AS ANTINOMIAS JURÍDICAS E A NECESSIDADE DE COESÃO DO SISTEMA – DIREITO TRIBUTÁRIO E PREVIDENCIÁRIO À LUZ DE BOBBIO
28 de novembro de 2023LEGAL ANTINOMIES AND THE NEED FOR COHESION OF THE SYSTEM – TAX AND SOCIAL SECURITY LAW IN THE LIGHT OF BOBBIO
Artigo submetido em 5 de outubro de 2023
Artigo aprovado em 15 de outubro de 2023
Artigo publicado em 28 de novembro de 2023
Cognitio Juris Volume 13 – Número 50 – Novembro de 2023 ISSN 2236-3009 |
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RESUMO: O objetivo dessa pesquisa foi o de analisar as antinomias jurídicas no ordenamento pátrio, correlacionando com o pressuposto de unidade do sistema e de que forma ramos distintos, em especial o tributário e o previdenciário, podem se valer dos instrumentos do diálogo entre as fontes para garantir a efetiva pacificação social de contendas. A metodologia aplicada foi o método dedutivo; quanto aos meios de pesquisa, utilizou-se o bibliográfico, com uso da doutrina, da legislação e da jurisprudência sobre o assunto; no tocante aos fins, a pesquisa compreende-se como qualitativa. Conclui-se que a separação rígida entre diferentes aspectos do direito, entendida como ciência social aplicada, deflui em situações injustas, havendo-se a necessidade, quando o jurista se confrontar com normas em colisão, da utilização dos princípios de matriz constitucional e, até mesmo, de textos normativos advindos de outros segmentos jurídicos, através do instrumento do diálogo das fontes, consoante demonstrado em casos práticos avaliados pela jurisprudência nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Antinomia jurídica. Diálogo das Fontes. Previdenciário e Tributário.
ABSTRACT: The objective of this research was to analyze the legal antinomies in the national order, correlating with the assumption of unity of the system and how different branches, especially the tax and social security, can use the instruments of dialogue between the sources to guarantee the effective social pacification of disputes. The applied methodology was the deductive method; as for the means of research, the bibliographic was used, with use of the doctrine, legislation and jurisprudence on the subject; with regard to the purposes, the research is understood as qualitative. It is concluded that the rigid separation between different aspects of law, understood as applied social science, flows in unfair situations, with the need, when the jurist is confronted with conflicting norms, to use the principles of the constitutional matrix and, even even rules coming from other legal segments, through the dialogue of sources, as demonstrated in practical cases evaluated by national jurisprudence.
KEYWORDS: Legal antinomy. Dialogue of Sources. Pensions and Taxation.
INTRODUÇÃO
A experiência social é palco de perene evolução diante de conflitos que se tornam cada vez mais complexos. Assim, a divisão clássica entre direito público e privado, bem como os métodos de superação do conflito normativo (antinomias), não são mais suficientes para abarcar as múltiplas nuances que cada caso concreto exige dos operadores do direito. A visão tradicional de aplicação dos métodos hermenêuticos na interpretação (e na da norma que deve ser eliminada) não mais alcança a finalidade de pacificação social justa e de garantia de um sistema coeso e harmônico.
O objetivo que se intenta é analisar as lições de Bobbio sobre a unidade do sistema jurídico (compreendendo-se suas antinomias, formas de solução e dever de coerência); abordar os principais pensamentos sobre o neopositivismo e a eficácia dos direitos fundamentais (horizontal, vertical e diagonal); e destrinchar como “ramos” do direito em que há tipicamente a sobreposição estatal (prevalência do interesse público sobre o particular), como o tributário (arrecadação para fins de funcionamento do Estado) e o previdenciário (regime de recolhimento e distribuição de benefícios), são interpretados pelas Cortes Superiores valendo-se da unidade do sistema (adotando normas de outras áreas) através do diálogo entre as fontes.
Logo, o problema de pesquisa pode ser sintetizado no seguinte questionamento: diante dos conflitos sociais apresentados, em ramos do direito público em que se sobrepõe o interesse da coletividade, como se pode alcançar a resolução justa quando da colisão de leis infraconstitucionais? Quais os mecanismos que o jurista dispõe para garantir que prevaleça os metavalores insculpidos na Constituição Federal nos casos concretos apresentados?
A justificativa da pesquisa decorre da atualidade do tema, servindo como painel para reflexão sobre as lições clássicas de Bobbio a respeito da unidade do sistema jurídico e como, no ordenamento nacional, podem ser aplicados instrumentos de coesão que garantam a efetiva justiça na aplicação do direito.
A metodologia aplicada foi o método dedutivo; quanto aos meios de pesquisa, utilizou-se o bibliográfico, com uso da doutrina, da legislação e da jurisprudência sobre o assunto; no tocante aos fins, a pesquisa compreende-se como qualitativa.
1. AS ANTINOMIAS E O SISTEMA JURÍDICO
O sistema jurídico, segundo o conceito de incompatibilidade de Bobbio (1995, p. 81), in verbis, pode ser compreendido como uma unidade de normas que guardam relação de coerência entre si, destrinchando-se, em sua obra, em quais condições tal fenômeno ocorre:
A situação de normas incompatíveis entre si é uma dificuldade tradicional frente à qual se encontraram os juristas de todos os tempos, e teve uma denominação própria característica: antinomia. A tese de que o ordenamento jurídico constitua um sistema no terceiro sentido exposto pode-se exprimir também dizendo que o Direito não tolera antinomias.
Nesta senda, a noção de que o sistema é uma completude que tem o condão de pacificar os litígios humanos é premissa há muito debatida no meio jurídico, tanto pela impossibilidade fática de comandos que englobem todas as relações (que se encontram em constante processo de evolução), como a própria percepção de que a sociedade (nas circunstâncias históricas mais variadas) altera seus valores e, por via de consequência, as soluções que espera de seus órgãos constituídos. Como ensina Bittar (2022, p. 959), in verbis, o pensamento predominante no século XIX era de um ordenamento jurídico sem falhas, onipotente e onisciente, sempre guiado pela universalidade da razão.
A questão da consistência e da completude do sistema jurídico é uma herança do positivismo jurídico do século XIX, algo que se afirma com constância histórica no campo da Teoria do Direito. Assim foi que o Code Napoléon serviu como paradigma da codificação completa, enquanto fruto da razão moderna, sendo o sistema de normas do Código um sistema fechado, completo e perfeito, lógico e objetivo. Neste sentido, a razão jurídica moderna, feita texto codificado, seria dotada de onipotência, sendo capaz de tudo solver, num todo operatório, e, também, dotado de onisciência, sendo capaz de tudo enxergar, pela universalidade da razão. Admitir, por exemplo, que o sistema jurídico conteria normas contraditórias entre si, parecia a Hans Kelsen, algo logicamente inadmissível. (grifou-se)
A ideia de positivismo puro pode culminar em situações de injustiça social, razão pela qual, até mesmo quanto a leis em aparente colisão, deve o operador do direito usar dos metavalores constitucionais (eficácia vertical, horizontal e diagonal dos direitos fundamentais) para fins de pacificação da contenda. Assim, o panorama de mera aplicação da norma, despida de sua interpretação e consequências sociais, tem o condão de gerar a própria ameaça à democracia, consoante ensina Melo (2022, p. 11) ao tratar da liberdade de expressão e tecnologia no período da pandemia de COVID-19:
É justamente aí que o olhar lúcido de Hannah Arendt descortina que a “banalidade do
mal” constitui grande ameaça às sociedades democráticas. A naturalização do cumprimento do dever com o genocídio, por parte do referido oficial alemão, não se distancia, em essência, da veiculação e do próprio assentimento das pessoas com relação à prática de manifestações de ódio, sem qualquer limite, nas redes sociais.
