ponto de vista da natureza do ato associativo das sociedades de pessoas e de capital. Como as primeiras tendem a ser constituídas por contrato social, ao passo que as últimas são sociedades institucionais, entende o autor que a exclusão do sócio só é admissível no âmbito das primeiras porque se trata de hipótese de rescisão contratual por culpa de uma das partes – no caso, o sócio que descumpriu o dever de lealdade: “[o] sócio da limitada que não cumpre suas obrigações (perante os demais ou a sociedade) pode ser expulso. Trata-se a expulsão – ou exclusão – de uma forma de desfazimento dos vínculos societários exclusiva das sociedades contratuais. A rigor, está-se diante de ato jurídico muito comum, que é a rescisão do contrato, por culpa de uma das partes. Como qualquer outro contratante, o sócio da limitada que descumpre as obrigações contratadas dá ensejo à rescisão do contrato.” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curto de direito comercial: Vol. 2 – direito de empresa. 21. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 397).

[17] VON ADAMEK, Marcelo Vieira. Abuso de minoria em Direito Societário. São Paulo: Malheiros, 2014.p. 358.

[18] Antes da promulgação da Lei das S/A, Tullio Ascarelli chamava atenção para a existência de “sociedades anônimas familiares, compostas de pouquíssimos sócios, com ações freqüentemente nominativas e sujeitas, às vezes, quanto à sua transferência, a limitações especiais, com acionistas que são todos concomitantemente diretores ou membros do conselho fiscal […]”. (ASCARELLI, Tullio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1969. p. 150).

[19] BARGIONA, Pedro Eugenio Pereira. A dissolução parcial das sociedades anônimas heterotípicas. 2017. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/20822/2/Pedro%20Eugenio%20Pereira%20Bargiona.pdf. Acesso em: 29 Nov. 2023. p. 21.

[20] BARGIONA, Pedro Eugenio Pereira. A dissolução parcial das sociedades anônimas heterotípicas. 2017. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/20822/2/Pedro%20Eugenio%20Pereira%20Bargiona.pdf. Acesso em: 29 Nov. 2023. p. 21.

[21] Na obra supra citada, Pedro Eugenio Pereira Bargiona discorre didaticamente sobe os sinais que caracterizam a heterotipia nas sociedades anônimas: “[a] heterotipia pode manifestar-se nas sociedades anônimas sob três formas: (1) a adoção de posturas que valorizem a atuação dos acionistas de forma a torna-lo, temporariamente, essencial à companhia, caracterizando um intuito personalista na sociedade; (2) a existência de instabilidade no vínculo societário pela adoção de regras ou atitudes específicas que prevejam um recesso imotivado; (3) a operação da sociedade de forma a valorizar o vínculo pessoal dos acionistas, e não a gestão despersonalizada dos bens, causando a cumulação das duas outras condições, existindo tanto uma instabilidade quanto um viés personalista”. (Ibid. p. 29).

O autor deixa claro, em seguida, que a afeição pessoal dos sócios não é a característica essencial e definitiva para a configuração da heterotipia. Em verdade, “[…] o que define a sociedade como heterotípica não é a composição do quadro social, mas sim a forma como a sociedade é regida. Caso a sociedade, ainda que todos os seus acionistas sejam membros de uma mesma família, não apresente qualquer indício de limitação à circulação das ações ou permissivo para a retirada imotivada, não há porque considera-la heterotípica”. (Ibid. p. 29).

[22] Fábio Konder Comparato conceitua as “sociedades anônimas de pessoas” como aquelas nas quais existe “1) a limitação à circulação das ações, seja no estatuto, seja em acordo de acionistas; 2) quórum deliberativo mais elevado que o legal, para certas e determinadas questões, tanto na assembléia geral quanto no conselho de administração, o que equivale à atribuição de um poder de veto à minoria; 3) a distribuição eqüitativa de cargos administrativos entre os grupos associados; 4) a solução arbitral dos litígios societários”. (COMPARATO, Fábio Konder.Novos ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 34).

[23] O primeiro caso alçado ao STJ em que se discutiu a dissolução parcial de sociedade anônima foi sumariamente rejeitado pela Corte Superior. Sob relatoria do Ministro Dias Trindade, a 3ª Turma do Tribunal adotou posição positivista e concluiu que, fora das hipóteses de direito de retirada previstas no artigo 137 da Lei das S/A, cabe ao acionista descontente alienar as suas ações, sendo vedada dissolução parcial como exceção à regra da impossibilidade de retirada imotivada. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRG no Ag n. 34.120/SP. Rel. Min. Dias Trindade. 3ª Turma. j. em 26 Abr. 1993. DJ 14 Jun. 1993. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=199300046659&dt_publicacao=14/06/1993. Acesso em: 15 Nov. 2023).

