POLÍCIA E PANDEMIA: EXCEPCIONALIDADE E OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA

POLÍCIA E PANDEMIA: EXCEPCIONALIDADE E OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA

14 de agosto de 2022 Off Por Cognitio Juris

POLICE AND PANDEMIC: EXCEPTIONALITY AND CONSCIOUSNESS OBJECTION

Cognitio Juris
Ano XII – Número 42 – Edição Especial – Agosto de 2022
ISSN 2236-3009
Autores:
Geilson Nunes[1]
Jefferson Aparecido Dias[2]
Heloisa Helou Doca[3]
Valfredo de Andrade Aguiar Filho[4]

RESUMO: O presente artigo se dedica a analisar, sob uma perspectiva da ordem pública e em situações de excepcionalidade, como a vivenciada na crise sanitária da Covid-19, a possibilidade da invocação de objeção de consciência por parte do agente policial, com o fito de não cumprir determinação que entenda ferir sua moral e que esteja em colisão contra direitos fundamentais. Para o aperfeiçoamento da investigação científica, foi utilizado o método dedutivo e realizada pesquisa de caráter bibliográfico e documental. Examinaram-se os institutos da objeção de consciência, desobediência civil e resistência em seu formato dentro do Estado Democrático de Direito. Em conclusão, ficou consignado na pesquisa a importância da ordem pública e da segurança pública para o Estado Democrático de Direito e que aquele que faz cumprir as leis e a promoção dos direitos humanos é também um sujeito de direitos e liberdades fundamentais, podendo se escudar em uma objeção de consciência para não cumprir determinações que atinjam sua esfera de liberdade de consciência, ficando isento de eventual responsabilização penal ou administrativa.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Liberdade. Situações de excepcionalidade. Instrumentos de consciência. 

ABSTRACT: This article is dedicated to analyzing, from a public order perspective and in exceptional situations, such as that experienced in the Covid-19 health crisis, the possibility of invoking conscientious objection by the police officer, with the aim of not comply with a determination that it understands to violate its morals and that is in conflict with fundamental rights. For the improvement of scientific investigation, the deductive method was used and bibliographic and documentary research was carried out. The institutes of conscientious objection, civil disobedience and resistance in their format within the Democratic State of Law were examined. In conclusion, the research emphasizes the importance of public order and public security for the Democratic State of Law and that the one who enforces the laws, and the promotion of human rights is also a subject of fundamental rights and freedoms, being able to hide in a conscientious objection to not comply with determinations that affect their sphere of freedom of conscience, being exempt from possible criminal or administrative liability.

Keywords: Fundamental rights. Freedom. Exceptional situations. Consciousness instruments.

1 INTRODUÇÃO

É notório que a pandemia de Covid-19 atingiu as pessoas de formas diferentes no que tange às suas consequências na saúde, na economia e outros direitos essenciais e escancara ainda mais as desigualdades que já existiam, produzindo ofensas à dignidade da pessoa humana em sua forma concreta e também na fruição de direitos e garantias fundamentais.

No caso brasileiro, o Governo Federal editou a Lei 13.979/20, que, sendo alvo de ação direta de inconstitucionalidade, ao argumento de que o Poder Executivo Federal concentrava as competências para legislar durante a crise sanitária, acabou por ser  flexibilizada, tendo sido alargada a competência concorrente para os Estados e Municípios legislarem sobre matéria de saúde relativas à pandemia da Covid-19.

Os Estados e Municípios regulamentaram a referida lei, muitas vezes sem editar novas leis, surgindo decretos autônomos das mais diversas formas, não existindo uma linha de equilíbrio entre as medidas adotadas em todos os entes da federação, provocando uma quantidade de medidas díspares.

Além disso, o Brasil, em face de suas dimensões continentais e as já conhecidas desigualdades regionais, tais medidas tiveram reflexos diferentes nas pessoas, em suas variadas classes sociais. Com isso, as medidas de isolamento e restrições impostas pelos decretos dos poderes locais fizeram com que pessoas pobres, pequenos empresários, pequenos comerciantes, microempresas e empresas de pequeno porte, que inclusive gozam de proteção constitucional por se constituírem na maior rede e geração de riqueza e fonte produtora, sofressem os mais relevantes impactos negativos.

Tal situação de desigualdade faz surgir na sociedade os atos de desobediência civil por parte dos menos favorecidos e principais afetados pelas medidas de restrição, que passaram a descumprir as ordens emanadas pelo poder local, como o fechamento de comércio, restrição de horários, toques de recolher, uso de máscaras, aglomeração de pessoas e outras. Coube então à Polícia, como o braço armado do Estado, fazer cumprir a norma e controlar a população, um poder e controle disciplinar.

