PROCEDIMENTO E DIREITO DE PRESENÇA NO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

PROCEDIMENTO E DIREITO DE PRESENÇA NO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

30 de setembro de 2024 Off Por Cognitio Juris

PROCEDURE AND RIGHT TO BE PRESENT IN THE INTERNATIONAL CRIMINAL COURT

Artigo submetido em 06 de agosto de 2024
Artigo aprovado em 15 de agosto de 2024
Artigo publicado em 30 de setembro de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 56 – Setembro de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Alexandra Pinheiro de Castro[1]

Resumo: O artigo examina a importância do TPI a partir dos seus antecedentes históricos e seu papel na consolidação da justiça penal internacional. Estuda-se sua estrutura organizacional, os crimes sob sua jurisdição (genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão), e os critérios territoriais, temporais e de complementaridade que determinam a competência da Corte. Após estudo sobre o procedimento no TPI, analisa-se o direito de presença do acusado como garantia fundamental estabelecida no Estatuto de Roma. O artigo explora a importância e os desafios do direito de presença, destacando casos notórios que ilustram a repercussão do direito de presença no TPI. O estudo demonstra a complexidade do sistema do TPI em lidar com diferentes situações envolvendo o direito de presença, enfatizando a necessidade de cooperação internacional para garantir a efetiva administração da justiça penal internacional.

Palavras-Chave: Tribunal Penal Internacional (TPI), procedimento, direito de presença.

Abstract: The article examines the importance of the International Criminal Court (ICC) from its historical background and its role in consolidating international criminal justice. It studies the organizational structure of the ICC, the crimes under its jurisdiction (genocide, crimes against humanity, war crimes, and crimes of aggression), and the territorial, temporal, and complementarity criteria that determine the Court’s jurisdiction. After studying the procedure in the ICC, the article analyzes the right of the accused to be present as a fundamental guarantee established in the Rome Statute. The article explores the importance and challenges of the right of presence, highlighting notable cases that illustrate the impact of this right in the ICC. The study demonstrates the complexity of the ICC system in dealing with different situations involving the right of presence, emphasizing the need for international cooperation to ensure the effective administration of international criminal justice

Keywords: International Criminal Court, Procedure, Right to be present

1.Introdução

            O Tribunal Penal Internacional (TPI) representa um avanço significativo na justiça penal internacional, estabelecendo uma instância permanente e independente para julgar os crimes mais graves de preocupação global, quais sejam, genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. A criação do TPI é fruto de um longo processo histórico que começou com os julgamentos de Nuremberg e Tóquio, que, pela primeira vez, responsabilizaram indivíduos por atrocidades cometidas em conflitos armados. Esses tribunais ad hoc estabeleceram precedentes importantes, mas também revelaram a necessidade de uma corte internacional permanente.

            A consolidação do TPI, formalizada pelo Estatuto de Roma em 1998, foi o desfecho de décadas de esforços para criar uma instituição capaz de garantir a responsabilização por crimes que afetam a comunidade internacional. Desde sua entrada em vigor em 2002, o TPI tem desempenhado um papel crucial na promoção da justiça global, apesar dos inúmeros desafios, incluindo a necessidade de cooperação internacional e a complexidade de processar crimes de extrema gravidade.

            O presente artigo explora os antecedentes e o estabelecimento do TPI, sua estrutura organizacional, jurisdição e os procedimentos envolvidos em seus julgamentos. Além disso, examina o direito de presença do acusado, garantia fundamental para assegurar um julgamento justo e equitativo.

            Depois de analisado o direito de presença e seu estabelecimento no Estatuto de Roma, examina-se as exceções a esse direito. São analisados casos notórios que ilustram a aplicação prática do direito de presença e suas repercussões. Por fim, analisa-se os desafios enfrentados pelo TPI na implementação de sua missão.

2. Antecedentes e estabelecimento do Tribunal Penal Internacional

            A criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) representa um marco significativo na história da justiça penal internacional.

            As raízes do TPI remontam os julgamentos de Nuremberg e Tóquio, realizados após a Segunda Guerra Mundial, que foram os primeiros a responsabilizar um indivíduo, em âmbito internacional, pelas atrocidades praticadas no contexto da guerra. Esses tribunais ad hoc estabeleceram precedentes importantes ao afirmar a responsabilidade individual por crimes cometidos durante conflitos armados, marcando uma mudança paradigmática na abordagem da justiça internacional.

            Os julgamentos de Nuremberg (1945-1946) e Tóquio (1946-1948) foram estabelecidos pelos Aliados embasados no princípio de que certas atrocidades eram tão graves que transcendiam as fronteiras nacionais e necessitavam de uma resposta internacional. A ideia por trás dos referidos julgamentos era, portanto, de que tinha importância, para a humanidade, que indivíduos fossem criminalmente responsabilizadas por seus atos na guerra, após julgamento formal- algo inédito até então.

            O Tribunal de Nuremberg foi muito criticado, dentre outros motivos, por ter sido estabelecido “ad hoc” e por responsabilizar pessoas físicas e jurídicas por crimes ainda não devidamente tipificados no ordenamento internacional. Não há dúvidas, porém, de que nascia ali, com esses julgamentos, o primeiro antecessor do Tribunal Penal Internacional, sendo que, após os julgamentos do Tribunal Militar Internacional, ficou premente a necessidade de que houvesse um organismo com competência para julgar, criminalmente, indivíduos por suas condutas criminosas contra a humanidade em esfera internacional. Ali, pela primeira vez, pessoas físicas responderam, pessoalmente, por seus atos criminosos no seio internacional.

