PROJETO DE LEI 2.630/2020: PRISMA DA DEMOCRACIA DEFENSIVA

PROJETO DE LEI 2.630/2020: PRISMA DA DEMOCRACIA DEFENSIVA

31 de dezembro de 2023 Off Por Cognitio Juris

BILL 2.630/2020: THE PRISM OF THE DEFENSIVE DEMOCRACY

Artigo submetido em 13 de dezembro de 2023
Artigo aprovado em 21 de dezembro de 2023
Artigo publicado em 31 de dezembro de 2023

Cognitio Juris
Volume 13 – Número 53 – Dezembro de 2023
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Maurício Dantas de Araújo Neto [1]

RESUMO: A presente pesquisa aborda o Projeto de Lei 2.630/2020 e a sua necessidade no contexto digital contemporâneo com foco na interação entre a distribuição massiva de fake news e o sistema político brasileiro, ressaltando a instrumentalização do meios mais sofisticados de propaganda com a finalidade de deturpar a democracia. Como referencial teórico será utilizado obras de diversos autores como Karl Loewenstein e Yascha Mounk. Utilizando-se de pesquisa bibliográfica será   analisado, de forma geral, o Projeto de Lei 2.630/2020 e, de forma específica, será esmiuçada a regulação das redes sociais na proposta. Também será averiguada neste trabalho a instrumentalização da desinformação para fins autoritários e antidemocráticos no Brasil. O objetivo geral deste trabalho é explorar a contribuição da abordagem da democracia defensiva na análise do Projeto de Lei 2.630/2020, avaliando seu impacto na proteção dos princípios democráticos e no enfrentamento das ameaças representadas pelo espalhamento de fake news na era digital. Desse modo, é estabelecido que a pesquisa orbitará o diálogo entre as propostas de regulamentação do discurso online e das plataformas digitais e a trama da defesa da democracia brasileira e seus princípios na internet.

Palavras-chaves: fake news; liberdade de expressão; Democracia defensiva.

ABSTRACT: This research addresses Bill 2.630/2020 and its need in the contemporary digital context, focusing on the interaction between the massive distribution of fake news and the Brazilian political system, highlighting the instrumentalization of the most sophisticated ways of propaganda aiming at the deturpation of democracy. As a theoretical reference, works by several authors such as Karl Loewenstein and Yascha Mounk will be used. Using bibliographical research, Bill 2.630/2020 will be analyzed in general and, specifically, the regulation of social networks in this proposition will be scrutinized. This work will also investigate the instrumentalization of disinformation for authoritarian and antidemocratic purposes in Brazil. The general objective of this work is to explore the contribution of the defensive democracy approach in the analysis of Bill 2.630/2020, assessing its impact on the protection of democratic principles and on facing the threats posed by the spread of fake news in the digital age. In this way, it is established that the research will orbit the dialogue between proposals for regulating online speech and digital platforms and the plot of defending Brazilian democracy and its principles on the internet.

Keywords: fake news; freedom of speech; Defensive democracy.

1       INTRODUÇÃO

A Internet utilizada como meio de transmissão de informação em massa é instrumentalizada para fins perniciosos, sendo inúmeros os exemplos da má-fé dos propagadores de desinformação sob os mais diversos pretextos. O compartilhamento de lixo informacional se agrava quando misturado com a ignorância da sociedade brasileira, resultando em atos bárbaros a exemplo do justiçamento de Fabiane Maria de Jesus, a suposta bruxa do Guarujá.[2]

As consequências do espalhamento de fake news também atingem as estruturas da sociedade democrática, fenômeno este que não se contém ao Brasil. Em solo brasileiro, o maior exemplo até o momento deste tipo de acontecimento foi o ocorrido no dia 08 de Janeiro de 2023, em que uma multidão invadiu e destruiu o patrimônio público em uma série de ataques ao Palácio do Planalto, Palácio do Congresso Nacional e ao Palácio do Supremo Tribunal Federal. Os invasores foram motivados pelo descontentamento do resultado das eleições presidenciais de 2022 e por uma miríade de notícias falsas.

A disseminação de discursos anti-democráticos e desinformativos não é uma exclusividade de determinada região, mas uma realidade que atravessa fronteiras. É o caso evidenciado pelo escândalo de dados do Facebook-Cambridge Analytica, que afetou usuários brasileiros, mas não se conteu a estes. Foram afetados usuários de diversos países como Estados Unidos e Reino Unido.

Ainda temos o exemplo do ocorrido em 06 de Janeiro de 2021 nos Estados Unidos, onde sob circunstâncias semelhantes ao ocorrido no Brasil dois anos depois, uma turba de revoltados invadiu o Capitólio estadunidense. Outro exemplo do resultado negativo da propagação de desinformação no ambiente virtual é o que se procede em El Salvador desde a ascensão de Nayib Bukele ao cargo presidencial. Na função de presidente, Bukele derrubou a Suprema Corte local, suspendeu o devido processo legal e discutivelmente estabeleceu condições para o

seu perpetuamento no poder ao estabelecer o instituto da reeleição no seu país (através da Suprema Corte que teve membros destituídos e trocados) e realizar uma “reforma política” que reduz a relevância de regiões onde seu partido é impopular.

Apesar do exposto sobre Nayib Bukele, que se autodenomina ditador, a sua popularidade na internet, bem como sua aprovação em El Salvador só aumentaram. Mais um regime iliberal nasce sob aplausos, não apenas salvadorenhos, mas também argentinos, mexicanos e brasileiros. Um sinal de que a democracia liberal goza de infâmia por muitos, o ambiente virtual é comprovadamente suscetível à instrumentalização por aqueles que buscam descaracterizar o sistema democrático.