O encarregado de fazer cumprir a lei, o policial, se depara com uma situação de aparente legalidade; contudo, ao perceber que o tratamento às pessoas está sendo levado a efeito de forma diferente, e não com esteio na igualdade que deve ser estendida a todos, vê-se movido por uma força de caráter moral que o impede, por objeção de consciência, de cumprir esses decretos nessa situação excepcional e extrema de pandemia. Nesse cenário, pode esse policial alegar objeção de consciência para deixar de cumprir a regra que entende imoral? Essa é a principal pergunta que se pretende responder neste artigo, por meio de um estudo que adota o método dedutivo e se utiliza de pesquisa bibliográfica e documental.

2. OS INSTITUTOS DA OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA, DESOBEDIÊNCIA CIVIL E RESISTÊNCIA

A liberdade tem e deve ter limitações para não estabelecer um ambiente de desigualdade, no qual a maioria irá se sobrepor à minoria. É essa liberdade que cria no ser humano a capacidade de se contrapor aos mandamentos do Estado, questionar a legitimidade das leis e dos poderes, fazendo-o de forma coletiva ou individual, na busca de mudanças que possam ser ideais de estruturação social, podendo ter a roupagem de objeção de consciência, desobediência civil ou resistência.

O dever de obediências às leis é um fundamento que está na essência da sociedade, que é regida pelos imperativos da legalidade, como uma referência ao Estado onde se vive e tem como seu solo, sua terra, sua nação. Contudo, situações podem ocorrer em que, se manifestando situações que repute ser ilegal, podem ocorrer, dentro de um Estado constitucional democrático, situações de desobediência, resistência e objeção de consciência.

No que tange à objeção de consciência, Fernando Armando Ribeiro (2004, p. 337) destaca existirem várias definições, constituídas por dois elementos básicos, sendo um deles a intenção de não cumprir um dever jurídico imposto por uma norma ou por uma autoridade e, em outro aspecto, o imperativo de consciência, consubstanciado a partir de exigência ética, religiosa, moral, filosófica ou humanitária.

No mesmo sentido, conforme destaca Gomes (2012, p. 122), a objeção de consciência é uma das garantias do exercício da liberdade de consciência religiosa, filosófica, ética e política, como espécie do direito à liberdade de pensamento. Seu grau de tutela se origina do Direito Internacional Público, que  tem por finalidade uniformizar matérias de relevante interesse aos Estados dentro da sociedade internacional, como os temas que versam sobre direitos humanos.

Em âmbito internacional, a objeção de consciência está prevista na Resolução nº 1998/77, da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, que trata do serviço militar obrigatório e a possibilidade de, por razões de consciência, o cidadão se opor à sua realização.

Em âmbito interno, no início do século XX começaram a surgir as primeiras legislações tratando da objeção de consciência, podendo ser mencionado a Noruega (1902), Austrália (1903), Nova Zelândia e África do Sul (1912), Canadá, Dinamarca, Estados Unidos e Holanda (1917) e Suécia (1920) (CORREIA, 1993, p. 96-97).

Além desses, também pode ser citada a Alemanha que, segundo Gomes (2012, p. 128), é um dos países onde ocorre o maior número de objetores no mundo, pois cerca de cem mil requerimentos já teriam sido apresentados, com base no art. 12, letra “a”, nº 2, da Lei Fundamental.

No Brasil, a objeção “por motivo de crença ou de função religiosa, nenhum cidadão brasileiro poderá ser privado de seus direitos civis e políticos nem se eximir do cumprimento de qualquer dever cívico” (art. 72, § 28).

No mesmo sentido, a Constituição Federal de 1988, no título Dos Direitos e Garantias Fundamentais, art. 5º, inciso VIII, preconiza que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.

 Já a Lei 8.239/91 estabelece a objeção de consciência para se desobrigar do serviço militar, prevendo também a prestação de serviço alternativo de natureza militar e em casos de desastres em situação de calamidade. Além disso, o Código de Processo Penal, no Capítulo II que trata do procedimento relativo aos processos da competência do tribunal do júri, traz a previsão no art. 438 sobre a possibilidade de recusa de participação no Júri por imperativos de consciência, quando dentre outros, se tratar de conflitos de valores religiosos, éticos e políticos.

Como se pode verificar, a objeção de consciência é garantida em diversos textos constitucionais e legais, como um exercício da liberdade de consciência, na fruição de direitos fundamentais.

Por outro lado, a desobediência civil, conforme Norberto Bobbio (1983, p. 336), trata-se de uma espécie de direito à resistência, tradição dominante da filosofia, consistindo em uma das situações nas quais a violação da lei é considerada eticamente justificada. Dentro das formas tradicionais de resistência, da passiva à ativa, a desobediência civil, em sentido estrito, é uma forma que se processa dentro do ordenamento jurídico, destacável dentre as várias modalidades possíveis do direito de resistência.