            O impulso para a criação de um tribunal permanente foi revitalizado nas décadas seguintes, em decorrência de conflitos na ex-Iugoslávia e em Ruanda.

            Em 1993, foi instalado, em Haia, mais um tribunal “ad hoc”, destinado a apurar e processar os crimes ocorridos após a desintegração da Iugoslávia. Com a extinção da República Iugoslava, diversos conflitos eclodiram naquele território. Comissões da ONU, “in loco”, depararam-se com casos graves de crimes contra a humanidade e denúncias de genocídio, percebendo-se, outrossim, que havia, naqueles conflitos, caráter de “depuração étnica”. JAPIASSU (2020, p. 212) explica:

No relatório final, a Comissão criada pela Resolução 780 (1992), por seu turno, considerou que depuração étnica é uma “política deliberada, concebida por um grupo étnico ou religioso para deslocar através da violência e do terror a população civil de outro grupo étnico ou religioso de determinadas zonas geográficas. Em grande medida, esta política pé aplicada em nome de um nacionalismo mal entendido, de ofensas históricas e de um forte desejo de vingança”.

             Diante do que foi observado, o Conselho de Segurança da ONU decidiu criar aquele que ficou conhecido como “Tribunal Internacional para a ex-Iugoslávia”. Tal tribunal, que funcionou até 2017, condenou 90 indivíduos por seus crimes contra humanidade.

            O Tribunal Penal Internacional para Ruanda também consistiu em tribunal “ad hoc”, instalado pelo Conselho de Segurança da ONU, em 1994, para processar os criminosos de guerra envolvidos no genocídio dos indivíduos tutsis e hutus moderados, em conflito civil que resultou na morte de mais de 500 mil indivíduos. Sediado na Tanzânia, o referido tribunal funcionou até 2015.

            O fato é que esses tribunais ad hoc escancararam a necessidade de que houvesse julgamentos internacionais em resposta a crimes graves e reforçaram a necessidade de uma instituição permanente. A experiência adquirida e as lições aprendidas nesses tribunais ad hoc foram essenciais para moldar a estrutura e os procedimentos do futuro Tribunal Penal Internacional.

            A partir de 1991, a Comissão de Direito Internacional da ONU passou a discutir a criação de uma Corte penal internacional, que tivesse caráter permanente. Ali, criou-se um comitê responsável pela elaboração de um Tratado multilateral que estabeleceria um tribunal penal internacional permanente.

            Em 1998, na Conferência Diplomática das Nações Unidas de Roma, que ocorreu ente junho e julho, foi aprovado o Estatuto de Roma, instrumento legal que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional.  Assinado inicialmente por 120 países, o Estatuto entrou em vigor em 1º de julho de 2002, após a ratificação de 60 Estados. Este marco histórico representou a realização de décadas de esforço em prol do estabelecimento de uma Corte internacional permanente e independente, apta a julgar os crimes mais graves de preocupação internacional. A partir dali, a humanidade contaria com um organismo permanente, mantido com os esforços dos próprios Estados-membros, apto a processar e julgar indivíduos por determinados crimes.

.3. Estrutura do Tribunal Penal Internacional

            O Tribunal Penal Internacional (TPI) opera na persecução e julgamento dos crimes mais graves de preocupação internacional, sobre os quais adiante se discorrerá. Sua estrutura organizacional e jurisdição está delineada pelo Estatuto de Roma, que estabelece as bases legais e operacionais do tribunal.

A estrutura do TPI inclui: a Assembleia dos Estados Partes (que toma decisões sobre a administração da Corte, o orçamento e a adoção de emendas ao Estatuto de Roma), o que se dá em reuniões anuais e os órgãos internos, quais sejam, Presidência, Câmaras de Julgamento, Gabinete da Procuradoria e a Secretaria.

            As Câmaras de Julgamento são divididas em três seções, que desempenham funções específicas dentro do processo judicial.: Seção de Recursos (Appeal Division), Seção de Julgamento em Primeira Instância (Trial Division) e Seção de Instrução (Pre-Trial Division).

A Seção de Recursos, composta por cinco juízes (Presidente e a mais quatro juízes), tem atribuição para julgamento de apelações contra decisões das outras Câmaras. O Juízo de Recursos é composto por todos os juízes que integram a Seção de Recursos.

 A Seção de Julgamento em Primeira Instância, composta por seis juízes, tem atribuição para conduzir os julgamentos dos casos apresentados pela Promotoria. O Juízo de Julgamento de Primeira Instância é composta por três dos juízes que compõe a Seção de Julgamento em Primeira Instância (art. 39, 2, II, do Estatuto de Roma).

 A Seção de Instrução, também composta por seis juízes, é responsável por questões preliminares, como a confirmação de acusações e a emissão de mandados de prisão. As funções do Juízo de Instrução serão desempenhadas por três juízes da Seção de Instrução ou por um só juiz da referida Seção (art. 39, 2, III, do Estatuto de Roma).

            A Procuradoria é liderada pelo Procurador, eleito pela Assembleia dos Estados Partes. O Procurador, atuando de forma independente, é responsável por iniciar investigações e conduzir a acusação junto ao TPI.

            A Secretaria, por sua vez, é responsável pela gestão administrativa e pelos serviços não judiciais do tribunal, incluindo o apoio logístico e financeiro, além de assistência a vítimas e testemunhas.