Loewenstein (1937), na seção “Fascism is not an Ideology but a Political Technique” no seu artigo sobre a democracia militante (teoria precursora da democracia defensiva) ressalta que a propaganda em massa foi uma ferramenta importante nas missões empreendidas pelos partidários do autoritarismo na Europa durante a primeira metade do século XX. Nos tempos de hoje, os meios virtuais são os canais de transmissão de informação em massa menos regulados, podendo facilmente serem utilizados por aqueles que estão dispostos a descaracterizar o sistema democrático, fato evidenciado pela experiência salvadorenha.

Retornando à proposta legislativa estudada neste trabalho, o Projeto de Lei 2.630 entre outras medidas, busca combater a disseminação de notícias falsas, que representam uma ameaça aos ideais democráticos. Através do ponto de vista da democracia defensiva, que de acordo com Fernandes (2021, p. 138) democracia defensiva é: “… uma atuação reativa em prol da democracia em virtude de um ataque às instituições”, é possível analisar como as medidas propostas pelo projeto visam proteger a integridade do debate democrático, prevenindo manipulações e garantindo a participação informada dos cidadãos. Reconhecendo a existência de forças e movimentos que buscam minar os fundamentos democráticos (GOMES; DO MONTE VILAR, 2020, p. 3) e levando em conta que PL aqui debatido propõe ações para lidar com essas ameaças, tais como o aumento do protagonismo do Comitê Gestor da Internet (CGI) e a autorregulação regulada, é possível explorar como essas medidas podem ser eficazes na proteção da democracia e na preservação dos direitos dos cidadãos.

A democracia defensiva é uma abordagem atual, sendo o momento político-jurídico atual que vivemos, muito oportuno para sua discussão nos meios acadêmicos, políticos e jurídicos (PONTES, 2020, p. 309 e 310). Ao aplicá-la ao

Projeto de Lei 2.630/2020, é possível estabelecer um diálogo entre as propostas legislativas e os debates acadêmicos, contribuindo para uma reflexão mais aprofundada sobre os desafios da democracia na era digital. Ao exibir a necessidade de equilibrar a proteção dos valores democráticos com a garantia das liberdades individuais, no contexto do PL, a abordagem da democracia defensiva permite uma análise crítica sobre como encontrar o equilíbrio adequado entre a restrição à desinformação e a preservação da liberdade de expressão no campo virtual.

Em suma, abordar o PL 2.630/2020 através do ponto de vista da democracia defensiva traz um olhar relevante e atual para a discussão sobre a regulação da Internet. Essa abordagem permite explorar como as medidas propostas pelo projeto podem contribuir para a proteção da democracia e o enfrentamento das ameaças que surgem no contexto digital, promovendo uma reflexão crítica e informada sobre o tema.

2       PROJETO DE LEI 2.630/2020

Formalmente descrito como Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, o PL 2.630/2020 surgiu como uma resposta ao espalhamento massivo de desinformação pelas redes sociais durante a pandemia de coronavírus. Fonte de polêmicas desde seu surgimento, que chegou a receber a alcunha de “PL da Censura”, a proposta enfrenta, desde sua concepção, resistência de inúmeros setores da sociedade.

Em 2023, já posteriormente ao contexto original da apresentação do PL e com a ascensão de outros problemas relacionados ao tema das fake news, a proposta legislativa, na véspera de sua votação, foi alvo de fortes críticas de empresas do setor. Neste período, foi notável o lançamento de um informativo pela big tech Google em seu blogue oficial, que criticava o PL em seis pontos específicos.

O primeiro ponto destacado neste informativo foi a potencial proteção involuntária a quem produz desinformação. De acordo com o texto disponibilizado no blogue oficial da big tech, o PL supostamente prejudicaria os jornalistas ao blindar “qualquer empresa constituída no Brasil para fins jornalísticos” , beneficiando os mal intencionados. O segundo ponto foi direcionado à possibilidade de o projeto de lei colocar em risco o acesso e a distribuição gratuita de conteúdo na Internet. Restrições excessivas poderiam impactar negativamente a disseminação de

informações e a oferta gratuita de conhecimento, levando a um possível cerceamento do acesso ao conhecimento.

O terceiro ponto também suscitou preocupações da empresa sobre a atribuição de amplos poderes a um órgão governamental para decidir o que pode ser visto no ambiente virtual. A centralização dessa entidade reguladora autônoma poderia, em tese, resultar em arbitrariedades e atropelos à diversidade de informações visto que “O PL 2630 coloca em risco o livre fluxo de informações na web ao prever a criação de uma “entidade reguladora autônoma” pelo Poder Executivo com funções de monitoramento e regulação da internet”, e que referido órgão teria “amplos poderes para limitar o conteúdo disponível aos brasileiros, e contará com baixo nível de supervisão”. O texto ainda levanta a tese que o PL não se atém aos parâmetros do Marco Civil da Internet. Outro ponto relevante abordado foi o possível prejuízo às empresas e anunciantes brasileiros, pois, caso aprovado o PL na forma atual, as pessoas que trabalham com publicidade deveriam reestruturar suas atividades devido às novas regulações impostas ao Google.

Por fim, a proposta foi criticada por sua abordagem em relação aos buscadores, sendo comparada erroneamente às redes sociais. A dificuldade de distinção entre essas plataformas pode levar a regulações inadequadas e prejudiciais para o acesso dos usuários brasileiros a qualquer tipo de informação disponibilizada de forma gratuita nos buscadores, complementando o segundo ponto elencado. Nesse sentido, seria de muita valia ao legislador convidar representantes da área para que esclareçam os conceitos e parâmetros que ajudam ou prejudicam a vivência virtual pós-regulação.

