RIOS E PESSOAS: UMA DISCUSSÃO SOBRE A EFETIVIDADE DA TÉCNICA DE DECLARAÇÃO DE BENS JURÍDICOS AMBIENTAIS COMO SUJEITOS DE DIREITO A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DOS RIOS ATRATO E DOCE

RIOS E PESSOAS: UMA DISCUSSÃO SOBRE A EFETIVIDADE DA TÉCNICA DE DECLARAÇÃO DE BENS JURÍDICOS AMBIENTAIS COMO SUJEITOS DE DIREITO A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DOS RIOS ATRATO E DOCE

1 de março de 2023 Off Por Cognitio Juris

RIVERS AND PEOPLE: A DISCUSSION ABOUT THE EFFECTIVENESS OF THE DECLARATION TECHNIQUE OF ENVIRONMENTAL LEGAL GOODS AS SUBJECTS OF LAW BASED ON THE EXPERIENCES OF THE ATRATO AND DOCE RIVERS

Artigo submetido em 20 de fevereiro de 2023
Artigo aprovado em 25 de fevereiro de 2023
Artigo publicado em 01 de março de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 45 – Março de 2023
ISSN 2236-3009

Autores:
Yury Dutra da Silva[1]
Silvia Maria da Silveira Loureiro[2]

RESUMO: O presente artigo tem como fim abordar o problema envolvendo a degradação ambiental desenfreada em prol de atividades econômicas ecologicamente nocivas, tendo como pano de fundo os trágicos acontecimentos ocorridos no Município de Mariana (MG/BR) relativos ao rompimento da Barragem do Fundão e na Bacia do Rio Atrato (COL), locus de uma das campanhas de mineração mais devastadoras da história recente da Colômbia, com especial enfoque à técnica jurídica de declaração de bens ambientais, particularmente o rio Atrato, como sujeitos de direito e suas consequências, admoestando e tecendo-se considerações jurídicas acerca da parcial inefetividade desse mecanismo e do perigo de se recair em práticas típicas de um direito ambiental simbólico.

Palavras-chave: Sustentabilidade. Personalidade Jurídica. Bens jurídicos. Hermenêutica. Teoria da Capacidade Civil. Modelos de Contenção de Danos Ambientais.

RESUME: This article aims to address the problem involving rampant environmental degradation in favor of ecologically harmful economic activities, having as a backdrop the tragic events that occurred in the Municipality of Mariana (MG/BR) related to the rupture of the Fundão Dam and in the Basin of the Atrato River (COL), locus of one of the most devastating mining campaigns in Colombia’s recent history, with a special focus on the legal technique of declaring environmental assets, particularly the Atrato and Doce rivers, as subjects of law and their consequences, admonishing and making legal considerations about the partial ineffectiveness of this mechanism and the danger of falling back into typical practices of a symbolic environmental law.

Keywords: Sustainability. Legal Personality. Legal assets. hermeneutics. Civil Capability Theory. Environmental Damage Containment Models.

1.     INTRODUÇÃO

A tensão natural entre proteção ambiental e desenvolvimento econômico – com todas as críticas e variações de significado que essa expressão comporta – ainda é e continuará a ser por muito tempo uma espécie de Hipótese de Riemann[3] do Direito, uma equação jurídica fundamental atualmente em processo de construção. Porém, a fase em que se encontra o consenso internacional acerca dos parâmetros mínimos relativos à custódia ecossistêmica já dão conta de evidenciar ocasiões de flagrante fracasso da tentativa de equilíbrio entre as duas forças mencionadas.

Assim, os casos Mariana e Rio Atrato, melhor explicados em tópico vindouro, são exemplos reprováveis da falha no balanceamento do choque entre o homo ambientalis e o economicus. A severidade dessas degradações interseccionou os aspectos ambiental e humanitário, flagelando o ambiente natural e as comunidades humanas dependentes ou influenciadas pelos recursos malferidos. Para além disso, deixaram um legado explícito das limitações das construções técnico-jurídicas diante da realidade imediata dos fatos, bem como desafiaram a efetividade das próprias instituições democráticas, incapazes de tutelar bens jurídicos alçados a nível essencial, a depender do contexto, destacadamente os de exceção (Agamben, 2004).

 As comunidades tradicionais, tanto no Brasil quanto na Colômbia, ainda sofrem as consequências deletérias da degradação dos ecossistemas em que inseridas, numa verdadeira ofensa biocultural sistemática e com potencial de perenização. As decisões judiciais condenando as entidades envolvidas e, por vezes, o próprio Estado, revelaram-se não muito mais que promessas inefetivas às vítimas dos eventos, escancarando a insuficiência dos mecanismos clássicos de resolução de conflitos quando traduzidos para a seara ambiental. A contradição interna do Estado também se faz tônica ao descumprir as decisões de sua própria função judicante. A preponderância do fator econômico e a aparente impotência dos órgãos de controle completam um cenário de desesperança e apatia.

Nessa infame quadra, o direito enquanto técnica se contorce sobre si mesmo e tenta por meios limitados obliterar os fatos com o auxílio de mais uma teoria, tese, construção, argumento ou ideologia. Não se pode dizer que seja exatamente esse o caso do movimento, ou sua tentativa, de atribuição de personalidade jurídica a bens ambientais – particularmente os rios paradigmáticos das tragédias citadas: Doce e Atrato -, mas até o presente momento seus resultados não são muito animadores, tornando imperiosa a discussão sobre a possível letargia gerada por mais um constructo jurídico que, embora pomposo, revela-se parcialmente ineficaz.

O Direito da efetividade certamente não é o Direito das teorias, mas o da prática, convindo, portanto, desvelar o que seja a versão mais adequada dessa ciência para os fins a que se destina, sem que se descure do valor intrínseco de concepções vanguardistas como a aqui perscrutada. É a isso que se presta este estudo, a partir da análise bibliográfica relacionada, do cotejo entre os sistemas jurídicos brasileiro e colombiano, bem como da análise sobre os pormenores das decisões de interesse, especialmente a T-622 e de um breve percurso sobre o sistema interamericano de direitos humanos, mais especificamente consoante as concepções exaradas no bojo da OC-23/2017 da CoIDH.  

