O PODER FISCALIZATÓRIO DO EMPREGADOR E SUAS NUANCES PROCEDIMENTAIS

O PODER FISCALIZATÓRIO DO EMPREGADOR E SUAS NUANCES PROCEDIMENTAIS

1 de março de 2023 Off Por Cognitio Juris

THE EMPLOYER’S SUPERVISORY POWER AND ITS PROCEDURAL NUANCES

Artigo submetido em 23 de fevereiro de 2023
Artigo aprovado em 28 de fevereiro de 2023
Artigo publicado em 01 de março de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 45 – Março de 2023
ISSN 2236-3009

Autora:
Yone Cristina Vasconcelos de Andrade Silveira [1]

RESUMO: O poder fiscalizatório do empregador constitui uma das facetas do poder diretivo, através do qual se busca proteger o patrimônio investido na empresa, assim como acompanhar o desenvolvimento do trabalho nos momentos em que o dono se encontra fora do estabelecimento. Para que tal comando seja exercido dentro da legalidade e em respeito aos princípios norteadores do ordenamento jurídico como um todo, é preciso se debruçar sobre o histórico desse poder e as formas de sua concretização. Esse artigo busca, portanto, fornecer ao leitor as informações necessárias para compreender o instituto e aplicar corretamente o poder fiscalizatório nas relações trabalhistas.

Palavras-Chave: Poder Fiscalizatório. Histórico. Relações Trabalhistas.

ABSTRACT: The supervisory power of the employer is one of the facets of the directive power, through which it seeks to protect the assets invested in the company, as well as monitor the development of work when the owner is away from the establishment. In order for such a command to be exercised within legality and in respect for the guiding principles of the legal system as a whole, it is necessary to look into the history of this power and the ways in which it was implemented. This article seeks, therefore, to provide the reader with the necessary information to understand the institute and correctly apply the supervisory power in labor relations.

Keywords: Supervisory Power. Historic. Working relationships.

1.  PODER DE COMANDO DO EMPREGADOR

1.1. CONCEITO

A partir da celebração de um contrato de trabalho, surge um poder que é conferido ao empregador para que este comande a relação de emprego firmada. Este poder é baseado na subordinação hierárquica natural que o empregador exerce sobre o empregado, pela qual pode, inclusive, aplicar penalidades para controlar e organizar o ambiente de trabalho. Seu fundamento legal encontra-se no artigo 2º, “caput”, da Consolidação das Leis do Trabalho, que cita que o empregador dirige pessoalmente a prestação de serviços dos seus empregados[2]

Diferentes nomenclaturas são utilizadas pela doutrina para se reportar a este poder, entre elas estão “poder hierárquico”, “poder empregatício” e “poder diretivo”. 

A expressão poder hierárquico já foi comumente usada pelos doutrinadores para se referir a este fenômeno. Apesar de apresentar um caráter geral e abranger as atribuições de direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento, essa denominação carrega uma face autoritária e retrógrada, incompatível com qualquer processo de democratização do fenômeno intra-empresarial de poder e por isto deixou de ser amplamente utilizada.

A nomenclatura “poder empregatício”, por sua vez, também compreende a integralidade de um mesmo fenômeno, que apenas se desdobra em manifestações variadas. Um grande defensor desta expressão é Mauricio Godinho Delgado[3] que a define como sendo “o conjunto de prerrogativas asseguradas pela ordem jurídica e tendencialmente concentradas na figura do empregador, para exercício no contexto da relação de emprego”, e dizem “respeito à direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia interna à empresa e correspondente prestação de serviços”.

Já a denominação “poder diretivo” é usada por alguns de maneira abrangente, similar à “poder empregatício”. Nas palavras de Amauri Mascaro Nascimento[4] “poder de direção é a faculdade atribuída ao empregador de determinar o modo como a atividade do empregado, em decorrência do contrato de trabalho, deve ser exercida”. Outros doutrinadores atribuem a esta nomenclatura um significado mais restrito, apresentando-a de forma autônoma, ao lado dos outros poderes, sem englobá-los em um mesmo fenômeno. Como exemplo, tem-se José Cairo Júnior[5] que divide o poder de comando do empregador em poder diretivo, poder regulamentar, poder fiscalizatório e poder disciplinar.