No dia 02 de Maio de 2023, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito do Inquérito 4.871, fundamentado numa reportagem da Folha de São Paulo que revelava a existência de um estudo elaborado pelo NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que asseverava que as empresas Brasil Paralelo, Google, Meta e Spotify estavam utilizando seus recursos e serviços contra o PL 2.630/2020, influenciando negativamente a opinião dos usuários acerca da proposta de lei nas vésperas de sua votação pela Câmara dos Deputados, determinou que as empresas procedessem com a remoção integral em no máximo em 01 hora, sob pena de multa de cento e cinquenta mil reais por hora, de todos os anúncios, informações e textos veiculados, propagados e impulsionados a partir do blogue oficial da Google com fortes críticas ao PL 2.630.

Entre outras medidas, ainda neste instrumento, foi decidido que as empresas, no prazo de 48 horas:

informassem quais providências reais e concretas que realizam para prevenir, mitigar e retirar práticas ilícitas no âmbito de seus serviços, e no combate à desinformação de conteúdos gerados por terceiros, principalmente aqueles direcionados por algoritmos, impulsionados e que gerem publicidade cuja distribuição tenha sido realizada mediante pagamento ao provedor de redes sociais ou por contas inautênticas e redes de distribuição artificial.

Ainda na decisão, o ministro apontou os assuntos que deveriam ter seu alcance mitigado pelas empresas, entre esses, encontravam-se condutas, informações ou atos antidemocráticos, discurso de ódio e fake news. A maneira que o ministro abordou a situação demonstra que a discussão ao redor do PL é extremamente sensível, visto que o prazo dado para a remoção dos conteúdos foi de apenas 01 hora, além da multa elevada e da determinação da realização dos depoimentos dos presidentes das empresas julgadas.

Ademais, o ministro explicita que:

Tais condutas podem configurar, em tese, não só abuso de poder econômico às vésperas da votação do projeto de lei por tentar impactar de maneira ILEGAL e IMORAL a opinião pública e o voto dos parlamentares, mas também flagrante induzimento e instigação à manutenção de diversas condutas criminosas praticadas pelas milícias digitais investigadas no INQ 4.874, com agravamento dos riscos à segurança do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL e do próprio Estado Democrático de Direito, cuja proteção é a causa da instauração do INQ. 4.781.

Ao abordar os inquéritos supracitados, o magistrado levanta, ainda que sem citar diretamente, o tema da democracia defensiva (DE OLIVEIRA; DA CUNHA FERRAZ, 2023, p. 232) que ganhou notoriedade após as eleições presidenciais de 2018 e os subsequentes embates entre os poderes, sendo estes inquéritos utilizados neste âmbito. Através da resposta dada pelo STF às movimentações da big techs acerca da tramitação da proposta legislativa discutida neste trabalho, podemos concluir que o PL possui tremenda importância no âmbito da proteção das instituições democráticas no Brasil.

O PL elenca como princípio, no texto substitutivo mais recente, o objetivo de fortalecer o processo democrático, o que demonstra uma preocupação holística do legislador ao entender que o fenômeno da propagação de fake news em massa pode afetar nossa sociedade não apenas de forma atomizada ou localizada, mas que pode vir a ser calamitosa ao próprio sistema democrático, o que posteriormente com a forma mais inequívoca, ficou demonstrado no dia 08 de Janeiro de 2023 em Brasília, conforme o segundo parágrafo deste trabalho.

Fora do escopo da democracia defensiva, da regulação do discurso e da transmissão de informação online, o PL traz ainda em seu texto questões acerca da utilização das plataformas digitais pelo público infanto-juvenil e a proteção de seus direitos nestes espaços, problemas de natureza autoral no que tange produções artísticas e jornalísticas, responsabilidade e transparência no tema da publicidade digital, fortalecimento da educação digital dos usuários brasileiros e o fornecimento de dados desagregados para fins científicos.

Conforme exposto nos parágrafos anteriores, é estabelecido que este PL foi criado para regular o discurso e a transmissão de informação online, além de prover robustez aos direitos autorais e aos direitos da criança e do adolescente nas plataformas digitais bem como fomentar a educação para o uso seguro das plataformas digitais. Seguindo este raciocínio é possível também afirmar que o PL busca combater a instrumentalização da desinformação nas plataformas digitais, a fraqueza dos direitos autorais e direitos da criança e do adolescente em ambientes virtuais e a ignorância generalizada da sociedade brasileira no que tange a vivência online.

3       REGULAMENTAÇÃO E INOVAÇÕES AO ARCABOUÇO REGULATÓRIO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS

Nesta seção iremos esmiuçar o texto substitutivo do PL 2.630/2020 nos temas relevantes à regulamentação das plataformas digitais seguindo a ordem colocada pelo legislador, com a finalidade de analisar a matéria estudada referente à democracia defensiva brasileira. Partindo do artigo 3º, são dispostos os princípios que guiaram a aplicação da lei das Fake News, sendo vários destes princípios relevantes, diretamente ou indiretamente, no que concerne à regulamentação das

plataformas digitais e a democracia defensiva brasileira. Conforme o determinado no parágrafo anterior, permaneceremos na ordem disposta pelo legislador.

Começando com o princípio da defesa do Estado Democrático de Direito, a colocação deste dispositivo no PL demonstra a demasiada importância da defesa da democracia moderna e seus princípios na formulação da proposição legal e de sua posterior materialização, no que é o primeiro princípio listado para a aplicação da lei estudada. A regulação do discurso é um aspecto fundamental na defesa do Estado Democrático de Direito no âmbito das plataformas digitais, visto que é exatamente a partir da transmissão de informações que a experiência online ocorre.