No entendimento de Rawls (1993, p. 404), a desobediência civil é caraterizada por um ato público, não violento, consciente e não obstante um ato político, contrário à lei, geralmente praticado com o objetivo de provocar uma mudança na lei e nas políticas de governo. É uma forma de garantir justiça, em que a maioria é forçada a considerar os interesses da minoria. Nesse sentido, a desobediência civil é mais uma motivação pelo senso de justiça que por razões religiosas ou outras convicções pessoais.

Conforme Maria Garcia (1994, p. 338), necessário se faz estabelecer um delineamento da desobediência civil como um ato que objetiva, em última instância, alterar o ordenamento, sendo, em linhas gerais, mais um ato inovador do que destruidor, que é levada a efeito com a finalidade imediata de exteriorizar para a sociedade a injustiça, a ilegitimidade e a invalidade da lei e com o fim mediato de induzir o poder a proceder as mudanças necessárias que estão sendo reivindicadas. Portanto, apesar de alguma semelhança, existem diferenças entre os institutos da desobediência civil e a objeção de consciência, as quais são destacadas por Ribeiro (2004, p. 338-339):

A primeira diz respeito ao caráter coletivo da desobediência civil em contraposição ao caráter individual da objeção de consciência. […] Outro critério distintivo deriva da noção de que a objeção de consciência consiste unicamente no descumprimento de deveres jurídicos de natureza positiva […] Assim, ao contrário da desobediência civil que pode consistir em uma infração jurídica tanto por ação quanto por omissão, a objeção da consciência configurar-se-ia sempre como uma conduta omissiva.

Contudo, a finalidade objetivada por cada uma das ações é que fará o traço distintivo mais importante entre elas. A desobediência civil tem um caráter público, na busca de procurar a validade de princípios de justiça em virtude de criar uma resistência a um direito positivado, para a proteção do sistema jurídico constitucional, com vistas a demonstrar e convencer os agentes políticos que os atos normativos que têm a roupagem de validade, estão carreados de contrariedade para com os princípios de justiça sobre os quais a ordem jurídica democrática se funda, mais especificamente o princípio fundamental da regra de respeito à minoria (RIBEIRO, 2004, p. 342).

Por sua vez, o objetor de consciência, além de não ter um caráter público, fixando-se em sua perspectiva interna, também não é tão resistente, pois procura uma exceção de uma norma, não contestando sua existência como tal, tendo como foco principal suprimir aquele dever normativo que abstratamente o vincula, não se traduzindo em uma negação frontal das normas jurídicas, senão a exigência de uma exceção justificada de obediência a tais normas, podendo estas serem, inclusive, introjetadas no quadro do direito positivo, instituindo meios jurídicos compensatórios (RIBEIRO, 2004, p. 342).

No que se se refere ao direito de resistência, conforme aponta Garcia (1994, p. 146), a tendência dos textos constitucionais contemporâneos mostra-se pelo seu não acolhimento, sendo a  preocupação demonstrada é pelo aprimoramento dos processos de repressão aos movimentos armados de resistência.

Contudo, afirma a autora que a doutrina tem admitido que, em defesa de suas liberdades, os cidadãos tenham o direito de resistência contra o Estado, particularmente em relação aos atos ilegítimos deste que violam as liberdades, contudo não se pode falar em um verdadeiro e próprio direito de liberdade.

Em uma análise fria, a Constituição Federal de 1988, no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, traz de forma implícita a resistência do cidadão contra os atos que não estejam respaldados no princípio da legalidade, quando, no art. 5º, inciso II, traz o mandamento que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Apesar de não estar expresso, o texto constitucional deixa margem para uma interpretação de resistência a determinados atos carreados por ilegalidade.

No entender de Maria Garcia (1994, p. 147), uma resistência passiva constituiria não um direito em si, mas um momento do exercício de um outro direito de liberdade. Se, contudo, for uma atitude ativa, a reação ou violência não será nunca legítima, no sentido próprio da palavra, mas poderá ser um ato escusável aos fins das excludentes das responsabilidades.

A título de exemplo, na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha de 1949, existe previsão expressa ao direito à resistência no art. 20 números 3 e 4:

[…] (3) O poder legislativo está vinculado à ordem constitucional; os poderes executivo e judiciário obedecem à lei e ao direito. (4) Não havendo outra alternativa, todos os alemães têm o direito de resistir contra quem tentar subverter essa ordem.

Por sua vez, a Constituição de Portugal, do ano de 1982, estabelece em seu art. 21 o Direito de Resistência com o seguinte enunciado: “todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades a garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.

Importante destacar que, em função da crise sanitária da Covid-19, dentre as medidas de restrição adotadas pelo governo português durante o estado de emergência foi a suspensão do direito de resistência enquanto durasse a emergência (PORTUGAL, 2020):

1º É declarado o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública.

2º A declaração de estado de emergência abrange todo o território nacional.

[…]

g) Direito de resistência: fica impedido todo e qualquer ato de resistência ativa ou passiva às ordens emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência. (grifo nosso).

