O CONCEITO DE MATRIMÔNIO E A ADAPTAÇÃO PELA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVI

O CONCEITO DE MATRIMÔNIO E A ADAPTAÇÃO PELA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVI

30 de setembro de 2024 Off Por Cognitio Juris

THE CONCEPT OF MARRIAGE AND THE ADAPTATION BY BRAZILIAN LEGAL CULTURE IN THE 16TH CENTURY

Artigo submetido em 22 de setembro de 2024
Artigo aprovado em 27 de setembro de 2024
Artigo publicado em 30 de setembro de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 56 – Setembro de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Felipe Camilo Costa Ernesto[1]

RESUMO: O artigo tem como objetivo investigar os processos de adaptação do Direito Canônico no Brasil Colonial, com enfoque nas relações matrimoniais e na conformação das estruturas familiares durante o século XVI. Nesse sentido, justifica-se pela necessidade de, a princípio, compreender as transformações culturais ocorridas na colônia, para então analisar de que maneira as normativas europeias concernentes ao matrimônio precisaram ser traduzidas à realidade local, caracterizada pela diversidade cultural, étnica e social dos diversos povos que coexistem no território. A partir disso, observou-se a importância de compreender os contextos e interesses envolvidos na interpretação das normativas canônicas, bem como nas tentativas de aplicação do modelo europeu, em vias de identificar como o direito eclesiástico foi incorporado e ajustado às circunstâncias específicas do período colonial. Para tanto, adotou-se uma metodologia descritiva e analítica, baseada no levantamento bibliográfico de fontes históricas, jurídicas e religiosas, com o objetivo de examinar as interações entre direito, cultura e poder nas uniões celebradas no contexto da colônia. Assim, os principais resultados apontaram à uma crescente flexibilização das normas canônicas, especialmente nas práticas matrimoniais, em razão da miscigenação e das uniões informais entre europeus, indígenas e africanos que desafiaram a rigidez das doutrinas eclesiásticas e, por vezes, foram consideradas ilegítimas. Desse modo, concluiu-se que o processo de tradução dos preceitos canônicos relativos ao matrimônio envolveu uma negociação constante entre as diversas instâncias da sociedade, na busca por atender as exigências formais da Igreja e as peculiaridades locais, em que se priorizou a prática de um Direito Canônico moldado pela realidade colonial e pelas dinâmicas sociais diversas.

Palavras-chave: Direito Canônico; Concubinato; Adaptação Jurídica; Cristianismo.

ABSTRACT: The article aims to investigate the processes of adaptation of Canon Law in Colonial Brazil, with a focus on marital relations and the shaping of family structures during the 16th century. In this sense, it is justified by the need to first understand the cultural transformations that occurred in the colony, in order to then analyze how the European norms concerning marriage had to be translated to the local reality, characterized by the cultural, ethnic, and social diversity of the various peoples coexisting in the territory. Based on this, it was observed that it is important to understand the contexts and interests involved in the interpretation of canonical norms, as well as the attempts to apply the European model, in order to identify how ecclesiastical law was incorporated and adjusted to the specific circumstances of the colonial period. For this purpose, a descriptive and analytical methodology was adopted, based on a bibliographic survey of historical, legal, and religious sources, with the aim of examining the interactions between law, culture, and power in the unions celebrated in the colonial context. Thus, the main results pointed to a growing flexibility of canonical norms, especially in marital practices, due to the miscegenation and informal unions between Europeans, Indigenous people, and Africans, which challenged the rigidity of ecclesiastical doctrines and were sometimes considered illegitimate. Therefore, it was concluded that the process of translating canonical precepts related to marriage involved constant negotiation between the various sectors of society, in the search to meet the formal requirements of the Church and local peculiarities, prioritizing the practice of a Canon Law shaped by colonial reality and diverse social dynamics.

Keywords: Canon Law; Concubinage; Legal Adaptation; Christianity.

1 INTRODUÇÃO

Em virtude do processo de colonização do Brasil no século XVI, surgiram grandes desafios à implementação das estruturas jurídicas e sociais de matriz europeia, principalmente no âmbito das relações matrimoniais. Com a expansão do domínio português, a Igreja Católica enfrentou a complexidade social da colônia, caracterizada pela miscigenação e diversidade cultural, o que promoveu adaptações substanciais na aplicação das normativas europeias. Esse processo de tradução para harmonizar os valores religiosos europeus com a pluralidade colonial, especialmente no que se refere ao matrimônio, levantou questões relacionadas à uniões informais, concubinatos e casamentos interétnicos entre europeus, indígenas e africanos, de modo que essas práticas representavam um obstáculo à aplicação direta dos preceitos canônicos.