(…) O mal não pode ser encoberto pelo manto de exercício de um direito fundamental sem limites, não pode ser banalizado. (grifou-se)
Neste diapasão que se retomam os estudos de Bobbio acerca das antinomias jurídicas e os instrumentos de coerência do sistema para verificar, até mesmo nos mais variados “ramos” (emprega-se o termo em sentido amplo, considerando que o direito, como ciência jurídica, é tido como uma unidade, não havendo uma divisão estanque entre seus diversos aspectos) do direito, formas de harmonização de conflitos normativos. Importante a noção de integridade do sistema (jurídico) para a correta compreensão e superação das antinomias, reais ou aparentes, conforme ensina Pugliese (2019, p. 578):
Nada obstante, para se obter esta norma, o juiz passará por diversas etapas até o deslinde final da decisão judicial, sendo a integridade a questão chave para se chegar ao resultado almejado. Difícil se conceituar a integridade para Dworkin, não aparecendo em sua obra nem mesmo um conceito fechado deste instituto. Nada obstante, é possível observar que estaria presente em todos os campos do direito, aparecendo com destaque no campo jurisdicional, que é inclusive o foco de sua obra.
(…) Portanto, a integridade no campo jurisdicional se liga à ideia de formação da decisão judicial, levando em conta o acervo jurídico pré-existente, no qual se encontram os precedentes judiciais, o direito posto, incluindo as regras, os princípios e as diretrizes políticas.
A importância da tese de Bobbio para o direito moderno – com suas explanações acerca sobre os tipos de antinomias (reais ou aparentes), seus pressupostos (pertencerem ao mesmo ordenamento e mesmo âmbito de validade temporal, espacial, pessoal e material), critérios para solução (hierárquico, cronológico e da especialidade) – reside na sistematização de um imbróglio jurídico antigo e de difícil resolução, qual seja, a existência de normas em conflito e a descrição de quais instrumentos o jurista dispõe para pacificar casos concretos que lhe são apresentados (vedação ao non liquet[3]).
Uma classificação que também pode auxiliar no presente estudo é a de Ferraz Junior (2019, p. 207-209), a qual distingue entre antinomias lógico-matemáticas[4] com antinomias semânticas[5], e antinomias pragmáticas[6]. A razão decorre de uma definição lógico-jurídica de situações paradoxais, pois “enquanto a antinomia lógico-matemática configura uma falácia e a semântica um sem-sentido, a pragmática aponta para uma situação possível nas relações humanas, mas que leva uma das partes a uma situação de indecidibilidade”.
Ou seja, infere-se que, dentre as relações humanas, a antinomia de normas (obrigatória, permissiva negativa/positiva, proibitiva – segundo definição de Bobbio) configura-se em choque institucional perene, mas que não resulta, per si, em uma quebra da unidade do ordenamento jurídico, indicando-se, inclusive, métodos que agentes externos (magistrados, legisladores) dispõe para a solução das controvérsias.
2. A UNIDADE DO SISTEMA, A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DIÁLOGO DAS FONTES
A relevância de tais ensinamentos para a matéria discutida é compreender, à luz dos ensinamentos de unidade do sistema jurídica de Bobbio, aliadas às lições atinentes à eficácia (horizontal, vertical e diagonal) dos direitos fundamentais, como “ramos” do direito em que há tipicamente a sobreposição estatal (prevalência do interesse público sobre o particular), como o tributário (arrecadação para fins de funcionamento do Estado) e o previdenciário (regime de recolhimento e distribuição de benefícios), são interpretados pelas Cortes Superiores valendo-se da unidade do sistema (adotando normas de outras áreas) através do diálogo entre as fontes.
Primeiramente, estuda-se o fenômeno do neopositivismo, bem como sua distinção em relação ao positivismo clássico e o papel estruturante dos princípios para fins de garantia da unidade do sistema. Tais observações são essenciais para a compreensão de circularidade do ordenamento jurídico, não se podendo valer de separações (doutrinárias) entre, por exemplo, o direito público e o privado, considerando que os fins de pacificação social são unos.
Ao passar por este detalhamento, começa-se a inferir que, até mesmo institutos previstos em segmentos tipicamente privados (como a proteção aos vulneráveis do Código de Defesa do Consumidor), podem ser aplicados na seara estritamente pública, tomando-se como exemplo a atuação da Defensoria Pública, como custos vulnerabilis, em ações de Direito Administrativo (fornecimento de medicamento não registrado pela ANVISA[7]). Parte-se das lições de Azevedo (2007, p. 584-585) para a correta compreensão do positivismo clássico, in verbis:
A excelência do Código Civil francês e, depois, dos demais Códigos, fez com que o jurista, ao invés da razão, procurasse o texto. Pode-se dizer que, a partir daí, cada vez mais quem diz “direito” diz “lei”. Trata-se do positivismo legal. No fundo, mais de 2.000 anos depois, deu-se a vingança de Protágoras contra o velho Platão. O homem tornou-se a medida de todas as coisas. O que passou a ter importância foi a decisão coletiva. O Direito Natural, então, praticamente desaparece como Direito para a maioria dos juristas; passa a ser quando muito um conjunto de princípios morais, mas sem força jurídica coercitiva. O importante é a lei.
(…) Daí, a nosso ver, os dois pilares do Direito atual: Constituição e Direitos Humanos. Constituem ambos como que os fundamentos últimos da argumentação jurídica hoje. Mas, movidos pela inquietação intelectual, cabe perguntar: esses dois alicerces bastam? Resolvem ambos todas as nossas possíveis dúvidas? (grifou-se)
No excerto trazido, enxerga-se o afastamento da supremacia dos valores morais da sociedade (caracterizadores do Direito Natural) para o primado da decisão coletiva fundada na lei. Ou seja, busca-se um Estado Democrático de Direito, em que a pacificação social ocorra por meio da formulação de normas gerais e abstratas (igualdade e impessoalidade), pautando-se na noção de soberania da vontade popular (seja de forma direta, ou indireta).