Como dito anteriormente, a titularidade deste poder é conferida ao empregador que pode, inclusive delegá-lo a seus prepostos. Entretanto, ele não pode ser exercido de forma aleatória, visto que não é ilimitado. Deve haver obediência às normas legais, que são protecionistas e visam evitar o abuso deste direito. Segundo ensinamentos de Coutinho[6]:

“O poder do empregador não é sobre a pessoa ou sobre toda a conduta do empregado, mas tão-só sobre a força produtiva empregada em face da manutenção de um negócio jurídico trabalhista, que o empregado coloca à disposição do empregador por meio de um contrato. Não é a sujeição de um homem, inferior, a outro, superior; mas é a carência de detalhamento quanto ao modo e tempo de execução das tarefas que vêm a ser completadas pelo empregador. São esses os comandos que devem ser acolhidos pelo empregado exclusivamente na direção das atividades […]”.

Para Michel Foucault, foi com o surgimento das grandes oficinas e fábricas que se fez necessário adotar um novo tipo de vigilância, representada sob a forma de pirâmide, para que os empreendedores protegessem seus patrimônios:

“(esse novo tipo de vigilância) É diferente do que se realizava nos regimes das manufaturas do exterior pelos inspetores, encarregados de fazer aplicar os regulamentos; trata-se agora de um controle intenso, contínuo; corre ao longo de todo o processo de trabalho; não se efetua — ou não só — sobre a produção (natureza, quantidade de matérias-primas, tipo de instrumentos utilizados, dimensões e qualidades dos produtos), mas leva em conta a atividade dos homens, seu conhecimento técnico, a maneira de fazê-lo, sua rapidez, seu zelo, seu comportamento. Mas é também diferente do controle doméstico do mestre, presente ao lado dos operários e dos aprendizes; pois é realizado por prepostos, fiscais, controladores e contramestres. À medida que o aparelho de produção se torna mais importante e mais complexo, à medida que aumentam o número de operários e a divisão do trabalho, as tarefas de controle se fazem mais necessárias e mais difíceis. Vigiar torna-se então uma função definida, mas deve fazer parte integrante do processo de produção; deve duplicá-lo em todo o seu comprimento. Um pessoal especializado torna-se indispensável, constantemente presente, e distinto dos operários: na grande manufatura, tudo é feito ao toque da campainha, os operários são forçados e reprimidos. Os chefes, acostumados a ter com eles um ar de superioridade e de comando, que realmente é necessário com a multidão, tratam-nos duramente ou com desprezo; acontece daí que esses operários ou são mais caros ou apenas passam pela manufatura. Mas se os operários preferem o enquadramento de tipo corporativo a esse novo regime de vigilância, os patrões, quanto a eles, reconhecem nisso um elemento indissociável do sistema da produção industrial, da propriedade privada e do lucro. Em nível de fábrica, de grande forja ou de mina, os objetos de despesa são tão multiplicados, que a menor infidelidade sobre cada objeto daria no total uma fraude imensa, que não somente absorveria os lucros, mas levaria a fonte dos capitais…; a mínima imperícia despercebida e por isso repetida cada dia pode se tornar funesta à empresa ao ponto de anulá-la em muito pouco tempo; donde o fato que só agentes, diretamente dependentes do proprietário, e designados só para esta tarefa poderão zelar para que não haja um tostão de despesa inútil, para que não haja um momento perdido no dia; seu papel será de vigiar os operários, visitar todas as obras, instruir o comitê sobre todos os acontecimentos. A vigilância torna-se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar”.

1.2. FUNDAMENTOS

Dizer qual o fundamento jurídico do poder empregatício/diretivo do empregador corresponde a informar qual o fato jurídico que deu a origem a este fenômeno. Ou seja, trata-se do fato que confere ao instituto título e substrato jurídicos.