[24] O Ministro Relator, Barros Monteiro, restou vencido pelo voto divergente do Ministro Cesar Asfor Rocha. O primeiro votou no sentido do julgado anterior de 1993, indicando que, por se tratar de sociedade anônima, seria inaplicável o instituto da dissolução parcial, devendo o sócio infeliz alienar as suas ações a terceiros ou exercer seu direito de retirada quando configuradas as hipóteses autorizadoras. No voto vencedor, o Ministro Cesar Rocha pontuou que a rigidez da Lei das S/A não poderia prevalecer no caso concreto, na medida em que, embora anônima, a sociedade sub judice foi congregada pela afeição recíproca existente entre os sócios. Assim, constatada a quebra da affectio societatis, não seria razoável obrigar o acionista infeliz a manter-se associado. O voto vencedor assume especial relevância, contudo, pois introduziu o entendimento de que a inexistência de distribuição de dividendos por longos anos pode caracterizar a não consecução do fim social, o que, em seu entendimento, justificaria a dissolução parcial da sociedade (e não a total, como previa o artigo 206, II, “b”, da Lei das S/A) como meio de preservação da empresa. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp n. 111.294/PR. Rel. Min. Barros Monteiro. 4ª Turma. j. em 19 Set. 2000. DJ 28 Maio. 2001. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=199600667578&dt_publicacao=28/05/2001. Acesso em: 15 Nov. 2023).

[25] A dissolução total da sociedade não representa a sua morte. Trata-se do primeiro passo de um processo trifásico cuja consequência é a extinção da sociedade. A dissolução propriamente dita, “[é] fato jurídico complexo, que suspende o funcionamento normal da companhia (ou a plena execução do contrato de companhia) e dá origem a procedimento de liquidação do patrimônio social.” (PEDREIRA, José Luiz Bulhões; LAMY FILHO, Alfredo. Direito das companhias. 2. ed. atual e ref. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 1.316).

A segunda fase do processo que leva à morte da sociedade é a liquidação, a qual se revela “um procedimento de vontade dos sócios, visando a sua desativação operacional, concomitantemente à apuração dos ativos e passivos sociais, com o cumprimento de suas obrigações de caráter legal ou convencional, com o consequente pagamento do passivo e partilha do eventual patrimônio remanescente entre os mesmos sócios”. (CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil: Vol. 13 – Parte especial – do direito de empresa (artigos 1.052 a 1.195). 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 444).

Por fim, uma vez liquidada, a sociedade poderá ser finalmente extinta. A extinção constitui “ato declaratório de confirmação do ato de dissolução e da aprovação final dos procedimentos de liquidação, cujo efeito é o desaparecimento da pessoa jurídica, com o pagamento dos credores e a partilha dos bens e direitos remanescentes entre seus acionistas”. (CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil: Vol. 13 – Parte especial – do direito de empresa (artigos 1.052 a 1.195). 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 439).

[26] COELHO, Fábio Ulhoa. Curto de direito comercial: Vol. 2 – direito de empresa. 21. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 444.

[27] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp n. 247.002/RJ. 3ª Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. em 4 Dez. 2001. DJ 25 Mar. 2002. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200000087750&dt_publicacao=25/03/2002. Acesso em: 16 Nov. 2023.

[28] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. EREsp n. 111.294/PR. 2ª Seção. Rel. Min. Castro Filho. j. em 28 Jun. 2006. DJ 10 Set. 2007. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200201005006&dt_publicacao=10/09/2007. Acesso em: 16 Nov. 2023.

[29] PEDREIRA, José Luiz Bulhões; LAMY FILHO, Alfredo. Direito das companhias. 2. ed. atual e ref. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 1.335.

[30] COELHO, Fábio Ulhoa. A dissolução parcial das sociedades anônimas: da jurisprudência do STJ ao CPC. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXXIX, n. 141, Abr. 2019.

[31] O artigo 599, §2º, do Código de Processo Civil regoou a norma da Lei das S/A, pois se trata de lei posterior que é regula inteiramente a matéria de que tratava o artigo 206, II, “b”, e é com ele incompatível. Incide sobre a hipótese a regra do artigo 2º, §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942), segundo o qual: “[a] lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. (BRASIL. Decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. DOU, Rio de Janeiro, [2018]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm. Acesso em: 18 Nov. 2023. Online).