Todavia, conforme anteriormente citado por Melo (2022, p. 11), a mera submissão à lei (ainda que elaboradas em um processo democrático) pode gerar situações de injustiça, inclusive na denominada “banalização do mal”, em que a prática de atos estatais macule primados fundamentais da condição humana (como a própria vida e a dignidade).
Neste contexto que exsurge a figura do neopositivismo, caracterizando-se como a conciliação do poder coercitivo (geral e abstrato) de normas previamente formuladas em processo democrático (positivismo clássico) com sua interpretação e aplicação pautado nos primados dos valores constitucionais (em especial os relativos aos direitos humanos). Nas palavras de Castilho (2023, p. 567), entende-se o neopositivismo como a prevalência do texto normativo aliado aos “sentimentos e aos ideais religiosos e morais”, ou seja, a aplicação do direito vinculada a metavalores de origem constitucional:
Uma das questões levantadas nas primeiras décadas do século foi a rejeição ao materialismo, até então a doutrina dominante, a partir do positivismo. Alguns filósofos passaram a defender que, embora a base do conhecimento continuasse a ser científica, apenas a consciência permitiria a compreensão do resultado das pesquisas. A consciência formaria o conjunto da cultura, somada aos sentimentos e aos ideais religiosos e morais. Esse movimento intelectual seria chamado de neopositivismo ou espiritualismo. (grifou-se)
Importante consignar que a régua principiológica não se restringe aos valores descritos nos comandos internos do ordenamento nacional, mas, com base no instituto do bloco de constitucionalidade[8] (art. 5º, §3º, CRFB/88[9]), em pactos e convenções de direito internacional aderidas pelo Brasil, trazendo-se como exemplo o afastamento da prisão por depositário infiel. Há de se ressaltar relevantes críticas ao entendimento de afastamento de normas originárias por controle através do bloco de constitucionalidade, consoante ensina Melo (2019, p. 34-35):
Nesses termos, por ocasião do referido julgamento, o STF, de um lado, reconheceu a
insubsistência da previsão constitucional e das normas infraconstitucionais que possibilitavam a prisão civil do depositário infiel à luz do que dita a Convenção Americana de Direitos Humanos e, doutro modo, entendeu que o referido tratado internacional possui status supralegal no ordenamento jurídico brasileiro.
Ora, o raciocínio desenvolvido pela Corte Suprema – além de ir de encontro com o que dita o §2º. do art. 5º. da Constitucional Federal13 (norma constitucional originária), para exaltar o que dispõe o §3º. do mesmo art. 5º.14 (norma constitucional derivada inserida pela EC n. 45/2004), privilegiando aspectos formais em detrimento do conteúdo material da norma – parece padecer de uma contradição – lógica – intrínseca.(grifou-se)
Tem-se uma íntima correlação entre o neopositivismo (ou pós-positivismo para alguns doutrinadores) com a figura do neoconstitucionalismo. Em ambos há uma aproximação entre o positivismo clássico (legalista) e o Direito Natural, em especial considerado o contexto histórico de que exsurge: após Segunda Guerra Mundial, barbáries cometidas em um sistema jurídico aceito pela maioria da população (positivismo clássico), nazismo, que culminou no genocídio de grupos populacionais (sendo os judeus o exemplo mais significativo); além do fascismo italiano e o comunismo soviético.
Compreende-se, a partir dos relatos narrados, que a mera aplicação do direito democraticamente eleito (positivismo clássico) não é suficiente para alcançar o desiderato desta ciência social aplicada, qual seja, a pacificação social justa. Busca-se, a partir de então, mecanismos que garantam a maior preservação e efetivação dos Direitos Humanos e Fundamentais, compreendidos como àqueles intrínsecos a todos os seres humanos. Não basta a aplicação da norma geral, abstrata e impessoal, é necessário que se elejam metavalores (seja em âmbito interno, seja internacional) que garantam o mínimo da existência humana digna; passa-se, então, ao primado do Estado Constitucional do Direito.
No ordenamento jurídico brasileiro, tem-se como marcos do neoconstitucionalismo a redemocratização do Brasil, no final do governo de Getúlio Vargas, na Constituição de 1946 (que revogara a Constituição Polaca, de viés fascista) e, como maior exemplo, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a qual dispõe de diversos direitos (núcleo essencial) e garantias (métodos de proteção) de cunho individual (art. 5º, CRFB/88), social (art. 6º e s/s, CRFB/88), transgeracional (art. 225, CRFB/88), entre outros. Nesta senda, deve-se compreender do que se trata a eficácia dos direitos fundamentais. Nas palavras de Mitidiero (2023, p.1656):
Levando em conta que mesmo a vinculação dos órgãos estatais carece de diferenciação a depender do direito fundamental em causa e que a eficácia e a aplicabilidade das normas de direitos fundamentais são variáveis, também para as normas de direitos sociais há de valer o que se afirmou no tocante ao problema da eficácia dos direitos fundamentais em geral nas relações entre particulares, isto é, que tal eficácia reclama a adoção de uma metódica diferenciadora que assume tanto aspectos de uma eficácia vertical e horizontal quanto de uma eficácia direta e indireta, de tal sorte que diferenciações não são apenas possíveis, mas necessárias.
Ou seja, entende-se que os direitos fundamentais, no neopositivismo, possuem, ao menos, três eficácias distintas, quais sejam, vertical, horizontal e diagonal. A eficácia vertical pressupõe uma liberdade negativa, um dever de abstenção do Estado, quanto ao cumprimento de imposições ao particular decorrente da supremacia do interesse público; em outros termos, trata-se do binômio Estado-cidadão tendo como substrato o núcleo essencial dos direitos destes quanto àquele (não subvertendo o sistema ao, por vezes, sobrepor-se os direitos individuais aos da coletividade[10]).
Na evolução da doutrina e da jurisprudência começou-se a perceber que não bastava a preservação dos direitos fundamentais nas relações entre o Estado-cidadão, mas que a própria autonomia da vontade, entre particulares em situação de igualdade, também deveria ser regida por metavalores eleitos pelo ordenamento jurídico, como o contraditório e a ampla defesa. Cita-se o exemplo de exclusão de sócio de associação sem o devido processo legal, in verbis:
SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. (omissis) (STF – RE: 201819 RJ, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 11/10/2005, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577)
Assim, consoante decisão mencionada, não é apenas nas relações Estado-cidadão que pode ocorrer a extrapolação dos limites previstos na Constituição Federal, mas nas atividades entre particulares. Neste contexto exsurge a eficácia horizontal dos direitos fundamentais baseado no primado da igualdade (art. 5º, caput, CRFB), correlacionando-se ao dever estatal de estabelecer normas positivas e negativas que condicionassem a autonomia da vontade em prol da proteção dos direitos fundamentais visando à proteção do bem-estar e da harmonia social.