Nas palavras de Ribeiro (2004, p. 348-349), podem ser indicadas algumas semelhanças e diferenças entre resistência e desobediência civil:

[…] Ambos se apresentam como institutos de garantia da ordem constitucional democrática, apresentando-se como formas legítimas (civis) de resistência. […] ambos constituem em formas e mecanismos de limitação do poder e defesa dos direitos do cidadão. Ademais,  ambos são formas intrassistêmica de resistência ao direito, tendo, contudo, algumas diferenças relacionadas à  fundamentação e justificação, função, limites, exercícios, dentre outros. A diferença procedimental consiste em quê, conquanto a desobediência civil seja pacífica, o direito de resistência dificilmente poderá ser, pois, quando anda em jogo à conservação das instituições do Estado, nem os resistentes nem os resistidos deixarão de empregar todos os meios a seu alcance para conseguir o êxito dos seus propósitos. Assim, o direito de resistência permitiria aos cidadãos que intentam defender a ordem constitucional recorrer a meios que de outra forma restariam absolutamente proibidos. Em um contexto de normalidade constitucional, não se poderia considerar como civil ou constitucionalmente legítima nenhuma ação desobediente levada a cabo por meios contrários aos valores e princípios constitucionais.

A não existência de um arcabouço jurídico e legislativo que dê juridicidade a essas ações não significa necessariamente que, se de fato vierem a ganhar concretude, principalmente em momentos de desastres como a pandemia da COVID-19 e outras perturbações da ordem pública e constitucional, se seriam atos sem acento legal à luz do direito posto.

3. ARGUIÇÃO DE OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA PELO POLICIAL NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES PÚBLICAS

Conforme leciona Ribeiro (2004, p. 315), o dever de obedecer à lei é inerente a todos os cidadãos que compõem uma sociedade e isso se dá de forma indistinta. Contudo, nessa sociedade existem aqueles que possuem um dever diferenciado que consiste em garantir o cumprimento das leis, além de obedecê-las. Trata-se dos agentes públicos, para os quais a sua sujeição aos ditames da lei é carreada de outros atributos além da mera obediência.

Por sua vez, Silva (2009, p. 235) alerta que para os agentes públicos, em comparação aos demais particulares, tem-se inegavelmente uma diferenciação, a menor, da liberdade de pensamento e outras liberdades, condicionada não apenas pelas suas específicas tarefas, mas fundamentalmente pelos deveres de imparcialidade, neutralidade e lealdade, o que, em tese, pode limitar inclusive o uso da objeção de consciência.

Apesar dessa possibilidade de restrição ao uso da objeção de consciência, na doutrina italiana há a defesa quanto à possibilidade de o funcionário público invocar a objeção de consciência em face de algum dever de ofício apenas quando as circunstâncias consentirem na sua substituição (SILVA, 2009, p. 233).

A Constituição Portuguesa prevê a objeção de consciência em seu art. 41, nº 6, o qual prevê que “é garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei”. Contudo, tal garantia deve estar sob uma regulamentação legislativa e, sobre essa previsão portuguesa, Silva (2009, p. 230) aponta que:

[…] Sua invocação apenas será possível naqueles casos em que a lei admitir a isenção do cumprimento de determinados deveres jurídicos por parte dos cidadãos. Não há que se falar, assim, num “direito geral à objeção de consciência que funcione como causa de justificação de violação de normas jurídicas, sob pena de se inviabilizar a regulação da vida social pelo direito.

No Brasil, Silva (2009, p. 230) destacar que na ordem constitucional brasileira verifica-se que a objeção de consciência se encontra tutelada em relação à “obrigação legal a todos imposta”, de modo a referir-se àquelas que possuem como fundamento imediato a lei, e não as que são diretamente originárias de ordens superiores ou comandos hierárquicos, cuja concretude as distancia da ordem legal.

Se o termo lei utilizado no texto constitucional for interpretado no sentido stricto, entendida como lei a partir do princípio da legalidade, e não no sentido lato, que abarcariam, inclusive, os decretos autônomos muito utilizados durante a atual crise sanitária da Covid-19, poderiam surgir situações nas quais o servidor deixaria de cumprir tais ordens e conclamar a proteção da objeção de consciência.

Com base no tratamento constitucional dado à objeção de consciência, bem como em virtude da ocorrência de renúncia às formas de exercício do direito à liberdade de pensamento que sejam incompatíveis com a função pública, em especial com as atribuições do cargo voluntariamente assumidas pelo agente público, entende-se que, em princípio, não pode ele invocar razões morais, religiosas, filosóficas para deixar de cumpri-las, examinando-se, assim, do dever de obediência que lhe cabe (RIBEIRO, 2004, p. 314).