4.Jurisdição do TPI

4.1 Genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão

            O TPI tem atribuição para julgar indivíduos por quatro categorias de crimes, conforme delineado no Estatuto de Roma: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão.

            O genocídio, definido no artigo 6º do Estatuto de Roma, inclui atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Exemplos de atos de genocídio incluem homicídio de membros do grupo, causação de graves danos físicos ou mentais, e imposição de condições de vida destinadas a destruir o grupo.

            O termo “genocídio” foi cunhado, pela primeira vez, por Raphael Lemkim, advogado polonês que se estabeleceu nos Estados Unidos durante a expansão nazista. Em seu livro “Axis Rules in Occupied Europe”, o termo “genocídio” aparece de forma inédita. Com o fim da Segunda Grande Guerra e o estabelecimento do Tribunal Militar Internacional, Lemkin chegou a trabalhar como assessor daquela Corte e esforçou-se para que o termo “genocídio” constasse nas atas de trabalho, o que, entretanto, não ocorreu.

            O conceito de “genocídio”, tal como cunhado por Lemkin, tem aspecto mais amplo do que aquele estabelecido no artigo 6º, do Estatuto de Roma[2]. Para o advogado, seria possível conceber a ocorrência de genocídio mesmo que a intenção de destruição de grupo atingisse o “espírito do grupo” e não seus membros no aspecto físico. No conceito original, portanto, tutelava-se aspectos culturais e econômicos, além do físico.

            A definição legal de “genocídio” que hoje está no Estatuto de Roma é aquela que já constava na Convenção para Prevenção do Genocídio de 1946 e tal é marcada pela intenção de destruir um grupo (étnico, racial ou religioso), em seu aspecto físico, por meios das condutas descritas no art. 6º, do Estatuto de Roma.

            Sabe-se que, quando da aprovação da Convenção para a Prevenção do Genocídio de 1946, tanto União Soviética quanto Estados Unidos peticionaram contra a definição de genocídio nos termos propostos por Lemkin, sendo notória a preocupação estadunidense de ser acusada de genocídio contra a população negra.

            Em relação à definição legal de genocídio, importante destacar que sua ideia é de preservar a identidade e diversidade na humanidade. Mais: o grupo tutelado pelo tipo é aquele estável e não móvel, ou seja, grupo do qual o indivíduo, ainda que queira, não consegue se desvencilhar e que é notado por características perceptíveis. JAPIASSÚ (2020, p. 132) explica que:

O Tribunal Penal Internacional para Ruanda, no caso Akayesu mencionou que grupos estáveis seriam aqueles constituídos de maneira permanente e que, pertencer a eles, seria determinado pelo nascimento, com a exclusão de grupos mais móveis m aos quais pode o indivíduo aderir por compromisso voluntário, como ocorre nos grupos políticos.

            É possível haver configuração de genocídio ainda que um único indivíduo seja vitimado, sendo essencial, todavia, que seja aferível o dolo específico, é dizer: a consciência e vontade de destruir o grupo.

            Os crimes contra a humanidade, definidos no artigo 7º, são atos cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil, com conhecimento do ataque. Esses atos incluem homicídio, extermínio, escravidão, deportação, tortura, agressão sexual e desaparecimento forçado.

            Ao contrário do genocídio, termo que teve construção histórica bem consolidada, o conceito de “crimes contra a humanidade” contou com muitas divergências mesmo nas conferências de Roma que culminaram na elaboração do Estatuto de Roma. 

            Sabe-se que prevaleceu, no Estatuto de Roma, modelo assemelhado ao que havia sido estabelecido nos Estatutos que estabeleceram o Tribunal Penal Internacional para a Ex- Iugoslávia e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda.

            As marcas definidoras do que são que é “crime contra a humanidade” são os elementos que são denominados por JAPIASSÚ (2020, p.138) como “elementos de contexto”, sendo que, para enquadramento das condutas do art. 7º, como “crime contra a humanidade”, deve estar ausente um conflito armado, os crimes devem ocorrer de forma generalizada ou sistemática; deve estar ausente motivos discriminatórios e deve haver consciência de ataque.

            Em relação aos crimes contra a humanidade, existe um elemento político, eis que os atos devem ser praticados como política de Estado ou organização.

            Os crimes de guerra, conforme definidos no artigo 8º, do Estatuto de Roma, são violações graves das Convenções de Genebra e outras leis e costumes aplicáveis em conflitos armados. Exemplos incluem homicídio doloso, tortura, tratamento desumano e a utilização de armas proibidas.

            A definição de crimes de agressão, adotada durante a Conferência de Revisão de Kampala em 2010, inclui a planificação, preparação, iniciação ou execução, por uma pessoa em posição de controle ou direção política ou militar de um Estado, de um ato de agressão que, pela sua natureza, gravidade e escala, constitua uma violação manifesta da Carta das Nações Unidas.

4.2 Outros critérios cumulativos para atuação do TPI

            Além dos tipos de crimes que determinam sua jurisdição, o julgamento pelo TPI é exercido sob determinadas condições.

            Territorialmente, o TPI pode exercer jurisdição sobre crimes cometidos no território de um Estado-Parte ou por nacionais de um Estado-Parte.