O “princípio do fortalecimento do processo democrático, pluralismo político, liberdade de consciência e a liberdade de associação para fins lícitos” pode ser interpretado como uma forma do legislador direcionar a aplicação dessa Lei no sentido de dar fundamento ao Judiciário na execução de seus dispositivos no âmbito eleitoral propriamente dito.

No que se refere ao “princípio do livre exercício da expressão e dos cultos religiosos, seja de forma presencial ou remota, e a exposição plena dos seus dogmas e livros sagrados” e demais dispositivos neste sentido (artigo 3º, III ao XII), o legislador teve o cuidado de reforçar alguns pressupostos fundamentais da nossa Constituição. O legislador também teve a sensibilidade de estipular que a aplicação da Lei das Fake News pressupõe a observância de diversos diplomas normativos, entre estes, o Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a lei que tipificou os crimes contra o Estado Democrático de Direito (artigo 3º, XIII).

Ao provedor (definido como “aplicação de internet de redes sociais, ferramentas de busca ou mensageria instantânea” conforme o artigo 5º, VII da lei estudada) é atribuído uma série de obrigações e situações em que é cabível responsabilidade civil de forma solidária, de acordo com o enumerado no Capítulo II. Quanto à responsabilidade civil das plataformas na proposta de lei (artigo 6º) são listadas duas hipóteses: “pela reparação dos danos causados por conteúdos gerados por terceiros cuja distribuição tenha sido realizada por meio de publicidade de plataforma”; e “por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros quando houver descumprimento das obrigações de dever de cuidado, na duração do protocolo de segurança”.

Do artigo 7º ao 10 é estabelecido a obrigação dos provedores de analisar e atenuar os riscos sistêmicos decorrentes de seus serviços e dos seus sistemas

relacionados, incluindo os sistemas algorítmicos, demonstrando o poder que as plataformas tem de abalar os pilares da sociedade democrática se utilizadas de forma perversa, que se deve a sua potência na propagação de desinformação em massa, talvez com resultados irreversíveis. Portanto, se fez necessário o cuidado do legislador em demandar uma avaliação de riscos anual e a tomada de medidas de atenuação razoáveis, proporcionais e eficazes para mitigação de tais riscos sistêmicos.

A expressão “riscos sistêmicos” é de grande valia para este trabalho, visto que uma das fragilidades de grande extensão ou sistemática das instituições brasileiras é a falta de uma contenção legal mais específica ao conteúdo desinformativo distribuído de forma massiva, o que acarretou, por exemplo na instauração do Inquérito das Fake News pelo STF, visto que não podia ser permitido o espalhamento dos mais diversos tipos de ameaça e difamação contra uma das instituições democráticas brasileiras, sem qualquer tipo de controle e responsabilização.

De acordo com o artigo 11, os provedores são obrigados a atuar diligentemente para prevenir e mitigar práticas ilícitas em seus serviços. Eles devem combater a disseminação de conteúdos ilegais gerados por terceiros que possam configurar crimes especificados na redação dos incisos I ao VII. Para os fins deste estudo vale destacar os crimes contra o Estado Democrático de Direito, que são um tema recorrente nesta Lei, solidificando o entendimento que a essência do conceito de democracia defensiva permeia este diploma legal. A avaliação do cumprimento do previsto neste artigo se dará na avaliação de riscos anual, anteriormente abordada, e na avaliação de transparência, que será discorrida posteriormente. É importante notar que na redação do segundo parágrafo foi determinado que a avaliação ocorrerá sobre o conjunto de esforços e medidas e não sobre casos isolados, reafirmando o caráter sistêmico da problemática das fake news explorada na Lei das Fake News.

A partir do artigo 12 até o artigo 15, é arquitetado o chamado protocolo de segurança, um instrumento de caráter emergencial que surge perante um risco iminente de danos decorrentes das situações abordadas no artigo 7º, insuficiência ou negligência dos provedores. Os provedores podem ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros durante a

vigência deste protocolo, consoante com o explanado quando abordamos os artigos 7º ao 10.

A instauração do protocolo deve ser baseada em elementos que caracterizem o risco iminente de danos e deve ser publicamente informada aos usuários. Os provedores devem produzir relatórios específicos sobre as ações relacionadas ao protocolo de segurança. A partir da instauração do protocolo de segurança e devida notificação, os provedores poderão ser responsabilizados civilmente pelos danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros quando demonstrado conhecimento prévio, conforme o sistema de notificação estabelecido no art.16 que será abordado posteriormente.

É notável a obrigação da confecção de um relatório acerca das ações dos provedores envolvendo o protocolo de segurança no artigo 15, ficando materializada mais uma camada de governança auditável sobre os provedores, que é de demasiada importância para a regulação das plataformas digitais.

Foi formulado dentro do projeto de lei estudado, um sistema transparente e relativamente democrático de julgamento interno do conteúdo criado pelos usuários das plataformas digitais, contido no Capítulo III. O processo envolve a notificação do conteúdo, a moderação do conteúdo e processo de revisão, notificação ao usuário e revisão das decisões e por fim a publicização das ações de moderação. É interessante o modo que foi construído esse sistema pelo ponto de vista dos criadores de conteúdo que muitas vezes se dedicam exclusivamente às atividades nas plataformas, mas que também permite uma gestão descentralizada pelos provedores do fluxo de informação nas suas plataformas inclusive em períodos eleitorais, de forte comoção social e de elevados perigos de ordem sistémica.