A partir disso, o artigo tem como objetivo principal investigar como o Direito Canônico e outras legislações pertinentes foram recebidos e adaptados no Brasil Colonial, com especial foco nas relações matrimoniais, a fim de analisar os contextos, interesses e intenções que motivaram as modificações das normas luso-brasileiras. Ademais, busca-se compreender a flexibilidade das estruturas familiares e as interações entre diferentes grupos étnicos, bem como ressaltar o papel da Igreja e da comunidade na conformação dessas uniões. Para tanto, a metodologia utilizada baseia-se em uma perspectiva descritiva e analítica, fundamentada no levantamento bibliográfico de fontes históricas, jurídicas e religiosas, além do método indutivo, por meio da análise do contexto colonial, para entender de que maneira as peculiaridades sociais influenciaram a modificação das normas canônicas, especialmente no campo do Direito Matrimonial.

Por fim, este estudo pretende oferecer uma contribuição significativa à compreensão do processo de adaptação do Direito Canônico à realidade brasileira, ao examinar de que maneira o matrimônio foi caracterizado não apenas como sacramento, mas um instrumento estratégico de controle social, preservação patrimonial e manutenção das hierarquias sociais. Assim, ao explorar as interações entre normas jurídicas e práticas sociais, o trabalho procura evidenciar a complexidade das transformações nas estruturas familiares coloniais para lançar luz sobre a multifacetada dinâmica entre direito, sociedade e religião.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 O MATRIMÔNIO NO CONTEXTO EUROPEU

Historicamente, a estruturação familiar do período medieval comportou as particularidades culturais do Direito Romano, do Direito Canônico e do Direito Germânico. Em certa medida, o desenvolvimento acelerado da jurisdição romana e a expansão do cristianismo moldaram as instituições germânicas, inclusive a “família”, que gradativamente incorporaram preceitos religiosos (Dantas, 1991, p. 57). A partir dos séculos III e IV, iniciaram-se as compilações não-oficiais de normas estabelecidas pela Igreja, as quais uniam regras jurídicas à exortações morais, doutrinas teológicas e fórmulas litúrgicas; além de incluir temas concernentes ao Direito, como finanças e propriedades do clero, dinâmicas da autoridade eclesiástica, crimes, matrimônio e relações familiares (Berman, 2006, p. 257).

Sob esta perspectiva, durante o século X os esforços da Igreja para reorganizar as doutrinas foram intensificados ao promulgar decretos acerca do vínculo matrimonial, do adultério e da legitimidade dos descendentes. Contudo, prevaleciam nas relações familiares ocidentais as heranças do Direito Romano Clássico que proibiam o casamento entre classes diferentes, dispensavam requisitos formais ao divórcio, exigiam consentimento paternal ao matrimônio e não estabeleciam deveres jurídicos entre os cônjuges. Do ponto de vista clerical, somente as inovações políticas e legais experimentadas a partir da Revolução Papal, nos séculos XI e XII, permitiram a ruptura com as formações sociais anteriores, precisamente os movimentos populacionais, impulsionados pelo avanço das cidades e do sistema senhorial, junto às mudanças políticas na hierarquização dentro do clero, de modo que o incipiente Estado eclesiástico adquiriu forças para sistematizar o Direito Canônico e garantir que fosse obedecido (Berman, 2006, p. 293).

Em contrapartida, as doutrinas que passariam a reger as relações entre os indivíduos e a constituição das famílias no Ocidente foram assentadas durante o Concílio de Trento, favorável à unidade do sacramento e do contrato, que consolidou a posição da Igreja em relação aos preceitos canonistas (Dantas, 1991, p. 60). Nesse sentido, ao determinar o matrimônio como indissolúvel e elevá-lo a um dos sete sacramentos, certas normas passaram a ser requeridas dos nubentes: idade mínima para união, obrigatoriedade da presença do padre e de testemunhas na celebração, situações de impedimento ao matrimônio, condenação ao concubinato, valorização do celibato e da virgindade, bem como a exigência de livre consentimento dos cônjuges (Londoño, 1994, p. 102-103). Para além, as uniões que deixassem de atender aos ordenamentos impostos eram consideradas precárias e, por não se sujeitar à indissolubilidade, consistiam em concubinatos, aos olhos da Igreja (Silva, 2019, p. 58).