            Existem, porém, exceções a regra de competência territorial do TPI. A primeira exceção é aquela concernente ao cap. VII da Carta da ONU. O Capítulo VII da Carta das Nações Unidas trata da ação do Conselho de Segurança da ONU em caso de ameaça à paz, ruptura da paz e atos de agressão. Ele estabelece as medidas que o Conselho de Segurança pode adotar, como sanções econômicas, embargo de armas, bloqueio ou até mesmo o uso da força militar, para lidar com situações que representem uma ameaça à paz e segurança internacionais. Essas medidas são consideradas coercitivas e têm o objetivo de restaurar a paz e segurança em nível global. Assim, nessas hipóteses, é possível que o Conselho de Segurança da ONU faça um requerimento de atuação do TPI à Procuradoria do TPI, o que pode, assim, determinar a atuação do TPI para nacionais de Estados não-membros, desde que o Estado seja membro da ONU. Uma segunda exceção concerne à atuação do TPI a nacionais de Estado que não seja parte do Estatuto de Roma, mas que faça adesão à competência do TPI (art. 12, 2, do Estatuto de Roma).

             Temporalmente, o TPI só pode julgar crimes cometidos após a entrada em vigor do Estatuto de Roma, em 1º de julho de 2002.

            Ainda, vige, quanto à atuação do TPI, o princípio da complementaridade ou subsidiariedade, que está bem delineado no art. 17, 2, do Estatuto de Roma: o TPI atua apenas quando os sistemas judiciais nacionais são incapazes ou não estão dispostos a julgar os crimes. Isso significa que o TPI atua apenas se ficar demonstrado que, no país da violação, existe processo instaurado com o propósito de subtrair a pessoa em causa à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; ter havido demora injustificada no processamento dos crimes, a revelar incompatibilidade com a intenção de fazer responder a pessoa em causa perante a justiça ou, ainda, que o processo no País de origem não está sendo conduzido de maneira independente ou imparcial.

            Há, ainda, dois critérios cumulativos à atuação do TPI: análise de gravidade e de justiça.

            O TPI atua, apenas, nos casos considerados graves, conforme determinado no art. 17, I, “d”, do Estatuto de Roma, em análise que é feita tendo em vista critérios como natureza, escala, forma de cometimento e impacto dos crimes.

            Também é feita uma avaliação analisando-se critério de justiça, em conformidade com o art. 53, I, “c”, do Estatuto de Roma: o TPI não atuará se, tendo em consideração a gravidade do crime e os interesses das vítimas, não existirem razões substanciais para crer que o inquérito serve os interesses da justiça. Aqui, novamente, faz-se uma análise casuística para determinar se a atuação do TPI trará mais benefícios do que malefícios à comunidade vítima de crimes, o que pode considerar, inclusive, a idade do presumido autor dos crimes. Foi com base nesse dispositivo que, em 2021, a Procuradoria do TPI arquivou as investigações preliminares em curso contra indivíduos colombianos por crimes ocorridos no âmbito daquele país envolvendo os conflitos históricos com as FARCs, o que ocorreu após os Acordos de Paz celebrados no País em 2016.

5. Procedimento no TPI

            O processo no TPI começa com a investigação preliminar, que pode ser iniciada de três formas: por resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas (o que ocorreu, por exemplo, no caso da Líbia, com ações contra Muammar al-Gaddafi e outros- Resolução 1970, do Conselho de Segurança da ONU); por requerimento de Estado- Parte do Estatuto de Roma (o que ocorreu, por exemplo, em caso envolvendo conflitos armados na Uganda, em ações contra Ongwen e Kony) , ou, por iniciativa do próprio Procurador do TPI, que decide conduzir investigações preliminares a partir do recebimento de notícias de crimes (o que ocorreu, por exemplo, em casos envolvendo o Quênia, em ações contra Ruto e Sang).

            O Procurador conduz as investigações preliminares e então determina se há fundamento razoável (reasonable basis )para proceder com uma investigação completa, com abertura de inquérito (art. 53, do Estatuto de Roma).

Se concluir que uma investigação completa deve ser levada a cabo (abertura de inquérito), nos casos em que as investigações preliminares tiveram início por iniciativa do próprio Procurador, ele deve pedir autorização ao Juízo de Instrução (art. 15, 3, do Estatuto de Roma). Aqui, as vítimas podem representar junto ao Juízo de Instrução em apoio à abertura do inquérito. Esta é, diga-se de passagem, uma das características marcantes do procedimento no TPI: as vítimas têm papel de destaque, sendo ouvidas e comparecendo nas sessões de julgamento.

Encerradas as investigações preliminares, se houver conclusão pelo arquivamento, o Procurador deve fazer comunicações aos Estados-membros e ao Conselho de Segurança da ONU, conforme tenha sido provocado por um ou outro. Nessas hipóteses, Estado e Conselho de Segurança da ONU podem requerer, ao Juízo de Instrução, que faça solicitação de reconsideração à Procuradoria (art. 53, 3, “a”, do Estatuto de Roma).

Nas hipóteses em que o Procurador entender pelo arquivamento em razão da inexistência de atendimentos aos critérios de justiça e gravidade, acima mencionados, sua decisão de não abrir inquérito somente terá validade se tal for confirmada pelo Juízo de Instrução (art. 53, 3, “b”, do Estatuto de Roma).

      Se a análise preliminar indicar que há fundamento razoável (reasonable basis), o Procurador pode iniciar uma investigação formal (inquérito). Esta pode envolver a coleta de provas “in loco”, entrevistas com testemunhas, celebração de acordos para cooperação entre Estados ou outras organizações e envolvem, em resumo, maior esforço no sentido de angariar elementos do crime e do seu autor.

