ESCRAVIDÃO, TRABALHO DOMÉSTICO A REALIDADE DA MULHER NEGRA NO BRASIL
1 de dezembro de 2023SLAVERY, DOMESTIC WORK THE REALITY OF BLACK WOMEN IN BRAZIL
Artigo submetido em 17 de outubro de 2023
Artigo aprovado em 30 de outubro de 2023
Artigo publicado em 1 de dezembro de 2023
Cognitio Juris Volume 13 – Número 51 – Dezembro de 2023 ISSN 2236-3009 |
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RESUMO: O Brasil possui no cerne de sua história a exploração do trabalho escravo, frente a essa realidade, o estudo traz um ensaio teórico acerca da trajetória do trabalho doméstico no Brasil, examinando a historicidade e como essa atividade tem sido construída, reconhecida, amparada juridicamente e considerada na sociedade brasileira. Nesse sentido, o trabalho busca verificar se o Direito do Trabalho garante de forma eficiente a proteção da trabalhadora doméstica. Para alcançar o objetivo da pesquisa foram adotados o método dedutivo e a pesquisa de natureza bibliográfica descritiva. Na condição moderna do trabalho doméstico brasileiro, seus aspectos históricos sociais que se encontram no berço da colonização de nosso país, somando a construção da norma na regulamentação dessa profissão tão importante, com o advento da Lei Complementar nº. 150/2015 que surge em decorrência da Emenda Constitucional n.º 72/2013, a eficiência da aplicação da norma na proteção do trabalho doméstico, pode apontar o esboço das relações sociais, sendo a exploração do trabalhador pilar da construção histórica das famílias, se formando e se fundando nelas, logo, a necessidade de trazer à tona a discussão quanto a importância e as dificuldades na seara do Direito do Trabalho, na aplicação da norma e na efetividade da proteção dessas trabalhadoras. Chama a atenção a predominância no trabalho doméstico do gênero feminino e a mulher negra, sendo estas, segundo o Dieese (2022), as ocupantes em sua maioria dos postos de trabalhos neste setor. A compreensão dessa realidade tende a favorecer a proteção das trabalhadoras, bem como, o ajuste da norma frente aos fatos sociais que movimenta a realidade e consequentemente, a legislação. Apesar dos avanços legislativos, no âmbito doméstico verificou-se uma lenta evolução dos direitos inerentes aos trabalhadores domésticos. Com isso, é possível avaliar que tanto a PEC 72/2013, quanto a Lei Complementar nº. 150/2015 impactou na vida desses trabalhadores e na relação com os seus empregadores, no entanto, a norma ainda carece de fiscalização e de efetivo cumprimento.
Palavras-chave: Escravidão; Trabalho Doméstico; legislação.
ABSTRACT: Faced with the Brazilian reality, this study presents a theoretical essay on the history of domestic work in Brazil, examining its history and how this activity has been constructed, recognized, legally protected and considered in Brazilian society. In this sense, the work seeks to verify whether labor law efficiently guarantees the protection of domestic workers. In order to achieve the research objective, the deductive method and descriptive bibliographical research were adopted. In the modern condition of Brazilian domestic work, its social historical aspects that are found in the cradle of the colonization of our country, adding the construction of the norm in the regulation of this very important profession, with the advent of Complementary Law no. 150/2015, the efficiency of the application of the norm. 150/2015, the efficiency of the application of the standard in the protection of domestic work, can point to the outline of social relations, with the exploitation of the worker being a pillar of the historical construction of families, forming and being founded on them, thus the need to bring up the discussion about the importance and difficulties in the field of Labor Law, in the application of the standard and in the effectiveness of the protection of these workers. The predominance of domestic work among women and black women is noteworthy, and according to Dieese (2022), these are the majority of women who occupy these jobs. The understanding of this reality tends to favor the protection of female workers, as well as the adjustment of the standard to the social facts that move reality and, consequently, legislation. Despite the legislative advances, the rights of domestic workers have evolved slowly in the domestic sphere. As a result, it is possible to assess that Complementary Law no. 150/2015 has had an impact on the lives of these workers and their relationship with their employers, although it still lacks enforcement and effective compliance.