Existem dois tipos de fundamentos jurídicos que explicam o poder de comando do empregador. São eles: o doutrinário e o legal. O primeiro se refere à causa que possibilitou a incorporação do fenômeno no ordenamento vigorante. Já o segundo diz respeito aos textos legais que servem de fundamentação jurídica a este poder.

As principais posições doutrinárias são: a corrente privatística (propriedade privada), a corrente institucionalista (instituição), corrente publicística (delegação do poder público) e as correntes contratualistas (contrato).

A corrente privatística estabelece a propriedade privada como título e fundamentação para o poder empresarial interno e, assim, para o poder empregatício. Trata-se da corrente mais antiga e se baseia na estrutura rigidamente unilateral do poder dentro da empresa. Para seus adeptos o poder dado ao empregador tem sua raiz no estado de subordinação do trabalhador e não precisaria ser previsto contratualmente, pois é-lhe inerente por ser o dono da empresa. Essa teoria está defasada por não expressar toda a complexidade que gira em torno do fenômeno do poder empregatício. Além disso, ela não se coaduna com o modelo das empresas contemporâneas nas quais o dono da propriedade e o titular do empreendimento são distintos.

O surgimento da corrente institucionalista ocorreu na Europa Ocidental da primeira metade do século XX. Teve como um dos seus principais expositores no Brasil o doutrinador Luiz José de Mesquita[7] que atribuía como fundamento ao poder diretivo o interesse social da empresa. Em suas palavras:

“Visto do lado institucional esse direito [poder empregatício] encontra fundamento no interesse social da empresa, que exige uma perfeita organização profissional do trabalho fornecido por seus colaboradores a fim de se atingir um bem comum de ordem econômico-social. A ordem na organização técnica da produção e administração interna da empresa exige uma direção nesse sentido”.

Essa teoria da instituição também não prosperou entre a doutrina visto que ignora os sujeitos da relação jurídica e prioriza apenas a ideia da instituição como possuidora de interesses próprios.

Do mesmo modo que a corrente institucionalística, a publicística foi concebida na primeira metade do século XX, incorporando a matriz autoritária daquela época. Sustentava que o poder empregatício tinha sua origem na delegação feita pelo poder público ao empregador. O equívoco desta teoria está na visão despótica do fenômeno intraempresarial, ignorando a participação obreira e, assim, restringindo os ideais de liberdade e processo multilateral.

Finalmente, a corrente que encontra um maior respaldo na doutrina justrabalhista é a contratualista. Ela prega que o título e substrato do poder empregatício encontram-se no contrato. É através do acordo de vontades que se origina uma relação de emprego e, por conseguinte, todo um conjunto de prerrogativas no qual se inclui poder de comando do empregador. Esta é a “única concepção que abrange qualquer hipótese de configuração histórico-jurídica do fenômeno do poder empregatício”.[8]

Destaca-se, ainda, o entendimento do Exmº Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Augusto César Leite de Carvalho[9], segundo o qual “o poder diretivo stricto sensu encontra melhor fundamentação na teoria do contrato; o poder organizacional, na teoria da propriedade; o poder disciplinar, na da instituição”. E continua dizendo que o poder diretivo só estará legitimado quando atender:

“a) Aos limites gizados pela concepção que temos do poder de organização como emanação do direito de propriedade. Lembremos, verbi gratia, o modo como são disciplinados, genericamente, a localização topográfica do estabelecimento empresarial e de suas seções internas; a organização do trabalho em turnos; os locais e horários das refeições dos trabalhadores; a partição do comando da empresa em divisões administrativas, técnicas e financeiras; o organograma da empresa etc.

b) À dimensão dada ao poder diretivo stricto sensu pela sua origem contratual. Assim, o empregado poderá resistir à ordem de serviço que não esteja em consonância com as condições de trabalho inicialmente ajustadas, nos limites razoavelmente atribuíveis a tal ajuste.

c) À acepção do poder disciplinar como direito-função, sendo abusiva a pena ou sanção que não derive da transgressão de regra geral ou ordem direta que guarde relação com os interesses da empresa enquanto instituição, que atende a interesse social ao produzir bens ou serviços, e não a interesse particular da pessoa do empregador. Ressaem, pois, a juricidade da sanção disciplinar aplicada em razão de o trabalhador subtrair ou danificar, dolosamente, coisa que integre o patrimônio que serve aos fins da empresa ou viole segredo estratégico desta, bem assim a ilicitude da pena se é esta imposta para aplacar o desejo persecutório ou simplesmente emulativo desse mesmo empregador”[10].