2.     OS CASOS DE MARIANA E DO RIO ATRATO

A mineração ilegal é um dos grandes flagelos dos países latino-americanos desde tempos imemoriais (Galeano, 2000) e não foi diferente com a Bacia do Rio Atrato, localizada no Departamento[4] de Chocó, no Estado Nacional da Colômbia. A exemplo de alguns entes federativos brasileiros, o departamento de Chicó sofreu um abandono histórico do governo central colombiano, tendo, a despeito disso, produzido riquíssima cultura com traços de coletivização, albergando diferentes povos, tradições e modos de existir. Com efeito, a bacia hidrográfica que leva o nome do seu principal rio (Atrato) é verdadeiro espaço de produção e reprodução da diversidade cultural que marca a região.

Obviamente, seus numerosos recursos agrícolas e vastos repositórios de ouro e madeira atraíram a atenção de exploradores. Instaurou-se na região uma verdadeira crise humanitária, alicerçada num corte indiscriminado das árvores que sustentam a bacia, que implicou a alteração dos leitos, bem como o despejo de óleos, gorduras e metais pesados, especialmente o Mercúrio, cujos prejuízos à saúde das populações do entorno tornaram-se incomensuráveis.

As dragas, a poluição, o desmatamento e a contaminação do rio Atrato marcam de forma indelével uma viragem negativa do estilo de vida das pessoas que faziam dessa Bacia sua casa. No presente, a região, que se tornou reduto de forças armadas, em função de suas condições geográficas, é palco de uma grotesca crise de direitos humanos, denunciada por inúmeras entidades internacionais, sobretudo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (2019), que tem produzido contínuos relatórios sobre os ocorridos, juntamente com a Organização Pan-Americana de Saúde (2019), que possui vários projetos de implantação de aparatos de saúde na Colômbia.

O caso Mariana (mais conhecido como “O desastre de Mariana”), a seu cabo, deu-se no Brasil, no município que leva o mesmo nome, situado no Estado de Minas Gerais, no ano de 2015. Como toda catástrofe provocada pela ação humana, foi antecedida de histórico de irregularidades; no caso, de anos de exploração dos repositórios de minério de ferro da região pela empresa Samarco (controlada por outras duas gigantes do segmento: Vale e BHP Billiton), que resultou no depósito progressivo de rejeitos junto à Barragem do Fundão. O que se seguiu foi o rompimento desta e o lançamento de cerca de sessenta milhões de metros cúbicos de lama, água e resíduos sólidos no meio ambiente, contaminando quilômetros do Rio Doce, vitimando inúmeras pessoas (das quais dezenove morreram imediatamente e duzentas e cinquenta ficaram feridas) e desalojando centenas de outras. A devastação do espaço cultural, assim como na conjuntura da Bacia de Atrato, também se fez presente em Mariana, afetando, inclusive, populações indígenas com territórios banhados pelo Rio Doce[5].

Em ambos os casos, houve a judicialização da questão, que demonstrou a limitação do Estado-juiz em providenciar uma resposta célere e adequada a obliterações ambientais de grande monta. Na Colômbia, a Defensoría Del Pueblo iniciou a demanda que pôs no polo passivo as mineradoras irregulares e o próprio Estado colombiano, que resultou na paradigmática Sentença T-622[6].

Em 05 de novembro de 2017, o Rio Doce (mais propriamente, a Bacia do Rio Doce), representado pela Associação Pachamama, protocolizou ação[7] com a intenção de, em síntese: 1. ver-se reconhecido como sujeito de direitos; 2. ver assentado o direito à existência sadia; 3. obrigar a União a criar o Cadastro Nacional de Municípios com Risco de Desastres; 4. obrigar o Estado de Minas Gerais a elaborar um Plano Estadual de Prevenção de Desastres.

O item 2 da petição traz dados importantes, que resumem numericamente a extensão da tragédia de Mariana: 62 milhões de metros cúbicos de lama de minério de ferro despejados no rio doce; 19 pessoas mortas; 1.265 pessoas desabrigadas; impactos sobre 2 distritos de Mariana (Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo) e 1 distrito de Barra Longa (Gesteira); inundação de lama do distrito de Bento Rodrigues, atingindo 236 famílias; afetação de 98 espécies de peixe (29 mil carcaças de peixes recolhidas), causando a fome de uma espécie de ave (a andorinha-do-mar); destruição de 1.176 hectares ao longo das margens do Rio Doce; impacto potencial na vida de 6 milhões de pessoas.

A petição é dividida nos seguintes capítulos: 1. Quem Sou Eu? 2. O que Fizeram Comigo? 3. O que Deveriam Ter Feito? 4. Pedidos. Inegavelmente, a peça faz uso de elementos para além do jurídico, dialogando com a filosofia e até mesmo com a arte poética. O deslinde, apesar disso, foi a negativa de declaração do Rio Atrato como sujeito de direitos, sob o fundamento de que o ordenamento jurídico brasileiro não relega direitos a objetos de proteção ambiental.

Guardam em comum os dois cenários acima, a devassa biológica e também cultural perpetrada por atividades alicerçadas na primazia do fator econômico, ainda que isso represente a prática de ilícitos cíveis ou criminais. Outro ponto de similitude, e que parece ser uma tônica das agressões bioculturais, é a lenta e insuficiente recuperação dos ecossistemas e populações implicadas.

Sete anos após o desastre de Minas Gerais, centenas de vítimas desalojadas ainda não foram contempladas com novas moradias[8], mas apenas cinco anos após o maior desastre ambiental brasileiro, a mineradora Samarco retomara suas atividades no mesmo Estado[9]. Da mesma forma, seis anos após a paradigmática Sentença T-622 proferida pela Corte Constitucional colombiana, as perspectivas das populações da Bacia do Atrato não são animadoras, restando instalada uma verdadeira crise humanitária, vez que a região se tornou reduto de algumas das últimas facções de guerrilha da América Latina.