Nesse sentido, por ter como mandamento constitucional a manutenção da ordem pública, não se pode esperar ou até admitir que o policial possa se olvidar pelos caminhos de descumprir a lei ou de desobedecer às ordens das autoridades a quem deve obediência, sob pena de se ter a instalação de uma ambiência que estaria fora do controle e caminhando em uma direção não abarcada pelo Estado Democrático de Direito.

Contudo, no caso da pandemia de Covid-19, como não se estava em uma situação cotidiana, rotineira, trivial, e sim de uma ambiência de catástrofe, de desastre de magnitude internacional que afetou toda a humanidade sem distinção, com números de casos de contaminação e óbitos em uma crescente diária, ceifando inclusive vidas de policiais e seus familiares, pode-se imaginar uma solução diferente.

Vivia-se um momento de exceção. Não bastassem as vidas perdidas pelo vírus, outras vidas foram se perdendo pelas imposições de isolamento. Isso se deu pelo fechamento de empresas, comércios lacrados, barreiras sanitárias, escoamento de produtos de primeira necessidade não chegando às prateleiras dos lares e vidas e mais vidas foram sendo ceifadas pela falta de recursos, pelo desabamento da estrutura financeira, pelo colapso econômico, pelo surgimento de doenças como depressão e outras que inclusive culminaram em autoquiria.

Em uma sociedade pluralista e desigual como a brasileira, adotar medidas lineares de comportamento social para combater a pandemia da Covid-19 é, por assim dizer, uma irrealidade, é viver em um mundo abstrato, cercado de fantasias. E foi justamente esse o cenário que se estabeleceu.

À guisa de exemplo, os grandes aglomerados urbanos, nos quais a população vive da economia local, renda per capita baixa, situação de pobreza às vezes extrema na qual, para manter as estruturas básicas de subsistência, não se poderia renunciar à liberdade econômica, abrindo seu comércio e buscando seu sustento, que necessariamente está relacionada à liberdade de ir e vir e, por consequência, o direito magno da vida, faz surgir o questionamento de como deveria ter sido cumprido o isolamento aos moldes do que determinava a OMS (Organização Mundial da Saúde).

Isso é questão de direitos humanos e, como destaca Herrera Flores (2009, p. 156), em sua obra (Re) inventando os Direitos Humanos, as visões abstratas e localistas dos direitos humanos sempre se situam em um centro a partir do qual interpretam tudo e todos. Nesse sentido pouco importa se a interpretação se refere a uma forma de vida concreta ou a uma ideologia jurídica e social. Ambas funcionam como um padrão de medida e de exclusão. Dessas visões surge um mundo desintegrado, pois toda centralização implica atomização. Sempre haverá algo que não está submetido à lei da gravidade dominante e que deve permanecer marginalizado da análise e da prática.

Vejamos o exemplo do isolamento social. O tema da fiscalização voltou ao debate público graças ao decreto que determina um novo fechamento dos serviços não essenciais. Comerciantes protestaram contra a decisão do prefeito de Belo Horizonte em meio à grave crise financeira, e parte da categoria admitiu a intenção de descumprir as regras (MARTINS, 2021).

 A imprensa relata que a cada cento e cinquenta e quatro denúncias de descumprimento das normas sanitárias, ou aglomeração irregular recebidas pela Prefeitura de Belo Horizonte e encaminhadas para atendimento da Polícia Militar de Minas Gerais, apenas uma termina em boletim de ocorrência. Relatórios revelam que a corporação registrou 42 infrações relacionadas à Covid-19 na capital (entre crimes e contravenções) desde março do ano passado, quando foi decretada situação de emergência no município. Isso representa aproximadamente uma ocorrência por semana, ou 0,6% em relação às 6.467 notificações nas quais a força policial precisou ser acionada entre o início da pandemia e o último dia 11 de janeiro, uma média de vinte e duas vezes por dia (MARTINS, 2021).

Tais fatos demonstram que a norma abstrata que determinou o fechamento do comércio não condizia com a realidade, com as situações concretas de diversas camadas sociais, nas quais, inclusive, está muitos membros do aparato policial, a longa manus do Estado, que tem o dever de fazer cumprir as leis.

Essa vivência no cotidiano de uma sociedade em um momento de pandemia, no qual o algoz não tem rosto, seria um fator preponderante para que o policial deixe de cumprir a norma que a ele foi determinada se escudando em uma objeção de consciência? É certo que a pandemia atingiu a sociedade de forma desigual.

Sobre esse impacto viral na sociedade mundial e as diferenças de enfrentamento a partir das condições pessoais, Santos (2021, p. 26) destaca que:

A rigidez aparente das soluções sociais cria nas classes que tiram mais proveito delas um estranho sentimento de segurança. É certo que sempre sobra alguma insegurança, mas há meios e recursos para minimizá-la, sejam eles os cuidados médicos, as apólices de seguro, os serviços de empresa de segurança, a terapia psicológica, as academias de ginástica. Esse sentimento de segurança combina-se com o de arrogância e até de condenação a todos aqueles que se sentem vitimizados pelas mesmas soluções sociais. A catástrofe viral interrompeu esse senso comum e evaporou a segurança de um dia para o outro […].

