LITIGÂNCIA CLIMÁTICA: A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL FACE ÀS MUDANÇAS DO CLIMA

LITIGÂNCIA CLIMÁTICA: A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL FACE ÀS MUDANÇAS DO CLIMA

30 de junho de 2024 Off Por Cognitio Juris

CLIMATE LITIGATION: CIVIL LIABILITY IN THE FACE OF CLIMATE CHANGE

Artigo submetido em 19 de junho de 2024
Artigo aprovado em 25 de junho de 2024
Artigo publicado em 30 de junho de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 55 – Junho de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Isabelle Sofia Ablas[1]

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo introduzir o sistema de responsabilizaçãopor danos ambientais existente no direito brasileiro e sua natureza tríplice, existente nas esferas cível, administrativa e penal, bem como explorar a possibilidade de responsabilização do Estado por danos climáticos, decorrente da competência dos Poderes Executivo e Legislativo na implementação de medidas e ações de mitigação e adaptação à mudança do clima, e do Poder Judiciário em assegurar os mandamentos legais e constitucionais do ordenamento jurídico brasileiro e de convenções internacionais que asseguram o meio ambiente equilibrado e sadio às presentes e futuras gerações.

Palavras-chave: litigância climática; mudanças climáticas; responsabilidade civil ambiental.

ABSTRACT: This article aims to introduce the system of liability for environmental damage existing under Brazilian law and its triple nature, existing in the civil, administrative and criminal spheres. It also explores the possibility of State liability for climate damage, arising from the competence of the Executive and Legislative Branches in implementing measures and actions to mitigate and adapt to climate change, and the Judiciary Branch in ensuring the legal and constitutional mandates of the Brazilian legal system and international conventions that ensure a balanced and healthy environment for present and future generations.

Key-words: climate change litigation; climate change; environmental liability.  

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em 2019, o termo “emergência climática” foi considerado a Palavra do Ano pelo Dicionário Oxford. Ao mesmo tempo, os cientistas alertam que a década de 2020 é especialmente importante para a verdadeira ação contra as mudanças climáticas: estamos ultrapassando um ponto após o qual, sem serem tomadas as medidas necessárias, não mais conseguiremos evitar o colapso climático.

Com alguns casos representativos, ainda que já bastante comum em outros países: a litigância climática, que nada mais é que a judicialização de demandas afetas às causas e efeitos das mudanças climáticas. Não seria novidade que as demandas ambientais referentes à mudança do clima também fossem apresentadas perante o Poder Judiciário, uma vez que, em matéria de direito ambiental, danos a quaisquer recursos naturais podem ser ajuizados. Ocorre que os danos referentes à mudança do clima possuem especificidades próprias

A litigância climática surge da própria sensação e percepção de que a ação guiada pela proteção contra a mudança do clima caminha a passos muito lentos, e inclusive mais lentos do que os países já se obrigaram tanto em âmbito externo quanto interno. Assim, o Poder Judiciário passa a ser entendido como agente da governança climática, não por ativismo, como muitos acabam julgando, mas por sua função de garantir a aplicação da lei quando da existência de um conflito.

As mudanças climáticas afetam milhões de pessoas em todo o mundo e apresentam riscos transfronteiriços crescentes, especialmente devido ao modelo econômico dependente de combustíveis fósseis. Os efeitos das mudanças climáticas não se limitam apenas às alterações ambientais, mas também têm implicações socioeconômicas significativas.

Os impactos das mudanças climáticas não são distribuídos igualmente, afetando de forma mais severa as populações menos responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa. Os países desenvolvidos, que historicamente contribuíram mais para as emissões, tendem a enfrentar menos riscos climáticos. Essa disparidade de impactos levou ao surgimento do movimento por Justiça Climática, que busca proteger os direitos das comunidades vulneráveis.

A complexidade das mudanças climáticas demanda uma revisão das estruturas normativas existentes para garantir a responsabilização e a justiça climática. O Direito precisa se adaptar para lidar com os desafios impostos pelo Antropoceno, incluindo a flexibilização dos princípios jurídicos tradicionais, como a responsabilidade civil.

Atualmente, os ônus socioambientais das mudanças climáticas são transferidos para a sociedade em geral, especialmente para comunidades vulneráveis, enquanto os benefícios são desfrutados por aqueles que contribuem para essas emissões. A reformulação do Direito é necessária para internalizar esses ônus e garantir uma distribuição justa dos impactos das mudanças climáticas.