Keywords: Slavery; Domestic work; legislation.
1 Justificativa
O intuito deste artigo é apresentar um ensaio teórico acerca da trajetória do trabalho doméstico no Brasil, examinando a historicidade e como essa atividade tem sido construída, reconhecida, amparada juridicamente e considerada na sociedade brasileira.
Ao longo da história, o Direito do Trabalho tem buscado garantir relações justas e dignas entre empregado e empregador, com influência nos aspectos econômicos, sociais e pessoais do trabalhador. Nesse contexto, a garantia do mínimo existencial é fundamental para a manutenção do sustento do empregado e sua família.
No entanto, o trabalho doméstico teve sua origem ligada à escravidão, o que gerou uma diferença histórica na garantia de direitos desse grupo de trabalhadores. Mesmo após a abolição, muitos ex-escravos optavam por continuar trabalhando com seus antigos proprietários, em condições pouco diferenciadas do período anterior.
Motivada pela necessidade de corrigir uma injustiça histórica, a Emenda Constitucional 72 de 2013 surge como forma de tentar igualar o trabalhador doméstico às outras classes de empregados, conferindo-lhes maior equidade de direitos. Porém, mesmo com boas intenções, essa lei pode gerar impactos negativos na relação entre empregado e empregador, como a demissão para posterior contratação como diarista, suprimindo os direitos garantidos pela legislação.
Nesse sentido, o presente trabalho tem o escopo de analisar o contexto social do empregado doméstico na história brasileira e a evolução lenta de seus direitos, até a aprovação da Emenda Constitucional 72 de 2013. Além disso, busca-se examinar a aplicabilidade da lei na sociedade contemporânea e os possíveis impactos em relação aos empregados domésticos.
A pesquisa é estruturada em três eixos teóricos: a análise da influência escravocrata no trabalho doméstico, a evolução dos direitos desse grupo de trabalhadores e a aprovação da Emenda Constitucional 72 de 2013.
É essencial compreender o papel do escravo e do ex-escravo no âmbito doméstico para entender a lenta evolução dos direitos dos empregados domésticos.
TEXTO DO ARTIGO
2. TRABALHO E DISTRIBUIÇÃO DE PAPÉIS BASEADA EM GÊNERO NO AMBIENTE FUNCIONAL.
O trabalho desempenha um papel fundamental na estruturação da sociedade, uma vez que é um elemento identitário que influencia a maneira como organizamos nossas vidas.
Ele estabelece nossos horários, estilo de vida, atividades de lazer e tempo dedicado à vida familiar. Além disso, nossa identidade é muitas vezes definida pelo trabalho que desempenhamos e pelos benefícios que ele proporciona. Segundo Marx (1985), o trabalho permitiu que o ser humano obtivesse o controle da natureza para satisfazer suas necessidades. Isso significa que o trabalho é uma forma de apropriação do ambiente em que vivemos para alcançarmos nossas metas e objetivos.
“é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana” (MARX, 1985, p.50).
A distribuição do trabalho em sociedades ou estruturas socioeconômicas é conhecida como divisão social do trabalho, que ocorre quando grupos de produtores executam tarefas específicas como resultado do progresso na utilização das forças produtivas e na organização interna das comunidades.
A distinção entre homens e mulheres em relação ao trabalho, chamada de divisão sexual do trabalho, é causada pela imposição do patriarcado na atividade profissional e laboral das mulheres.
A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é historicamente adaptada a cada sociedade. Tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares etc.) (KERGOAT, 2009, p. 67)
Na visão patriarcal, a família é considerada a principal preocupação das mulheres, e sua função complementar na organização social é vista como igualmente importante.
A família bem organizada é altamente valorizada, ficando abaixo apenas da maternidade. Neste contexto, o papel da mulher foi por muito tempo limitado a não ocupar o lugar de provedor financeiro, profissional ou pessoal, conforme determinado pelo patriarcado.
Mulheres passam, então, a ser cooptadas como mecanismos para reproduzir a força de trabalho e manter as relações de subordinação.