Sobre essas medidas de caráter linear adotadas pela OMS, especificamente sobre a quarentena, Boaventura de Souza Santos (2020) aponta que qualquer quarentena é sempre discriminatória, pois é mais difícil para uns grupos sociais do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores, cuja missão é tornar possível a quarentena ao conjunto da população.

Conforme ainda o autor, indicação por parte da OMS para trabalhar em casa em autoisolamento é impraticável, porque obriga os trabalhadores a escolher entre ganhar o pão diário ou ficar em casa e passar fome. As recomendações da OMS parecem ter sido elaboradas para a classe média que é uma pequeníssima fração da população mundial.

Nesse cenário de restrições, instaura-se o conflito entre vida e obediência às leis, que se propicia uma ambiência de desobediência civil pela população, resistência e objeção de consciência, inclusive por parte dos agentes públicos, como policiais que, em face das desigualdades, são tomados por valores morais que o impedem de executar algumas medidas.

Desobediência civil por parte da população em face das medidas impostas foram aventadas. No cenário da crise sanitária da Covid-19, em virtude de diversos decretos expedidos pelo Poder Executivo em âmbitos estadual e municipal, geraram contrariedade social frente aos imperativos jurídicos que estavam sendo reputados ilegais.

Houve várias demandas judiciais relativas às medidas de restrição do funcionamento do comércio, como, por exemplo, o Mandado de Segurança Coletivo, distribuído perante a 1ª Vara dos Feitos da Fazenda Pública Municipal da Comarca de Belo Horizonte, impetrado pela Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL) contra ato do Executivo Municipal que determinava o fechamento do comércio aos domingos.

O Juiz de Direito deferiu a limiar para todos os associados da CDL, determinando que o Poder Executivo Municipal recuasse de impedir o funcionamento dos estabelecimentos associados à impetrante sem restrição de dias e horários, conforme autorizado para estabelecimentos similares, ficando, pois, resguardados os estabelecimentos representados da ameaça de recolhimento de alvarás de funcionamento, bem como a imposição de multas referentes a tal motivo por agentes da ilustre autoridade impetrada (MINAS GERAIS, 2021)

Em face ausência de isonomia da referida decisão, denotando um tratamento desigual para os demais comerciantes não associados à CDL, situações bem recorrentes durante a pandemia como já exposto nesta pesquisa, o Tribunal de Justiça em julgamento de Agravo de Instrumento interposto pelo município suspendeu os efeitos da decisão liminar (MINAS GERAIS, 2021).

Esse fato em Belo Horizonte, que foi judicializado, ilustra muito bem os ensinamentos de Boaventura de Souza Santos, já destacados nesta pesquisa, de que a medidas adotadas de restrição foram desiguais, atingiram os mais fracos e deram amparo aos mais fortes. No caso acima, em virtude da força da CDL de BH, seus associados poderiam abrir o comércio enquanto os demais não. Isso não é tratar as pessoas com igualdade.

Para equilibrar essa equação, Flávia Piovesan et al (2020, p. 81) apontam que as medidas de combate, controle e restritivas de direitos decorrentes dessa crise sanitária devem observar os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade, da necessidade, da adequação e da temporariedade. O devido cumprimento dos deveres estatais em matéria de saúde pública e proteção integral deve partir dos princípios pro persona e na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos.

É certo que a pandemia revelou as desigualdades existentes entre algumas classes de trabalhadores, mostrando que os operários que estão na ponta da linha, que não têm como fazer o trabalho home office, como forças de segurança, médicos, coletores de lixo, operadores de carga, caminhoneiros, caixas ou telefonistas e outros estão bem mais expostos aos riscos em uma sociedade que não para e não pode parar e, assim, bem aponta Edgar Morin (2020, p. 39) que:

[…] As profissões que ficaram mais expostas ao contágio e à morte, as que foram mais vitalmente indispensáveis a todos são, na maioria, desvalorizadas, para não dizer às vezes desprezadas, e submetidas aos salários mais baixos. Façamos justiça a enfermeiros, coletores de lixo, entregadores, verdureiros, pequenos agricultores, agente de segurança, guardas-civis. Façamos também justiça aos médicos hospitalares, aos professores e educadores que, sem interrupção, no auge da crise, revelaram-se não mais funcionários ou profissionais, porém missionários. (grifo nosso)