Diante desse contexto, observa-se um aumento da litigância climática, envolvendo questões de mitigação, adaptação, perdas e danos, e gestão de riscos climáticos. Essas ações judiciais visam responsabilizar os principais responsáveis pelas mudanças climáticas e promover a justiça climática, apesar da complexidade e da pluralidade de objetivos e perspectivas envolvidas.

O presente artigo apresentará o estudo do caso Verein klimaseniorinnen schweiz and others vs. Switzerland, primeiro caso em que uma corte internacional, notadamente o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) condenou um País por não fazer o suficiente para conter as mudanças climáticas.

O recente caso no Tribunal Europeu ressalta a importância da litigância climática na proteção dos direitos fundamentais das populações afetadas pelas mudanças climáticas. A decisão do tribunal destacou a responsabilidade do governo suíço em cumprir as metas de redução de emissões para combater as mudanças climáticas, demonstrando o potencial das ações judiciais para promover a justiça climática.

1.1 A litigância climática

Constituindo-se como um dos efeitos danosos da atividade antrópica sobre o meio ambiente, contra os quais a Constituição Federal e a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) possuem mandamentos, a mudança do clima passou a ser não somente regulamentada, como também judicializada. É esse tipo de demanda levada ao Judiciário – que pode ter tipos de pedidos finais diversos – que costumou-se intitular litígio climático. Nada de novo sob o sol, uma vez que as demandas por danos ao meio ambiente – como contaminação do solo, das águas, derramamento de substâncias tóxicas no mar, desmatamento etc. – possuem vasto arcabouço jurídico, no Brasil, para dar-lhes sustentação.

Entretanto, os litígios climáticos ainda ocorrem em relativo pequeno número pelo mundo, sendo praticamente inexistentes no Brasil. Os entraves para a elaboração dessa classe de litígio possuem raízes na dificuldade da verificação do próprio dano, e, por conseguinte, do nexo de causalidade que teria provocado o “suposto” dano. Um outro motivo para o ainda pequeno número de litígios climáticos é o fato de que a preocupação mundial com relação às mudanças climáticas e, consequentemente, sua tutela jurídica, são relativamente recentes, sendo ainda cobertos por incertezas por parte do Poder Público e, sobretudo, dos tribunais.

No Brasil, por exemplo, a Política Nacional sobre Mudança do Clima foi instituída por lei apenas em 2009, mais de 10 (dez) anos depois da assinatura do Protocolo de Kyoto, em que vários países, pela primeira vez, concordaram em obedecer a algumas metas de redução de emissão de gases causadores do efeito estufa.

Embora ainda muito tímidos no Brasil, os litígios climáticos já não se demonstram tão incomuns em outros países. Segundo as autoras Jacqueline Peel e Hari Osofsky, até maio de 2014, mais de 500 (quinhentos) litígios desse tipo haviam sido ajuizados perante tribunais norte-americanos, tanto estaduais quanto federais[2]. Adicionam as autoras que a primeira dessas demandas foi decidida por um tribunal daquele país em 1990.

Porém, se a mudança do clima é apenas mais um fenômeno danoso ao ecossistema terrestre causado por atividades humanas, porque estaríamos, aqui, a dedicar um estudo inteiro a respeito de sua judicialização? É inegável o fato de que as políticas e ações para mitigar os efeitos das mudanças climáticas avançaram muito ao longo das últimas décadas, estando a discussão na pauta do dia. Porém, para que alcancemos o objetivo do Acordo de Paris, de limitar o aquecimento terrestre, até 2100, a um patamar bem abaixo de 2ºC, é clara a percepção de que é necessário avançar mais. Para que se atinjam metas ambiciosas, é necessário que os governos e os particulares ajam também de maneira mais ambiciosa para conter a emissão de gases causadores do efeito estufa, o que exige uma reformulação das políticas energéticas, assim como para frear o desmatamento, objetivando o crescimento das áreas consideradas como sumidouros – ou seja, áreas capazes de absorver os referidos gases as atmosfera.

É nesse contexto de certa letargia face à urgência do assunto que o Poder Judiciário tem sido provocado a agir na tutela da agenda climática. É o que descreve Gabriel Wedy:

Os litígios climáticos têm como objetivos pressionar o Estado Legislador, Estado Administrador e os entes particulares a cumprirem, mediante provocação do Estado Juiz, o compromisso mundial no sentido de garantir um clima adequado com o corte das emissões de fases de efeito estufa e o incentivo à produção das energias renováreis acompanhados do necessário deferimento de medidas judiciais hábeis a concretizar os princípios da precaução e da prevenção com a finalidade, igualmente, de evitar catástrofes ambientais e de promover o princípio do desenvolvimento sustentável[3].