De forma mais recente, ao se deparar com situações em que, entre particulares, não existe paridade entre as armas, ou seja, um desnível decorrente das relações de poder, observou-se a necessidade de sistematizar uma nova eficácia dos direitos fundamentais: a diagonal. Esta, que tem como palco central as relações trabalhistas, tem como principal característica a desigualdade material e a imprescindibilidade do uso da proporcionalidade para fins de resolução da contenda. Explana-se que a figura é típica das relações do direito laboral pela patente hipossuficiência do trabalhador e a prevalência do poder patronal no cotidiano. Nas palavras de Gamonal (2011, p. 33):
Na eficácia diagonal dos direitos fundamentais no contrato de trabalho a racionalidade acerca do objeto se vincula com o fim perseguido pelo contrato de trabalho enquanto prestação de serviço sob subordinação que, afinal, não pode alterar direitos fundamentais de uma das partes pelo único objetivo econômico do contrato
ou da atividade empresarial. A livre iniciativa econômica e o direito de propriedade não podem desprezar outros direitos básicos dos trabalhadores em uma sociedade democrática, exceto em casos muito excepcionais e sempre.
De igual forma, elucidativas as lições de Pinho (2020, p. 198) a respeito da aplicação de princípios de matriz constitucional em relações que, de forma técnica, sempre prevalecera a autonomia da vontade (pact sunt servanda), tornando-se mais um exemplo da interpretação do direito com base no pós-positivismo e no neoconstitucionalismo:
A eficácia horizontal dos direitos fundamentais significa a aplicação destes direitos também nas relações entre particulares. Os direitos fundamentais foram estabelecidos para proteger os indivíduos de abusos cometidos pelo Estado, mas, por estabelecerem os fundamentos da vida em sociedade, aplicam-se também nas relações privadas. O exercício do direito civil de uma pessoa, física ou jurídica, não raras vezes encontra limite no direito de outras, todos com previsão constitucional. Em uma situação de conflito, há necessidade de compatibilizá-los, devendo prevalecer as garantias de ordem constitucional também nas relações entre particulares. A autonomia da vida privada não é absoluta. O Supremo Tribunal Federal entendeu inconstitucional, por exemplo, a exclusão de um associado de uma entidade privada, sem que lhe fossem assegurados os direitos de ampla defesa e contraditório (RE 201.819, Rel. Min. Gilmar Mendes, Informativo STF, n. 405). (PINHO, 2020, p.198)
Deve-se, ainda, compreender o instrumento do diálogo das fontes como meio para afastar inconsistência do sistema (antinomias). Preliminarmente, Freitas (2010, p. 32) explana sobre a coesão do ordenamento jurídico, afastando-se aparentes separações entre “ramos” quando da interpretação e aplicação do direito pelo jurista, ou seja, preleciona a existência de uma “(…) interação dialética entre ordenamento e intérprete (…) resta afastada, por ingênua, qualquer visão acentuadamente normativista, pois a Ciência do Direito requer também e necessariamente uma fundamentação racional no espaço da decisão”.
Por intermédio da noção de unidade do sistema, a hermenêutica se desenvolve como processo lógico e racional, em especial no pós-positivismo, ao se afastar o emprego literal do texto normativo para a concretização do comando mais condizente (justo) com os princípios de ordem constitucional – em especial considerando a perene evolução dos imbróglios sociais que se tornam cada vez mais complexos.
Neste contexto que se introduz o diálogo das fontes como garantia de um sistema jurídico coerente, visto que as normas passam a ser sopesadas por distintas fontes de origem (inter)nacional e (não)estatal. Nas palavras de Barroso (2013, p. 616):
A ordem jurídica é um sistema, o que pressupõe unidade, equilíbrio e harmonia. Em um sistema, suas diversas partes devem conviver sem confrontos inarredáveis. Para solucionar eventuais conflitos entre normas jurídicas infraconstitucionais utilizam-se, como já visto, os critérios tradicionais da hierarquia, da norma posterior e o da especialização. Na colisão de normas constitucionais, especialmente de princípios — mas também, eventualmente, entre princípios e regras e entre regras e regras — emprega-se a técnica da ponderação. Por força do princípio da unidade, inexiste hierarquia entre normas da Constituição, cabendo ao intérprete a busca da harmonização possível, in concreto, entre comandos que tutelam valores ou interesses que se contraponham. Conceitos como os de ponderação e concordância prática são instrumentos de preservação do princípio da unidade, também conhecido como princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição. (grifou-se)
Portanto, através da teoria do diálogo das fontes, a interpretação jurídica (hermenêutica dialógica) pode garantir ao jurista a integridade do sistema em conjunto com a aplicação de instrumentos de outras fontes (superando-se a divisão doutrinária de ramos do direito). Desta forma, no viés do pós-positivismo, ratifica-se a supremacia da Constituição, a aplicação dos direitos fundamentais (em suas eficácias retromencionadas), a coerência e harmonia do Direito (como ciência social aplicada) e, em especial, possibilita a resolução de tensões normativas (antinomias), seja de princípios, seja de regras, diante da maleabilidade e plasticidade na aplicação da lei.
Desta forma, entende-se que há uma evolução quanto aos deveres dos operadores do direito (mormente magistrados), posto não haver mais a estrita obrigatoriedade de eliminação de norma em antinomia, possibilitando sua interpretação à luz da unicidade do sistema jurídico. Permite-se, por tal premissa, o afastamento de critérios clássicos de resolução de conflitos normativos (cronológico, hierárquico e especialidade). Ainda, deve-se realizar a distinção das características centrais do diálogo das fontes. Nas palavras de Miragem (2012, p. 78):
[…] a) primeiro, que se trata de um método de interpretação sistemático, e que deve ser compreendido segundo as premissas do pensamento sistemático do direito; b) segundo, de que propõe uma interpretação orientada por fundamentos axiológicos, com vista ao atendimento da finalidade de realização dos direitos fundamentais expressos na Constituição Federal, orientado pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
Assim, concluindo-se a definição, principais características e aplicabilidade da teoria do diálogo entre as fontes, deve-se passar ao estudo de casos concretos que auxiliem na compreensão de como a temática está sendo sopesada na jurisprudência pátria.
3. CASOS PRÁTICOS DE APLICAÇÃO DA UNICIDADE DO SISTEMA E DO DIÁLOGO DAS FONTES EM TRIBUTÁRIO E EM PREVIDENCIÁRIO
Ultrapassados os estudos sobre o (pós)positivismo, a eficácia dos direitos fundamentais, a integridade do sistema e a utilização do diálogo das fontes como mecanismo para afastar antinomias e garantir a pacificação social, parte-se para a análise de casos concretos da jurisprudência, quanto ao direito tributário e ao previdenciário, para verificar como tais premissas estão sendo aplicadas pelas Cortes Superiores.