      Concluído o inquérito (ou seja, a investigação formal), entendendo o Procurador que existem motivos suficientes (reasonable grounds) para crer que determinada pessoa cometeu um crime da competência do Tribunal, deve ele solicitar ao Juízo de Instrução que emita um mandado de detenção (warrant of arrest), nos termos do art. 58, 1, do Estatuto de Roma ou que emita uma notificação para comparecimento (summons do appear)- art. 58, 7, do Estatuto de Roma.

            Este é o objeto de maior interesse do presente estudo: a necessidade improrrogável de que o acusado se apresente ou seja conduzido à Corte para que tenha início o julgamento. Sobre a presença do acusado junto ao TPI, serão tecidas maiores considerações adiante.

            Na hipótese de prisão, o acusado fica custodiado no ICC Detention Center, localizado em Haia, até a condenação definitiva. Após julgamento recursal, ele é transferido para cumprir pena em presídio de Estado voluntário.

            Apenas com a prisão ou comparecimento é que tem início a fase instrutória propriamente dita (art. 60, Estatuto de Roma).

            O primeiro ato instrutório, após a apresentação/detenção do acusado, consiste na audiência para apreciação da acusação (confirmation of charges-art. 61, do Estatuto de Roma). O Procurador, neste ato, apresenta uma lista detalhada dos fatos específicos que fundamentam as acusações e todos os elementos que o Procurador acredita que provam a culpa do acusado. Além disso, o Procurador deve apresentar provas satisfatórias dos fatos alegados, incluindo documentos e resumo de provas- não sendo obrigado a chamar testemunhas. Essas provas devem demonstrar que há uma base substancial para acreditar que o acusado cometeu o crime. O acusado poderá contestar as alegações, impugnar as provas e apresentar outras provas (art. 61, 6, Estatuto de Roma).

            Ao concluir que existem provas suficientes (substancial grounds) de que o acusado cometeu os crimes que são imputados, o Juízo de Instrução remete o caso ao juízo de Julgamento em Primeira Instância.

            O julgamento começa com a leitura das acusações contra o acusado. O tribunal assegura que o acusado compreenda a natureza das acusações. Então, ambas as partes, o Procurador e a Defesa, fazem declarações iniciais. O Procurador apresenta um resumo do caso e das provas que serão apresentadas. Há previsão de que, na hipótese de confissão, o julgamento seja abreviado (art. 65, Estatuto de Roma). A Defesa pode optar por fazer uma declaração inicial ou aguardar até a apresentação das provas. Em seguida, o Procurador apresenta suas provas, que podem incluir testemunhos, documentos, gravações, dentre outros. As testemunhas da acusação são chamadas depor e a Defesa tem o direito de confrontá-las. Após a apresentação das provas pela acusação, a Defesa apresenta suas próprias provas. Isso pode incluir testemunhas, documentos e outras capazes de refutar as alegações da acusação ou provar a inocência do acusado. O Procurador tem o direito de questionar as testemunhas da Defesa.  Após, passa-se à fase de debates (closing statements).

            Por fim, os juízes emitem uma decisão baseada nas provas e argumentos apresentados. Se o acusado for considerado culpado, pois o Tribunal se convenceu, além de qualquer dúvida razoável (beyond reasonable doubt)- art. 63, 3, do Estatuto de Roma, os juízes determinam a pena, que pode incluir penas de prisão (inclusive perpétua, nos termos do art. 77, 1, “b”, do Estatuto de Roma), mas também reparação, compensação às vítimas, entre outros.

            Ambas as partes têm o direito de apelar da sentença, nos termos do art. 81 e seguintes do Estatuto de Roma.

            Detalhado o procedimento no TPI, passa-se, então, à analise pormenorizada do direito de presença do acusado.

6.Direito de Presença do Acusado no TPI

            Já se observou que, concluído o inquérito, entendendo o Procurador que existem motivos suficientes (reasonable grounds) para crer que determinada pessoa cometeu um crime da competência do Tribunal, deve ele solicitar ao Juízo de Instrução que emita um mandado de detenção (warrant of arrest), nos termos do art. 58, 1, do Estatuto de Roma ou que emita uma notificação para comparecimento (summons do appear)- art. 58, 7, do Estatuto de Roma. Isso se dá porque, em regra, não é possível prosseguir no julgamento sem que o acusado esteja presente.

            O direito de presença do acusado nos julgamentos realizados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) é um princípio fundamental consagrado no Estatuto de Roma, especificamente no artigo 63. Este dispositivo estabelece que o acusado deve estar presente durante o julgamento, salvo em circunstâncias excepcionais que justifiquem sua ausência.

            Note-se que, mesmo nas hipóteses em que o acusado perturbe o andamento da audiência, a previsão é de que sejam esgotadas possibilidades razoáveis para que ele permaneça no local, somente se ausentando se isso se mostrar necessário, pelo tempo estritamente necessário (art. 63, 2, Estatuto de Roma) e desde que garantidos os meios técnicos para que, mesmo na ausência temporária, o acusado tenha acesso ao andamento dos trabalhos em audiência.

            Verifica-se, assim, que o direito de presença é muito caro no procedimento do TPI.

            De fato, a presença do acusado é essencial para garantir a equidade do processo e a efetividade do direito de defesa, permitindo-lhe contestar as provas apresentadas contra si, oferecer sua versão dos fatos e interagir diretamente com seu defensor.