A mistificação do papel de esposa e mãe concretizou-se mais facilmente na medida em que casa e família passaram a significar a mesma coisa, apesar de na verdade não o serem; enquanto a casa é uma unidade material de produção e consumo, a família é um grupo de pessoas ligadas por laços afetivos e psicológicos. Como afirma Marilena Chauí, a contradição entre a vida doméstica e a vida em família pode, no caso das mulheres, legitimar a naturalidade do trabalho doméstico como se ele fosse um trabalho para a família e não um trabalho da casa e, portanto, um trabalho que já é social” (BRUSCHINI, 1982, p. 10).
Essa condição foi construída e difundida na base das relações sociais, jurídicas e política do Brasil como veremos a seguir.
2.1 BRASIL COLÔNIA, ESCRAVIDÃO E A MULHER NEGRA
Para Keergoat (2009, p. 68) o trabalho doméstico se construiu no cerne das relações familiares de nosso país, antes disso, tem seu marco na descoberta e na colonização realizada pelos portugueses. É uma atividade que tem uma história bastante longa no Brasil, com evidências de que o mesmo existia desde o período colonial quando as famílias, abastadas “empregavam” escravos para cuidar da casa, cozinhar e cuidar dos filhos.
Freyre (2000), nos traz que o período colonial teve duração entre os séculos XVI e XIX, correspondendo à chegada dos primeiros portugueses ao Brasil em 1500 e à independência em 1822. Durante esse período, dois ciclos econômicos se destacaram: o ciclo do açúcar e o ciclo da mineração. Com relação ao último, ele foi responsável por impulsionar o tráfico negreiro e gerar grande lucro para a metrópole portuguesa, o que permitiu um grande influxo de escravos vindos da África para o Brasil e a ampliação do uso da mão de obra feminina no trabalho caseiro.
Neste cenário a mulher negra não restou outa opção, a não ser ceder a escravidão, sua mão de obra como meio de sobrevivência, não tendo essas trabalhadoras poder de escolha ou de barganha. Coadunado, FREYRE (2000, p.192) As escravas eram envolvidas em trabalhos domésticos nas casas coloniais, realizando atividades como cozinhar, limpeza diária, lavar roupa e cuidar de crianças. Elas eram consideradas como uma mão-de-obra barata e, portanto, eram amplamente utilizadas para realizar as atividades domésticas. Quando tratamos do custo deste trabalho, estamos falando da oferta de alimentos e abrigo que beiravam a insuficiência para a subsistência familiar.
De acordo com Mosca (2017, p. 12), o paternalismo foi uma das características predominantes no início desse trabalho, visto que se havia a concepção de que o gênero masculino era superior ao feminino, delegando à mulher a responsabilidade pelas tarefas domésticas enquanto o homem ficava responsável pelo mundo externo.
A condição do exercício do trabalho doméstico pela mulher negra se distinguiu ao longo da história em relação a mulher branca, tal condição é apontada por Davis (2000), quando em seus estudos sobre a condição da mulher negra nos Estados Unidos, pontuou que de forma incessante, desde a escravidão, a mulher negra vem sendo exploradas deixando claro sua condição de subalternidade.
Como os seus homens, as mulheres negras trabalharam até não conseguirem trabalhar mais. […] Mas como as suas irmãs brancas chamadas “donas de casa”, elas cozinharam e limparam e foram cuidadoras e criaram um incontável número de crianças. Mas ao contrário das suas irmãs brancas, que dependiam do seu marido para a segurança econômica, às mulheres negras e mães, habitualmente trabalhadoras, raramente foi-lhes dado o tempo e a energia para serem peritas em domesticidade. Como as suas irmãs brancas trabalhadoras, que carregavam o duplo fardo de trabalhar para viver e servir os maridos e as crianças, as mulheres negras precisavam do alívio desta opressiva situação há muito, muito tempo (DAVIS, 2016, p. 164).
Para Freyre (2000) a função da mulher na época colonial do Brasil era principalmente a de cuidar do lar, da alimentação e da educação dos filhos. Elas eram responsáveis pela manutenção da casa, da horta e das criações, além de trabalharem em atividades como costura, tecelagem, bordado, preparo de alimentos. Sendo salutar pontuar a exploração sexual, as mulheres negras, além do trabalho doméstico também serviam aos seus “senhores” sexualmente, muitas vezes, independente de suas vontades.