[32] O conceito de “fim social” nunca foi conceituado em lei. O mais próximo que se chegou de um conceito legal do fim da companhia foi a previsão do artigo 336 do Código Comercial, que previa a dissolução da sociedade “por não preencher o intuito e fim social, como nos casos de perda inteira do capital social ou deste não ser suficiente”. (BRASIL. Lei 556, de 25 de junho de 1850. Código Comercial. CLBR, Rio de Janeiro, 1850. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim556.htm. Acesso em: 18 Nov. 2023. Online).  

Para Nelson Eizirik, “[t]endo em vista as características fundamentais da companhia, o seu fim deve ser referido aos seguintes elementos essenciais: (i) o preenchimento de seu objeto social; e (ii) a geração de   lucros.  Com efeito, a companhia existe para desempenhar determinadas atividades empresariais, definidas em seu objeto social, com intuito lucrativo. Se ficar demonstrado que ela não tem como preencher seu objeto social ou não atua de forma lucrativa, cabe a sua dissolução. Como se trata de medida extrema, que fere o princípio da preservação da empresa, a decretação judicial da dissolução deve ser sempre tomada com muita cautela, após minuciosa análise da situação econômica e financeira da companhia”. (EIZIRIK, Nelson. A Lei das S/A Comentada:  Vol. III. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 156).

[33] Para José Walcecy Lucena, “o fim de toda sociedade é a consecução de seu objeto social (fim imediato). Este, como finalidade comum dos sócios, se erige na exploração de uma empresa lucrativa. A exploração da empresa, mediante o instrumental jurídico da sociedade anônima, traz à sirga, de conseguinte, o resultado almejado, ou seja, o lucro (fim mediato). Para esta finalidade, em suma, constitui-se a sociedade”. (LUCENA, José Waldecy. Das sociedades anônimas: Vol. 3 comentários à lei (arts. 189 a 300). Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 179).

[34] Vera Helena de Mello Franco e Rachel Sztajn, para quem “o fim social, na sociedade anônima, é mais amplo do que a mera produção de lucro, justificando-se a não distribuição de dividendos quando a preservação da empresa assim aconselhe […] a não distribuição de dividendos não é razão suficiente para pretender a dissolução da sociedade com fulcro na norma do art. 206, II, alínea ‘b’”. (FRANCO, Vera Helena Mello; SZTAJN, Rachel. Manual de Direito Comercial: Vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 241. Grifos das autoras).

[35] De forma mais conservadora, Lucena defende que a ausência reiterada de distribuição de lucros deve ser causa de dissolução da companhia, pois impossibilita o atingimento do fim social. O autor pontua, no entanto, ser preciso analisar a situação caso a caso, dado que, em certas hipóteses, a retenção de dividendos pode se justificar na própria preservação da função social da empresa: “[…] para nós, qual já se disse supra e se dirá ainda abaixo, a não-distribuição de lucros que se prolonga no tempo é causa sim de dissolução da companhia […] mas, em havendo um motivo forte, consistente e convincente, poderá a sociedade não distribuir, no exercício, os lucros apurados, como no exemplo que foi indicado de que a preservação da empresa está a aconselhar a retenção de lucros, ou seja, uma circunstância ligada à própria sobrevivência da companhia”. (LUCENA, José Waldecy. Das sociedades anônimas: Vol. 3 comentários à lei (arts. 189 a 300). Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 181).

[36] Sobre a questão, cf.: “Diante da norma prevista no § 2 º do art. 599 do CPC/ 2015 fica claro que a alegação de quebra da affectio societatis não consta entre as causas previstas na nova lei, para justificar a dissolução parcial de sociedade anônima fechada. Agora, não resta dúvida de que a única causa legal para pedir a dissolução parcial de companhia é a impossibilidade de preencher o seu fim, que, aliás, é a mesma regra do art. 206 II, b, da LSA”. (PEDREIRA, José Luiz Bulhões; LAMY FILHO, Alfredo. Direito das companhias. 2. ed. atual e ref. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 1.337).

[37] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. EREsp n. 111.294/PR. 2ª Seção. Rel. Min. Castro Filho. j. em 28 Jun. 2006. DJ 10 Set. 2007. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200201005006&dt_publicacao=10/09/2007. Acesso em: 16 Nov. 2023.

[38] CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil: Vol. 13 – Parte especial – do direito de empresa (artigos 1.052 a 1.195). 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 308.