De acordo com Eduardo Lima et al (2020, p. 2)., mesmo que sejam implementadas medidas de isolamento e quarentena, a verdade é que muitos trabalhadores não podem adotar o distanciamento social durante uma pandemia, que vão desde as associações frágeis das relações trabalhistas, as quais inviabilizam a suspensão das atividades sem colocar em risco a subsistência, desde aqueles essenciais para o combate ao vírus, como os enfermeiros, médicos, policiais, bombeiros e outros que não podem cessar as atividades frente à crise. Sobre os profissionais da segurança pública, importante destacar:

A polícia é uma das categorias da linha de frente do combate à pandemia mais vulneráveis ao contágio. Em Nova York, por exemplo, grande foco da doença, até o dia 7 de abril de 2020, quase 20% do contingente policial havia sido contaminado pelo vírus e doze membros haviam chegado a óbito. No Brasil, ainda não há levantamentos a respeito deste fato. No entanto, uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgada no mês de maio de 2020 aponta que, em São Paulo, 59,7% dos policiais civis e militares sentem medo de contrair ou ter algum familiar contaminado pelo novo coronavírus e, o pior, apenas 1/3 dos policiais do Brasil declararam ter recebido equipamento de proteção individual e treinamento para lidar com a pandemia em seu trabalho cotidiano. (MATARAZZO et al., 2020, p. 899).

O marco diferencial é o momento em que a sociedade atravessa e que, em virtude da excepcionalidade e condições, seria capaz de estabelecer uma objeção de consciência por parte de agente público na função de policial em não cumprir determinadas ordens por não serem oriundas da Lei e que, por sua consciência, sob o amparo de um valor moral, estaria em rota de conflito com os direitos e garantias fundamentais do cidadão.

Esse sentimento moral reside justamente na percepção que o policial tem do tratamento desigual que foi adotado na sociedade durante a pandemia. Uma grande maioria de policiais são oriundos de classe baixa, alguns até de pobreza, que conviveram e até convivem em comunidades periféricas, nas quais a materialização dos direitos humanos não chega em sua plenitude. Ele é uma testemunha ocular desse tratamento não isonômico que foi instalado, o que pode lhe criar esse sentimento moral em relação às ordens que lhe são impostas.

O atual cenário de pandemia, no qual os efeitos psicológicos da crise atingem todos indistintamente, torna-se propício ao estabelecimento de uma ambiência de desobediência civil pelo cidadão comum e objeção de consciência por parte do agente público, que, no caso desta pesquisa, refere-se ao policial no exercício de suas funções.

No que tange à objeção de consciência do policial em não cumprir determinada ordem por razões de consciência e que venha incorrer em crime ou transgressão disciplinar, a tese desta pesquisa é no sentido de sua viabilidade, podendo o agente se escudar com base no valor moral, a fim de inviabilizar sua responsabilização penal ou administrativa.

Sugere-se que a ampliação do dispositivo constitucional que trata da objeção de consciência, abarcando o de caráter moral, como em outras Constituições de diversos países e, considerando ser competência exclusiva da União para legislar sobre o assunto, que seja criada norma específica infraconstitucional albergando o direito de objeção de consciência do policial no exercício das funções, em situações de excepcionalidade e magnitude que sejam de amplitude nacional e internacional, e não oriundas de obrigação a todos imposta.

 A presente pesquisa caminha no sentido de apontar que, em ações nas quais o policial agiu em nome da objeção de consciência de valor moral e que por isso tenha incorrido em infração penal ou administrativa, provado esse nexo de causalidade, seja considerado a fruição de um direito fundamental, sem nenhuma consequência jurídica, por ter agido por relevante escusa de consciência como valor moral, observando para seu alcance as situações de excepcionalidade e de grande clamor social que esteja atingindo toda coletividade de pessoas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Adota-se termo considerações finais,  a partir da premissa de que o tema desta pesquisa não se exaure aqui, a considerar a dimensão do conhecimento científico, e que o assunto ora debatido tem e pode ganhar novas contribuições a partir do debate que o envolve, contribuindo para a sociedade, para o mundo acadêmico e para todas as ciências do saber que o circundam.

No final do ano de 2019, o mundo foi sobressaltado por um vírus, em tese oriundo da China, que, em face da letalidade causada por sua doença, foi declarada em 2020 como uma pandemia devido a seu caráter internacional, que foi denominada Covid-19. Todo o sistema social foi colocado em xeque e todas as estruturas foram afetadas, provocando uma onda de mortes em todas as partes do mundo e uma forte crise econômica e social.

Todas as ciências foram desafiadas, demonstrando a fragilidade das até então intocáveis tecnologias da vida, que pregavam até os corpos perfeitos e a eternização do homem a partir das biotecnologias. A medicina se viu questionada para dar uma resposta a uma guerra que não esperava, e o Direito, as ciências jurídicas também sofrendo profundas alterações e interpretações para se adaptar à nova ordem mundial, que também foi chamada de novo normal.