(…). Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem (FREYRE, 2000, p. 191)
O Brasil permaneceu como colônia portuguesa até 1822, quando foi proclamada a independência. Dessa forma, conforme Gomes (2022, v. 3, p. 25-27) o fenômeno da Independência não pode ser considerado um marco de progresso para os graves problemas derivados do trabalho escravo. Isso ocorre porque, apesar das mudanças históricas decorrentes deste evento, incluindo o rompimento com Portugal, as condições sociais da população em geral, e em particular dos escravizados, permaneceram extremamente precárias tanto durante a era colonial quanto no período imperial subsequente.
Destaca-se que o trabalho doméstico está diretamente ligado ao passado colonial escravista. De acordo com Kofes (2001), durante essa época, existia uma relação entre o desenvolvimento de certas atividades e a hierarquia de “cores”. A imagem do negro era associada ao trabalho braçal, que exigia força física, o que fazia com que esse tipo de trabalho fosse socialmente considerado como algo natural.
Infelizmente, a cor da pele foi empregada para assinalar domínio sobre os indivíduos racializados, o que legitimou as ações violentas, opressoras e autoritárias, assim definiu Santos (2002):
[…] o apelo à raça foi inventado por teóricos que necessitavam de ideologias que contribuíssem para a unidade nacional […] mais uma vez se percebe que o racismo só pode ganhar vida a partir do momento em que essas nações, que inicialmente pensaram a si mesmas como raça, lançaram seu olhar imperialista a outros povos de modo a submetê-los mais facilmente. A ciência, dessa forma, torna-se o artifício que justifica a dominação e que cria uma nova necessidade (SANTOS, 2002 p. 61)
Com a abolição da escravatura, que ocorreu em 13 de maio de 1888, através da Lei Áurea, Lei nº 3.353, assinada pela Princesa Isabel, composta de dois artigos colocou fim a escravidão de mais de trezentos anos: “É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil. Art. 2º: Revogam-se as disposições em contrário.” (BRASIL, 1888).
Apesar das grandes celebrações em 13 de maio de 1888 e nos dias seguintes, a maioria dos “libertados” acabou retornando para seus antigos donos de terra que os haviam escravizado semanas ou meses antes. Eles continuaram vivendo nas mesmas senzalas e trabalhando nas mesmas condições precárias, recebendo um salário extremamente baixo de 1.800 réis por dia, enquanto um simples sanduíche custava 1.500 réis na época. Para conseguir comprar uma comida simples após um longo dia de trabalho exaustivo, um ex-escravo precisava se submeter a horas extras de trabalho impostas pelos latifundiários. Esses “antigos donos” começaram a abrir comércios em suas fazendas, vendendo alimentos a preços exorbitantes e exigindo o pagamento antes que os trabalhadores pudessem sair da propriedade. Essa prática resultou no surgimento de trabalho escravo por dívidas, persistindo por anos (GOMES, 2022, v. 3, p. 52-53; 515-518; 523).
De acordo com Costa (2016 p. 11) percebe-se que a relação de trabalho escravagista teve consequências desastrosas que se prolongaram por anos, resultando em discriminação e preconceito enfrentados pelos trabalhadores, em especial os domésticos.
Após a abolição da escravidão em 1888, esses empregos eram ocupados pelos recentemente libertos, o que, infelizmente, contribuiu para a percepção de que esse tipo de trabalho era degradante e inferior, perpetuando a ideia de uma relação de senhor e escravo, a escravidão já foi abolida, entretanto, a discriminação ainda persiste.
Este fato pode ser atribuído ao fato de que muitos dos indivíduos que foram libertos precisaram buscar trabalho nas plantações, enquanto as mulheres negras foram sentenciadas ao papel de domésticas, sem receber qualquer tipo de proteção ou assistência estatal.