Mais intrigante do que as malfadadas semelhanças acima  foi a manobra de atribuição (ou melhor, declaração) de personalidade jurídica a bens ambientalmente protegidos. Nos dois casos, os bens em questão foram rios: o Atrato, na Colômbia; no Brasil, o Doce. As implicações imediatas que se esperavam dessa declaração são da evidência do direito civil: um sujeito dotado de personalidade jurídica possui direitos que podem ter seu cumprimento exigido em face de outrem.

Ocorre que o caráter não anímico dos cursos d’água em questão desafia essa concepção, revelando um primeiro grande problema, que é o referente à capacidade postulatória e, anterior a essa, a própria capacidade geral de exercício de direitos.

A tese da Bioculturalidade, muito bem desenvolvida pela corte constitucional colombiana, fornece elementos para além do direito na caracterização dos elementos ambientais como variáveis dotadas de dignidade ontologicamente indistinta da humana.

Os problemas decorrentes dessas concepções ainda serão objeto de querela por bastante tempo, sobretudo quanto à efetividade dos constructos derivados, contudo, os grandes casos de degradação ambiental tem demonstrado que, ao menos na América Latina, que o Direito tem se contorcido na busca de respostas novas e mais adequadas ao enfrentamento dessas mazelas.

Casos como os relatados evidenciam a insuficiência dos hodiernos recursos políticos e jurídicos para o enfrentamento das crises ambientais de matiz biocultural, demandando o nascimento de novas técnicas e sistemas de proteção e combate aos danos ecossistêmicos.

3.     PECULIARIDADES JURÍDICAS DE CADA ORDENAMENTO

A participação na vida latina não é garantia de comungação de todos os aspectos culturais entre as sociedades. Isso é evidenciado, juridicamente, pelas diversas construções normativas produzidas nos países que se identificam pelo passado de colonização espanhola ou portuguesa. Nesse sentido, o constitucionalismo andino ou latino-americano, não é prática corrente no Brasil, mas o é em territórios como o boliviano, onde algumas construções jurídicas – a exemplo da tese biocultural – possuem mais fácil penetrabilidade exatamente em função da maior valorização dos elementos ambientais, num movimento de rediscussão da centralidade absoluta do humano na prática política e jurídica das sociedades (Leonel Júnior, 2015).

O reconhecimento da plurinacionalidade, por sua vez, facilita a proliferação de concepções de mundo diversas da legada pela mentalidade colonial, cria novos sujeitos, enfoca novos valores e movimenta a balança dos pesos sociais. Esse passo ainda não foi dado pelo Brasil (Lacerda, 2014), que não a encampou. Remanesce a ultrapassada visão de que, para cada Estado corresponde uma única nação, numa abstração que violenta e invisibiliza, sobretudo, as comunidades tradicionais, expurgadas há vários séculos de seu próprio território. Muito embora com temperamentos, a ficção da uniformidade nacional, herança histórica dos Estados Nacionais, portanto, eurocêntrica, ainda é bastante forte abaixo da linha do equador (Bragato, 2014).

No Brasil, a plurinacionalidade não é reconhecida expressamente e a ordem  constitucional possui caráter eminentemente monístico (De Almeida, 2019), sendo admitidas práticas, normas e expressões culturais diversas apenas enquanto não conflitantes com essa  visão básica de Estado plasmada na Constituição Federal. A confecção de uma  norma constitucional com a participação meramente simbólica das comunidades tradicionais, como foi a brasileira, sem a manufatura conjunta e real de um documento fundante plúrimo possui implicações fortíssimas sobre a teoria jurídica subjacente.

Particularmente com a novel tendência da segunda metade do século XX de sobreposição da ordem constitucional face aos demais ramos, passando a ser filtro e parâmetro inarredável de toda a normatividade, os institutos jurídicos como um todo devem ser interpretados à luz da norma de topo (Streck, 2014). Em tempo, no caso da declaração de elemento ambiental como sujeito de direitos, é preciso, aprioristicamente, que a respectiva carta magna albergue essa construção, o que é no mínimo problemático em terras brasileiras, pelos motivos já alinhavados.

Na Venezuela, Equador e Bolívia, os direitos da natureza foram expressamente previstos em seu ordenamento, possuindo previsão nas próprias constituições (Sousa, 2020). Muito embora não haja uma correspondência exata na ordem colombiana, sua constituição, no Título II (De Los Derechos, Las Garantías Y Los Deberes), Capítulo 3 (De Los Derechos Colectivos y del Ambiente) prevê direitos do meio ambiente[10]. Essa dicção erige plataforma para a implementação da técnica central deste estudo: a declaração de bem jurídico como sujeito de direitos.

O ordenamento brasileiro sequer contempla direitos da natureza, estando quase integralmente voltado à proteção humana, enquanto centro e razão da ordem jurídica. Ideias como o buen vivir (Acosta, 2016), direitos da pachamama ou um ecocentrismo com sustentáculo jurídico ainda não ganharam fôlego em âmbito doméstico.

4.   A QUESTÃO DA DECLARAÇÃO DE UM RIO COMO SUJEITO DE DIREITOS

4.1. Um Entrave Epistemológico

Como visto, em ambos os cenários, tanto na Colômbia quanto no Brasil, uma das respostas ofertadas pela ciência jurídica foi a declaração dos rios afetados como sujeitos de direito (intentada mas não realizada, no caso brasileiro). É preciso, antes de considerações mais profundas acerca de sua efetividade na materialidade dos fatos sociais, indagar-se sobre a sua própria viabilidade técnica.

Na Colômbia, a tese alçada pela corte constitucional alicerçou-se em uma analítica biocultural de meio ambiente. Eis o mote argumentativo utilizado pela Sexta Câmara de Revisão constitucional da cúpula do judiciário desse país para a caracterização do Rio Atrato como sujeito de direitos. Aliás, a corte constitucional colombiana é pródiga em produzir entendimentos de vanguarda, a exemplo da Declaração de Estado de Coisas Inconstitucional (Der Brooke, 2021), importada pelo Brasil quando do julgamento da ADPF 347/2015[11] pelo Supremo Tribunal Federal, que versava sobre o sistema carcerário nacional.

