O DIREITO AO ACESSO À EDUCAÇÃO DOS REFUGIADOS UCRANIANOS PARALELO À BIOGRAFIA DE CLARICE LISPECTOR
4 de novembro de 2025THE RIGHT TO ACCESS EDUCATION OF UKRAINIAN REFUGEES IN PARALLEL TO THE BIOGRAPHY OF CLARICE LISPECTOR
Artigo submetido em 01 de novembro de 2025
Artigo aprovado em 04 de novembro de 2025
Artigo publicado em 04 de novembro de 2025
| Cognitio Juris Volume 15 – Número 58 – 2025 ISSN 2236-3009 |
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RESUMO: O presente artigo trata sobre a garantia do acesso à educação como elemento transformador na vida dos refugiados ucranianos no Brasil, tendo como exemplo marcante a trajetória da autora Clarice Lispector. Neste contexto, será explorada tal problemática a partir de um paralelo histórico com o período em que Clarice Lispector chegou ao país. A metodologia utilizada é de pesquisa bibliográfica e descritiva, sendo realizada por meio de estudo de caso da vida da autora brasileira e correlação com dados atuais sobre os refugiados ucranianos, assim como pesquisa de artigos, teses, notícias, legislação e jurisprudência sobre o tema. Foi utilizado método dedutivo de abordagem, e, de maneira auxiliar, o método comparativo, a partir da análise geral do contexto dos refugiados ucranianos para findar na comparação com a realidade da autora brasileira, Clarice Lispector. Ao fim, conclui-se que, de modo semelhante à experiência vivida por Clarice, os refugiados ucranianos no Brasil necessitam da consolidação do seu Direito ao Acesso à Educação para viver uma vida digna.
Palavras-chave: Direito ao Acesso à Educação. Refugiados. Clarice Lispector.
ABSTRACT: This article addresses the guarantee to access education as a transformative element in the lives of Ukrainian refugees in Brazil, taking as a remarkable example the life trajectory of the author Clarice Lispector. In this context, the issue will be explored through a historical parallel with the period when Clarice Lispector arrived in the country. The methodology used is bibliographic and descriptive research, conducted through a case study of the Brazilian author’s life and its correlation with current data on Ukrainian refugees, as well as research on articles, theses, news, legislation, and case law on the subject. A deductive approach method was applied, and, as a complementary tool, the comparative method, analyzing the general context of Ukrainian refugees to reach a comparison with the reality of the Brazilian author Clarice Lispector. In conclusion, it is observed that, similarly to Clarice’s experience, Ukrainian refugees in Brazil require the consolidation of their Right to Access Education in order to live a dignified life.
Key-words: Right to Access Education. Refugees. Clarice Lispector.
“Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”.
(Clarice Lispector, em Felicidade Clandestina)
1 INTRODUÇÃO
O panorama de refugiados ucranianos no Brasil se intensificou de 2022 até 2025, em decorrência da guerra que explodiu entre Ucrânia e Rússia. Principalmente mulheres e crianças estão fugindo do país em busca de algum lugar no mundo em que a paz esteja instalada. Como o Brasil possui grande comunidade de imigrantes ucranianos, o país se tornou destino de número considerável de refugiados. Segundo a Embaixada Ucraniana no Brasil, são cerca de 500 mil descendentes de ucranianos em solo brasileiro (Embaixada da Ucrânia no Brasil, 2014).
Este trabalho trata sobre a garantia do Direito de Acesso à Educação aos refugiados ucranianos no Brasil como um elemento transformador de suas vidas, tomando como exemplo basilar a história de vida da autora Clarice Lispector. Esta problemática é de grande notoriedade, haja vista que a garantia da positivação de direitos fundamentais e direitos humanos de refugiados pelo Estado brasileiro é uma questão recorrente na contemporaneidade.
A metodologia utilizada é de pesquisa bibliográfica e descritiva, sendo realizada por meio de estudo de caso da vida da autora brasileira e correlação com dados atuais sobre os refugiados ucranianos, assim como pesquisa de artigos, teses, notícias, legislação e jurisprudência sobre o tema. Ainda, foi utilizado método dedutivo de abordagem, e, de maneira auxiliar, o método comparativo.
No tocante à pesquisa bibliográfica, esta consiste na “análise e discussão de fontes bibliográficas e documentais que buscam oferecer os argumentos necessários para a resolução do problema de pesquisa e para a comprovação da(s) hipótese(s) de trabalho” (Bertoldi; Aguiar de Oliveira, 2019). Desta forma, este trabalho aplicou o estudo de autores renomados sobre o tema envolvendo imigrantes no país, como, por exemplo, Luís Renato Vedovato, e também grandes nomes da pesquisa brasileira sobre direitos humanos, como Flávia Piovesan. Além disso, foram utilizados dados atuais sobre os refugiados adquiridos por meio das pesquisas de campo da Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
Por meio do método de estudo de caso, que é “a pesquisa sobre um determinado indivíduo, família, grupo ou comunidade que seja representativo do seu universo, para examinar aspectos variados de sua vida”, de acordo com o explicado por Amado Luiz Cervo e Pedro Alcino Bervian (2002, pp. 66-67), será apresentada a trajetória de vida da escritora brasileira Clarice Lispector e como a efetivação do Direito à Educação alterou os panoramas enfrentados pelo refugiado em solo brasileiro.