Corrobora Cunha (2007):
A sujeição, a subordinação e a desumanização, que davam inteligibilidade à experiência do cativeiro, foram requalificadas num contexto posterior ao término formal da escravidão, no qual relações de trabalho, de hierarquias e de poder abrigaram identidades sociais se não idênticas, similares àquelas que determinada historiografia qualificou como exclusivas ou características das relações senhor – escravo (CUNHA,2007, p. 11).
Para Freyre (1993), o Brasil enfrentou o desafio de justificar sua miscigenação e convencer a sociedade classista e burguesa de que ela era algo positivo, tendo em vista que a maioria da população era composta por mestiços. Foi nesse contexto, no início do século XX, que surgiu o mito da democracia racial e da harmonia social no Brasil, que afirmava que negros, índios, brancos e mestiços conviviam harmoniosamente, ocultando, assim, o racismo e a violência estrutural contra a população não branca que ocorriam antes e após a escravidão. Esse mito só foi possível graças à promoção e ao incentivo do governo brasileiro da época, que estimulou a produção historiográfica de intelectuais como Gilberto Freire, que acreditavam que a miscigenação ocorreu de maneira pacífica e cordial, mesmo diante das evidências de violência e desigualdade na sociedade.
“a luta pelo reconhecimento, é essencialmente a fonte do conflito, quando os direitos garantidos pela lei conflitam com os costumes locais e são considerados direitos ou crenças consuetudinárias. Os direitos humanos básicos são gradualmente produzidos pela luta contra o poder, contra a opressão e contra a extinção do seu modo de vida, ou seja, não nascem todos de uma vez, mas quando passa a reconhecer a sua necessidade inicia, uma luta por dignidade social” (ENGELMANN, 2023, p. 31).
Gilberto Freyre exerceu grande influência no pensamento intelectual da época com sua obra Casa-Grande Senzala (1933), na qual ele idealizou a vida da população brasileira e destacou os atributos positivos do negro e do índio, minimizando as contradições do escravismo.
Contudo, a plena igualdade de direitos, somente adveio com a Constituição de 1988, a qual conferiu as trabalhadoras rurais os mesmos direitos concedidos aos homens trabalhadores rurais e aos trabalhadores urbanos, independente da igualdade garantida pela Constituição Federal, de fato o trabalho no campo ainda é marcado por forte desigualdade social e econômica, tendo o trabalho no meio rural uma remuneração inferior à média de remuneração por hora trabalhada no país para o trabalhador urbano (BRASIL, 1988).
Embora reconhecesse a existência de violência e desigualdade, ele tendia a não as tornar estruturais e estruturantes da sociedade. Ao afirmar que “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo, (…) a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro (…)”, ele buscava tornar a miscigenação uma ideia admirável para a sociedade. Esse discurso foi parte de um projeto de estado para promover uma narrativa que servia aos interesses da sociedade dominante da época (FREYER, 1993, p.368).
2.2 AS MUDANÇAS SOCIAIS E BUSCA POR DIREITOS
Após a abolição da escravidão, as políticas de inserção no mercado de trabalho não foram suficientes para mudar o cenário, tendo em vista o aumento na quantidade de imigrantes trazidos ao país para “branquear” a população (BENTO, 2002).
Os negros ainda ocupam posições mais precárias do mercado de trabalho, como serviços braçais e sem vínculos empregatícios, principalmente entre mulheres negras, que ocupam cargos que não exigem qualificação e que são remunerados abaixo da média.
A categoria do serviço doméstico no Brasil reflete a influência desse período histórico. As conquistas tardias desta categoria estão diretamente associadas com este processo, e é importante notar que só foram alcançados avanços significativos na legislação brasileira para esta categoria no início dos anos 1930. Este período também é conhecido como a Era Vargas ou segunda e terceira República. Durante este tempo, as primeiras organizações profissionais começaram a pressionar o Estado para a regulamentação das profissões que surgiram após a abolição da escravatura. Como resultado disso, muitas associações foram criadas com o objetivo de defender os direitos trabalhistas das empregadas e dos empregados, sendo a primeira associação a Associação dos Empregados Domésticos de Santos, criada por Laudelina de Campos Mello (SILVA, LORETO, BIFANO, 2016, p.19).