            O Estatuto de Roma incorpora diversas garantias processuais destinadas a proteger os direitos do acusado e assegurar um julgamento justo, as quais estão dispostas, principalmente, no art. 67, do referido diploma. Entre essas garantias, destacam-se o direito a um julgamento público e equitativo, o direito de ser informado detalhadamente sobre a natureza e os motivos das acusações, o direito a tempo e facilidades adequadas para preparar a defesa, e o direito de ser assistido por um defensor de sua escolha. Essas garantias são essenciais para a manutenção de um processo justo e equilibrado, permitindo ao acusado participar de forma ativa e eficaz em sua própria defesa. Com o direito de presença não poderia ser diferente.

            No contexto do TPI, a importância do direito de presença é acentuada devido à natureza dos crimes julgados, mas também porque tal contribui para a transparência e a legitimidade do julgamento. A visibilidade do processo judicial, acompanhado de perto por aquele que é julgado, é crucial para a legitimidade do processo perante a comunidade internacional.

            As garantias processuais estabelecidas pelo Estatuto de Roma refletem um compromisso com os princípios do devido processo legal e da justiça equitativa. Esses princípios são pilares do direito penal internacional, assegurando que os julgamentos realizados pelo TPI sejam conduzidos de maneira justa, transparente e respeitosa dos direitos humanos, o que inclui, evidentemente, o direito de presença.

            A adesão a esses princípios não apenas fortalece a legitimidade do TPI, mas também contribui para o fortalecimento das normas internacionais de direitos humanos.

            Contudo, apesar dessas garantias robustas, o TPI enfrenta desafios significativos na implementação prática do direito de presença. Em muitos casos, a localização e a captura de acusados podem ser difíceis devido à falta de cooperação de alguns Estados, o que indica que os próprios julgamentos ficam inviabilizados.

            Em conclusão, os princípios e garantias processuais estabelecidos no Estatuto de Roma são fundamentais para a operação do TPI e para a proteção dos direitos dos acusados. O direito de presença do acusado é central para assegurar um julgamento justo e equitativo, permitindo a plena participação do acusado em sua defesa e contribuindo para a transparência e a legitimidade do processo judicial. A observância rigorosa dessas garantias processuais é essencial para a manutenção da integridade e da eficácia do sistema de justiça penal internacional.

7. Exceções ao direito de presença

            Embora o direito de presença do acusado seja um princípio fundamental no Tribunal Penal Internacional (TPI), consagrado no artigo 63 do Estatuto de Roma, existem circunstâncias excepcionais em que o Tribunal pode prosseguir com os julgamentos na ausência do acusado. Essas exceções são cuidadosamente delimitadas.

            O artigo 63, 2, do Estatuto de Roma, já mencionado acima, prevê que, se o acusado se comportar de maneira a perturbar repetidamente o andamento dos trabalhos no Tribunal, ele pode ser removido da sala de audiências. Esta remoção pode ocorrer apenas após o Tribunal emitir advertências apropriadas e, mesmo que o acusado seja removido, ele deve ser capaz de seguir os procedimentos e de se comunicar com seus advogados. Isso assegura que o acusado ainda possa participar efetivamente na sua defesa, mesmo que não esteja fisicamente presente na sala de audiência temporariamente.

            A hipótese de perturbação dos trabalhos é a única em que se admite a ausência do acusado durante a audiência de julgamento em Primeiro Grau. Entretanto, em momentos anteriores, é possível a realização de determinados atos de instrução “in absentia”.

            Por outro lado, prevê o artigo 61, do Estatuto de Roma, que, se o acusado tiver sido devidamente notificado sobre a audiência de confirmação das acusações e decidir não comparecer, renunciando ao direito de estar presente ou, ainda, se tiver fugido, não sendo possível encontrá-lo, o Tribunal pode decidir prosseguir com os trabalhos da audiência de confirmação da acusação sem o indivíduo, desde que se conclua que isso serve aos interesses da justiça. Neste caso, é fundamental que o acusado tenha a possibilidade de ser representado por advogados e uma série de atos têm lugar, como, por exemplo, a determinação de que o acusado receba uma cópia do documento especificando as acusações.

            A regra 124 das “Regras de Procedimentos e de Prova” do TPI é aquela que permite que o acusado renuncie ao direito de estar presente.

            Note-se que, nos termos do art. 61, do Estatuto de Roma, mesmo que o acusado esteja foragido, caso isso sirva aos interesses da justiça, é possível levar a cabo a audiência de confirmação da acusação “in- absentia”.

            A disposição do artigo 61, do Estatuto de Roma visa evitar que a ausência voluntária do acusado impeça a administração da justiça. Em tais casos, é fundamental que o tribunal tenha tomado todas as medidas razoáveis para assegurar a presença do acusado antes de decidir proceder sem ele. A decisão de continuar o julgamento “in-absentia” deve ser baseada em evidências claras de que o acusado está ciente das acusações e do processo em andamento.

            Em dezembro de 2022, o Procurador em exercício no TPI, Karim A.A Khan KC, explicou sua decisão por encerrar as investigações relacionadas aos crimes em Uganda, requerendo fosse designada audiência “in-absentia” em relação ao acusado Joseph Kony, foragido desde 2005. O Procurador, então, explicou que esse procedimento faria com que o TPI “entregasse justiça às muitas vítimas que sofreram os atos criminosos perpetrados pelo acusado, sendo que a audiência na ausência do acusado fariam parte de estratégia da Procuradoria para causar impacto na vida de quem sofreu com os crimes”.[3]

            É de se questionar se a “estratégia” da Procuradoria é compatível com a tutela dos direitos dos acusados.