No Capítulo IV é prescrito ao provedor certos deveres no que concerne a transparência de forma geral. Com a intenção de ater-nos à temática relevante ao trabalho, abordaremos o conteúdo dos artigos 23 e 24. No artigo 23 é previsto aos provedores o dever de apresentar relatórios semestrais de transparência, disponibilizados de forma acessível com a finalidade de esclarecer os procedimentos de moderação de conteúdo. No primeiro parágrafo é explicitado os motivos da semestralidade desse relatório, sendo estes os riscos sistemáticos, de calamidade pública ou em período eleitoral. Esses motivos acabam por reforçar o dilema da desinformação em massa e a democracia brasileira tratada neste estudo.

A auditoria externa abordada no artigo 24, no que concerne à temática do trabalho, apresenta já nos primeiros incisos a relevância dos riscos sistêmicos, cuja auditoria deverá abordar a eficiência dos provedores em analisar e atenuar essas situações. Ainda foi estabelecido requisitos rigorosos com a finalidade de garantir a independência dos responsáveis pela auditoria externa, a exemplo da exigência de ausência de conflito de interesse em causa entre os provedores (e “qualquer pessoa a eles ligada, seja de natureza concorrencial, econômica ou política”) e as organizações responsáveis pela auditoria.

Posteriormente no texto substitutivo, é disposto no Capítulo XI a regulação dos serviços de mensageria instantânea. No artigo 41 é abordado de forma extensiva a distribuição massiva de mensagens, um dos métodos utilizados para a propagação de fake news. São impostas restrições ao encaminhamento de mensagens ou mídias para diversos destinatários, restrições estas que partem desde o código de conduta formulado pelo Comitê Gestor da Internet (CGI) até a obrigatoriedade da existência de um mecanismo para verificar o consentimento prévio do usuário para sua inclusão em grupos ou listas com a finalidade de distribuição massiva de conteúdo.

É ainda imposto aos provedores a criação de meios para identificar e impedir mecanismos externos de distribuição massiva de mensagens. Quanto ao código de conduta aludido no parágrafo anterior, deverá ser estabelecido em seu texto obrigações adicionais com a finalidade de refrear a distribuição massiva de conteúdo. As fake news distribuídas de forma massiva por meio dos serviços de mensageria instantânea durante a pandemia de COVID-19, foram investigadas durante a Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia (conhecida como CPI da COVID-19).

O relatório desta CPI trouxe a tese de que os instrumentos disponíveis durante a pandemia para o combate e controle de desinformação eram insuficientes (p. 883 e 884) e, assim sendo, seria salutar o fortalecimento do arcabouço jurídico brasileiro acerca da propagação e instrumentalização de forma massiva de notícias falsas. Evidentemente, esse fortalecimento desejado acontecerá com a eventual vigoração do projeto de lei analisado.

No capítulo XV, que trata do CGI e expande suas atribuições e deveres, fica estruturado que este órgão será responsável pela promoção da liberdade, responsabilidade e transparência na Internet, pela realização de estudos e debates

combinado com a proposição de diretrizes acerca do combate a desinformação, pela elaboração e validação dos códigos de conduta previamente mencionados neste trabalho, pela emissão de recomendações prévias antes da instauração de processos administrativos na hipótese de deficiências nos relatórios de transparência ou na avaliação da auditoria externa.

Além disso, o CGI poderá emitir diretrizes e critérios objetivando a instauração dos protocolos de segurança e análise de riscos sistêmicos, tal como analisará os relatórios de avaliação de risco sistêmico. Pelo determinado no artigo 52, os provedores são obrigados a elaborar um código de conduta baseado nos parâmetros estabelecidos pelo CGI, que deverá incluir medidas com o intuito de garantir os objetivos da lei e deve ainda, criar indicadores qualitativos e quantitativos.

Portanto, é verificável que o escopo do CGI é expandido se comparado com as atribuições listadas no decreto que dispôs sobre sua criação em 2003, fato obviamente decorrente da magnitude que a Internet e a convivência online tomaram em todos aspectos da vida contemporânea e que, consequentemente demandou a formulação da lei examinada nesta obra e de seus dispositivos muito auspiciosos no que diz respeito ao controle necessário da atividade online.

Em resumo, esta seção da obra expôs que a regulamentação das plataformas digitais levantada no projeto estudado, estabelece múltiplos graus de controle sobre a disseminação massiva de conteúdos desinformativos, que muitas vezes ocorre de forma proposital e com objetivo determinado. Em sua eventual vigoração no formato posto pelo texto substitutivo atual, muito desse controle se dará de forma descentralizada e a partir das próprias plataformas, obviamente sendo observadas as diretrizes formuladas pelo CGI e pelas normas brasileiras. Por fim, a partir do apresentado até o momento é possível concluir que a lei e a regulação estudadas são benéficas para a sustentabilidade da democracia brasileira na era digital.

4       DIÁLOGO ENTRE A DEMOCRACIA DEFENSIVA BRASILEIRA E A DESINFORMAÇÃO INSTRUMENTALIZADA

Fica comprovado pelo exposto nas seções anteriores, que o problema da operacionalização do conteúdo compartilhado na Internet para fins nocivos é de demasiada importância no contexto brasileiro. Posto isto, foi elaborado através do

esforço legislativo um projeto de lei que aprofunda a regulação do ambiente virtual brasileiro, em que certos dispositivos desta proposta tratam o tema da disseminação de desinformação.