Assim, vislumbram-se as nuances entre as concepções de “família” que coexistiram durante o medievo, as quais submeteram-se à um processo de tradução liderado pelo clero ao assumir o poder de escolha das características a serem preservadas e as que deveriam ser manipuladas, a fim de impor um “novo modelo” de união, alinhado aos interesses políticos e religiosos da classe em propagar o Cristianismo. Não obstante, o posterior vínculo colonial da América à Europa estendeu a aplicação e interpretação dessa doutrina ao ultramar, de modo a tornar-se fundamental na implementação do modelo de família europeia no Brasil (Londoño, 1994, p. 101).

2.2 CONTEXTO JURÍDICO DO BRASIL COLONIAL

Em relação ao cenário brasileiro durante o período colonial, destaca-se a impossibilidade de analisar a colônia sem considerar a importação de mecanismos políticos, jurídicos, administrativos, fiscais e militares da metrópole, os quais não foram simplesmente transpostos mas, sim, objeto de adequação ao contexto local na ordenação do cenário urbano e na regulamentação dos usos e costumes (Bicalho, 2003, p. 160). A princípio, o número reduzido de europeus permanentemente radicados no Brasil refletia na ausência de uma administração judicial sistematizada, entretanto, a partir da expedição de Martim Afonso de Sousa, em 1530, a colônia recebeu homens e materiais suficientes ao povoamento permanente, que evidenciaram a necessidade de normatização da sociedade (Shwartz, 2011, p. 42). Desse modo, implementou-se um sistema jurídico semelhante ao de Portugal, sumariamente regido pelas Ordenações Filipinas, em que nos casos omissos recorria-se ao Direito Romano ou ao Direito Canônico e, na persistente ausência de solução, seguiam-se as decisões do rei (Silva, 2019, p. 73).

Nessa perspectiva, apesar da vasta regulamentação disponível, as legislações concebidas em Portugal não contemplavam os desafios presentes na realidade da colônia. Em primeiro lugar, as leis restringiam-se aos europeus, de modo que a população nativa encontrava-se alheia ao governo civil e permanecia sem acesso ao sistema jurídico previamente apresentado. Além disso, a extensão territorial da colônia e o povoamento esparso dificultaram o cumprimento da lei nas regiões mais distantes, situação que se agravou pela falta de pressões comunitárias em apoio à concepção moral e do respeito à lei (Shwartz, 2011, p. 47). Por sua vez, ao estabelecer uma ocupação permanente, buscou-se impor a instituição familiar canônica entre a população para assegurar a transmissão de terras como herança e a concentração de interesses por meio do matrimônio (Londoño, 1994, p. 105). Todavia, a concepção de matrimônio do Direito Canônico precisou se adequar a uma realidade distinta da europeia, onde, apesar da vigência de um Direito codificado, este não conseguia ser aplicado em sua totalidade devido a um contexto de estrutura familiar flexível e de uniões entre diferentes grupos étnicos. Com isso, a sociedade brasileira em formação passou a moldar a interpretação das normas incorporadas e traduzir o Direito Matrimonial para atender tanto aos interesses da Igreja, quanto da sociedade brasileira em formação.

3 METODOLOGIA

Para investigar de que maneira as diretrizes canônicas relativas ao matrimônio foram recebidas nos primórdios do Brasil Colonial, o presente artigo adotou uma interpretação descritiva e analítica dos contextos e interesses envolvidos na tradução desse instituto à realidade brasileira. Nesse sentido, fundamentou-se no levantamento bibliográfico de fontes históricas, jurídicas e religiosas, que descrevessem as especificidades das interações entre os diferentes grupos que coexistiam no território. Assim, o método de pesquisa utilizado foi predominantemente indutivo, uma vez que se buscou, a partir da conjuntura e das práticas sociais documentadas, compreender os efeitos das peculiaridades da sociedade em formação nas uniões e nos arranjos familiares.