Sobre os métodos de abordagem utilizados, o método dedutivo de abordagem é “o que parte do geral e, a seguir desce ao particular. O raciocínio dedutivo parte de princípios considerados verdadeiros e indiscutíveis para chegar a conclusões de maneira formal”, conforme explica Gil (1987, p.29). Parte-se da premissa de que primeiro se estudou o estado geral das coisas referentes aos refugiados ucranianos para só então ocorrer a comparação com o particular, a biografia de Clarice Lispector. Dessa forma, de modo auxiliar, foi utilizado o método comparativo, que “realiza comparações com a finalidade de verificar semelhanças e explicar diferenças” (Andrade, 1995, p. 23), de modo a analisar de modo efetivo as semelhanças e diferenças do ordenamento jurídico brasileiro do século XX e do século XXI.
Entre os pontos levantados, estão: o Direito à Educação dos Refugiados no Brasil, o status quo dos refugiados ucranianos em solo brasileiro, a biografia da autora Clarice Lispector e sua relação com o tema abordado e, por fim, um comparativo entre o regime jurídico dos refugiados no Brasil em 1922 e 2022.
2 O DIREITO À EDUCAÇÃO DOS REFUGIADOS NO BRASIL
De modo a conceituar o que é a figura do refugiado, Marcelo Haydu, em estudo dirigido pela Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR, 2011), indica que estes são impulsionados a fugir de seu país de origem por terem sido ameaçados de perseguição (ou efetivamente perseguidos) por motivos de raça, religião, nacionalidade, filiação a determinado grupo social ou opiniões políticas. O autor segue informando que também estão dentro desta categoria os que tiveram sua liberdade ou segurança ceifadas em razão de conflitos envolvendo seu país. Desta forma, os refugiados buscam abrigo em outras nações para sobreviver aos perigos que sofrem em sua própria pátria.
Nesse sentido, buscando uma vida digna em outro país, os refugiados buscam também a concretização de uma gama de Direitos Fundamentais, consagrados nas Constituições dos Estados, e Direitos Humanos, consoante o corpo normativo internacional.
Os Direitos Fundamentais são dinâmicos e acompanham as transformações históricas e sociais da humanidade, de modo que o conteúdo ético destes direitos também muda de acordo com o tempo (Marmelstein, 2008). Foi desta maneira que o jurista francês Karel Vasak desenvolveu uma ideia que, eventualmente, se tornou bastante conhecida e foi incorporada pela Constituição Federal de 1988: “a teoria das gerações dos direitos”.
Em seu estudo sobre direitos fundamentais, o professor George Marmelstein apresenta como Vazak implementou seu pensamento, inspirado pelo lema da revolução francesa:
“a) a primeira geração dos direitos seria a dos direitos civis e políticos, fundamentados na liberdade (liberté), que tiveram origem com as revoluções burguesas;
b) a segunda geração, por sua vez, seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais, baseados na igualdade (égalité), impulsionada pela Revolução Industrial e pelos problemas sociais por ela causados;
c) por fim, a última geração seria a dos direitos de solidariedade, em especial o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente, coroando a tríade com a fraternidade (fraternité), que ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, especialmente após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948” (Marmelstein, 2008).
Dentre os direitos fundamentais de segunda geração, está o Direito à Educação, que é um direito social e abstrato protegido pelo art. 6º da Constituição Federal do Brasil de 1988:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (Brasil, 1988).
Além desta passagem, existe a seção sobre educação dos artigos 205 a 214, que tratam sobre como deve ser ministrado o ensino, incorporando planos de educação, entre outros assuntos muitíssimo pertinentes para nossa discussão. Vide o que indica o texto do artigo 205:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (Brasil, 1988).
A partir do entendimento do art. 5º da Constituição Pátria, onde é dito que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida” (Brasil, 1988), compreende-se que imigrantes e refugiados em solo brasileiro também tem Direito à Educação.
Sendo assim, o Direito à Educação, segundo o próprio texto constitucional, deve ser promovido e incentivado com a colaboração da sociedade, para que todos os cidadãos brasileiros, nesta gama incluídos brasileiro e estrangeiros residentes no país, visando o seu preparo e sua qualificação para o trabalho e o seu exercício da cidadania.
É necessário, portanto, a diferenciação do conceito de imigrante e refugiado para melhor adentrarmos na temática. Em entrevista para a Revista do Instituto Humanitas Unisinos, a antropóloga e pesquisadora Denise Jardim, informa que o imigrante tem a perspectiva do “retorno mesmo que imaginada”, enquanto o refugiado “raramente consegue uma reinserção no local de origem, seja porque aquele lugar social não existe mais, ou porque há enormes limitações ao ‘retorno’. Além disso, a situação de violência, de sequela psicológica, também significa um desterro em prol de sua vida” (Zanoni, 2011).