Passando para a análise dos fundamentos legais, percebe-se que estes pautam-se nos textos normativos vigorantes que conferem suporte ao poder empregatício. No caso do ordenamento jurídico brasileiro, não há previsão específica sobre a existência do poder empregatício. O que se encontra são vias indiretas e implícitas que regulam o uso deste poder.

Entre essas normas que indiretamente dirigem-se ao fenômeno do poder empregatício destaca-se o já citado artigo 2º, caput, da CLT, que confere ao empregador a direção da prestação pessoal de serviços. Existem ainda as regras que tratam do jus variandi do empregador, como o artigo 468, §1º[11], e 469[12], ambos da CLT, que versam sobre a reversão de cargos do empregado e a transferência do local de trabalho, respectivamente. Na dimensão do poder disciplinar tem-se o artigo 474[13], da CLT, que impõe limites ao uso da suspensão disciplinar.

1.3. NATUREZA JURÍDICA

Para se extrair a natureza jurídica de um determinado instituto deve-se unir dois aspectos: definição, que traz os elementos que integram o objeto, e comparação, que apresenta a classificação que esse objeto ocupa quando comparado a outros institutos.

No caso do poder empregatício/diretivo, há uma discussão sobre qual seja a sua natureza jurídica. Dentre as principais correntes encontram-se: direito potestativo, direito subjetivo, fenômeno de caráter senhorial/hierárquico e direito-função.

A primeira concepção apresenta o poder empregatício como um direito potestativo, o qual pode ser definido como “a prerrogativa assegurada pela ordem jurídica a seu titular de alcançar efeitos jurídicos de seu interesse mediante o exclusivo exercício de sua própria vontade[14]. Esta ideia traz uma força essencialmente individualista, em detrimento da sociabilidade. É a consumação da soberania do interesse particular sob o social. Esta teoria teve grande importância durante o século XIX e início do século XX, período das primeiras fases do capitalismo caracterizado pelo liberalismo clássico, entrando em declínio com a evolução da democracia.

A teoria do direito subjetivo surgiu como alternativa à explicada anteriormente. Este direito é tido como “a prerrogativa conferida pela ordem jurídica ao titular no sentido de agir para satisfação de interesse próprio em estrita conformidade com a norma ou cláusula contratual por esta protegida[15]. Difere-se do direito potestativo por trazer a vontade do empregador de forma mais restrita já que aqui ela é submissa às normas gerais da ordem jurídica. Conduto, esta concepção ainda é equivocada, pois persiste na ideia de que a titularidade do poder empregatício é conferida com exclusividade ao empregador de forma unilateral e rígida.

A terceira vertente é a continuação das teorias unilaterais e autoritárias. Ela sustenta que o poder empregatício seria um fenômeno de natureza hierárquica. Consubstanciada principalmente no institucionalismo, colocava a empresa acima de seus componentes (empregador e empregados). O predomínio dos interesses da instituição se concretizava, na verdade, com a sujeição dos empregados ao empregador.

Por último, merece destaque a teoria que concebe o poder empregatício como um direito-função. Esta concepção traduz o fenômeno da democratização vivenciado na sociedade contemporânea. O termo direito-função “constitui o poder atribuído ao titular para agir em tutela de interesse alheio, e não de estrito interesse próprio[16]. Assim, seu titular possuiria um direito aliado a um dever. Aqui prevalece o interesse da coletividade dos obreiros. Nesse sentido a observação de Octavio Bueno Magno[17] :

“Enquanto o empresário concentrava em suas mãos todos os cordéis de que depende a atividade da empresa, o poder diretivo se exercia para a satisfação de seu interesse individual. Entretanto, à medida que a empresa se foi transformando em um centro de convergência de interesses, a saber, interesses do empresário, dos administradores, da coletividade, representada pelo Estado, e dos trabalhadores, representadas pelos seus sindicatos, o poder diretivo tem-se tornado direito-função, passando a ser exercido no interesse da própria empresa. Suppiej chega a afirmar que, divorciando-se dessa finalidade, ele excede os seus limites e configura verdadeiro abuso de poder”.