As raízes do modelo que estrutura a hermenêutica de que se valeu a corte em questão não defluem exclusivamente da T-622. Antes disso, o judiciário colombiano já havia realizado abstrações dialogais com a cosmologia indígena (T-257/93, C-027/93, T-342/94, C-519/94, C-139/96). Especialmente por meio da T-380, foi implementada uma importante distinção entre a maneira de se pensar direitos fundamentais titularizados por povos indígenas e os coletivos em geral; in casu, foi atribuída à comunidade indígena a natureza de sujeito coletivo autônomo, o que só é possível a partir da comunicação das concepções jurídicas clássicas com as práticas culturais desses povos.

Foi por meio dessa comunicação que a longa fundamentação da T-622 enfrentou alguns tópicos centrais da discussão e destacadamente:

  1. Os direitos das comunidades étnicas: a região do Atrato cobre um sem número de comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, ciganos e outros) que fazem desse rio uma verdadeira fonte de vida, por onde trafegam, onde interagem, criam seus filhos e de onde extraem alimento. Toda a forma de existência e autodeterminação dessas comunidades fora comprometida ou mesmo inviabilizada com a deterioração da qualidade da água e contaminação oriunda da grande concentração de mercúrio e cianeto decorrente da mineração irregular de seu leito, que resultou no adoecimento de inúmeras pessoas e morte de crianças, além da inviabilização do manejo de espécimes aquáticos tipicamente utilizados para fins comercial e alimentar;
  2. Estado Social: a organização da constituição colombiana fez uma clara escolha pela proteção de um Estado social de direito, o que desemboca invariavelmente na produção de um adequado nível de justiça distributiva;
  3. Autonomia das entidades territoriais: essa foi outra preocupação na elaboração da tese judicial, uma vez que houve clara falha do poder público na proteção da higidez da bacia do Atrato e responsabilidade do Departamento de Chocó pelo ocorrido ao longo já de mais de três décadas, dado que a exploração irregular de minérios, sobretudo ouro e platina, data desde o fim da década de oitenta;
  4. O princípio pluralista do Estado social de direito, a defesa da diversidade étnica e cultural, a solidariedade e a dignidade humana também foram princípios utilizados para fundamentar tanto a condenação dos responsáveis pela forte degradação da área, quanto a abstração do rio como sujeito de direitos. Além desses, os da precaução e da prevenção, amplamente conhecidos na prática jurídica ambiental;
  5. A sexta câmara ainda teceu considerações robustas sobre uma novel concepção de constituição, mais ligada à proteção ambiental e concebida enquanto documento afinado com o compreensão da fundamentalidade de um meio ambiente equilibrado para a produção e reprodução da vida e de seus derivados, dentre os quais o próprio direito, ao que se deu o nome de constituição ecológica. Essa ideia possui como pilares a proteção ao meio ambiente de forma integral e o desenvolvimento sustentável, de especial relevância num “país mega-diverso” cuja proteção traz inúmeros benefícios indiretos à biodiversidade, com a regulação dos ciclos da água, do carbono e do próprio clima, dentre outros;
  6. Entre os direitos fundamentais abordados encontram-se o direito à água e à água potável, bem como à alimentação, com a natural defesa da segurança alimentar, vigorosamente comprometida pela poluição do leito do Rio Atrato;
  7. Bioculturalidade, biodiversidade e direitos bioculturais: numa visão ecocêntrica, o sistema é preponderante em face do homem, de modo que este é visto como elemento pertencente à Terra, como apenas mais uma espécie, resultante de uma longa cadeia de eventos sucessivos. O meio ambiente antecede o homem e não pode se tornar mero objeto deste, possuindo existência autônoma e titularizando direitos próprios.

De especial importância, ainda, a discussão sobre a abordagem teórica que deve ser encampada pelos juristas que se debruçam sobre questões ambientais. A esse respeito, se antropocêntrica, biocêntrica ou ecocêntrica. É esta última concepção que permite a definição da natureza e seus elementos como sujeitos de direito, na esteira da tese biocultural (Abreu, 2013). Esta teoria assenta uma intrínseca ligação entre a natureza e a cultura, de modo que uma implementa influências sobre a outra, num ciclo de recíprocas implicações, do que deriva a ideia de que, para preservar o ecossistema envolvido, é preciso também proteger as práticas culturais das pessoas ligadas a ele (Carvalho, 2014).

Em termos jurídicos, trata-se de uma tentativa de organizar as proteções ambiental e cultural numa mesma cláusula geral; filosoficamente, é possível afirmar que biodiversidade também gera diversidade cultural, uma vez que o ambiente condiciona as práticas comunitárias e a produção de artefatos sociais.

É preciso reconhecer, portanto, que os direitos de cariz biocultural legitimam a sociabilidade das comunidades regadas por esses rios e autorizam suas práticas tradicionais, incluindo o aspecto econômico das mesmas. A título de exemplo, sempre foram comuns na região do Atrato a prática da mineração artesanal e agricultura coletiva. Conferir ao Rio Atrato o status de sujeito de direitos também finda por proteger colateralmente o modo de vida das populações por ele banhadas e as suas preditas atividades.

No caso da T-622 (Atrato), a própria Corte tratou de espancar a primeira grande questão acerca de sua capacidade postulatória, relegando a instituições da sociedade civil e ao próprio Estado colombiano “la tutoría y la representación legal de los derechos del río […]”[12], em conjunto com as comunidades étnicas que povoam a bacia do rio. Cuidou ainda de estabelecer a representação do rio por um membro das comunidades tradicionais e por um delegado do Estado colombiano, bem como determinou a criação de uma Comissão de Guardiães do Rio Atrato (item 9.32 da sentença).