A relutância da sociedade brasileira acerca do projeto não é irracional, ora, vivemos em um país supostamente democrático e liberal, portanto é natural e salutar que tal objeção ocorra. Entretanto, o contexto atual no que se refere a utilização das plataformas digitais demanda uma resposta, uma adaptação das nossas instituições aos desafios postos pelo crescimento da relevância da Internet, dos algoritmos e da propagação de informação em massa por meios virtuais no cotidiano.

O grande questionamento feito contra as legislações que seguem o caminho do PL 2.630/2020, que é facilmente utilizado por seus opositores, é que estas são antidemocráticas e inconstitucionais, conforme exposto pelo estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (RUEDIGER, 2023, p. 27 e 28). A realidade é que existe um conflito entre normas deste gênero e certos direitos, principalmente os de primeira geração, visto que estas leis colocam em antagonismo as liberdades individuais e as ações de interesse público.

A partir da constatação desse conflito legal, podemos retomar o conceito de democracia defensiva, que pode ter uma caracterização polêmica pela sua aparente contradição com os valores democráticos, se analisado de forma extremamente superficial. A partir das caracterizações de Fernandes (2021, p.138) e De Oliveira e Da Cunha Ferraz (2023, p. 215 a 219) sobre a democracia defensiva, podemos sintetizar que essa abstração representa as ações tomadas pelas instituições democraticamente estabelecidas no seu antagonismo a movimentos autoritários, sendo assim, condutas para a autoconservação de uma sociedade livre e igualitária.

Para fins de exemplificação, no Brasil, podemos citar uma atuação institucional, conforme a configuração de democracia defensiva apresentada anteriormente (FERNANDES, 2021, p. 139 a 141), a devolução de uma Medida Provisória, sem análise do mérito ou relevância e urgência desta, pelo Congresso Nacional por ofender “tanto o princípio da gestão democrática do ensino público quanto a autonomia universitária” previstos nos artigos 206 e 207 da Constituição.

Esta MP listava em seus dispositivos a dispensabilidade das ferramentas democráticas existentes na escolha de dirigentes das instituições federais de ensino, sendo estes, a partir da vigoração da MP, apontados, sem qualquer escrutínio pela comunidade acadêmica e estudantil, diretamente pelo Ministério da Educação.

Ficando comprovada a atuação correta do Poder Legislativo em devolver a MP sem qualquer tipo de análise, visto o evidente descumprimento dos requisitos constitucionais para a sua vigoração.

Pelo Judiciário, pode ser citado como exemplo de uma atuação no sentido da restrição de um direito de primeira geração em favor do Estado Democrático de Direito o Caso Ellwanger, onde foi decidido no julgamento de um habeas corpus que a publicação de livros antissemitas não estava protegida pela Constituição (DE OLIVEIRA; DA CUNHA FERRAZ, 2023, p. 231 e 232).

Ou seja, a liberdade de expressão e outros direitos de primeira geração não são absolutos, especialmente se conflitantes com matérias de interesse público. A democracia defensiva requer que as ações empreendidas para proteger as instituições sejam aplicadas de maneira imparcial e consistente. É essencial evitar a aplicação seletiva das restrições e garantir que as medidas sejam direcionadas apenas a conteúdos ou grupos que representam uma ameaça genuína à democracia.

A imparcialidade também é salutar no sentido da recuperação e manutenção de uma boa reputação das instituições perante a sociedade, que gozam de um enorme desprestígio por parte da população (sendo o Judiciário, o aparente bode expiatório da ira popular) evidenciado pelas agressões que ministras e ministros da Suprema Corte sofrem de forma pessoal repetidamente. A democracia deve ser defendida evitando qualquer viés ideológico que possa comprometer sua integridade, pois a imparcialidade é essencial para a legitimidade das ações e para a confiança das pessoas nas instituições democráticas, conforme afirmado por Loewenstein (1937, p. 645 e 646).

Além disso, a imparcialidade contribui para a reputação das instituições perante a sociedade. É ideal que a sociedade perceba que as ações empreendidas visam genuinamente preservar os princípios democráticos e não servem a interesses particulares, isto contribui para a preservação e valorização das instituições democráticas no longo prazo. A relativa descentralização da regulação das plataformas digitais formulada no texto substitutivo do PL 2.630/2020 contribui para a imparcialidade de facto.

A partir do exposto, é possível inferir que a regulamentação das redes sociais que se dará de forma mais compreensiva com a aprovação do PL 2.630, além de aprofundar o empenho pela democracia defensiva neste âmbito iniciado pelo

Judiciário, contribuirá para a restauração, ainda que mínima, da reputação da Corte Suprema ao tornar desnecessário muitos instrumentos utilizados (como os inquéritos citados na segunda seção deste trabalho) até momento no combate aos crimes desta natureza[3] cometidos nas redes sociais, que afetam nossa vivência em uma país democrático e liberal. Dessa maneira, é reduzido o protagonismo, talvez exacerbado, do STF nesta seara.

Inicialmente abordado em uma nota de rodapé por Karl Popper (1971) em sua obra “The Open Society and Its Enemies”, o paradoxo da democracia trabalha com a hipótese de, através de um processo democrático, a maioria decidir ser governada por um tirano. É conhecido que este exercício da imaginação se concretizou em vários momentos da história e que com o crescimento da relevância das redes sociais, mais adversidades neste sentido surgem. Adversidades estas que não necessariamente podem ser combatidas da mesma maneira que foram abordadas, no século passado, problemas semelhantes no que tange a transmissão de informação pelo rádio e pela televisão.

O exercício da imaginação proposto por Popper é, de fato, uma representação das complexidades inerentes à democracia. É uma lembrança de que a vontade da maioria, embora fundamental em um sistema democrático, precisa ser moldada e limitada de modo a preservar os princípios democráticos essenciais. A democracia não pode ser um cheque em branco para o poder da maioria sem restrições, pois isso poderia levar a um atropelamento dos direitos e liberdades das minorias.