Algumas literaturas já foram produzidas sobre as pandemias que assolaram a humanidade durante a história, contudo, em face do que parecia ser coisa de ficção, seu espaço de debate foi bem delimitado na área médica e alguns na área jurídica, que, inclusive, nem tinha formatado um conceito jurídico solidificado de pandemia.

A Covid-19, da mesma forma que as outras pandemias e epidemias já existentes, torna-se uma realidade no século XXI e, devido a seu caráter internacional, medidas lineares são impostas pela Organização Mundial de Saúde, adotadas pela maioria dos Estados Soberanos, que determinam medidas de restrição das liberdades individuais na perspectiva da contenção do vírus.

Portanto, não se levaram em consideração as diversidades existentes na comunidade internacional, as diferenças sociais e econômicas dos países e as medidas adotadas de isolamento, quarentena, lockdown, tiveram sua importância na preservação de vidas, mas escancararam ainda mais o abismo da desigualdade social, atingindo de forma mais intensa os menos favorecidos, que, além de conviver com presença da morte tiveram que enfrentar grandes restrições econômicas. Com isso, o vírus da Covid-19 atingiu de forma mais destruidora o ser humano mais frágil.

Fica evidente que a pandemia da Covid-19 atingiu as pessoas de forma distinta, não se podendo afirmar que existiu uma “democracia do vírus”, pois seus impactos foram diferentes a depender da classe social e da capacidade econômica para suportar medidas de restrição impostas de forma linear em uma sociedade desigual. Não restam dúvidas de que o vírus não vê a condição financeira, mas a imposição de comportamentos de caráter universal destoa da realidade da humanidade, pois os mais pobres são obrigados a enfrentar maiores restrições e o resultado não poderia ser outro senão a insurgência de desobediência civil, objeção de consciência e até atos de resistência.

O Brasil seguiu as diretrizes da OMS no combate à pandemia da Covid-19, tendo de forma rápida entrado em vigor a Lei 13.979/20, alvo em seguida de ação direta de inconstitucionalidade na Suprema Corte, que decide pela competência concorrente dos entes federados para fazer a gestão de ações para enfrentar a crise sanitária, dando autonomia para a expedição de decretos autônomos por Governadores e Prefeitos, provocando questionamentos mais diversos e uma falta de comportamentos padronizados, resultando em grande insegurança jurídica.

 Com a expedição de decretos autônomos por parte de Prefeitos e Governadores, com o argumento de proteger a vida, o que é louvável, diversos outros direitos e garantias fundamentais foram restringidos, como o direito de ir e vir, a liberdade econômica, dentre outros, que trouxeram impactos significativos para a sociedade, até mesmo pela forma desigual em que as medidas foram implementadas, algumas em flagrante ofensa ao princípio da isonomia.

Situações como a de uma pandemia, nas quais a sociedade fica vulnerável, pode-se ter uma tendência de uso indiscriminado dos princípios jurídicos, o que pode levar a um desequilíbrio das relações jurídicas. Os princípios são fonte de interpretação do Direito, contudo deve-se sopesar sua aplicação para não incorrer em atos de injustiça.

O diferencial de tudo é o momento em que a sociedade atravessa e que poderia estabelecer uma objeção de consciência por parte do policial em não cumprir determinadas ordens por não serem oriundas da Lei e que, por sua consciência, estaria em rota de conflito com os direitos e garantias fundamentais.

Defender que um policial possa incorrer em situação de desobediência civil ou resistência, em tese, pode revelar-se inadequado e inapropriado, sendo essa a linha de defesa da pesquisa, em face de sua especial condição de fazer cumprir as leis. Uma desobediência civil por parte desse servidor poderia ensejar em uma quebra de ruptura institucional, o que não parece ser viável e desejável. No mesmo sentido, entende-se inadequado se admitir que o policial exerça direito de resistência, diante das especificidades desse ato, que, pode ser levado a efeito pelo uso até de armas de fogo, o que constituiria uma ofensa ao Estado Constitucional, podendo até caracterizar em crime imprescritível, conforme mandamento constitucional.

Restaria, por fim, a possibilidade de o policial alegar objeção de consciência para justificar o não cumprimento de ordem ou norma que entender que ela é violadora de aspectos morais de seu agir. A objeção se caracteriza pela intenção de não cumprir um dever jurídico imposto por uma norma ou por uma autoridade e, em outro aspecto, o imperativo de consciência, tendo como base uma justificativa ética, religiosa, moral, filosófica ou humanitária. Defende-se, portanto, um conceito mais alargado do que o previsto na Constituição Federal de 1988 por abranger, dentre outros, o valor moral.

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[1] Mestre e Doutor em Direito pela UNIMAR (Universidade de Marília). Professor.

[2] Doutor em Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide, Sevilha (Espanha). Professor da UNIMAR (Universidade de Marília)

[3] Mestre e Doutora em Letra pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Professora da UNIMAR (Universidade de Marília).

[4] Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (UNESA/RJ). Professor adjunto da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).