A alternativa encontrada para viabilizar a construção jurídica em questão foi por meio da determinação de uma representação compulsória outorgada ao poder público e às entidades já citadas. Solução processualmente adequada, mas que permite críticas, uma vez que resultados similares poderiam ser obtidos pela atuação dos mesmos representantes, porém na defesa de direitos das pessoas afetadas pela poluição do rio. Ao mesmo passo, é possível dizer que o mérito da medida é o de alocar adequadamente, segundo a cosmovisão das comunidades implicadas, um sujeito de direitos não previsto pela sistemática processual clássica.

Consoante já exposto, a declaração do rio Atrato como sujeito de direitos alicerçou-se numa concepção ambiental biocultural. Nesse interesse, o art. 225 da Constituição Federal, a despeito das discussões ainda correntes, parece estampar um conceito antropocêntrico de meio ambiente, de modo tal que o indivíduo, com os devidos temperamentos progressivos implementados pela doutrina e jurisprudência pátrias, ainda é o ou um dos epicentros do edifício jurídico ambiental. Noutros termos, a pessoa humana é o valor para o qual se direciona a proteção ambiental, não sendo expressamente abraçada a vertente biocêntrica, tampouco a ecocêntrica, terrenos idôneos ao desenvolvimento da teorização biocultural.

Essa avulta como uma barreira epistemológica gigantesca na prática hermenêutica constitucional brasileira. Isso porque a base teórica para se chegar ao “rio com direitos” não encontra espeque na dicção da Constituição Federal. Portanto, juridicamente, é possível que o fundamento teórico para a declaração do Rio Doce como sujeito de direitos esteja na ordem infraconstitucional.

4.2. O Proteção do Meio Ambiente no Sistema Interamericano de Direitos Humanos

Apesar do aparente desalento, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, muito embora não possua um diploma que expressamente albergue uma concepção ecocêntrica, biocêntrica ou biocultural de meio ambiente, traz no corpo da Opinião Consultiva nº 23/2017[13] interessantes elementos de hermenêutica para a produção de teses nessa linha.

Coincidentemente, também foi o Estado colombiano que deu azo à confecção desse documento, por meio de pedido formulado nos idos de 2016. Intentava-se aclarar o escopo das obrigações estatais em relação ao meio ambiente, sobretudo no âmbito da proteção e garantia dos direitos à vida e à integridade pessoal, por meio da definição do alcance dos artigos 4.1 e 5.1 em face dos arts. 1.1 e 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos valeu-se de alguns princípios consagrados na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, a exemplo da boa-fé, consoante o sentido corrente, o contexto e o objeto e finalidade dos diplomas interpretados, além dos meios complementares, na forma do art. 32 da CVDT/69. Lapidar, ainda, a noção de que os tratados de direitos humanos devem ser vistos como instrumentos vivos (living instruments), acompanhando as transformações e conclamos dos eventos sociais.

Para o interesse específico deste estudo, o que se evidencia a partir de uma análise sistêmica da OC 23/17 é a consagração de uma série de postulados típicos da vertente biocultural em seu corpo. A CoIDH, ao tratar da inter-relação entre os direitos humanos e o meio ambiente, fê-lo em termos de interdependência, assentando sua íntima relação com o desenvolvimento sustentável, na esteira de sua própria jurisprudência acerca de direitos territoriais de povos indígenas (par. 48)[14]. Especialmente ao falar sobre preservação da forma de vida e costumes, a corte dá a tônica de uma tese desenvolvida a partir de um modelo biocultural.

Na mesma toada também são suas disposições que se referem a grupos populacionais especialmente vulneráveis, como as crianças, indígenas, pessoas em estado de extrema pobreza, minorias em geral, pessoas com deficiência, entre outros, além da afirmação do impacto diferenciado que sofrem as mulheres por ocasião de danos ambientais e da condição especial das comunidades que façam do turismo ambiental sua principal fonte econômica ou que estejam particularmente fragilizados por sua localização geográfica (par. 67).

Da mesma forma, a OC em comento deixa clara as dimensões individual e coletiva[15] do direito ao meio ambiente saudável e é mais propriamente na sua conotação individual que ele apresenta relações com direitos como a saúde, integridade pessoal e vida, que foram objeto de questionamento na CoIDH (par. 59).

Como arremate aos termos de avanço de suas disposições, o parágrafo 62 da OC 23/17 talvez seja o mais paradigmático a esse respeito, pois assenta que o direito ao meio ambiente saudável pode ser lido como um direito autônomo, não apenas protegendo bens jurídicos materializados em recursos ambientais, mas o ecossistema enquanto entidade independente, claramente na linha de uma tese ecocêntrica, que se comunica mais apropriadamente com a tipologia jurídica tratada neste artigo. A Corte, muito embora não tenha encampado abertamente essa tese, deu claros sinais de que não se trata de teratologia e, mais do que isso, reconheceu uma tendência internacional e das ordens constitucionais em adotá-la[16].

Dito isso, é essencial manter em cálculo que a a OC 23/17 é documento interpretativo da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)[17], o qual, por sua vez, foi internalizado na ordem jurídica brasileira com status de diploma supralegal.

Portanto, uma tese biocultural, muito embora não tenha grande espaço em âmbito constitucional, a nível supralegal parece estar bem guarnecida pela CADH, suplantando, aliás, disposições legislativas em contrário que gozem de nível hierárquico inferior. Ao menos a nível amplo, dessarte, é possível dizer que a ordem jurídica brasileira comporta uma teoria geral sobre direitos bioculturais e, como corolário, a elevação de categorias inanimadas a sujeitos de direito. Mas essa não é a única  alternativa argumentativa em prol desse pleito.

4.3. Horizontes, Avanços e Balanço

O necessário estranhamento à figura de um elemento inanimado como detentor de direitos não revela a simples hostilização ao diferente, mas é corolário de séculos de atribuição de personalidade jurídica quase que exclusivamente aos humanos, com leves movimentos de abstração excepcional, sobretudo para fins processuais. Porém, mesmo nesse cenário, a automática ligação entre personalidade jurídica e aptidão para gozar de direitos não é absoluta.