Como afirmado por Rara (2019), infelizmente, embora essas mulheres reconheçam a importância da profissão, muitas vezes seus trabalhos não são valorizados. As trabalhadoras domésticas nunca desejaram desempenhar esse trabalho, mas o fizeram por falta de opção. Apesar disso, muitas delas desenvolveram um sentimento de orgulho por sustentarem seus filhos através deste trabalho, mas lutaram para garantir que seus filhos não seguissem o mesmo caminho.
Embora a luta das trabalhadoras domésticas tenha trazido mudanças significativas para a próxima geração de mulheres, interrompendo a lógica de sucessão da profissão, este tipo de trabalho ainda é desvalorizado, subestimado e muitas vezes mal pago no Brasil, apesar da sua importância vital. De acordo com a professora Angela Davis (1989), isso se deve em parte ao lento processo de industrialização no Brasil e à pressão do capitalismo global moderno, que não tem interesse em investir na melhoria do trabalho doméstico, pois “empresas não lucrativas são banidas”.
Em termos simbólicos, a desvalorização continua sendo reforçada por representações raciais e sexistas, especialmente para trabalhadoras negras e pobres. Essa desvalorização persistente e a lentidão na conquista de seus direitos, iguais aos de outras categorias profissionais, se deve em grande parte ao estigma histórico dessas mulheres e à marginalização de suas funções, muitas das quais garantem sua sobrevivência. Como explica Pinto (2015), “algumas dessas funções, como costureiras, enfermeiras e floristas, foram moralmente qualificadas como marginalizadas”.
2.3 A INTERSECCIONALIDADE E O TRABALHO
A fim de discutir as problemáticas específicas enfrentadas por mulheres negras em relação às suas identidades e opressões, é necessário incorporar o conceito de Interseccionalidade. Esse termo pode ser interpretado como uma teoria, método analítico ou ferramenta de luta que foi inicialmente proposto pela jurista afro-americana Kimberlé W. Crenshaw (1989). A interseccionalidade aborda a interdependência das relações de poder entre raça, gênero e classe social, tendo em vista que muitos dos problemas sociais enfrentados por mulheres negras, como racismo, sexismo e opressões quanto à classe e gênero, se sobrepõem, criando múltiplos níveis de injustiça social.
A assistente social e mestra em Estudos Interdisciplinares de Gênero, Mulheres e Feminismos pela UFBA, Carla Akotirene (2019) ressalta a importância de descolonizar as perspectivas hegemônicas em torno da teoria da interseccionalidade, adotando o Atlântico como um lugar de opressões cruzadas.
Para Akotirene (2019), a Interseccionalidade é mais do que um simples conceito, ela é uma teoria política que instrumentaliza a produção científica do pensamento feminista negro, promovendo assim a partilha de experiências entre mulheres negras.
Conforme a análise de Ana Claudia Pacheco, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP – São Paulo (2008) e autora do livro Mulher Negra: Afetividade e solidão, no período pós-abolição nos Estados Unidos, bem como no contexto brasileiro, as mulheres negras foram frequentemente desumanizadas e tratadas como objetos, destacando-se apenas seus aspectos físicos de forma racista e vulgar. Essa forma de desrespeito é evidenciada pela utilização de seus corpos como mera mercadoria a preço baixo. Tal afirmação coaduna com:
[…] Mais que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negras têm sido consideradas ‘só corpo, sem mente’. A utilização de corpos femininos negros na escravidão como incubadoras para a geração de outros escravos era a exemplificação prática da ideia de que as ‘mulheres desregradas’ deviam ser controladas. Para justificar a exploração masculina branca e o estupro das negras durante a escravidão, a cultura branca teve que produzir uma iconografia de corpos de negras que insistia em representá-las como altamente dotadas de sexo, a perfeita encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado (PACHECO 2013, apud HOOKS, 1995, p. 469).
Analisando o contexto em questão, é possível perceber que as raízes que deram forma ao imaginário negativo, relegando as mulheres negras ao subalterno das representações, possuem uma relação direta com a escravização no Brasil. De forma intencional, foram projetados estereótipos negativos sobre as trabalhadoras domésticas, o que gerou implicações conjunturais em sua experiência de vida, tanto no âmbito social, cultural e identitário, quanto na garantia de seus direitos trabalhistas.