Ab initio, cumpre ressaltar a distinção da matriz do direito previdenciário e o do tributário dos outros segmentos do direito, em uma visão clássica. Compreende-se ambos como integrantes do denominado Direito Público, em que há a supremacia do interesse geral frente ao particular, pautada no poder soberano do Estado. Nos limites da arrecadação de receitas (tributário) e na concessão de benefícios aos trabalhadores advindas do sistema solidário de contribuições (previdenciário), verifica-se a imposição estatal na criação e administração de regras para condução de suas políticas, não se podendo alegar eventual autonomia de vontade para afastar os deveres dos administrados. Nas palavras de Diniz (2023, p. 489):
O direito público seria aquele que regula as relações em que o Estado é parte, ou seja, rege a organização e atividade do Estado considerado em si mesmo (direito constitucional), em relação com outro Estado (direito internacional), e em suas relações com os particulares, quando procede em razão de seu poder soberano e atua na tutela do bem coletivo (direitos administrativo e tributário). O direito privado é o que disciplina as relações entre particulares, nas quais predomina, de modo imediato, o interesse de ordem privada, como compra e venda, doação, usufruto, casamento, testamento, empréstimo etc.
Nesta condição que se atribuem prerrogativas à Fazenda Pública nos sobreditos segmentos (inversão do ônus da prova nas execuções fiscais; vedação à contribuição ficta; afastamento dos efeitos matérias da revelia, entre outros), considerando a natural relação desigual cujo fundamento de discriminem é a consecução da finalidade pública. Dentre as distinções ora apresentadas parte-se de um pressuposto que em tais imbróglios jurídicos não haveria a possibilidade de se valer de instrumentos de outros ramos do direito. Porém, doutrina e jurisprudência avançam para modificar a estrutura rígida que prevalecia entre magistrados e legisladores nos casos a seguir apresentados.
O diálogo das fontes permite a utilização de instrumentos tipicamente de outros ramos (como do privado) para fins de garantir uma aplicação normativa mais justa e coerente com o sistema jurídico. Trazem-se quatro exemplos de possíveis antinomias jurídicas, na seara do direito tributário e previdenciário, cujas soluções foram encontradas com base em princípios e normas de outros ramos: (1) Exaurimento de vias ordinárias em penhora para satisfação de créditos tributários, REsp N. 1.184.765/PA (2) Garantia em execuções fiscais, REsp N. 1.272.827/PE; (3) Desaposentação, RE N. 661.256/SC; e (4) Revisão da vida toda, RE 1.276.977/DF. Passa-se ao estudo individualizado dos julgados.
No tocante ao REsp 1.184.765, julgado na sistemática de recursos repetitivos, o Superior Tribunal de Justiça – STJ aplicou a teoria do diálogo das fontes para autorizar a penhora eletrônica de depósitos ou aplicações financeiras independentemente do exaurimento de diligências extrajudiciais por parte do exequente, previsão contida em norma geral, porém mais benéfica ao credor tributário que a regra especial.
RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. PROCESSO JUDICIAL TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA ELETRÔNICA. SISTEMA BACEN-JUD. ESGOTAMENTO DAS VIAS ORDINÁRIAS PARA A LOCALIZAÇÃO DE BENS PASSÍVEIS DE PENHORA. ARTIGO 11, DA LEI 6.830/80. ARTIGO 185-A, DO CTN. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. INOVAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI 11.382/2006. ARTIGOS 655, I, E 655-A, DO CPC. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DAS LEIS. TEORIA DO DIÁLOGO DAS FONTES. APLICAÇÃO IMEDIATA DA LEI DE ÍNDOLE PROCESSUAL. 1. A utilização do Sistema BACEN-JUD, no período posterior à vacatio legis da Lei 11.382/2006 (21.01.2007), prescinde do exaurimento de diligências extrajudiciais, por parte do exeqüente, a fim de se autorizar o bloqueio eletrônico de depósitos ou aplicações financeiras (omissis) 2. A execução judicial para a cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias é regida pela Lei 6.830/80 e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil. 3. (omissis). 4. Por seu turno, o artigo 655, do CPC, em sua redação primitiva, dispunha que incumbia ao devedor, ao fazer a nomeação de bens, observar a ordem de penhora, cujo inciso I fazia referência genérica a “dinheiro”. 5. Entrementes, em 06 de dezembro de 2006, sobreveio a Lei 11.382, que alterou o artigo 655 e inseriu o artigo 655-A ao Código de Processo Civil, verbis: “(omissis) 6. Deveras, antes da vigência da Lei 11.382/2006, (omissis), e de que o bloqueio eletrônico de depósitos ou aplicações financeiras (mediante a expedição de ofício à Receita Federal e ao BACEN) pressupunha o esgotamento, pelo exeqüente, de todos os meios de obtenção de informações sobre o executado e seus bens e que as diligências restassem infrutíferas ( omissis). 7. (omissis) 8. Nada obstante, a partir da vigência da Lei 11.382/2006, os depósitos e as aplicações em instituições financeiras passaram a ser considerados bens preferenciais na ordem da penhora, equiparando-se a dinheiro em espécie (artigo 655, I, do CPC), tornando-se prescindível o exaurimento de diligências extrajudiciais a fim de se autorizar a penhora on line (artigo 655-A, do CPC). 9. A antinomia aparente entre o artigo 185-A, do CTN (que cuida da decretação de indisponibilidade de bens e direitos do devedor executado) e os artigos 655 e 655-A, do CPC (penhora de dinheiro em depósito ou aplicação financeira) é superada com a aplicação da Teoria pós-moderna do Diálogo das Fontes, idealizada pelo alemão Erik Jayme e aplicada, no Brasil, pela primeira vez, por Cláudia Lima Marques, a fim de preservar a coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o novo Código Civil. 10. Com efeito, consoante a Teoria do Diálogo das Fontes, as normas gerais mais benéficas supervenientes preferem à norma especial (concebida para conferir tratamento privilegiado a determinada categoria), a fim de preservar a coerência do sistema normativo. 11. (omissis). 12. Assim, a interpretação sistemática dos artigos 185-A, do CTN, com os artigos 11, da Lei 6.830/80 e 655 e 655-A, do CPC, autoriza a penhora eletrônica de depósitos ou aplicações financeiras independentemente do exaurimento de diligências extrajudiciais por parte do exeqüente. 13. (omissis) (STJ – REsp: 1184765 PA 2010/0042226-4, Data de Julgamento: 24/11/2010, S1 – PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 03/12/2010 DECTRAB vol. 198 p. 27 RSTJ vol. 221 p. 247) (grifou-se)
O caso em exame tratava da (des)necessidade de exaurimento das instâncias ordinárias para fins de penhora eletrônica pelo sistema BACEN-JUD. De início, a jurisprudência se posicionava pela imprescindibilidade do esgotamento das vias, visto que, com base no art. 9 e 11 da Lei N. 6.830/80 c/c art. 655 do CPC/73, a ordem de penhora original dispunha, genericamente, de “dinheiro”, cabendo a relativização pelo julgador apta a condicionar a penhora eletrônica à adoção de providências exaustivas por parte da Fazenda Pública. De outro giro, a partir da vigência da Lei N. 11.382/06, houve a alteração do art. 655 do CPC/73, tornando-se prescindível a adoção de tais providências. Ponderou-se a antinomia da norma com o art. 185-A do CTN que, em um primeiro momento, aparenta condicionar a penhora online a tais condicionantes. O STJ, todavia, afastou a antinomia com base na teoria do diálogo das fontes, afirmando que “as normas gerais mais benéficas supervenientes preferem à norma especial… a fim de preservar a coerência do sistema normativo”.