Por esses motivos, os refugiados se encontram numa situação de hipervulnerabilidade, expressa pelas razões carregadas em se deslocar para outras pátrias, de modo a alcançar uma vida pacífica e um ambiente seguro após ter vivenciado momentos traumáticos, o que não necessariamente acontece com todos os imigrantes. Essa diferença de condição entre o imigrante e o refugiado implica na falta de planejamento e da própria vontade do indivíduo refugiado de sair do próprio país, o que apenas evoca uma realidade trágica e complexa que muitas vezes se repetiu no decorrer da história. O refugiado, nesse contexto, seria um imigrante específico, que possui condições próprias e um contexto marcado pela hipervulnerabilidade.
Sobre a legislação brasileira específica que protege os refugiados, está a Lei 9.474/1997, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. Basicamente, esta lei apresenta a definição de refugiado para o Direito Brasileiro e esquematiza a proteção jurídica dos refugiados no país, conforme explicitado em seus arts. 1º e 5º:
Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:
I – devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II – não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III – devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. […]
Art. 5º O refugiado gozará de direitos e estará sujeito aos deveres dos estrangeiros no Brasil, ao disposto nesta Lei, na Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e no Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967, cabendo-lhe a obrigação de acatar as leis, regulamentos e providências destinados à manutenção da ordem pública (Brasil, 1997).
Já o Estatuto dos Refugiados de 1951, no art. 22º, implica o seguinte:
1. Os Estados Contratantes darão aos refugiados o mesmo tratamento que aos nacionais no que concerne ao ensino primário.
2. Os Estados Contratantes darão aos refugiados um tratamento tão favorável quanto possível, e em todo caso não menos favorável do que o que é dado aos estrangeiros em geral, nas mesmas circunstâncias, quanto aos graus de ensino além do primário e notadamente no que concerne ao acesso aos estudos, ao reconhecimento de certificados de estudos, de diplomas e títulos universitários estrangeiros, à isenção de direitos e taxas e à concessão de bolsas de estudo (ACNUR, 1951, p.11).
Entre as legislações mais recentes, deve-se também ressaltar a Lei 13.445/2017, que dispõe sobre os direitos e deveres do migrante e do visitante. Em seu artigo 3º, é apresentado o direito ao acesso igualitário aos serviços de educação:
Art. 3º A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:
XI – acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social; (Brasil, 2017).
Dentre os direitos apresentados nas legislações acima, de modo tangente ao entendimento presente na Constituição Federal de 1988, está o direito à educação, o que apenas demonstra a imprescindibilidade da efetivação deste direito social.
Já em relação à legislação internacional, existem de modo indireto legislações para a figura dos imigrantes e de modo direto legislações para a figura do refugiado. Guilherme Perez Cabral, em trabalho da UNICAMP organizado por André de Carvalho Ramos, Luís Renato Vedovato e Rosana Baeninger, comenta sobre as normas de direito internacional que tratam sobre imigração:
“No sistema internacional, não há um tratado que se dedique ao conjunto dos direitos humanos fundamentais dos imigrantes. De todo modo, estão contemplados, ainda que indiretamente, na referência ao direito à educação, numa série de tratados que seguiram a Declaração Universal dos Direitos Humanos: Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no campo do Ensino, 1960 (Decreto Federal de promulgação no 63.223/1968); Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966 (Decreto Federal no 591/1992), especificamente o Art. 13; Artigos 28 e 29 da Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989 (Decreto Federal no 99.710/1990); e Protocolo Adicional à Convenção 572 Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador), 1988, destaque ao Artigo 13 (Decreto Federal no 3.321/1999)” (Perez Cabral, 2020).
Sobre os instrumentos internacionais que destacam-se como diplomas de proteção aos direitos dos refugiados, a Declaração de Cartagena sobre Refugiados (1984); a Convenção da Organização Africana (1969), agora sob a União Africana; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969); a Declaração de São José sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas (1994); e o Estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), entre outros (Ventresqui; Santana de Lima Oliveira, 2024).
Diante desses marcos legais, é mais do que clara a responsabilidade estatal de garantir tal direito, no entanto, a realidade não demonstra a efetivação concreta do direito à educação. Segundo estudo realizado com refugiados no Brasil (ACNUR, 2019), foi revelado que dentre os 487 refugiados entrevistados, de diferentes nacionalidades, a grande maioria falava português (92,2% de 487), sendo que apenas 53,66% desse montante que fala português fazia ou já tinha feito curso para aprender o idioma brasileiro. Isto demonstra como é existente a necessidade da oferta da educação e como ela não é suficiente para a demanda de refugiados no Brasil. É importante acrescentar que a grande maioria desses refugiados entrevistados foram pessoas adultas, o que desmancha desse recorte a realidade das crianças refugiadas, que precisam mais ainda da educação básica para o seu desenvolvimento.
Deve ser levada em conta a grave situação de vulnerabilidade dos migrantes, em especial o estado em que se encontram as crianças e se suas necessidades básicas estão sendo supridas. No que pese à educação, redige Vedovato:
“A vulnerabilidade dos migrantes não pode ser ignorada. Ela é exposta por vários estudos, como os de Benhabib328,329 e a interessante pesquisa de Böhlmark330, em que se faz a constatação de que filhos de imigrantes ficam, muitas vezes, em desvantagem na escola, enquanto se ajustam ao seu novo ambiente. Verificou-se que a idade de crianças de sete anos ou acima representa, na migração, um período sensível de adaptação no tocante ao desempenho na escola, por duas razões principais: eles já passaram da idade primordial para a aprendizagem de línguas, e sua aquisição de competências é menos eficiente, enquanto aprendem a dominar a nova língua” (Vedovato, 2012, apud, Benhabib, 2004; apud, Benhabib, 2009; apud, Böhlmark, 2009).