A partir disso, definiram-se três eixos principais de investigação: (1) a tradução dos princípios canônicos nas relações matrimoniais do Brasil Colonial, (2) a análise dos interesses e intenções subjacentes às adaptações realizadas, e (3) a avaliação dos impactos nas estruturas familiares da colônia. Desse modo, o estudo pretendeu oferecer uma contribuição significativa para se compreender o processo de tradução do conceito de matrimônio europeu para o Brasil Colonial, a fim de evidenciar as interações complexas entre o ordenamento jurídico europeu e a realidade colonial. Portanto, a metodologia adotada, ao privilegiar a análise crítica e a interpretação histórica, buscou fornecer uma visão abrangente e detalhada das transformações práticas que ocorreram durante o período colonial, particularmente no que tange às relações matrimoniais e à estruturação das famílias na colônia.

4 RESULTADOS E DISCUSSÕES

À medida que a colonização avançava, os missionários jesuítas empenharam-se na conversão da população indígena ao catolicismo, em que o interesse por transmitir as normas e valores religiosos da metrópole conflitou com a organização própria da população nativa, especialmente no que se refere às relações entre indivíduos. Por um lado, as práticas de mancebia, pecado grave na visão dos canonistas, eram difundidas e até mesmo os portugueses passaram a manter este tipo de união (Londoño, 1994, p. 105). Em contrapartida, havia dificuldade em obter número suficiente de religiosos e superiores que atendessem aos requisitos missionários para atuar no vasto território da colônia, além de que os poucos missionários eram evitados devido às divergências morais do período (Serafim Leite, 1938, p. 202). Portanto, observa-se que a rigidez do conceito de matrimônio, prevista no Direito Canônico, foi flexibilizada para lidar com as características da comunidade colonial como o concubinato, visto que, na prática, não era se caracterizado como pecado e nem se aplicavam sanções aos praticantes durante o século XVI, uma vez que faltavam missionários para efetivamente verificar os termos de cada relação (Londoño, 1994, p. 105-106).

Diante das modificações aos preceitos canônicos relativos ao casamento, persistiram as uniões livres, que contrariavam as normas estabelecidas pelo Concílio de Trento ao não valorizarem o celibato e a virgindade, não exigirem a presença do pároco e não obedecerem uma idade mínima para união. Conforme a Igreja idealizava a celebração de matrimônios que remetessem ao modelo europeu, com indissolubilidade e exigência de coabitação dos cônjuges, juntamente aos princípios de autoridade dos pais sobre os filhos (Londoño, 1994, p. 108), os registros da época demonstram que, na prática, as uniões indígenas frequentemente não eram formalizadas. Para além, identificam-se momentos em que os interesses econômicos e sucessórios muitas vezes se sobrepunham às normas religiosas para adaptar normativas como a preservação do casamento e a coabitação dos cônjuges. A exemplo disso, tem-se a separação de casais durante a dissolução de propriedades, como no inventário de Antonio Ribeiro Roxo, proprietário dos índios Pedro e Branca que, embora casados, foram considerados “soltos” e separados entre herdeiros diferentes (Monteiro, 1994, p. 167).

Outrossim, a presença majoritária de homens portugueses, sem suas famílias, intensificou as práticas de mancebia, especialmente diante da crença de que a escravidão das indígenas legitimava as relações informais. Com isso, entre os colonizadores havia o temor de que o casamento com as índias pudesse conceder-lhes alforria e, por consequência, ameaçar o domínio sobre elas, situação que tornava o matrimônio algo a ser evitado (Londoño, 1994, p. 106). Posteriormente, com a expansão da escravidão negra e a crescente exploração do território, registrou-se um número crescente de casamentos mistos, como entre africanos e indígenas, celebrados distintamente aos princípios eclesiásticos e marcados pela estratificação social que perpetuava o controle sobre esses grupos (Monteiro, 1994, p. 169).

Assim, as evidências demonstram grande disparidade entre a realidade na qual as normas concernentes ao matrimônio foram concebidas em Portugal e as particularidades do Brasil colonial. Consoante, o processo de tradução dos princípios canônicos destoou de uma simples imposição das normas europeias, ao se aproximar de uma negociação complexa, atravessada por contextos, interesses e particularidades locais. Portanto, a diversidade cultural e a flexibilidade das estruturas familiares sobrepuseram as tentativas de importação absoluta do modelo canônico de matrimônio, de modo que resultaram em uma aplicação adaptada para conciliar, a priori, os interesses do clero aos costumes da população nativa e, posteriormente, as questões de sucessão e preservação do patrimônio para os diferentes estratos da sociedade. Com isso, o processo de tradução da concepção de matrimônio advinda do Direito Canônico revela-se multifacetado, ao refletir as interações dinâmicas entre direito, cultura e sociedade no período colonial.