Quanto ao REsp N.1.272.827, igualmente julgado em recurso repetitivo, tem-se que o STJ ratificara o dever de garantir o juízo para fins de oposição dos embargos à execução nos termos da Lei N. 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais), utilizando-se da teoria do diálogo das fontes, nos seguintes termos:
PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. RECURSO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ART. 543-C, DO CPC. APLICABILIDADE DO ART. 739-A, § 1º, DO CPC ÀS EXECUÇÕES FISCAIS. NECESSIDADE DE GARANTIA DA EXECUÇÃO E ANÁLISE DO JUIZ A RESPEITO DA RELEVÂNCIA DA ARGUMENTAÇÃO (FUMUS BONI JURIS) E DA OCORRÊNCIA DE GRAVE DANO DE DIFÍCIL OU INCERTA REPARAÇÃO (PERICULUM IN MORA) PARA A CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS EMBARGOS DO DEVEDOR OPOSTOS EM EXECUÇÃO FISCAL. 1. A previsão no ordenamento jurídico pátrio da regra geral de atribuição de efeito suspensivo aos embargos do devedor somente ocorreu com o advento da Lei n. 8.953, de 13, de dezembro de 1994, que promoveu a reforma do Processo de Execução do Código de Processo Civil de 1973 (Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – CPC/73), nele incluindo o § 1º do art. 739, e o inciso I do art. 791. 2. (omissis) 3. Sendo assim, resta evidente o equívoco da premissa de que a LEF e a Lei n. 8.212/91 adotaram a postura suspensiva dos embargos do devedor antes mesmo de essa postura ter sido adotada expressamente pelo próprio CPC/73, com o advento da Lei n. 8.953/94, fazendo tábula rasa da história legislativa. 4. Desta feita, à luz de uma interpretação histórica e dos princípios que nortearam as várias reformas nos feitos executivos da Fazenda Pública e no próprio Código de Processo Civil de 1973, mormente a eficácia material do feito executivo a primazia do crédito público sobre o privado e a especialidade das execuções fiscais, é ilógico concluir que a Lei n. 6.830 de 22 de setembro de 1980 – Lei de Execuções Fiscais – LEF e o art. 53, § 4º da Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991, foram em algum momento ou são incompatíveis com a ausência de efeito suspensivo aos embargos do devedor. Isto porque quanto ao regime dos embargos do devedor invocavam – com derrogações específicas sempre no sentido de dar maiores garantias ao crédito público – a aplicação subsidiária do disposto no CPC/73 que tinha redação dúbia a respeito, admitindo diversas interpretações doutrinárias. 5. (omissis) 7. Muito embora por fundamentos variados – ora fazendo uso da interpretação sistemática da LEF e do CPC/73, ora trilhando o inovador caminho da teoria do “Diálogo das Fontes”, ora utilizando-se de interpretação histórica dos dispositivos (o que se faz agora) – essa conclusão tem sido a alcançada pela jurisprudência predominante, conforme ressoam os seguintes precedentes de ambas as Turmas deste Superior Tribunal de Justiça. Pela Primeira Turma: (omissis). (STJ – REsp: 1272827 PE 2011/0196231-6, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 22/05/2013, S1 – PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 31/05/2013 RDTAPET vol. 38 p. 227 RTFP vol. 114 p. 373)
Neste julgado discute-se a (des)necessidade de garantia do juízo, em execuções fiscais, nos moldes que apregoa o art. 16, §1.º, da Lei N. 6.830/80, considerando o advento da Lei N. 11.382/06, a qual alterara o art. 736 do CPC/15 para permitir a oposição dos embargos nas execuções (comuns) sem garantia. O STJ, baseando-se na interpretação histórica, nas disposições específicas da LEF, e na teoria do diálogo das fontes, entendeu que não havia uma antinomia real em caso, devendo prevalecer, pelo princípio da especialidade, a previsão de garantia do juízo para oposição dos embargos à execução fiscal.
No tocante à questão previdenciária, duas situações se apresentam nas quais, em uma análise superficial, verifica-se uma antinomia de normas e entendimentos jurídicos: a desaposentação (vedada no RE 661256/SC) e a revisão da vida toda (permitida no RE 1276977 DF). Em ambas há o anseio do contribuinte em utilizar determinado lapso de contribuição, posterior (desaposentação) ou anterior (revisão da vida toda) à concessão do benefício previdenciário.
Todavia, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se divergentemente nos casos apresentados. Observa-se que o primeiro imbróglio, desaposentação (2016), fora entendido como inadmissível em uma análise sistemática do regime previdenciário; fato que tendenciou os juristas a acreditarem que a revisão da vida toda (2022) também seria rechaçada. Detalha-se como o STF alcançou suas conclusões e de que forma, ainda que indiretamente, utilizara da teoria do diálogo das fontes para resolução da antinomia no segundo paradigma.
A desaposentação refere-se à possibilidade de um segurado, em gozo de aposentadoria pelo INSS, retornar à atividade (em vínculo distinto) e, após determinado período de contribuição, solicitar a reversão de seu benefício para contagem deste lapso contribuitivo a maior, culminando em uma benesse mais favorável economicamente (a Renda Mensal Inicial – RMI, em decorrência do maior aporte, tenderia a ser maior do que a original).
A problemática, na visão da Fazenda, refere-se ao recebimento conjunto de benefício previdenciário (aposentadoria), de remuneração (cargo na ativa) e, em arguição institucional, a dupla vantagem de se receber de duas fontes distintas e, ainda, aumentar o gasto do Regime Previdenciário com uma aposentadoria maior do que a originalmente pactuada. Desta forma, levanta-se a imprescindibilidade de devolução da benesse concedida para fins de autorização da reversão e contagem do novo período de contribuição.