A idade com a qual os refugiados adentram o Brasil também influencia, diretamente, suas oportunidades de trabalho e os desdobramentos da situação de vulnerabilidade durante toda a sua vida. Tudo isso, principalmente, em razão da efetividade ou não do direito fundamental à educação.
Vale a pena ressaltar que, por mais que o Brasil tenha recebido, notoriamente, durante muito tempo refugiados de inúmeros países do mundo, em diversos períodos da história, como Itália, Ucrânia, Venezuela, entre outros, as leis que regularizam a situação dessas pessoas têm aspecto extremamente recente.
Entre estas legislações de aspecto recente, estão os Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Para adentrar no tema, deve-se ressaltar a mudança de paradigma do Direito Internacional Público no século XX, quando ocorreu a reconstrução dos direitos humanos, a criação de Organizações Internacionais de Direitos Humanos e a celebração de inúmeros Tratados e Convenções de Direitos Humanos que impactam diretamente os ordenamentos jurídicos do mundo inteiro. Flávia Piovesan explica sobre a nova fase do Direito Internacional Público no século XX:
“É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Ao cristalizar a lógica da barbárie, da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, a Segunda Guerra Mundial simbolizou a ruptura com relação aos direitos humanos, significando o Pós Guerra a esperança de reconstrução destes mesmos direitos” (Piovesan, 2006).
Sob este respaldo, é de caráter urgente que a máquina estatal aja no sentido de manter forte atualização nos meios de implementação legal, tendo em vista a dificuldade existente em ensinar e aprender uma língua secundária, e que a demanda de pessoas de diferentes nacionalidades muda conforme ocorrem transformações e rupturas sociais ao redor do mundo, como é o caso da guerra que iniciou em 2022 entre Ucrânia e Rússia.
Não só no tocante à legislação, também às políticas públicas do Estado para que os direitos desses refugiados não sejam supridos. Não são poucas as situações de trabalho abusivo que imigrantes sofrem no Brasil em razão de sua vulnerabilidade, para além disso, a dificuldade de aprender uma língua diferente, o preconceito sofrido diante da diversidade cultural. São inúmeras camadas da sociedade brasileira às quais essas pessoas devem se mesclar para que consigam apenas viver uma vida comum.
As barreiras enfrentadas pelos refugiados se manifestam de maneiras diversas, não apenas por meio das dificuldades apresentadas pelo poder da máquina estatal, mas também pelo rompimento de barreiras culturais, históricas e sociológicas. Os refugiados, comumente, enfrentam situações de abuso em razão de sua situação de vulnerabilidade ou sofrem preconceito, pela expressão de sua cultura originária, por falar uma língua diferente da padrão no país onde estão, por se vestir diferente. Essas barreiras funcionam como engrenagem de manutenção da situação vulnerável e implicam em consequências que podem definir a vida do refugiado em tal nação, haja vista que as oportunidades de estudo e de trabalho se moldam de acordo com o processo de adaptação que cada pessoa passa. A sobrevivência do refugiado é várias vezes mais difícil do que a de um cidadão comum brasileiro, pois a desigualdade encontra novo patamar.
Para além disso, é preciso interpretar este conglomerado de aspectos para compreender o estigma sofrido por essas pessoas e como essas barreiras se alteram no passar do tempo e na mudança de comportamento de determinada sociedade:
“Para tanto, é necessário analisar o complexo de forças econômicas, políticas e sociais que incidem sobre a política de admissão e exclusão e examinar como essas forças estão operando em determinado contexto histórico e geográfico para determinar a admissão de migrantes em território nacional. Para possibilitar melhor visualização, saliente-se que, durante o período do Pós-guerra, os países prósperos da Europa Ocidental demonstraram boa vontade em aceitar migrantes como mão de obra temporária, mas isso mudou e hoje esses países estão menos dispostos a fornecer-lhes o acesso aos direitos civis e políticos da cidadania, o que demonstra que o interesse econômico pode ser excludente para os estrangeiros, permitindo a fusão de posições nacionalistas e ideologias racistas em políticas equivocadas de admissão, mesmo nos avançados países industrializados332” (Vedovato, 2012, apud Leitner, 1995).
Uma das soluções para as problemáticas envolvendo políticas públicas voltadas ao acolhimento dos povos refugiados, sejam os ucranianos ou outros, seria a efetivação do direito constitucional de acesso à justiça, de modo a determinar que o poder público promova novas ações em favor dos refugiados, garantindo o acesso à educação, ao trabalho digno e à dignidade humana.