No contexto contemporâneo, a ascensão das redes sociais amplificou ainda mais essas complexidades. As plataformas de mídia social, com seu alcance global e capacidade de disseminar informações em tempo real, têm um papel significativo na formação da opinião pública e no processo democrático. No entanto, esse papel não é isento de desafios.

Diferentemente do século passado, quando problemas semelhantes relacionados à transmissão de informações eram enfrentados principalmente pelo rádio e pela televisão, as redes sociais apresentam um cenário mais complexo. A disseminação de informações agora é impulsionada e influenciada por algoritmos e

machine learning, feitas especificamente para o público-alvo, aumentando a efetividade da propaganda. Porém tais algoritmos são programados por humanos, que possuem tendências e preconceitos que acabam transbordando em seus códigos (O’NEIL, 2021, p. 6).

A ascensão da polarização é particularmente preocupante. As redes sociais muitas vezes nos expõem a pontos de vista semelhantes aos nossos, devido ao funcionamento de algoritmos que tendem a reforçar nossas preferências, criando câmaras de eco onde nossas crenças são constantemente reforçadas e as opiniões discordantes são marginalizadas. Isso gera uma divisão mais profunda na sociedade e pode levar a uma visão distorcida da realidade (MOUNK, 2019, p. 172).

A esfera virtual é um espaço onde ideias, informações e opiniões circulam de forma ampla e instantânea e essa rapidez e amplitude são evidentemente utilizadas de forma prejudicial, disseminando desinformação, discursos de ódio e manipulação. A disseminação massiva de informações falsas cria uma realidade paralela na qual os cidadãos são levados a acreditar em fatos inverídicos, comprometendo sua capacidade de tomar decisões informadas e, consequentemente, afetando o processo democrático (MOUNK, 2019, p. 173 a 175).

Já a disseminação de discursos de ódio e intolerância nas redes sociais cria um ambiente tóxico onde o diálogo construtivo é sufocado pela hostilidade e onde a sociedade se fragmenta, o que prejudica a coesão social necessária para uma democracia saudável. Tristemente, durante as eleições passadas, foram inúmeros os exemplos de homicídios que tiveram como causa a intolerância política.[4]

A demanda da regulação do discurso nos meios digitais surge a partir da constatação que a esfera virtual é instrumentalizada por elementos que buscam deturpar a natureza do sistema democrático atual, que é falho mas que apesar de suas deficiências, traz e mantém diversas evoluções sociais, por exemplo, direitos humanos básicos (que muitas vezes, infelizmente, não são satisfeitos) e inovações no âmbito administrativo e republicano que temos por garantido, porém que podem ser perdidas na hipótese de um recrudescimento da democracia.

O potencial de danos é significativo, podendo minar a integridade da democracia e, consequentemente, prejudicar as conquistas sociais alcançadas. Na

seção anterior abordamos o termo “riscos sistêmicos” que adequa-se perfeitamente na problemática agora abordada de maneira mais específica, em virtude da amplitude do dano possível, na hipótese da materialização de uma situação de repercussão gravíssima.

Neste sentido, Callejón (2018, p. 694 a 697) demonstra que diante das transformações e desafios da era digital, podemos estar diante do surgimento de sociedades pós-constitucionais, visualizando que as formulações constitucionais são intrinsecamente destoantes da dinâmica polarizante, fragmentada, instável e instantânea das redes sociais e notando que todos, inclusive os meios de comunicação tradicionais e partidos políticos, estamos mais dependentes destes serviços.

Aliás, através deste estudo de Callejón (p. 686 e 691) podemos considerar que a movimentação das plataformas digitais nas vésperas da votação do PL 2.6320/2020, aludida na segunda seção deste trabalho, possui a mesma natureza de instrumentalização de desinformação para fins específicos que resultou, por exemplo, no sucesso do movimento Brexit e o posterior escândalo da Cambridge Analytica e Facebook.

Sendo assim, a regulação do discurso digital promovida pelo PL 2.630/2020 deve ser vista como uma ferramenta de aprimoramento e adaptação da democracia brasileira perante estas mudanças e não como uma mera ameaça à liberdade de expressão. É possível encontrar um equilíbrio entre garantir um ambiente online seguro e promover a livre expressão. O PL estudado neste trabalho reforça, ainda em seus primeiros dispositivos, múltiplos preceitos constitucionais concernentes ao tópico da liberdade de expressão e de pensamento.

O desafio está em criar políticas que possam enfrentar os problemas reais que afetam nossa sociedade, ao mesmo tempo que respeitam e fortalecem os princípios democráticos que sustentam nossa convivência. O futuro digital combinado com a sustentabilidade da governança democrática depende da nossa capacidade de enfrentar esse desafio de forma inteligente e responsável, e a proposta de lei estudada neste trabalho aponta caminhos para a concretização deste ideal.

5       CONSIDERAÇÕES FINAIS

O PL 2.630/2020 suscita perguntas cruciais relacionadas ao diálogo entre a restrição à disseminação de fake news, a proteção da liberdade de expressão e a aplicação consistente e imparcial das medidas propostas. Olhar essas questões através do prisma da democracia defensiva permitiu uma análise crítica e a confirmação que a proposta de lei estudada garante a proteção dos valores democráticos, os direitos dos cidadãos e da democracia propriamente dita. No combate pela manutenção da Constituição e seus princípios, podemos considerar o PL 2.630/2020 uma adaptação frente aos desafios e ameaças presentes no ambiente digital contemporâneo.