Por consequência, a representação dessas mulheres foi controlada pelo patriarcado branco capitalista, o que acabou moldando a figura da mulher negra em um único papel social: o de servir. No livro “Eu, Empregada Doméstica: a senzala moderna é o quartinho de empregada”, a historiadora Preta Rara (2016), apresenta relatos de trabalhadoras domésticas que nos fazem refletir sobre essa questão e nos lembram da importância de mudar essa realidade.
Porque ser empregada doméstica não é apenas limpar, mas e sim servir. E ser alguém inferior já está no imaginário coletivo da elite brasileira. E necessário romper os laços os laços dessa profissão que, infelizmente, ainda é um grande resquício de uma abolição não conclusa. Romper esses laços é um grande ato político (RARA, 2016, p.4)
De forma distinta, a ocultação ignorada da difícil situação enfrentada por mulheres negras gerou inúmeras barreiras para lidar com suas particularidades e vivências dentro das estruturas governamentais, incorrendo em falta de direitos e proteções legais para as trabalhadoras domésticas, um grupo sub-representado tanto na sociedade quanto no sistema de poder dominado por brancos, homens, racistas e capitalistas.
2.4 A EXCLUSÃO DO TRABALHADOR DOMÉSTICO DO REGIME CELETISTA E A PROMULGAÇÃO DA “PEC DAS DOMÉSTICAS”.
Uma das principais distinções entre o trabalhador regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o trabalhador doméstico é a ausência de atividade econômica no desempenho de suas funções. De acordo com o professor Renato Saraiva, o trabalhador doméstico não realiza uma atividade voltada para o lucro, mas sim presta serviços diretamente à pessoa ou à família (SARAIVA, 2012, p. 65).
De acordo com Delgado (2008, p. 374), a exclusão do empregado doméstico do âmbito de aplicação da CLT, de acordo com o artigo 7º, alínea “a”, resultou na criação de um constrangedor vácuo jurídico para essa categoria. Como consequência, os domésticos ficaram sem amparo legal para garantir o recebimento do salário-mínimo e realizar os recolhimentos previdenciários por um longo período de tempo.
Dessa forma, qualquer tentativa de distorcer o cumprimento de atividades domésticas através da criação de um pensionato em uma residência ou da venda de refeições preparadas pelo trabalhador, por exemplo, resultará na aplicação das normas da CLT, fazendo com que o empregado deixe de ser considerado um trabalhador doméstico nessas circunstâncias (SARAIVA, 2012, p. 65).
Nesta toada, ficou evidente que o objetivo do texto consolidado era não aplicar suas normas protetivas a relações de trabalho específicas e únicas, como as do trabalhador doméstico, rural e servidor público. Nesse sentido, essas três categorias foram excluídas explicitamente da CLT, conforme estabelecido no artigo 7º:
“Art. 7º Os preceitos constantes da presente Consolidação salvo quando for em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam:
a) aos empregados domésticos, assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas” (BRASIL, 1943, online).
Após quase 30 anos da implementação da CLT, foi promulgada a Lei nº 5.859/1972, que se trata de uma legislação específica para os empregados domésticos. No entanto, essa lei concedeu apenas três direitos para essa categoria de trabalhadores: o direito a férias remuneradas de 20 dias por ano, após completar um ano de trabalho; a obrigação de anotar na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) a condição de empregado doméstico; e a obrigatoriedade de se inscrever na Previdência Social como segurado (DELGADO, 2008, p. 374).
Assim, aos empregados domésticos, considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, passaram a ser regidas por legislações próprias: a Lei nº 5.859/1972 para os trabalhadores domésticos, a Lei nº 5.889/1973 para os trabalhadores rurais e a Lei nº 8.112/1990 para os servidores públicos civis da União (BRASIL, 1973).
Portanto, não é surpresa que a Emenda Constitucional 72/2013 (BRASIL, 2013), mais conhecida como “PEC das Domésticas”, tenha se consolidado tardiamente, após mais de oito décadas desde a primeira luta dessa categoria.