Para além disso, os elementos constitutivos do tecido constitucional, no Brasil, não receberam os substratos necessários da cosmologia de suas comunidades tradicionais, em especial a indígena que, muito embora tenha formalmente participado de comissão especial, não incutiu na letra constitucional muito de seus elementos, estando, no mais das vezes, a reboque da descrição da realidade derivada das noções da sociedade envolvente.

Se, exemplificativamente, para o povo Tukano, a natureza fala, a água emana sua vontade e existe uma forma própria de interpretar essa fala e de se portar diante dela (Barreto, 2019), ou seja, a natureza possui existência, vontade e expressão autônomas, de outra ponta, a sociedade envolvente não concebe essas ideias de maneira natural, de modo que o produto normativo convencional é fundamentalmente alinhado a esta segunda forma de pensar.

O recurso à conexão cultural, porém, não é o único meio técnico disponível para a sustentação da atribuição de direitos a rios. É que o ordenamento jurídico brasileiro contempla algumas figuras jurídicas que gozam de direitos mas não possuem os caracteres de uma pessoa humana, a exemplo das próprias pessoas jurídicas e dos entes despersonalizados. Estes, aliás, podem ter direitos e deveres, aplicando-se-lhes o princípio da legalidade estrita em suas relações.

O Código de Processo Civil de 2015, em seu art. 75, IX, reconhece, inclusive, a capacidade jurídica de entes despersonalizados, ampliando a participação processual de organizações diversas (Uzeda, 2021).

Quanto à titularidade de direitos, é induvidoso que pessoas jurídicas podem titularizá-los, sendo muito mais querelosa a questão de serem ou não potencialmente afetadas por ofensas de ordem moral, que demandaria o gozo de direitos da personalidade (para alguns, exclusivamente humanos, numa visão claramente antropocêntrica). Esta última discussão sempre tornou a dicção da súmula 227 do STJ[18] objeto de inúmeros embates, porquanto expresse que as pessoas jurídicas podem sim sofrer dano moral.

O que se dessume disso é que discussões sobre titularidade de direitos por abstrações jurídicas não são novidade para o direito brasileiro. A distinção fundamental é quanto ao arrimo material. Sabidamente, as despersonalizações surgem em contextos de proteção patrimonial, para fins de segurança das relações econômicas, e são tratadas pelo Direito, sobretudo o civil, há mais de dois séculos[19].

As contendas envolvendo a atribuição de direitos a animais, à natureza ou mesmo a bens jurídicos naturais ainda são deveras recentes e demandam um esforço ainda maior, na medida em que destoam do modelo de raciocínio clássico europeu, centrado no homem. Portanto, o fundamento teórico infraconstitucional revela-se alternativa argumentativa, não sendo um “rio com direitos” constructo mais insólito que figuras como o espólio ou a massa falida, por exemplo.

Outro ponto a ser considerado, mesmo dentro do pensamento vigente antropocêntrico, é a relevância econômica dos bens ambientais, cada vez mais objeto de liquidação para fins de proteção ecológica. A definição exata do valor de riquezas ambientais autorizaria a sua reunião sob a forma excepcional de ente despersonalizado – tal qual os entes já citados – com capacidade jurídica em tese. Esse é um primeiro passo. Contudo, o que se pretendeu com a T-622 foi algo a mais, qual seja a atribuição de personalidade jurídica ampla, com o reconhecimento de que o rio atrato é portador de direitos e não apenas de ordem processual.

É possível que uma crítica bastante aguda seja feita ao rol de tais direitos, direcionada à indeterminabilidade da esfera de proteção ou de interesses do rio que fosse para além da sua própria necessidade de manutenção existencial. Pensa-se que isso também não é de todo incontornável.

Até não muito tempo atrás, na linha dos eventos planetários, a preocupação fundamental dos seres humanos era a garantia de mais um dia sobre a face da terra, de existir, portanto. As coisas já não são as mesmas por agora. Concepções sobre bens jurídicos sempre evoluem e não deve ser o Direito o baluarte da tradição não emancipatória, que mantém em grilhões novos pensamentos e ideias.

Dito isso, a argumentação da T-622, ainda quando delineia os aspectos da autonomia do Rio Atrato enquanto sujeito de direitos, recorre substancialmente a direitos da esfera humana (a parte final do 9.32 retrata bem isso). Há uma clara dificuldade epistemológica em discorrer sobre a personalidade e capacidade jurídicas do rio em questão, na medida em que a Colômbia também não está alheia à cultura jurídica ocidental.

 É possível, ou mesmo provável, aliás, que essa “nova ideia” (velha conhecida de inúmeros povos tradicionais da América Latina) deva ser desenvolvida à parte da teoria da personalidade jurídica, o que não é impossível no Brasil, como dito anteriormente.

Existe, outrossim, uma questão que nos parece fundamental: a quebra de isonomia entre os próprios rios, uma vez que a ação judicial em que se discutiu a declaração do Rio Doce como sujeito de direitos[20] não estabeleceu critérios gerais para a definição de um dado recurso ambiental como portador de direitos, tampouco o fez a T-622. O que exsurge é a conclusão de que a tragédia foi o vetor da construção jurídica, uma vez que não é crível haver hierarquização entre esses rios e o Amazonas ou o Madeira, por exemplo, jamais declarados como sujeitos de direito.

Apesar disso, é possível advogar defensivamente que a natureza da decisão em comento é declaratória e, por assim ser, não faz mais do que atestar uma situação de fato pré-existente, não representando ato criador. A conclusão natural, a partir desse raciocínio, é o de que todos os rios em iguais condições também seriam sujeitos de direito. Porém, sabe-se que há a repercussão prática da postulação, até o momento implementada apenas pelo Rio Doce (titular da ação já informada em linhas anteriores), restando infrutífero seu pleito declaratório. Na Colômbia, por sua vez, o tratamento jurídico conferido ao rio Atrato não foi estendido aos demais, sendo notória a distinção prática entre recursos naturais com o mesmo valor, diferenciados apenas, como mencionado, pela tragédia subjacente.