            A possibilidade de julgamentos “in absentia” no TPI- ao menos em relação à audiência de confirmação de acusação, é ferramenta para evitar a obstrução da justiça, mas deve ser utilizada com extrema cautela, notadamente porque coloca em risco garantia fundamental do acusado.

            A decisão de proceder com um julgamento na ausência do acusado não é tomada levianamente. O Tribunal deve garantir que todas as condições legais e processuais sejam rigorosamente observadas.

            A integridade e a legitimidade do Tribunal dependem de sua capacidade de equilibrar a necessidade de conduzir julgamentos eficazes com o respeito intransigente aos direitos processuais dos acusados- sem o qual o próprio conceito de justiça penal perde o sentido.

            Pode-se afirmar, assim, que as exceções ao direito de presença do acusado no TPI são cuidadosamente delimitadas pelo Estatuto de Roma (e pormenorizadas nas Regras de Procedimentos e de Prova” do TPI ) para garantir que a justiça seja realizada de forma justa e eficiente.

            O tribunal deve tomar todas as medidas necessárias para assegurar a presença do acusado, aplicando exceções apenas em circunstâncias excepcionais e bem justificadas, mantendo sempre o compromisso com os princípios fundamentais de um julgamento justo e equitativo.

8.Estudos de Casos: O Direito de presença nos julgamentos pelo TPI e suas repercussões

            A aplicação prática do direito de presença do acusado e as exceções permitidas pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) podem ser estudadas em casos notórios. Esses casos destacam a complexidade de equilibrar os direitos dos acusados de presença- e seus efeitos no julgamento, com a necessidade de promover a justiça em julgamentos na justiça penal internacional.

Um caso significativo é o de Jean-Pierre Bemba, ex-vice-presidente da República Democrática do Congo, acusado de crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos entre outubro de 2002 e março de 2003 na República Centro-Africana. As forças do MLC, sob o comando de Bemba, foram enviadas à RCA para apoiar o então presidente Ange-Félix Patassé contra uma tentativa de golpe. Durante este período, foram cometidos diversos abusos contra civis, incluindo homicídios, estupros, saques. As acusações específicas incluíam crimes de Guerra (homicídios, estupros) e crimes contra a Humanidade (homicídios e estupros). Bemba foi preso na Bélgica em maio de 2008 e transferido para o TPI, em Haia, onde foi formalmente acusado. O julgamento teve início em novembro de 2010 e as discussões principais travadas diziam respeito à comprovação do controle que o acusado tinha sobre as tropas do MLC.

Durante o julgamento, Bemba esteve presente na maior parte das audiências, exercendo ativamente seu direito de defesa. Ele forneceu sua versão sobre os fatos a ele imputados, argumentando, em suma, na condição de líder do MLC, ele não tinha controle direto sobre as operações diárias das tropas quando elas estavam na RCA. Ele sustentou que, uma vez que as tropas estavam sob o comando das autoridades centro-africanas, sua capacidade de influenciar suas ações era limitada. Acrescentou que tomou medidas razoáveis para disciplinar as tropas e prevenir crimes, incluindo a implementação de um código de conduta e a realização de investigações sobre alegações de abusos.

Este caso ilustra a importância da presença do acusado para assegurar a transparência e a legitimidade do processo judicial, permitindo uma defesa robusta e participativa, possibilitando que o acusado confrontasse as provas contra ele produzidas.

Apesar de condenado a 18 anos de prisão em Primeira Instância, Bemba foi absolvido após fase recursal.

            Outro caso relevante é o de Ahmad Al Faqi Al Mahdi, acusado de crimes de guerra pela destruição de sítios culturais em Timbuktu, Mali. Este julgamento ganhou notoriedade, pois foi o primeiro do TPI concernente à destruição de patrimônios culturais como crime de guerra.

            Al Mahdi, membro do grupo extremista Ansar Dine, foi acusado de crimes cometidos em Timbuktu, Mali, em 2012, tendo sido ele imputado como responsável pela destruição de edifícios históricos e religiosos, incluindo nove mausoléus e uma mesquita em Timbuktu, todos patrimônios mundiais da UNESCO. Al Mahdi foi preso no Níger em 2015 e transferido para o TPI em Haia.

            Al Mahdi compareceu em juízo e admitiu sua culpa, de tal sorte que teve um julgamento mais breve. Ao final, foi ele condenado, em setembro de 2016, à pena de 09 anos de prisão. Aqui é importante destacar que a presença do acusado no Tribunal foi fundamental no sentido de se fornecer uma resposta à comunidade internacional, dada pelo próprio acusado, que reconheceu sua conduta e o crime dela decorrente.

            A confissão de culpa de Al Mahdi pode ser vista como passo positivo para a justiça internacional e algo significativo para as comunidades afetadas por sua conduta em Timbuktu, o que indica, mais uma vez, agora por um outro aspecto, os reflexos positivos de se garantir o direito de presença.