Entretanto, não deixa de ser uma concepção unilateral, mas que sofreu atenuações, pois agora se passa a atender também aos anseios dos empregados. Ou seja, o unilateralismo foi preservado nessa vertente. Percebe-se, assim, que apesar das inovações apresentadas por esta teoria em consonância com o processo de democratização, ela não completa o ciclo de transformações, visto que traz como sujeito ativo apenas a figura do empregador enquanto na ideia de democracia os empregados também fariam parte desse polo ativo.

Além das concepções tradicionais citadas anteriormente, existe uma teoria relatada por DELGADO[18]. intitulada “Teoria da Relação Jurídica Contratual Complexa”. Para essa vertente, “o poder intra-empresarial seria uma relação jurídica contratual complexa, qualificada pela plasticidade de sua configuração e pela intensidade variável do peso de seus sujeitos componentes”.

Essa teoria teria o condão de abarcar todos os períodos históricos, desde o mais autocrático até o mais democrático; pois ela considera que a assimetria existe, mas que pode se alterar com o evoluir da sociedade sem que isso ocasione prejuízo na compreensão do fenômeno do poder empregatício.  O aludido doutrinado finaliza afirmando que:

Na verdade, para a novel concepção teórica trabalhista, o poder intra-empresarial não seria uma poder do empregador (e, obviamente, nem do empregado). Seria uma relação de poder própria a uma realidade socioeconômica e jurídica específica, a relação de emprego. Seria, assim, um poder empregatício, um poder específico à relação e contrato empregatícios e não a um único de seus sujeitos[19].

1.3. CLASSIFICAÇÃO

Pela classificação usada por DELGADO, o poder empregatício divide-se em poder diretivo (também chamado poder organizativo), poder regulamentar, poder fiscalizatório (também chamado poder de controle) e poder disciplinar.

O poder diretivo (ou poder organizativo ou, ainda, poder de comando) “seria o conjunto de prerrogativas tendencialmente concentradas no empregador dirigidas à organização da estrutura e espaços empresariais internos”[20]. Esta organização não deve ser apenas econômica, mas também social, ou seja, cabe ao empregador determinar as normas de caráter técnico às quais o empregado está subordinado.A concentração deste poder na figura do empregador baseia-se no princípio da assunção dos riscos do empreendimento que sobre ele recai.  

Já o poder regulamentar “seria o conjunto de prerrogativas tendencialmente concentradas no empregador dirigidas à fixação de regras gerais a serem observadas no âmbito do estabelecimento e da empresa”[21]. Contudo esta dimensão do poder de comando é considerada, pela maior parte da doutrina, como intrínseca ao poder diretivo/organizativo.

É através dos meios de comunicação (regulamentos, circulares e ordens de serviço) que o poder organizativo se exterioriza. Assim esses instrumentos da linguagem não poderiam ser considerados uma dimensão própria e distinta, mas sim uma manifestação do poder diretivo/organizativo.

Independente da sua classificação, a atividade regulamentar é considerada de grande importância na vida contratual trabalhista. Suas normas são consideradas, pela doutrina majoritária, como cláusulas contratuais e não normas jurídicas, pois resultam, em geral, do exercício unilateral da vontade do empregador, faltando-lhes, assim, o caráter dialético que caracterizam as normas jurídicas.