Por sua vez, analisada verticalmente, a T-622 demonstra-se um provimento judicial extenso e plúrimo, carreando elementos filosóficos, sociológicos, antropológicos e jurídicos, numa construção densa e que merece o olhar atento dos juristas. Esse fato, de outra sorte, não pode enevoar as considerações a respeito de uma possível postura política na prolação dessa decisão, como uma espécie de tentativa última de superar questões estruturais por meio de expediente jurídico.

Nessa senda, assim como ocorre no Direito Penal, o simbolismo da norma ambiental possui duas formas de leitura e aplicação. Uma positiva, dizendo respeito ao caráter educativo, pedagógico da regulamentação comportamental e outra negativa, que se refere à produção legislativa decorrente de um clamor popular, como simples resposta formal em face de uma necessidade material emergente (Stone, 1996).

 Alguns autores chegam a defender que o Direito Ambiental (ou ecológico) comumente se organiza sob a forma de uma “racionalidade sistêmica contraditória”, que pode ser chamada de irresponsabilidade organizada, atuando de modo meramente figurativo quando se trata da proteção efetiva do meio ambiente (Paul, 1997).

A inexpressividade dos resultados obtidos com a declaração do rio Atrato como sujeito de direitos indica que a medida jurídica não conseguiu ser mais do que tentativa incompleta de colmatar uma lacuna bem mais profunda. A poluição ambiental de grande escala é sempre problema conjuntural, que não se resume a uma única variável, não sendo crível que um simples provimento judicial dê conta de resolver problemas que representam a eclosão de condições político-sociais de existência.

Ao mesmo passo, a incompletude da medida não determina sua desnecessidade. A modificação do centro gravitacional da proteção jurídica é movimento que ocorre a reboque do processo cultural. O Direito apenas emana as forças sociais subjacentes e, se o produto jurídico destoa das formatações clássicas, é sinal de que as estruturas de base da sociedade estão se agitando e que é inexorável o renascer de novas cosmologias na produção do direito (Souza Filho, 2009).  

O problema que talvez seja o mais relevante, sobretudo em terras brasileiras, é o da acomodação. É prática comum por aqui a confecção de diplomas formais como medida panaceica às mais variadas mazelas. Um exemplo “clássico” é a da Lei de Drogas (L. 11343/06), promulgada a reboque da famigerada Guerra às Drogas e que, na prática, não providenciou significativas melhorias nos índices de criminalidade[21], demonstrando que a descrição jurídica não possui grande valor se não operada por mecanismos de controle institucionalizados, menos ainda quando destoante das reais necessidades estruturais que, no caso, muito mais têm a ver com prestações nas sendas da educação e saúde públicas do que com a mobilização dos aparatos de persecução criminal.

As discussões técnicas sobre a viabilidade de se descrever um rio ou outros objetos de proteção ambiental como sujeitos de direito, a partir de uma cosmovisão mais ampla, dialogal e inclusiva, demonstra-se absolutamente salutar e deve ser desenvolvida. Isso, porém, não pode afastar a preocupação com a proteção dos recursos ambientais a partir do modelo vigente e de seus aparatos e instituições de suporte.

5. CONCLUSÃO

No plano técnico, resta claro que a declaração de rios como sujeitos de direito goza de sérios pontos de abalo. É possível dizer que o sustentáculo constitucional é frágil ou mesmo inexistente, o que decorre da própria construção social vigente, em que o diálogo com a cosmologia de povos tradicionais, mais alinhados com a personificação de elementos da natureza, é de pequena ou inexistente monta. Isso possui reflexos na ordem constitucional, costurada nuclearmente por agentes da mentalidade dominante, que desemboca numa normatividade alinhada quase que exclusivamente com o padrão cultural da sociedade envolvente.

A nível infraconstitucional, há um espelhamento dessa lógica estruturante, de modo que diplomas como o Estatuto do Índio, por exemplo, a despeito de permitir práticas não convencionais, apenas o faz conforme as balizas dos padrões normativos hegemônicos.

No plano prático, a inefetividade parece ser o maior gargalo a ser superado, uma vez que os resultados obtidos a partir da implementação da técnica de declaração de bem jurídico ambiental como sujeito de direitos, muito embora louvável sob o ponto de vista das boas relações entre os povos, repercutiu em poucos e inexpressivos resultados palpáveis. Nessa quadra, a bacia do Rio Atrato ainda é região assolada por intensa crise humanitária, ambiental, com perspectivas pouco animadoras; os mecanismos formais criados não demonstraram fôlego suficiente para superar as dificuldades de ordem social e econômica a que submetidas as comunidades do Atrato. Quanto à região de Mariana atingida pelo desastre narrado em tópico próprio, a restauração do ecossistema caminha a passos sonolentos, os desabrigados, em grande medida, ainda não tiveram novas moradias entregues como forma de indenização e, a despeito de tudo isso, as atividades da principal causadora do desastre encontram-se a plenos pulmões.

Apesar disso, é preciso registrar que a técnica perscrutada ao longo deste artigo, a despeito de seu problemático sustentáculo teórico no Brasil e de sua já comprovada parcial inefetividade, representa, dentre outras coisas, artefato jurídico revelador de um movimento subjacente que deve ser revisitado pelos juristas. As mudanças de paradigmas se avizinham e o Direito deve providenciar melhores respostas a essas realidades de base. Um rio de direitos é etapa e não fim desse processo.

6. REFERÊNCIAS

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[1]Analista jurídico no MPAM. Mestrando do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela UniBras. Bacharel em Direito pela UEA.

[2] Doutora Em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília, Professora Adjunta da Escola de Direito da Universidade do Estado do Amazonas, atuando na Graduação em Direito, no Mestrado em Direito Ambiental e na Clínica de Direitos Humanos e Direito Ambiental.