Impossível não notar, portanto, que a utilização do termo litigância climática busca trazer uma compreensão que vai além de um simples debate a respeito da responsabilização por causas ou efeitos das mudanças climáticas. Na verdade, a utilização do Judiciário em demandas climáticas tem tido, a partir de análises de diversos estudiosos, a característica de objetivar um aprofundamento da governança climática a nível global.

Em outras palavras, levar uma demanda climática ao Judiciário tem menos foco, na maior parte das vezes, com aquele caso concreto em específico, estando mais diretamente ligado à intenção de fazer avançar a política climática. O Poder Judiciário possui a legitimidade para determinar que a Administração Pública regulamente normas sobre a mudança do clima (não por vontade de sua cabeça, mas por existir real mandamento constitucional e legal para a proteção do clima), ou de obrigar que Estudo de Impactos em processo de licenciamento leve em conta a variável climática, ou que determinado empreendimento de fato arque com os danos climáticos que causou.

Quando dizemos, porém, que o foco da litigância climática é fazer avançar a governança climática, possuindo, portanto, objetivo mais sistêmico do que individual, devemos observar que as decisões do Judiciário fazem lei (ou, simplesmente, fazem cumprir leis), sendo essa a característica básica do Terceiro Poder: resguardar as normas do ordenamento jurídico em sua aplicação concreta, ou seja, quando há um conflito entre normas ou entre norma e realidade.

Ao se inserir como importante agente no avanço da governança climática, o Poder Judiciário reorganiza a própria sociedade, aumentando a percepção pública sobre o tema e obrigando os particulares a considerarem a componente climática em suas tomadas de decisão[4].

“(…) why climate change litigation matters as a component of the overall system of climate governance: (1) international regulatory efforts are failing, increasing reliance on domestic regulatory solutions to which litigation can contribute; (2) climate governance operates across multiple scales and involves many actors, and litigation can be a useful means of connecting these different elements; and (3) mitigation and adaptive outcomes rely on the cumulative effect of numerous smaller-scale decisions, many of which come before courts and through which litigation can play an effective shaping role[5].”

De acordo com Joana Setzer, Kamyla Cunha e Amália Botter Fabbri, as ações que compõem o guarda-chuva da litigância climática costumam trazer para a apreciação dos tribunais questões relacionadas à redução da emissão de gases causadores do efeito estufa (mitigação), a medidas de adaptação contra os efeitos já existentes das mudanças climáticas (adaptação), à reparação e indenização de danos causados pelas mudanças climáticas (perdas e danos) e à gestão dos riscos climáticos (gestão)[6].

Porém, além das consequências diretas dos litígios climáticos, acima elencados, eles também são capazes de estabelecer impactos indiretos que também contribuem com o avanço de uma governança climático. Ainda segundo as autoras, esses impactos indiretos podem ser entendidos, por exemplo, quando se fala de ações “que estimulam a mudança regulatória na medida em que aumentam os custos aos emissores de GEE, intensificam os riscos associados a projetos específicos, ampliam a consciência pública sobre o problema das mudanças climáticas[7]”, entre outros.

1.2 Dever Regulatório do Estado

Importante também notar que o objeto mais comum em demandas de litígio climático é o do dever da Administração Pública de estabelecer normas e parâmetros para a mitigação das mudanças climáticos, ou seja, para reduzir a emissão de gases causadores do efeito estufa. Esse papel da Administração Pública não nos é novidade em matéria ambiental. Afinal, a própria Constituição Federal estabelece, como vimos anteriormente, o papel fundamental do Estado na proteção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, papel que é regulamentado através da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981). Quando o Estado não toma medidas para a redução das emissões e da concentração atmosférica desses gases, isso equivale a uma omissão de agir face a um mandamento constitucional, uma vez que existem comprovação científica consolidada de que a mudança do clima está ocorrendo e que ela decorre de atividade antrópica.