As conquistas das leis trabalhistas relacionadas às trabalhadoras domésticas foram fruto de anos de luta, com reivindicações, congressos, conferências e protestos. Embora os resultados tenham sido lentos, a trajetória de mulheres como Laudelina de Campus Mello e Cleusa Maria de Jesus Santos (Presidente do Sindicato das Empregadas Doméstica do Estado da Bahia) revolucionou a luta dos trabalhadores domésticos em todo o Brasil, influenciando a criação e fortalecimento de sindicatos e associações dedicados à garantia de seus direitos trabalhistas. Após mais de oitenta anos, em 2 de abril de 2013, foi instituída a “PEC das Domésticas”, que resultou na ampliação dos direitos trabalhistas desses profissionais.
No caso do Brasil, essas mudanças propostas pela OIT ocorreram por meio de proposta de emenda à Constituição, que é a Emenda Constitucional nº. 72, de 2 de abril de 2013, que culminou na Lei Complementar nº. 150, também conhecida como “PEC das Domésticas”. A sigla PEC significa Proposta de Emenda à Constituição de 1988, que tem como objetivo alterar o parágrafo único do artigo 7º. da Constituição de 1988, estabelecendo assim uma igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais (SILVA; LORETO,BIFANO, 2016, p. 432).
Portanto, o tratamento desfavorável experimentado pelos trabalhadores domésticos tem sua origem nessa desvalorização histórica, que também afetou a proteção trabalhista. Durante muitos anos, essa categoria ficou excluída da legislação, apesar de não ser possível afirmar que a Emenda Constitucional (EC) nº 72, promulgada em 02 de abril de 2013, acalentou as disparidades entre os empregados domésticos e os demais trabalhadores, ela legalmente equiparou situações que já deveriam ser tratadas de forma igual desde a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943 (BRASIL, 2013).
3. CONCLUSÃO
A história da evolução do trabalhador doméstico ao longo do tempo tem sido marcada pela sua condição de escravidão, marginalização e falta de proteção legal para garantir igualdade de direitos trabalhistas, proteção e segurança jurídica por parte do Estado. Enquanto o ordenamento jurídico brasileiro sempre privilegiou outras categorias de trabalhadores, oferecendo-lhes uma proteção legal mais abrangente, isso demonstra uma falta de compreensão em relação à importância do trabalhador doméstico.
No entanto, a busca pela igualdade de direitos teve um marco significativo com a Emenda Constitucional nº 72/2013, que trouxe inovações legislativas com o objetivo de equiparar o trabalhador doméstico aos demais trabalhadores empregados, garantindo direitos expressivos para a sociedade brasileira. Conhecida como PEC das Domésticas, essa emenda promulgada em 02 de abril de 2013 alterou o artigo 7º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, visando estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os empregados domésticos e as demais classes de trabalhadores urbanos e rurais.
Portanto, considerando o exposto, é inegável a evolução dos direitos conquistados pela categoria dos trabalhadores domésticos ao longo da história, com destaque para a EC 72/2013 em relação à igualdade de direitos trabalhistas. No entanto, é importante ressaltar que ainda há um longo caminho a percorrer em prol da igualdade de direitos dos trabalhadores e da sociedade como um todo.
Este estudo apresenta a compreensão da evolução histórica dos direitos dos empregados domésticos, buscando criar conscientização e promover uma evolução dos direitos nas relações interpessoais, exigindo do Estado a garantia dos direitos constitucionais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Bacharel em Serviço Social pela Universidade Anhanguera – UNIDERP, Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Educacional de Medianeira – UDC Medianeira. Especialização em Serviço Social e Gestão do SUAS, Gestão Pública, Políticas Públicas todas pela Faculdade Unina, Aluna Especial no Curso de Mestrado em Serviço Social na Universidade Estadual do Paraná – Unioeste.
[2] Mestra em Desenvolvimento Rural Sustentável do Centro de Ciências Agrárias da Unioeste – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Advogada, e Professora da Faculdade Educacional de Medianeira – UDC/Medianeira.