            Por outro lado, o caso de Joseph Kony, líder do Exército de Resistência do Senhor (LRA), na Uganda, ilustra os desafios enfrentados pelo TPI em assegurar a presença do acusado. Em 2005, o TPI expediu mandado de prisão por crimes de guerra e crimes contra a humanidade em desfavor de Kony, que permanece foragido. A ausência de Kony tem impedido o progresso do julgamento, o que é problemático, considerando-se que a necessidade de se dar uma resposta às condutas gravosas. Como já assinalado acima, neste caso, a Procuradoria solicitou que fosse iniciado o julgamento “in-absentia”, com a realização da audiência de confirmação da acusação sem a presença do acusado.

            O caso Kony explicita as limitações do TPI em fazer cumprir seus mandados de prisão sem a cooperação dos Estados e sublinha a importância da cooperação internacional e os obstáculos que a ausência do acusado pode representar para a justiça penal internacional. Exemplo semelhante é o caso de Omar Al-Bashir, ex-presidente do Sudão, acusado de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra em Darfur. Em 2009, foi expedido mandado de prisão em seu desfavor pelo TPI, mas, apesar do mandado de prisão emitido, ele conseguiu evitar a captura, viajando para vários países que se recusaram a entregá-lo ao TPI (inclusive a África do Sul).

            Estes dois últimos casos evidenciam as dificuldades práticas e políticas na execução dos mandados de prisão do TPI, especialmente quando os acusados são figuras influentes, com considerável poder político em seus Estados de origem.

            Esses casos práticos demonstram a aplicação dos princípios e garantias processuais estabelecidos pelo Estatuto de Roma, bem como as exceções ao direito de presença do acusado e foram capazes de ilustrar a flexibilidade e a complexidade do sistema do TPI em lidar com diferentes situações e a importância da presença do acusado para a transparência e a legitimidade do processo judicial. Ao mesmo tempo, destacam os desafios significativos que o TPI enfrenta em assegurar a presença dos acusados e a necessidade de cooperação internacional para a efetiva administração da justiça.

            A jurisprudência do TPI continua a evoluir, inclusive quanto ao direito de presença, enfrentando e adaptando-se às complexidades dos casos internacionais levados a julgamento.

9. Conclusões

            A criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) representa um marco significativo na evolução da justiça penal internacional, estabelecendo uma instância permanente de julgamento dos crimes mais graves de preocupação global:  genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. Este avanço foi o resultado de um processo histórico que começou com os julgamentos de Nuremberg e Tóquio, passando pelos tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia e Ruanda, até a adoção do Estatuto de Roma em 1998.

            O TPI possui uma estrutura complexa, composta por várias Câmaras de julgamento, uma Procuradoria independente e uma Secretaria Administrativa, todas voltadas para a efetiva administração da justiça. A jurisdição do TPI está claramente delineada, com base em critérios territoriais, temporais e de complementaridade, garantindo que apenas os crimes mais graves sejam julgados e que a justiça internacional atue de maneira complementar aos sistemas judiciais nacionais.

            O direito de presença do acusado no TPI é garantia fundamental, assegurado pelo Estatuto de Roma e é crucial para a legitimidade e a transparência dos julgamentos.

            No entanto, o TPI enfrenta desafios significativos na implementação prática desse direito, especialmente quando os acusados conseguem evitar a captura. Casos como os de Joseph Kony e Omar Al-Bashir destacam as dificuldades na execução de mandados de prisão sem a cooperação dos Estados, sublinhando a necessidade de um esforço internacional coordenado para garantir que a justiça seja feita.

            Por outro lado, casos como os de Jean-Pierre Bemba e Ahmad Al Faqi Al Mahdi demonstram a importância e os benefícios da presença do acusado, tanto para a defesa robusta quanto para a obtenção de respostas à comunidade internacional

             A jurisprudência do TPI continua a evoluir, enfrentando as complexidades dos casos internacionais e adaptando-se para garantir que os princípios de justiça e equidade sejam mantidos.

            O TPI é uma instituição crucial na construção de uma sociedade não assolada por crimes atrozes, que afetam a comunidade internacional. A manutenção de suas normas e procedimentos, incluindo o direito de presença do acusado, é vital para a eficácia e legitimidade do sistema de justiça penal internacional.

10. Referências

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

GIACOMOLLI, Nereu J. O Devido Processo Penal, 3ª edição. Grupo GEN, 2016. E-book. ISBN 9788597008845. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597008845/. Acesso em: 05 mar. 2024.

JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Direito Penal Internacional. São Paulo: Editora Tirant Lo blanch, 2020.

LOPES JUNIOR., Aury L.Direito processual penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553626355/. Acesso em: 04/06/2024.

MONTEIRO, Marco Antônio C. Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Direito Interno, 1ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. E-book. ISBN 9788502140448. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502140448/. Acesso em: 19 mar. 2024.

PERRONE-MOISÉS, Cláudia. Direito internacional penal: imunidades e anistias. Editora Manole, 2012. E-book. ISBN 9788520449189. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788520449189/. Acesso em: 18 mar. 2024.

PIOVESAN, Flávia Cristina. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

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SILVA, Marco Antonio Marques da; COSTA, José de Faria  (Coords.)  Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais: Visão Luso-Brasileira. São Paulo, Editora Quartier Latin, 2006.

TPI: https://www.icc-cpi.int/. Acesso em: 18 mar. 2024


[1] Mestranda em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Defensora Pública do Estado de São Paulo.

[2] Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “genocídio”, qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:  a) Homicídio de membros do grupo;  b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo;  c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial;  d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.

[3] https://esil-sedi.eu/esil-reflection-the-icc-and-in-absentia-proceedings-finding-a-response-to-the-difficulties-of-executing-arrest-warrants/