Na realidade, existe uma dissincronia entre o texto formal da legislação, em relação ao acesso à educação, e a materialização deste direito na prática. O refugiado deveria adentrar ao Brasil, receber o acolhimento necessário, o visto para permanecer no país pelo tempo em que cessarem os perigos e ter efetivados seus direitos fundamentais, como direito à liberdade, à vida, à educação e à moradia. No entanto, a realidade é mais profunda do que a idealizada, e é preciso se questionar se a educação no Brasil consegue ser transformadora para esses indivíduos, diante de tamanha desigualdade que já sofrem os brasileiros. Neste sentido, analisa Guilherme Perez Cabral sobre a legislação envolvendo educação dos migrantes:
“O vocabulário é genérico, plurívoco. No contexto da globalização do capitalismo, constitui-se em discurso educacional neoliberal. À estruturação global da produção, circulação e consumo, com a dispersão geográfica das relações produtivas (Ianni, 2001), não corresponde, por certo, o reconhecimento do outro, em igualdade de condições, sem discriminação, propugnada nos textos jurídicos. Globaliza-se a exploração capitalista. A universalização dos direitos humanos não é real. Se insistimos em atribuir à educação fins emancipadores – e se, de fato, há precários espaços nesse sentido – é de se atentar ao quadro extrapedagógico profundamente desigual e excludente, do qual o sistema educacional emerge e na reprodução do qual atua” (Perez Cabral, 2020, apud Ianni, 2001).
São inúmeras facetas a serem apreciadas para que os direitos destes indivíduos não sofram pela omissão estatal e pela aspereza da sociedade. Diante da clareza da situação legal e social dos refugiados neste país, agora podemos melhor analisar como está a situação atual dos refugiados ucranianos no Brasil e as implicações da efetividade do direito à educação em suas vidas.
2.1 STATUS QUO DOS REFUGIADOS UCRANIANOS EM SOLO BRASILEIRO
A guerra na Ucrânia eclodiu após o aumento sucessivo da tensão entre Ucrânia e Rússia, devido à aproximação de grande parcela da população ucraniana à União Europeia e à OTAN (Aliança Militar Ocidental) (Zocchi, 2022). Após conflitos armados da população russa no leste da Ucrânia contra as tropas de Kiev e a forte inclinação do atual presidente, Volodymyr Zelenski, a entrar na OTAN, o então presidente da Rússia, Vladimir Putin, decidiu, em fevereiro de 2022, por atacar o território Ucrâniano sob o pretexto de defender a população russa do leste da Ucrânia. Desde que a Federação Russa lançou sua invasão em larga escala na Ucrânia, a HRMMU (Missão de Monitoramento dos Direitos Humanos da ONU na Ucrânia) documentou a morte de pelo menos 13.883 civis, incluindo 726 crianças, e 35.548 feridos, incluindo 2.234 crianças (OHCHR, 2025).
A diáspora ucraniana aumenta conforme viaja o tempo. Segundo a ACNUR (2025), atualmente, há quase 6,8 milhões de refugiados da Ucrânia em todo o mundo, sendo que a maioria – 6,3 milhões – está em países da Europa. 63% da população refugiada são mulheres e meninas, e 33% são crianças. Cerca de um ano após o início da guerra, o Brasil abriu suas portas para mais de 400 refugiados ucranianos. A comunidade ucraniana no Brasil localiza-se principalmente no Paraná, sendo estimada uma quantidade entre 500 e 600 mil habitantes brasileiros com origem ucraniana, e, por esse motivo, esse estado brasileiro foi o local de maior concentração de refugiados (G1, 2023).
As dificuldades de adaptação dessas pessoas são inúmeras: elas precisam de emprego, moradia, alimentação, educação, entre tantas outras coisas imprescindíveis para uma vida digna. Os refugiados são pessoas que estão em uma posição caracterizada pela vulnerabilidade, uma vez que fugiram de seus países, abandonando toda uma trajetória de vida, familiares, laços afetivos e saudades, tudo por um imenso temor de perseguição política ou de guerras iminentes. Surge nesse contexto uma maior carência à educação, pois ela finda por abranger todas as outras áreas da vida, e se torna extremamente complicado conseguir um emprego no Brasil sem conseguir falar o básico da língua portuguesa.
Em estudo da ACNUR (2019), anterior à chegada dos refugiados ucranianos em solo brasileiro, foi exposto que 19,5% dos refugiados estão procurando trabalho na amostra realizada, o que representava um índice de desemprego 60% superior ao dos brasileiros à época em que foi feita a pesquisa.
Inúmeras ações sociais têm local em solo brasileiro para que os refugiados ucranianos recebessem o socorro necessário ao adentrar em nosso país. Conforme já mencionado no trabalho, grande parte dos imigrantes ucranianos se concentra no sul do Brasil, motivo pelo qual a maior parte dos refugiados ucranianos buscou tal região. Desta forma, os refugiados ucranianos, principalmente mulheres e crianças, chegaram ao Paraná e foram inicialmente levados de Curitiba para o município de Guarapuava no Paraná, antes de se estabelecerem em Prudentópolis, onde novas casas foram construídas para que fossem habitadas pelos refugiados. A Prefeitura de Prudentópolis, em parceria com o governo do Paraná, doou um terreno para construção de moradias (Calsavara, 2022).