O chamado “PL da Censura” por seus detratores, foi criado para preencher diversas lacunas do corpo legal brasileiro no âmbito do direito digital. Questões como a configuração atual dos direitos autorais e dos direitos da criança e do adolescente nas plataformas digitais, bem como a educação dos usuários destes serviços, são abordadas no texto substitutivo estudado. Similarmente, são definidas diversas normas no sentido de responsabilização dos provedores no controle da utilização de seus serviços. A proposta legislativa estudada tem uma abordagem holística, visto que não se contém apenas à problemática da disseminação de notícias falsas.

É arrolado no corpo textual do projeto de lei analisado, a ideia da defesa do Estado Democrático de Direito como princípio. Ou seja, um dos propósitos desta lei, na hipótese de sua vigoração, será incluir na sua aplicação o conceito da democracia defensiva de forma extensiva. A defesa da democracia no que tange a desinformação em massa não estará mais concentrada no STF, mas a partir da vigoração da lei, se dará pelos provedores, pelas empresas de auditoria, pelo CGI e pelo Judiciário de forma geral, ao aplicar a nova norma. O PL 2.630/2020 formula um modo de governança ligeiramente complexo, porém democrático, sobre as plataformas digitais, que parte dos relatórios e da auditoria externa independente e passa pelo CGI e suas novas atribuições.

As plataformas digitais certamente mudaram o nosso modo de vida, e paulatinamente novas inovações são introduzidas ao setor. Tais mudanças profundas são as que decorrem dos meios de comunicação descentralizados com capacidade de propagação massiva, que podem se transformar em riscos sistêmicos. Assim é justificado um nível de controle sobre estas plataformas, a fim de impedir um possível recrudescimento da Constituição e possivelmente até da

democracia, decorrente da organização de um movimento autoritário com forte apelo popular, tema discutido por diversos autores citados no desenvolvimento deste trabalho.

Retornando aos primeiros parágrafos deste trabalho, é manifesto que a regulamentação destes ambientes é primordial para a prevenção da manipulação da sociedade por agentes mal-intencionados. Um esforço conjunto será adotado pelas empresas e pelo poder público, no contexto da regulação sobre a manipulação e desinformação nos meios digitais, com a aprovação do PL 2.630/2020, a fim de evitar a repetição de tragédias como o acontecido, de forma singular, no Guarujá, e de forma coletiva, em Brasília.

A Internet, sendo uma ferramenta poderosa que mudou e continuará a mudar e transformar a humanidade e que pode ser utilizada para fins nobres, é frequentemente utilizada para difundir desinformação, alimentar preconceitos e manipular a opinião pública. Um dos desafios mais urgentes que enfrentamos é a disseminação de conteúdos prejudiciais, muitas vezes obscurecidos pela ignorância que permeia a sociedade brasileira e pelas deficiências infraconstitucionais relevantes ao tema.

A partir do doloroso exemplo de Fabiane Maria de Jesus, é possível constatar como a combinação entre desinformação e ignorância pode levar a atos hediondos. Fundamentado nos eventos de 8 de Janeiro de 2023, podemos concluir que as fake news podem ser espalhadas de forma massiva com uma finalidade específica. Essas situações chamam a atenção para a necessidade premente da regulamentação a fim de controlar e prevenir a manipulação da sociedade por indivíduos mal-intencionados.

A regulamentação não pode ser vista como uma responsabilidade exclusiva do Estado e ao formular um modelo descentralizado, o legislador estabeleceu isto. Essa desconcentração é um aspecto vital para a imparcialidade, que acaba complementando os objetivos da democracia defensiva e o fortalecimento das instituições democráticas. A compreensão de que enfrentar a desinformação nos meios digitais não se traduz em censura, mas reflete uma consolidação da democracia brasileira contemporânea se mostra essencial para que os dispositivos do PL 2.630/2020 analisados convertam-se em normas de facto.

Em última análise, o PL 2.630/2020 é um caminho para alcançarmos uma sociedade digital robusta e vigorosa perante as adversidades singulares à era digital.

À medida que a sociedade se transforma profundamente devido aos avanços da Internet, essa lei se tornará um instrumento indispensável para garantir a sustentabilidade a longo prazo da atual Carta Magna. A regulamentação abordada nesta obra será, se eventualmente aprovada, uma ferramenta poderosa para moldar uma sociedade digital sustentável e democrática pelo aspecto da manutenção das nossas instituições.

REFERÊNCIAS

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[1] Bacharel em Direito. Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ. mauriciodantas11@gmail.com.

[2] Em 2014, Fabiane Maria de Jesus foi acusada de ser uma sequestradora de crianças devido a sua semelhança física com um retrato que representava a suposta “bruxa do Guarujá”, disponibilizado em uma página de fofocas local. O espalhamento desta acusação em redes sociais acarretou em seu assassinato por uma multidão enfurecida. R7 “Mulher foi espancada até a morte no Guarujá por causa de boato na internet”. 07 de Agosto de 2014. Disponível em: <https://noticias.r7.com/sao-paulo/mulher-foi-espancada-ate-a-morte-no-guaruja-por-causa-de-boato-na-inter net-07052014>

[3] Por exemplo, a prisão em flagrante de um deputado após o mesmo postar um vídeo criticando duramente ministros do STF e defender o Ato Institucional nº 5. Agência Câmara de Notícias, “Deputado Daniel Silveira é preso por ordem do ministro Alexandre de Moraes”. Disponível em:

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[4] QUEIROGA, Louise. “Casos de homicídio por motivação política marcaram reta final da eleição; relembre”, O Globo, 02 de Outubro de 2022. Disponível em:

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