Decorre desse entendimento que a elas não se aplica a regra do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, que prescreve que a norma posterior revoga a anterior, mas sim a regra da imutabilidade das cláusulas contratuais, do artigo 468 da Consolidação das Leis do Trabalho, com a ressalva de que a norma posterior seja mais favorável ao empregado.[22]

O poder fiscalizatório, também denominado de poder de controle, representa “o conjunto de prerrogativas dirigidas a propiciar o acompanhamento contínuo da prestação de trabalho e a própria vigilância efetivada ao longo do espaço empresarial interno”[23]. Parte da doutrina também considera este poder como integrante do poder diretivo, representando uma de suas manifestações, além de servir como pressuposto para o uso do poder disciplinar.

O poder disciplinar é conceituado como “o conjunto de prerrogativas concentradas no empregador dirigidas a propiciar a imposição de sanções aos empregados em face do descumprimento por esses de suas obrigações contratuais”[24].

 Segundo Amauri Mascaro Nascimento[25], “esse poder se exercita de forma estatutária (previsto no regulamento da empresa) ou convencional (previsto em acordos ou convenções coletivas), mas sempre subordinado à forma legal”. É submetido também ao controle estatal do Ministério do Trabalho ou Poder Judiciário, e não estatal pelos organismos de relação entre pessoal e empregador na empresa.

Para José Cairo Júnior[26], as sanções comportam vários níveis, a depender da gravidade da falta cometida pelo funcionário, indo de advertências até despedida por justa causa. Apesar de ser omissa a CLT entende-se que para se aplicar as penalidades deve existir previamente a possibilidade de o empregado exercitar o contraditório e a ampla defesa.

1.4. PODER FISCALIZATÓRIO

Como dito anteriormente, o empregador tem o direito de acompanhar a prestação de trabalho na sua empresa. Essa vigilância constitui uma das facetas do poder empregatício que lhe é conferido a partir do contrato que celebra a relação de trabalho.  Sobre o assunto, as lições de Nilson Oliveira de Nascimento[27]:

“Através dessa faculdade, o empregador fiscaliza e controla os passos do empregado durante a jornada de trabalho, com vistas a aferir se as atividades estão sendo executadas conforme pactuado no contrato de trabalho e, ainda, se estão de acordo com os fins almejados pela empresa”.

Todavia, é salutar informar que no caso específico dos empregados que exercem atividade externa, o poder de fiscalização não se apresenta possível, tendo em vista que não há o real controle de suas jornadas de trabalho.

O uso deste poder pelo empregador é assunto de grande controvérsia tanto na doutrina como na jurisprudência. A existência de limites é certa, porém, o que gera discussão é qual a exata e efetiva fronteira a ser aplicada às prerrogativas desse controle empresarial.

Muitos países, como por exemplo a Itália (artigos 2º, 4º e 6º da Lei nº 300, de 20/05/1970), estabeleceram expressamente esses limites, em atenção a dignidade da pessoa do trabalhador e a proteção a sua liberdade. No caso do Brasil, não existem preceitos claros nesse sentido. O que se tem são regras e princípios gerais que servem de orientação ao operador jurídico.

Não obstante a falta de normas específicas, a Constituição Federal de 1988 rejeitou condutas fiscalizatórias que atentem à liberdade e à dignidade básica da pessoa física do trabalhador, pois se chocam com os princípios e normas adotados em seu texto.

Entre as regras que protegem o trabalhador e afastam a possibilidade de condutas fiscalizatórias de caráter agressivo estão a regra geral de igualdade de todos perante a lei e da “inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” prevista no artigo 5º, caput, a regra de que “ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante” do artigo 5º, III, e, ainda, a regra do artigo 5º, X, que declara “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Em 1999, o ordenamento jurídico pátrio passou a contar com uma previsão expressa de limite ao poder fiscalizatório do empregador ao vedar a realização de revistas íntimas nas empregadas ou funcionárias pelo artigo 373-A, inciso VI, da CLT, acrescentado pela Lei nº 9.799/99:

Art. 373-A. Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetam o acesso da mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é vedado:

[…]

VI – proceder o empregador ou preposto a revistas íntimas nas empregadas ou funcionárias.