5 CONCLUSÃO

A partir da análise realizada, conclui-se que o processo de adaptação do Direito Canônico no Brasil colonial foi profundamente marcado por transformações jurídicas, culturais e sociais que moldaram as relações familiares e o papel do matrimônio no contexto colonial. Nesse sentido, o presente artigo demonstrou que a imposição das normativas canônicas, em especial aquelas relacionadas ao casamento, encontraram obstáculos significativos perante a realidade plural e heterogênea da colônia, além da coexistência de práticas sociais diversas, como o concubinato, as uniões informais e as relações interétnicas, que resultaram em uma complexa interação entre os preceitos europeus e as práticas locais, onde o conceito de matrimônio precisou ser ajustado para atender às necessidades e às especificidades do novo território.

Consoante, os dados levantados revelam que a Igreja buscou consolidar o casamento como um dos sete sacramentos e a família como célula básica da sociedade cristã, o que requereu enfrentar práticas de mancebia e de união informal que se difundiam por toda a colônia. Nesse sentido, tais relações se estabeleceram à margem das normativas canônicas, desafiaram a rigidez dos preceitos religiosos e levaram a Igreja a adotar uma postura pragmática em várias situações. Isso ocorreu, principalmente, devido à escassez de clérigos e à vasta extensão territorial da colônia que, aliadas à dificuldade de fiscalizar as práticas matrimoniais em regiões distantes, contribuíram para a disseminação de uniões não reconhecidas pela Igreja.

Além disso, verificou-se que as adaptações do conceito de matrimônio do Direito Canônico ao contexto colonial não se limitaram às questões doutrinárias, mas incluíram interesses políticos e econômicos, pois o casamento serviu como instrumento jurídico e estratégico na formação das elites coloniais para assegurar a transmissão de propriedades, concentrar riquezas e estabelecer alianças políticas. Assim, as uniões formais, conforme o Direito Canônico, foram incentivadas entre os setores mais altos da sociedade, ao passo que as uniões informais, permaneciam alheias às regulamentações oficiais. Dessa maneira, o quadro evidencia a instrumentalização do matrimônio não apenas como sacramento religioso, mas como um mecanismo de controle social e manutenção do poder na colônia.

Por outro lado, as uniões interétnicas, frequentes no Brasil colonial, desempenharam um papel central na conformação das estruturas familiares da época, pois as relações entre colonizadores, indígenas e africanos geraram novas configurações familiares que escapavam ao controle direto da Igreja e resultavam em uma flexibilidade nas estruturas familiares, que não era observada no contexto europeu. Nesse sentido, a Igreja, embora buscasse impor um modelo rígido de família cristã, viu-se obrigada a lidar com uma realidade em que os casamentos mistos tornavam-se comuns, o que exigiu uma adaptação contínua das práticas eclesiásticas a fim de acomodar essas novas formas de organização familiar.

Em última análise, evidenciou-se a complexidade das interações entre direito e sociedade, em que as normas jurídicas, ao serem incorporadas de um contexto europeu para um contexto colonial, foram inevitavelmente transformadas e adaptadas. Assim, as relações matrimoniais, ao serem mediadas por diferentes grupos sociais e atravessadas por interesses diversos, demonstraram que o direito não pode ser compreendido como uma entidade estática, mas, sim, como um fenômeno em constante transformação, moldado pelas realidades culturais, sociais e políticas de cada época. Dessa forma, o estudo contribui para uma melhor compreensão das interseções entre direito, cultura e poder no Brasil colonial, em que destaca a importância de uma análise histórica e crítica da formação das estruturas familiares, bem como das normativas jurídicas em contextos de colonização.

REFERÊNCIAS

BERMAN, Harold J. Direito e Revolução: A Formação da Tradição Jurídica Ocidental. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2006.

BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

DANTAS, San Tiago. Direitos de Família e das Sucessões. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

LONDOÑO, Fernando Torres. Igreja e família no Brasil colonial. Revista de Cultura Teológica, n. 9, p. 101–119, 1994. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/culturateo/article/download/14177/15008. Acesso em: 31 ago. 2024.

MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

SERAFIM LEITE, S. I. História da Companhia de Jesus no Brasil: Século XVI – O Estabelecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, t. I, 1938.

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[1] Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Especialista em Estado Democrático de Direito pela Fundação Escola do Ministério Público do Paraná (FEMPAR). Especialista em Direito Público pela Faculdade Adelmar Rosado.