Ainda, os refugiados ucranianos receberam um visto humanitário temporário permitindo que vivessem no Brasil até setembro de 2022, podendo solicitar a residência temporária de 02 anos e converter este visto em permanente posteriormente (Sousa, 2024). Sousa segue explicando o plano de acolhimento dos refugiados ucranianos, organizado pelo Conselho Estadual dos Direitos dos Refugiados, Migrantes e Apátridas do Paraná (Cerma/PR):
“Vale ressaltar, que a Secretária da Justiça e Cidadania lançou um informativo no site do governo estadual do Paraná (2022), relatando que o Conselho Estadual dos Direitos dos Refugiados, Migrantes e Apátridas do Paraná (Cerma/PR) apresentou no Palácio Iguaçu em junho de 2022, o Plano Estadual de Políticas Públicas para essa população. Sob a coordenação da Secretaria de Estado da Justiça, Família e Trabalho do Paraná (SEJUF), o Cerma relatou que o Paraná recebeu mais de 100 mil pessoas de várias localidades, com cerca de 25 mil buscando a entidade para regularizar documentos, aulas de português e outros serviços de apoio. O plano aborda diretrizes em áreas cruciais como Educação, Família, Desenvolvimento Social, entre outras. Tem como objetivo combater qualquer forma de preconceito, monitorar políticas públicas de promoção e defesa dos migrantes, refugiados e apátridas, e promover o diálogo entre o governo e organizações da sociedade civil para desenvolver e implementar políticas públicas no Estado do Paraná. O II Plano Estadual terá vigência de três anos (2022-2025) e será monitorado pela Comissão de Monitoramento de Políticas Públicas, garantindo a eficácia da execução do plano” (Sousa, 2024).
Diante de tamanhos obstáculos, emerge um plano de acolhimento, organizado por 34 organizações, 10 ONG’s brasileira e 07 internacionais, 02 organizações lideradas por refugiados e migrantes, 06 organizações baseadas na fé e 09 agências da ONU: o Plano de Resposta Para Refugiados e Migrantes. (UNHCR, 2025)
Este esforço configura aliança do Brasil junto a 17 outros países da América Latina, co-liderada pela agência da ONU para refugiados (ACNUR) e a Agência da ONU para as Migrações (OIM). É relevante ressaltar que o Brasil, por mais que esteja repleto de adversidades e desigualdades para os refugiados, é o principal país no qual eles decidem ficar na América Latina. Leva-se em consideração o exemplo dos migrantes e refugiados venezuelanos: 96% destes querem permanecer no Brasil. (UNHCR, 2025)
Durante o evento de lançamento do plano, organizado pelo Ministério de Relações Exteriores (MRE), O Secretário Executivo Adjunto da Casa Civil, Pedro Pontual ressaltou: “a importância da Estratégia de Interiorização, que tem realocado pessoas refugiadas e migrantes desde Roraima a outras regiões do país, onde podem acessar os serviços brasileiros e encontrar melhores oportunidades de integração social e econômica.” (UNHCR, 2025)
Percebe-se que existe um esforço governamental e não-governamental de auxílio dessa população, e esta atitude se traduz na vontade destes indivíduos em querer permanecer no país, se desenvolver e não retornar para o contexto de violência que antes viviam. Através dessa compreensão, visa-se o trabalho, a saúde, o lazer e as formas comuns à determinado povo de conduzir a vida.
Como veremos a seguir, existe um exemplo presente na história do Brasil de uma mulher, que veio ainda bebê para este país, como refugiada ucraniana no século passado, e se tornou uma das maiores, senão a maior, escritora desse país. A garantia do direito ao acesso à educação agiu na vida de Clarice Lispector como um elemento transformador da realidade e mostrou, mesmo em um momento no qual a legislação que regulava sua situação era tão escassa, que o Estado deve oferecer as mesmas oportunidades e condições aos refugiados e cidadãos brasileiros.
3 CLARICE LISPECTOR: ENTRE O REFÚGIO DA GUERRA E A CONSAGRAÇÃO NA LITERATURA
Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920, numa família judia do oeste da Ucrânia (Moser, 2016). Esse momento histórico foi marcado pelo ápice da Primeira Guerra Mundial. Período de grande violência na Europa, no qual o avô de Clarice foi assassinado e sua mãe foi violentada. Seu pai saiu da Ucrânia em 1922 exilado e foi sem dinheiro algum para um país tropical da América do Sul. Em Alagoas, aos nove anos de idade, Clarice perdeu sua mãe, levada pelos ferimentos sofridos durante a guerra. Todo esse sofrimento impulsionou o pai de Clarice, como explica sua irmã Elisa no texto redigido por Benjamin Moser como prefácio de seu livro Todos os Contos (Moser, 2016), a dar o incentivo necessário para que suas filhas pudessem estudar, uma vez que esse homem teve seu desejo de estudar frustrado pelo antissemitismo.
Alguns anos depois de chegar na capital brasileira, Clarice se destacou muito em seus estudos e conseguiu se formar na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, muito apesar de que esta experiência não tenha deixado grandes vestígios em sua pessoa. Começou sua carreira como escritora seguindo sua vocação na elaboração de crônicas para jornais cariocas. Em 25 de maio de 1940, publicou seu primeiro conto: “O Triunfo”, pouco depois disso seu pai faleceu.