O STF, de outro giro, fixou tese favorável à Fazenda declarando a constitucionalidade do art. 18, §2º, da Lei N. 8.213/91, de não permitir prestação adicional pelo tempo de contribuição a maior de aposentado, exceto salário-família e reabilitação profissional. Prevalecendo, neste panorama, a característica de solidariedade e distributividade do regime previdenciário, inexistindo um direito adquirido a eventuais contribuições adicionais, in verbis:
EMENTA Constitucional. Previdenciário. Parágrafo 2º do art. 18 da Lei 8.213/91. Desaposentação. Renúncia a anterior benefício de aposentadoria. Utilização do tempo de serviço/contribuição que fundamentou a prestação previdenciária originária. Obtenção de benefício mais vantajoso. Julgamento em conjunto dos RE nºs 661.256/sc (em que reconhecida a repercussão geral) e 827.833/sc. Recursos extraordinários providos. 1. Nos RE nºs 661.256 e 827.833, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, interpostos pelo INSS e pela União, pugna-se pela reforma dos julgados dos Tribunais de origem, que reconheceram o direito de segurados à renúncia à aposentadoria, para, aproveitando-se das contribuições vertidas após a concessão desse benefício pelo RGPS, obter junto ao INSS regime de benefício posterior, mais vantajoso. 2. A Constituição de 1988 desenhou um sistema previdenciário de teor solidário e distributivo. inexistindo inconstitucionalidade na aludida norma do art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91, a qual veda aos aposentados que permaneçam em atividade, ou a essa retornem, o recebimento de qualquer prestação adicional em razão disso, exceto salário-família e reabilitação profissional. 3. Fixada a seguinte tese de repercussão geral no RE nº 661.256/SC: “[n]o âmbito do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), somente lei pode criar benefícios e vantagens previdenciárias, não havendo, por ora, previsão legal do direito à ‘desaposentação’, sendo constitucional a regra do art. 18, § 2º, da Lei nº 8213/91”. 4. Providos ambos os recursos extraordinários (RE nºs 661.256/SC e 827.833/SC).
(STF – RE: 661256 SC, Relator: ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 27/10/2016, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 28/09/2017)
Interessante observar que no voto do Ministro Luís Roberto Barroso (vencido), almejava-se a aplicação (indireta) dos enunciados de Bobbio, no sentido de respeitar a necessidade de um diálogo institucional e da visão sistêmica do ordenamento jurídica, consoante trecho a seguir “a decisão aqui lançada… fez questão de abrir um diálogo institucional e respeitara separação de Poderes. A solução aqui alvitrada decorre da interpretação sistemática e teleológica da Constituição e da legislação”. Logo, em que pese vencido, pode-se afirmar que em seu voto houve o afastamento de antinomias e se enaltecera a interpretação hermenêutica (sistemática).
Em razão de tais fundamentos, cogitou-se que a tese da revisão da vida toda, de igual forma, não vingaria. Passados seis anos do decisum sobre desaposentação, verificou-se uma mudança no entendimento da Corte, já evidenciada no voto do Ministro Luís Roberto Barroso, prevalecendo o direito dos segurados a auferirem melhores benefícios em decorrência de contribuições previdenciárias vertidas a seu regime.
In casu, vislumbra-se um conflito normativo entre o art. 29, incisos I e II, da Lei N. 8.213/91 (utilização de todo o período contributivo para cálculo da RMI) e o art. 3º da Lei N. 9.876/99 (cálculo da RMI com base nas contribuições a partir de julho de 1994, não se valendo das anteriores ao período). Logo, tem-se uma norma transitória e posterior (critérios cronológico e da especialidade), Lei N. 9.876/99, em confronto com norma geral e anterior, Lei N. 8.213/91.
Tratava-se de uma antinomia real (conflito de dois critérios descritos por Bobbio) e a solução dada pela Corte fora no sentido de compreensão (hermenêutica histórica) do desiderato da norma especial, qual seja, proteção dos trabalhadores com menor escolaridade e com menor inserção no mercado de trabalho. Logo, não poderia se sagrar vencedora a tese que diminuiria o benefício destes segurados, consoante apregoava o INSS com base nos critérios clássicos de resolução de conflito (especialidade e cronologia). Desta forma, firmou-se a tese de possibilidade de cômputo dos períodos anteriores a julho de 1994 quando se defluísse em cálculo superior da RMI do beneficiário, in verbis:
Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. TEMA 1102 DA REPERCUSSÃO GERAL. POSSIBILIDADE DE REVISÃO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO MEDIANTE A APLICAÇÃO DA REGRA DEFINITIVA DO ARTIGO 29, INCISOS I E II, DA LEI 8.213/1991, QUANDO MAIS FAVORÁVEL DO QUE A REGRA DE TRANSIÇÃO CONTIDA NO ARTIGO 3º DA LEI 9.876/1999, AOS SEGURADOS QUE INGRESSARAM NO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL ANTES DA PUBLICAÇÃO DA REFERIDA LEI 9.876/1999, OCORRIDA EM 26/11/1999. DIREITO DE OPÇÃO GARANTIDO AO SEGURADO. 1. A controvérsia colocada neste precedente com repercussão geral reconhecida consiste em definir se o segurado do INSS que ingressou no sistema previdenciário até o dia anterior à publicação da Lei 9.876, em 26 de novembro de 1999, pode optar, para o cálculo do seu salário de benefício, pela regra definitiva prevista no art. 29, I e II, da Lei 8.213/1991 quando essa lhe for mais favorável do que a previsão da lei, no art. 3º, de uma regra transitória, por lhe assegurar um benefício mais elevado. 2. (omissis) 3. A partir da leitura da exposição de motivos do Projeto de Lei que originou a Lei 9.876/1999 e os argumentos aduzidos no acórdão recorrido, depreende-se que a regra definitiva veio para privilegiar no cálculo da renda inicial do benefício a integralidade do histórico contributivo. A limitação imposta pela regra transitória a julho de 1994 teve escopo de minimizar eventuais distorções causadas pelo processo inflacionário nos rendimentos dos trabalhadores. 4. A regra transitória, portanto, era favorecer os trabalhadores com menor escolaridade, inserção menos favorável no mercado de trabalho, que tenham uma trajetória salarial mais ou menos linear, só que, em alguns casos, isso se mostrou pior para o segurado, e não favorável como pretendia o legislador na aplicação específica de alguns casos concretos. 5. (omissis) 6. Admitir-se que norma transitória importe em tratamento mais gravoso ao segurado mais antigo em comparação ao novo segurado contraria o princípio da isonomia, que enuncia dever-se tratar desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade, a fim de conferir-lhes igualdade material, nunca de prejudicá-los. 7. (omissis). Tese de julgamento: “O segurado que implementou as condições para o benefício previdenciário após a vigência da Lei 9.876, de 26 de novembro de 1999, e antes da vigência das novas regras constitucionais introduzidas pela EC em 103/2019, que tornou a regra transitória definitiva, tem o direito de optar pela regra definitiva, acaso esta lhe seja mais favorável”. (STF – RE: 1276977 DF, Relator: MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 01/12/2022, Tribunal Pleno, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-076 DIVULG 12-04-2023 PUBLIC 13-04-2023)
Em todos os julgados apresentados há a manifestação das Cortes Superiores sobre o dever de garantia de coesão do sistema jurídico, evitando-se as antinomias reais e aparentes (conforme lição de Bobbio). A questão que se apresenta é a de que, devida a alta complexidade das relações humanas, os métodos de solução tradicionais não são suficientes para garantir a pacificação social a unidade do ordenamento. Neste viés, ainda em ramos de prevalência da supremacia do interesse público (como o tributário e o previdenciário), verifica-se a adoção, por parte da jurisprudência, da teoria do diálogo das fontes, da eficácia dos direitos fundamentais e da interpretação sistemática.