A fim de exemplificar as formas de manifestação desse poder, os dizeres de Amauri Mascaro Nascimento[28]: “forma de controle é a marcação de horários de entrada e saída no serviço por meios de cartões de ponto ou livro de ponto, a prestação de contas de empregados vendedores, o controle de qualidade de peças produzidas pelo empregado etc.”.

Entretanto, apesar da validade que é atribuída a este instituto, deve-se ter em mente que a sua utilização não pode ocorrer de forma abusiva. O controle feito pelo empregador deve ser restrito ao ambiente de trabalho, durante a jornada do labor e de forma que não desrespeite os direitos inerentes à pessoa do empregado, principalmente, o seu direito à privacidade. 

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[1]      Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe e Pós-graduada no Curso de Especialização em Direito e Processo Civil pela Faculdade Guanambi. Servidora Pública Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 20ª Região

[2]        Art. 2º, CLT: “Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”.

[3]      DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed., São Paulo: LTr, 2008, p.631.

[4]      NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 25ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 683.

[5]      CAIRO JUNIOR, José. Curso de Direito do Trabalho. 5ª ed., Editora Juspodivm, 2010, p. 217.

[6]      COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder Punitivo Trabalhista. São Paulo: LTr, 1999, p. 89.

[7]      MESQUITA, Luiz José de. Direito Disciplinar do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 1950, p. 64 (edição fac-similada por São Paulo: LTr, 1991)

[8]      DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed., São Paulo: LTr, 2008, p. 647.

[9]      CARVALHO, Augusto César Leite de. Direito Individual do Trabalho. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 118

[10]    CARVALHO. Op. Cit., p. 118

[11]    Art. 468 CLT: “Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e, ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.

§1º – Não se considera alteração unilateral a determinação do empregador para que o respectivo empregado reverta ao cargo efetivo, anteriormente ocupado, deixando o exercício de função de confiança. “

[12]    Art. 469 CLT: “Ao empregador é vedado transferir o empregado, sem a sua anuência, para localidade diversa da que resultar do contrato, não se considerando transferência a que não acarretar necessariamente a mudança de seu domicílio.

§ 1º – Não estão compreendidos na proibição deste artigo os empregados que exerçam cargos de confiança e aqueles cujos contratos tenham como condição implícita ou explícita a transferência, quando esta decorra de real necessidade de serviço.

§ 2º – É lícita a transferência quando ocorrer extinção do estabelecimento em que trabalhar o empregado.

§ 3º – Em caso de necessidade de serviço o empregador poderá transferir o empregado para localidade diversa da que resultar do contrato, não obstante as restrições do artigo anterior, mas, nesse caso, ficará obrigado a um pagamento suplementar, nunca inferior a 25%, dos salários que o empregado percebia naquela localidade, enquanto durar essa situação.”

[13]    Art. 474, CLT: “A suspensão do empregado por mais de 30 (trinta) dias consecutivos importa na rescisão injusta do contrato de trabalho”.

[14]    DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed., São Paulo: LTr, 2008, p. 651.

[15]    DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed., São Paulo: LTr, 2008, p. 652-653.

[16]    DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed., São Paulo: LTr, 2008, p. 655.

[17]    Apud CARVALHO, Augusto César Leite de. Direito Individual do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 117.

[18]    DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed., São Paulo: LTr, 2008, p. 659.

[19]    DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed., São Paulo: LTr, 2008, p. 661.

[20]    DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed., São Paulo: LTr, 2008, p. 633.

[21]    DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed., São Paulo: LTr, 2008, p. 634.

[22]      Este entendimento encontra-se pacificado nas súmulas 51 e 288 do Tribunal Superior do Trabalho

[23]    DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed., São Paulo: LTr, 2008, p. 636.

[24]    DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed., São Paulo: LTr, 2008, p. 638.

[25]    NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 25ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 685.

[26]    CAIRO JUNIOR, José. Curso de Direito do Trabalho. 5ª ed., Editora Juspodivm, 2010, p. 218.

[27]    NASCIMENTO, Nilson de Oliveira. Manual do Poder Diretivo do Empregador. São Paulo: LTr, 2009. p. 72.

[28]    NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 25ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 686.