Um dos mais famosos exemplos de casos cujo desfecho levou a Administração Pública a regulamentar matéria de mudanças climáticas é denominado Massachusetts vs. EPA. Nesse caso, o Estado norte-americano de Massachusetts, juntamente com outros Estados federativos e outros atores da sociedade civil, propôs ação judicial contra a agência de proteção ambiental federal dos Estados Unidos (Environmental Protection Agency – EPA) por omissão em regulamentar a emissão de gases causadores do efeito estufa no âmbito da Lei do Ar Limpo (Clean Air Act), que regulamenta limites de emissões para veículos automotores. Assim, a decisão da Suprema Corte Norte-Americana:

“foi no sentido de confirmar que o Estado de Massachusetts estava na iminência de sofrer danos concretos, uma vez que poderia ter de arcar com os prejuízos do aumento dos níveis do mar e de tempestades na costa por força das mudanças climáticas. A mesma corte entendeu que a não limitação das emissões de GEE dos veículos automotores, a maior fonte de emissões dos EUA, poderia intensificar a probabilidade de ocorrência do dano e que, portanto, o controle das mesmas poderia contribuir para reverter o quadro de risco[8]”.

Como já tivemos a oportunidade de observar, o Estado Brasileiro possui dever constitucional de atuar com a finalidade de proteger o meio ambiente, o que logicamente inclui as ações de mitigação e adaptação à mudança do clima. E, de fato, a matéria foi regulamentada, através da Lei nº 12.187/2009 e do Decreto nº 9.578/2018. Porém, há ainda diversos instrumentos elencados por essas normas que ainda não foram devidamente regulamentados, sem sequer haver normativas que detalhem sua aplicação. Com relação a essa omissão estatal, o direito processual brasileiro possui instrumentos capazes de levar ao judiciário sua apreciação, a exemplo do Mandado de Injunção Coletivo e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão[9].

Uma das dificuldades enfrentadas para esse tipo de demanda se refere à independência entre os três poderes. Assim, é comum que entes da administração pública, ao se verem demandas em ações judiciais desse tipo, argumentem que o Poder Judiciário não pode interferir em sua esfera de competência, sob o risco de não se ver respeitado o princípio da separação dos poderes.

Ora, não é necessário delongar sobre o fato de que tal argumentação não encontra respaldo jurídico, uma vez que, conforme mencionado logo acima, existem instrumentos processuais específicos para questionar a inação estatal quanto a dever constitucional ou legal imposto tanto ao Legislativo, quanto ao Executivo. O Poder Judiciário, primeiramente, não age de ofício, mas sim sempre que provocado por cidadão ou pessoa jurídica. Da mesma forma, apenas interpreta a lei. Se há o dever constitucional e legal para que o Estado regulamente como irá atuar contra as mudanças climáticas, decisões judiciais nesse sentido não são mera invencionice dos magistrados, mas pura interpretação do texto da lei. Ainda, tal dever se constitui como a obrigação do Estado em desenvolver política pública. Nesse sentido, explicitam Marco Antônio Moraes Alberto e Carlos Hübner Mendes:

“(…) como políticas públicas encontram-se mergulhadas, em sua estrutura e em seu funcionamento, na legalidade constitucional, o descumprimento de normas jurídicas fundamentais à sua regulação e à sua articulação se identifica ao descumprimento de obrigações jurídicas, o que, por sua vez, acarreta a imputação – inclusive judicial – de responsabilidade civil ao Estado. Isso acontece porque a política climática não é meramente uma “política de governo”, dependente de escolhas discricionárias de grupos que venham a ocupar a agência governamental, mas sim uma política pública que, como tal, é dotada de estabilidade jurídico-institucional apta a constranger normativamente as dinâmicas governamentais”[10].

Desta forma, a omissão estatal face a dever de colocar em prática política pública está claramente sujeita ao regime da responsabilização civil do Estado, possuindo o Poder Judiciário legitimidade para impô-la.

“(…) o regime de responsabilidade civil do Estado, conforme estabelecido na Constituição de 1988, aplica-se à infração aqui descrita. Afinal, como deflui da jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, é aplicável a matérias de direito ambiental, e impõe três fatores como requisitos à responsabilidade objetiva da administração púbica: (i) o ato ilícito, que pode ser definido, no plano da responsabilidade civil do Estado, como desajuste objetivo entre o conteúdo estabelecido normativamente e sua materialização imperfeita pela atuação administrativa; (ii) o dano, que em sentido jurídico se identifica como reflexo fático do ato ilícito (art. 186 do Código Civil Brasileiro); e (iii) o nexo causal entre ato ilícito e dano”[11]