[39] Sobre o tema, o autor se aprofunda: “Um passo além poderia ser dado, a nosso ver, se o problema da exclusão de acionistas fosse colocado sob a ótica do descumprimento do dever de lealdade societária. O dever de lealdade societária, ao contrário do dever de colaboração (ativa), tem o seu espaço próprio nas sociedades de capitais. Dito dever de lealdade tem, de regra, sentido negativo: aparece como um dever geral de abstenção de condutas que possam lesar as legitimas expectativas tuteláveis dos demais sócios, expectativas essas que se estruturam a partir do fim social. No entanto, como já destacado, em situações excepcionais, o próprio dever de lealdade pode impor conteúdo positivos (ações). Por esta linha, o acionista que promove a oposição abusiva está, ipso facto, descumprimento obrigações a seu cargo e, diante disso, a exclusão, que tem o seu fundamento principiológico no instituto da resolução do vínculo por descumprimento de obrigação, teria cabimento”. (VON ADAMEK, Marcelo Vieira. Abuso de minoria em Direito Societário. São Paulo: Malheiros, 2014.p. 252).

[40] Ibid.p. 252.

[41] A essa proposição, Von Adamek provavelmente responderia que as punições previstas ao acionista faltoso não são suficientes para repelir a sua conduta. Para o autor, as tutelas ressarcitórias previstas na lei acionária não repelem a defesa da companhia pela exclusão do acionista faltoso, mas a complementa: “[…] a tutela ressarcitória (através das ações de indenização e mecanismos congêneres) não é suficiente e não se presta a adequadamente superar muitas das situações de impasse, de voto abusivo ou de bloqueio contrastantes com o dever societário de lealdade. Seja por conta das ineficiências próprias do regime de responsabilidade civil. Seja pela demora na sua efetivação – donde se nos afigurar equivocadíssimo argumentar que, por prever a lei acionária hipóteses de indenizar (LSA, arts. 115, §3º, 117 e 246), afastada estaria a exclusão. Não está, não; são remédios paralelos e não repelentes – tanto assim que o Código Civil também os consagra, de forma simultânea (CC, arts. 1.010, § 3º, de um lado, e 1.030 e 1.085, de outro)”. (Id. Exclusão de acionista em sociedade anônima fechada. In.: VENANCIO FILHO, Alberto; LOBO, Carlos Augusto da Silveira; ROSMAN, Luiz Alberto Colonna (Coords.). Lei das S.A. em seus 40 anos. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. pp. 247-269. p. 252).

[42] GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 9. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. pp. 308/309.

[43] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp n. 917.531/RS. 4ª Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. j. em 17 Nov. 2011. DJe 1 Fev. 2012. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200700073925&dt_publicacao=01/02/2012. Acesso em: 20 Nov. 2023. pp. 1-2.

[44] Até porque é amplamente difundida a corrente jurisprudencial que milita no sentido de que a simples quebra da affectio societatis não justifica a exclusão de quotista de sociedade limitada, sendo necessária prova inequívoca da falta grave por este cometida. (Id. REsp n. 1.129.222/PR. Rel. Min. Nancy Andrighi. 3ª Turma. j. em 1 Ago. 2011. DJe 1 Ago. 2011. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200900512578&dt_publicacao=01/08/2011. Acesso em: 20 Nov. 2023).

[45] Em julgamento tomado em 2018, a Quarta Turma do STJ negou provimento a recurso que buscava a reforma de um acórdão do Tribunal de Mato Grosso do Sul (TJMS) que havia indeferido pedido de exclusão de acionista. O acórdão da corte estadual fundamentou que a mera quebra da affectio societatis não justifica a dissolução parcial da sociedade anônima – e, muito menos, a exclusão de um acionista. Para tanto, deveriam os sócios majoritários ter comprovado a prática de falta grave por parte dos minoritários, o que, na visão do tribunal, não ocorreu (AI nº 4009947-49.2013.8.12.0000 – TJMS). Com a chegada dos autos à Corte Superior, a Quarta Turma ratificou o posicionamento do Tribunal de Mato Grosso do Sul. Segundo o acórdão relatado pelo Ministro Marco Buzzi, existe “orientação firmada pela jurisprudência do STJ no sentido de ser necessária a demonstração de justa causa na hipótese de ação de dissolução de sociedade, promovida pelos sócios majoritários, para excluir de sociedade anônima fechada, de caráter familiar, sócio minoritário que se opõe à exclusão. Aplica-se, na hipótese, a Súmula 83 do STJ. Precedentes”. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt no AREsp n. 557.192/MS. 4ª Turma. Rel. Min. Marco Buzzi. j. em 25 Set. 2018. DJe 25 Set. 2018. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201401895823&dt_publicacao=25/09/2018. Acesso em: 22 Nov. 2023. p. 1).

[46] Sobre a exclusão de acionista, veja-se, ainda: Id. REsp n. 1.705.965/MG. 3ª Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. em 25 Jun. 2018. DJe 25 Jun. 2018.Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201701455503&dt_publicacao=25/06/2018. Acesso em: 22 Nov. 2023.