Em 1944, publicou o seu primeiro livro: Perto do Coração Selvagem. Clarice então seguiu por muitos anos viajando, uma vez que era casada com o diplomata Maury Gurgel Valente. Ainda em 1944, viajou para a Europa, ficando em Nápoles, na Itália. Em 1946, foi para Berna, na Suíça. Depois de seis meses na Inglaterra, em 1954, foram para os Estados Unidos. Enquanto viajava por todos esses países, Clarice escreveu seus primeiros grandes lançamentos, dentre eles: O Lustre, a Cidade Sitiada e o Alguns Contos. Além disso, Clarice teve dois filhos durante esse período, sendo a maternidade uma característica latente tratada em seus contos (Frazão, 2023).
Ao retornar para o Brasil, separada do marido, em 1959, foi para o Rio de Janeiro. Escreveu crônicas por um longo período, desde sua volta ao Brasil até o fim de sua vida, em diferentes jornais brasileiros.
Na obra de Clarice, em decorrência de ter passado boa parte de sua vida viajando e por ter vindo como imigrante para o Brasil, é muito presente a ideia de estranhamento, filosófico e psicológico – do campo das ideias, e também de estranhamento social, uma sensação de distanciamento das demais pessoas. Clarice também escreveu muito sobre a realidade das mulheres de seu tempo, da burguesia à pobreza brasileira.
Por esse motivo, identifica-se que, por mais que tenha crescido e sido criada no Brasil, é perceptível que ter vindo como refugiada para este país permaneceu como uma característica marcante em sua personalidade e sua escrita.
Clarice revolucionou a escrita moderna no Brasil e abriu caminho para inúmeras novas escritoras mulheres no país. Autora muitíssimo respeitada internacionalmente, condecorada como uma das melhores escritoras brasileiras de todos os tempos, senão a melhor. Faleceu um dia antes de seu aniversário, em 9 de dezembro de 1977.
Lispector, neste momento histórico de grande demanda de refugiados da Ucrânia, demonstra um exemplo histórico em nosso país de como uma mulher, que chegou no Brasil bebê com os pais refugiados da Ucrânia, conseguiu ter sua vida transformada através da escrita, da educação, e como por meio de sua escrita transformou a cultura de toda uma nação.
4 REGIME JURÍDICO DOS REFUGIADOS NO BRASIL: DE 1922 A 2022, O QUE MUDOU?
Levando em consideração que quando Clarice chegou aqui no Brasil, em 1922, e o Brasil recebeu inúmeros refugiados ucrânianos em 2022, é importante destacar a grande discrepância centenária de dispositivos legais que protejam os direitos dos refugiados em nosso país.
Em 1922, ainda estava vigente em nosso país a Constituição da República de 1891, que trouxe importantes direitos para a população brasileira, como o sufrágio universal, no entanto ainda restrito a homens maiores de 21 anos, no que dizia respeito aos direitos dos imigrantes. Ainda assim, seu art. 72º apresentava matéria extremamente similar ao do atual artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que implicava:
Art.72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:
Diante da mudança na Constituição, que, conforme já mencionado no início deste artigo, agora protege os direitos fundamentais também para os refugiados, é preciso que os entendimentos jurisprudenciais ajam de acordo com o previsto na legislação. Não obstante, vale a pena ressaltar o entendimento que foi adotado pelo Superior Tribunal Federal para não limitar direitos fundamentais aos estrangeiros de passagem pelo Brasil, concedendo a estes os mesmos direitos oferecidos aos brasileiros, conforme os seguintes julgados:
EMENTA: Ao estrangeiro, residente no exterior, também é assegurado o direito de impetrar mandado de segurança, como decorre da interpretação sistemática dos artigos 153, caput, da Emenda Constitucional de 1969 e do 5º, LIX da Constituição atual. Recurso extraordinário não conhecido. (RE 215.267, Primeira Turma, relatora Ministra Ellen Gracie, DJU 25.05.2001) (Brasil, 2001).
“(…) No que concerne ao estrangeiro, quando a Constituição quis limitar-lhe o acesso a algum direito, expressamente estipulou. Assim, quando a própria Constituição estabelece que determinados cargos só podem ser providos por brasileiros natos, enquanto outros, por natos ou naturalizados, certo que estrangeiros, naturalizados brasileiros, nacionais brasileiros passam a ser. Quando a Constituição quis fazer essas discriminações, ela o fez. Mas, o princípio do nosso sistema é o da igualdade de tratamento. (…)” (voto do Ministro Néri da Silveira no RE 161.243, Primeira Turma, relator Ministro Carlos Velloso, DJU 19.2.1997, pp. 775-776). (Brasil, 1997).
“(…) Ressaltou-se que, em princípio, pareceria que a norma excluiria de sua tutela os estrangeiros não residentes no país, porém, numa análise mais detida, esta não seria a leitura mais adequada, sobretudo porque a garantia de inviolabilidade dos direitos fundamentais da pessoa humana não comportaria exceção baseada em qualificação subjetiva puramente circunstancial. Tampouco se compreenderia que, sem razão perceptível, o Estado deixasse de resguardar direitos inerentes à dignidade humana das pessoas as quais, embora estrangeiras e sem domicílio no país, se encontrariam sobre o império de sua soberania. (…)” (HC 97.147, Segunda Turma, relator para o acórdão Ministro Cezar Peluso, julgamento em 4.8.2009) (Brasil, 2009).