1.3 Responsabilidade Civil por Mudança do Clima

Entende-se que, além da responsabilidade civil estatal decorrente da falta de uma completa regulamentação da matéria climática, a responsabilidade civil por dano ao meio ambiente também se aplica aos entes particulares que comprovadamente exercem atividades que diretamente contribuem para o fenômeno da mudança do clima. Cabe mencionar que, com relação aos danos ao clima, as dificuldades encontradas para a interposição de ações judiciais de recuperação são maiores que aquelas encontradas por outros tipos de danos ambientais. Essas dificuldades residem, principalmente, no estabelecimento de um nexo causal entre a atividade de uma pessoa, física ou jurídica, e o dano efetivamente deflagrado. Para isso, será necessário analisarmos com maior profundidade o regime de responsabilização civil no direito ambiental brasileiro, de modo a entender as teorias e princípios que melhor se aplicam em danos causados pela mudança do clima.

1.3.1 A função socioambiental da propriedade no ordenamento jurídico brasileiro

Uma vez que analisaremos, a partir deste ponto, a possibilidade de ajuizamento de ação climática em face de particulares, fundamental debatermos sobre o status do direito de propriedade no moderno direito brasileiro, para obter uma noção das obrigações ambientais que devem ser consideradas por proprietários e empreendedores na fruição de seus bens. Importante ressaltar, mais uma vez, não se tratar este o tipo mais comum de litígio climático, pois a grande maioria dos casos tem como objetivo e pedido final a condenação do Estado em regulamentar a matéria climática dentro do ordenamento jurídico.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não era entendido, antes dos anos 1970, como um direito de toda a coletividade, sem destinatários determinados, ou seja, como um direito difuso. O direito ao meio ambiente estava circunscrito muito mais dentro do âmbito do direito privado, ou direito de propriedade, do que no âmbito da sociedade. Desta forma, não é difícil entender que o direito de propriedade, com relação ao meio ambiente, possuía caráter absoluto. Diferentemente das funções sociais que condicionam a fruição do direito de propriedade atualmente no Brasil, esse mesmo direito possuía caráter absoluto no Código Civil de 1916. Não havia limitações à fruição desse direito por parte do Estado e, muito menos, por parte da coletividade.

Este não é mais, porém, o entendimento sobre o direito de propriedade no Brasil pós Constituição Federal de 1988. Na Constituição, e também no Código Civil de 2002, a propriedade, antes inalcançável por terceiros, torna-se objeto de limitações impostas pelo Estado, entendendo-se que, embora a fruição de um bem seja direito daquele que o possui, existem funções que aquele bem cumpre no tocante ao todo social. A partir disso, ensina Patrícia Iglecias que caminhamos “para a chamada “propriedade-usufruto”, desenhada para gerar benefícios econômicos, sociais e ambientais duradouros e a longo prazo, considerando-se as presentes e futuras gerações.[12]”.

Este não é apenas entendimento majoritário da doutrina, mas algo que já foi consagrado, conforme pontuado anteriormente, pelo ordenamento pátrio tanto em seu texto constitucional quanto na legislação, proeminentemente no próprio conceito de propriedade trazido pelo Código Civil de 2002: 

“Art. 1228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas[13]”.

Ou seja, o proprietário deve exercer seu direito de usufruir de seu bem em consonância com princípios e funções estabelecidos pelo legislador com relação à proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas não somente. Caso contrário, verifica-se ilegalidade ou abuso de direito, conforme estudaremos adiante. Mais importante é pontuar que tal dever de proteção ambiental encontra-se, primeiramente, disposto na Constituição Federal de 1988. Já tivemos a oportunidade de analisar o Art. 225 do texto constitucional, que impõe o dever ao Poder Público e à coletividade de buscar por um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Há ainda, porém, o princípio do desenvolvimento econômico sustentável, uma vez que se trata, a livre iniciativa, de princípio fundamental de nosso ordenamento pátrio. Elevados esses dois objetivos à categoria constitucional, podemos concluir que as atividades econômicas devem ser fomentadas, porém com respeito à preservação ambiental. É o que se depreende do Art. 170 da Constituição.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(…)

III – função social da propriedade;

(…)

VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação[14]”.

Cabe pontuar, conforme ensina Patrícia Iglecias, com base nos incisos III e VI transcritos acima, que a função social da propriedade, que já impõe ao proprietário a observação de alguns valores básicos de direito de toda a sociedade, passa a ser, na verdade, função socioambiental, uma vez que a proteção ambiental também se enquadra como direito de toda a coletividade, obrigando o proprietário de bem a observar tal direito enquanto frui de seu bem. Desta forma, a função socioambiental da propriedade passa a ser princípio básico a ser observado por todos os proprietários.