CONCLUSÃO
A problemática que instigou essa pesquisa foi a verificar, diante dos conflitos sociais apresentados, em ramos do direito público em que se sobrepõe o interesse da coletividade, como se poderia alcançar a pacificação social justa quando da colisão de normas infraconstitucionais. Além deste questionamento, indagou-se quais os mecanismos que o jurista dispunha para garantir que prevaleça os metavalores insculpidos na Constituição Federal nos casos concretos apresentados.
Os objetivos foram cumpridos à medida que analisou a legislação brasileira, realizando-se um estudo sobre as lições de Bobbio sobre a unidade do sistema jurídico, bem como suas influências na sistematização das antinomias jurídicas e os paradigmas por este criado, dentro dos critérios de resolução dos conflitos aparentes ou reais, culminando nas diretrizes sobre o dever de magistrados e legisladores quando confrontados com normas em colisão.
Explanaram-se os principais pensamentos sobre o neopositivismo e a eficácia dos direitos fundamentais (horizontal, vertical e diagonal); bem como se elucidara como “ramos” do direito em que há tipicamente a sobreposição estatal (prevalência do interesse público sobre o particular), como o tributário (arrecadação para fins de funcionamento do Estado) e o previdenciário (regime de recolhimento e distribuição de benefícios), são interpretados pelas Cortes Superiores valendo-se da unidade do sistema (adotando normas de outras áreas) através do diálogo entre as fontes.
Conclui-se, neste panorama, que os juristas devem contar com as lições clássicas de Bobbio sobre a unidade do ordenamento jurídico, seus métodos de resolução e o dever de coerência (em especial legisladores e magistrados), para que se pondere que o progresso nas formas de aplicação do direito é inevitável (e desejável). Através da teoria do diálogo das fontes, da percepção de unicidade normativa, da eficácia dos direitos fundamentais, observou-se que a jurisprudência dera um salto qualitativo ao permitir, dentro de ramos tipicamente do direito público, a adoção de instrumentos do direito privado para garantir a resolução justa de conflitos (julgados supramencionados).
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[1] Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas. Professor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas desde 2002, ministrando as disciplinas Teoria Geral do Direito Ambiental, Direito Ambiental do Trabalho, Direito Ambiental Econômico e Defesa Judicial do Meio Ambiente. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho – Cadeira n. 20. Juiz do Trabalho Titular da 11ª Região. https://orcid.org/0000-0002-0538-3659. E-mail: snmelo@uea.edu.br.
[2] Mestrando em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Especialista em Direito Público pela Universidade Federal do Amazonas. Procurador do Município de Manaus/AM. Advogado. https://orcid.org/0009-0006-7207-3809. E-mail: geraldouchoa@msn.com.
[3] Compreensão do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, culminando na vedação ao magistrado de não apresentar uma solução adequada ao caso concreto apresentado.
[4] FERRAZ JÚNIOR (2019, p. 207) “Antinomia lógico-matemática. Embora o termo tenha sido consagrado por seu uso jurídico, a expressão antinomia é hoje mais rigorosamente definida no campo da lógica. Segundo Quine (1962:85), uma antinomia gera autocontradição por processos aceitos de raciocínio. Stegmuller (1957:24) fala-nos, assim, de antinomia como um enunciado que é simultaneamente contraditório e demonstrável. Essa definição corresponde à chamada antinomia lógico-matemática e ocorre em sistemas formais. Seu exemplo mais conhecido é o da classe de todas as classes que não são membros de si mesmas”.
[5] FERRAZ JÚNIOR (2019, p. 208) “Antinomia semântica. Esta, como a anterior, também pode ser definida como uma contradição que resulta de uma dedução correta baseada em premissas coerentes. À diferença daquela, porém, esta promana de algumas incoerências, ocultas, na estrutura de níveis de pensamento e de linguagem. A mais famosa das antinomias semânticas é aquela de um homem que diz a respeito de si mesmo: eu estou mentindo. Esse enunciado, tomado rigorosamente, só é verdadeiro se for falso e só é falso se for verdadeiro”
[6] FERRAZ JÚNIOR (2019, p. 208) “Antinomia pragmática. Temos antinomia pragmática quando as seguintes condições são preenchidas: (1) forte relação complementar entre emissor de uma mensagem e seu receptor… (2) nos quadros dessa relação é dada uma instrução que deve ser obedecida, mas que também deve ser desobedecida para ser desobedecida… (3) o receptor, que ocupa posição inferior, fica numa posição insustentável; isto é, não pode agir sem ferir a complementaridade nem tem meios para sair da situação.
[7] Cita-se, de maneira didática, os principais excertos de recente precedente do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria “PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. RITO DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS. PLANO DE SAÚDE. CONTROVÉRSIA ACERCA DA OBRIGATORIEDADE DE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO NÃO REGISTRADO PELA ANVISA (omissis) 2. Na espécie, após análise acurada dos autos, verificou-se que o acórdão embargado deixou de analisar a possibilidade de admissão da Defensoria Pública da União como custos vulnerabilis. (omissis) 4. O acórdão embargado não foi contraditório e, com clareza e coerência, concluiu fundamentadamente que i) é exigência legal ao fornecimento de medicamento a prévia existência de registro ou autorização pela ANVISA; e ii) não há como o Poder Judiciário, a pretexto de ver uma possível mora da ANVISA, criar norma sancionadora para a hipótese, onde o legislador não a previu. (omissis) 7. Embargos de declaração acolhidos, em parte, apenas para admitir a DPU como custos vulnerabilis. (EDcl no REsp 1712163/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 25/09/2019, DJe 27/09/2019) (grifou-se)
[8] Nas lições de Barroso (2023, p.2646)”A noção de bloco de constitucionalidade vem do direito francês, onde a Constituição de 1958 incorporou ao texto constitucional, por remissão feita no preâmbulo, outros documentos, como a “Declaração de 1789, conformada e completada pelo preâmbulo da Constituição de 1946, assim como pelos direitos e deveres definidos na Carta do Meio Ambiente de 2004”. No Brasil, a Constituição de 1988, no art. 5o, § 3o, prevê o modo como tratados internacionais de direitos humanos são incorporados ao direito brasileiro.”
[9] Art. 5º, §3º, CRFB/88 “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
[10] Toma-se como o exemplo o fornecimento de medicamentos não previstos na lista do Sistema Único de Saúde ao administrado, sobrepondo-se o direito individual à saúde em detrimento da previsão econômico-financeira da coletividade (lista do SUS). Cita-se decisão, em recurso repetitivo, do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria “TESE FIXADA: A tese fixada no julgamento repetitivo passa a ser: A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência. Modula-se os efeitos do presente repetitivo de forma que os requisitos acima elencados sejam exigidos de forma cumulativa somente quanto aos processos distribuídos a partir da data da publicação do acórdão embargado, ou seja, 4/5/2018. (EDcl no REsp 1657156/RJ, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/09/2018, DJe 21/09/2018)”.