Outro grande avanço legislativo que nasceu durante o século XX foram os Tratados de Direito Internacional. É perceptível como o direito no mundo inteiro foi afetado pelas consequências das guerras do início do século XX e o direito internacional ganhou maior movimentação através dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. A violação da Boa-Fé e Pacta Sunt Servada no âmbito destes Tratados, como exposto na Convenção de Viena (Do Nascimento e Silva, 1967), pode levar à nulidade ou extinção do Tratado violado, assim como à responsabilização do Estado no Tribunal Internacional de Justiça. No Brasil, inclusive, existem diversos casos de denúncias de omissão do Estado e violação de direitos humanos perante à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Abreu, 2023), como os Casos Maria da Penha e Ximenes Lopes, apenas para citar alguns. No que tange à educação de crianças, a Corte Interamericana possui entendimento ligado ao art. 19º da Convenção Interamericana (1969):
Toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado (Brasil, 1992).
Porém, como já indicado neste trabalho, um imprescindível marco para a legislação sobre refugiados e imigrantes no Brasil foi a Lei 9.474/1997, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951. Analisando a proposta desta lei, configurou-se como grande avanço realizado pela legislação a definição de refugiado tanto nas motivações clássicas de refúgio (oriundas da Convenção de Genebra de 1951) quanto nas ampliadas, segundo o marco regional estabelecido em Cartagena (Junger da Silva; Cavalcanti; Lemos Silva; Tonhati; Lima Costa, 2023). Aliada à Lei 13.445/2017, estes mecanismos legais garantem o Direito à Educação dos refugiados, entre outros direitos e deveres.
Destarte, por mais que tenha ocorrido grande avanço legislativo, de nada adianta caso os meios de implementação utilizados pelo Estado não se atualizarem às necessidades que existem para as populações que estão se refugiando no solo brasileiro. Intrínseco das adaptações às novas realidades, está a obrigação do Estado brasileiro de garantir o acesso à educação destas populações que, como demonstrado neste trabalho, tem papel fundamental para a transformação na vida de um refugiado no solo brasileiro.
5 CONCLUSÕES
Finalmente, esse salto temporal centenário, como explicado anteriormente, explicita a mudança de postura da máquina estatal perante o tema e o comportamento internacional na prevenção de abusos a estas populações em situação de vulnerabilidade. A Lei de 9.474/1997 demonstrou grande avanço na legislação nacional, especialmente por tratar de forma inovadora os conceitos de refugiado. Além disso, os Tratados Internacionais em que o Brasil dos quais o Brasil é signatário oferecem uma nova camada de proteção aos refugiados. No entanto, esses avanços ainda não se mostraram suficientes para resolver tais problemáticas, pois, como explicitado nesta pesquisa, o trabalho escravo e o tráfico de pessoas ainda são preocupações latentes no mundo inteiro e uma realidade no Brasil.
Assim sendo, a leitura e o estudo são buscadas pelos refugiados como forma de adaptação ao país, demonstrado no estudo da ACNUR de 2019 já citado, eles buscam estabilidade e ascensão de vida no Brasil. Contudo, essas ofertas não são suficientes para a demanda de refugiados no país e precisam ser efetivadas pelo Estado brasileiro.
O exemplo de Clarice se tornou elemento basilar deste trabalho não só pela imensa admiração que existe pela autora, mas principalmente por sua notoriedade e impacto na cultura brasileira. Além disso, a vivência da autora foi semelhante à de muitos dos refugiados ucranianos que hoje estão no Brasil.
Infelizmente, na época em que Lispector chegou em nosso país, as oportunidades eram muito menores, especialmente para mulheres, o que com certeza tornou muito mais difícil conquistar tudo o que conquistou, através do incentivo e trabalho do seu pai, assim como pela dedicação e talento que a autora possuía com a escrita.
Ilustrado no belíssimo e emocionante conto “Felicidade Clandestina” (Lispector, 2016), uma menina se apaixona perdidamente por um livro que lutou para conseguir. A menina descrita por Clarice encontrou sua felicidade na leitura, de maneira muito semelhante ao que foi mostrado na análise biográfica da autora. Conclui-se que, garantindo o acesso à educação dos refugiados da Ucrânia no Brasil, assim como dos refugiados de outras nacionalidades, há uma inversão no quadro de expectativas que lhes foi concedido pelos mistérios do planeta. Encontra-se transformação, paz e progresso no lugar da transgressão, do caos e do abuso. Floresce a verde esperança de Clarice.
REFERÊNCIAS
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[1] Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Norte/Centro de Ensino Superior do Seridó (UFRN/CERES). Realizou estágio profissional não-obrigatório na Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Norte e no setor Jurídico da SEMTHAS dos municípios de Currais Novos e de Japi. E-mail: tales.gabriel.700@ufrn.edu.br
[2] Professora do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Centro de Ensino Superior do Seridó (UFRN/CERES). Doutora e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Sistemas de Justiça, Violência e Direitos Humanos, vinculado ao curso de Direito da UFRN/CERES. E-mail: camilla.montanha@ufrn.br