[3] A Hipótese de Rienmann, formulada em 1958, propõe que a distribuição dos números primos possui uma lógica intrínseca, não sendo meramente aleatória. Freeman Dyson, em 1972, percebeu certa conexão entre a referida hipótese e a Teoria do Caos, que é especificamente voltada a eventos randômicos.

[4] Embora com marcantes distinções, é possível, para fins de entendimento, traçar um paralelo entre os Estados Federados brasileiros e os Departamentos do Estado colombiano.

[5] Disponível em: <https://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-samarco/o-desastre> Acesso em 12 de dezembro de 2022

[6] Interiro teor Disponível em: <https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2016/t-622-16.htm> Acesso em 13 de dezembro de 2022.

[7] Inteiro teor Disponível em: <http://lafayette.adv.br/wp-content/uploads/2019/05/A%C3%87%C3%83O-BACIA-RIO-DOCE.pdf> Acesso em 10 de dezembro de 2022.

[8] Disponível em : <https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2022/10/19/interna_gerais,1409393/novo-bento-e-entregue-incompleto-apos-quase-7-anos-do-desastre-de-mariana.shtml> Acesso em 25 de dezembro de 2022.

[9]  Disponível em:  <https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2020/12/11/cinco-anos-apos-rompimento-de-barragem-prefeito-de-mariana-anuncia-retomada-das-atividades-da-samarco.ghtml> Acesso em 25e dezembro de 2022.

[10] Disponível em: <https://siteal.iiep.unesco.org/sites/default/files/sit_accion_files/siteal_colombia_2000.pdf> Acesso em 10 de dezembro de 2022.

[11] Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665> Acesso em 10 de dezembro de 2022.

[12] Disponível em <https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2016/t-622-16.htm> Acesso em 10 de dezembro de 2022

[13] Disponível em <https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf> Acesso em: 1º de fevereiro de 2023.

[14] […] 48. Particularmente,   em   casos   sobre   direitos   territoriais   de   povos   indígenas   e tribais,   este   Tribunal   se   referiu   à   relação   entre   um   meio   ambiente   saudável   e   a proteção   de   direitos   humanos,   considerando   que   o   direito   à   propriedade   coletiva destes está vinculado com a proteção e acesso aos recursos que se encontram nos territórios  dos povos, pois  estes recursos naturais  são necessários para a própria sobrevivência,  desenvolvimento  e  continuidade  do estilo  de  vida  de  tais  povos. Assim mesmo, a Corte reconheceu a estreita vinculação do direito a uma vida digna com   a   proteção   do   território   ancestral   e   os   recursos   naturais.   Ao   respeito,   este Tribunal   determinou   que,   em   atenção   à   situação   de   especial   vulnerabilidade   dos povos indígenas e tribais, os Estados devem adotar medidas positivas encaminhadas a assegurar aos membros destes povos o acesso a uma vida digna -que compreende a proteção da estreita relação que mantêm com a terra- e seu projeto de vida, tanto em sua dimensão individual como coletiva. Igualmente, este Tribunal ressaltou que a falta de acesso aos territórios e aos recursos naturais correspondentes pode expor às comunidades indígenas a condições de vida precárias ou infra-humanas, a maior vulnerabilidade ante doenças e epidemias, bem como submeter a situações de não proteção extrema que  podem implicar  várias  violações de  seus direitos humanos, além   de   ocasionar   sofrimento   e   prejudicar   a   preservação   de   sua   forma   de   vida, costumes e idioma. [grifo nosso].

[15] […] 59. O direito humano a um meio ambiente saudável se entendeu como um direito com conotações tanto individuais como coletivas. Na sua dimensão coletiva, o direito a um meio ambiente saudável constitui um interesse universal, que se deve tanto às gerações   presentes   e   futuras.   Agora   bem,   o   direito   ao   meio   ambiente   saudável também tem uma dimensão individual, na medida em que a sua vulneração pode ter repercussões diretas ou indiretas sobre as pessoas devido à sua conexão com outros direitos, tais como o direito à saúde, a integridade pessoal ou a vida, entre outros. A degradação do meio ambiente pode causar danos irreparáveis nos seres humanos, pelo qual um meio ambiente saudável é um direito fundamental para a existência da humanidade.

[16] […] 62. Esta   Corte   considera   importante   ressaltar   que   o   direito   ao   meio   ambiente saudável   como   direito   autônomo,   diferentemente  de   outros   direitos,   protege   os componentes   do   meio   ambiente,   tais   como   bosques,   rios,   mares   e   outros,   como interesses jurídicos em si mesmos, ainda em ausência de certeza ou evidência sobre o risco às pessoas individuais. Trata-se de proteger a natureza e o meio ambiente não somente por sua conexão com uma utilidade para o ser humano ou pelos efeitos que sua degradação poderia causar em outros direitos das pessoas, como a saúde, a vida ou a integridade pessoal, senão por sua importância para os demais organismos vivos com   quem   se   compartilha   o   planeta,   também   merecedores   de   proteção   em   si mesmos. Neste sentido, a Corte adverte uma tendência a reconhecer personalidade jurídica   e,   portanto,   direitos   à   natureza   não   só   em   sentenças   judiciais, como inclusive em ordenamentos constitucionais. [grifo nosso].

[17] Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 02 de fevereiro de 2023.

[18] Súmula nº 227 do STJ: A pessoa jurídica pode sofrer dano moral. Disponível em <https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2011_17_capSumula227.pdf>. Acesso em 26 de dezembro de 2022.

[19] O civilismo é iniciado com o Código Civil napoleônico , no início do séc. XIX, e propagado pelo liberalismo

[20] Relacionada ao Processo nº 1017945-29.2021.4.01.3800, TRF-1, 12ª Vara Federal da Seção de Minas Gerais, em que se trata da responsabilidade da empresa Samarco no rompimento da barragem do Fundão

[21] Disponível em: <https://www.hrw.org/pt/news/2016/08/28/ten-years-drug-policy-failure-brazil> Acesso em: 01 de fevereiro de 2022.