Significa dizer que, enquanto o direito de fruir de propriedade privada continua sendo amplamente disposto pelo ordenamento jurídico, tal direito deve, também, observar condicionantes elevadas à categoria de direitos fundamentais. Não é demais pontuar que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se trata de direito fundamental de todos os indivíduos. Assim, o proprietário que estiver em desacordo com esse direito, está provocando dano a toda a coletividade[15].

Considerando o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental do homem, pelo menos teleologicamente, o direito ambiental deve ter uma sobreposição natural do seu objeto de tutela em relação às demais ciências. Isso porque tudo o que se relaciona com o meio ambiente condiz com o direito à vida[16].

Embora se trate de princípio, a função socioambiental da propriedade encontra respaldo em diversos dispositivos normativos da legislação brasileira. A Lei de Proteção à Vegetação Nativa (Lei Federal nº 12.651/2012) traz, por exemplo, a obrigação da existência de áreas de Reserva Legal em propriedades rurais. Há, também, as Áreas de Preservação Permanentes (APPs), conforme definido pela lei. Esses são apenas exemplos pontuais, pois toda a legislação ambiental brasileira está pautada no controle da qualidade ambiental, impondo ao proprietário e ao empreendedor o dever de observar regras e princípios para que seja atingido esse fim.

1.3.2 Responsabilidade civil ambiental

Consagrado o direito de preservação ambiental, no ordenamento pátrio, como direito fundamental a ser observado na esfera de desenvolvimento de todas as atividades econômicas, é de se entender a preponderância que esse ramo jurídico tenha em face do ordenamento jurídico. Por conta de tal relevância, o legislador, por meio da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) estabeleceu que o regime de responsabilidade ambiental possui três esferas (civil, penal e administrativa), tendo a responsabilidade civil natureza objetiva. Significa dizer que o dano ambiental não exime seu causador por conduta culposa, devendo o dano ser reparado uma vez constatado nexo causal entre a conduta de um agente e sua ocorrência. Manifesta, porém, a posição de preponderância do direito ambiental no ordenamento jurídico.

Assim, estabelece a Política Nacional do Meio Ambiente, em seu Art. 14, §1º, que “sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.” (grifo meu).

É possível, portanto, interpretar que tal regime se baseia a partir da adoção do risco em sua modalidade integral. A partir da teoria do risco integral, não são aceitas excludentes por licitude da atividade desenvolvida, como o caso fortuito, a força maior ou fato de terceiro[17]. Assim, o risco da atividade desenvolvida pelo empreendedor deve, sempre, ser considerada quando da constatação de dano ambiental. É esse, também, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ):

“A responsabilidade por dano ambiental é objetiva, informada pela teoria do risco integral, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato, sendo descabida a invocação, pela empresa responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil para afastar sua obrigação de indenizar”[18];

Cabe mencionar, também, que a modalidade de reparação ambiental adotada no direito brasileiro é integral. Portanto, além de afastada excludente por culpabilidade no caso de dano ambiental, o seu causador estará obrigado a repará-lo em sua integralidade[19]. Tal afirmação encontre também respaldo legal no Art. 944 do Código Civil: “A indenização mede-se pela extensão do dano”.

Um elemento da mais alta relevância para a responsabilização civil é a existência de nexo causal entre a atividade de um agente e o dano efetivamente causado. Em matéria de direito ambiental, trata-se de um dos elementos sobre o qual residem as maiores dificuldades para a imputação de responsabilidade. Os danos ambientais possuem características específicas, que dificultam o caminho para o estabelecimento da responsabilidade de um agente, motivo pelo qual a responsabilização ambiental possui elementos próprios e específicos quando comparado com o direito civil clássico.

As dificuldades se dão, principalmente, pelo fato de que o dano ambiental é raramente constatado logo após a ação que o provoca. Muitas vezes, os danos passam a ser percebidos anos, ou até décadas, após a ações que os desencadearam. Lucía Gomes Catalá elenca como os problemas mais frequentes e que dificultam o estabelecimento do nexo causal entre atividade e dano a distância entre local dos fatos e do dano, a multiplicidade de emissores, o tempo e a dúvida científica[20]. São essas, inclusive, as maiores dificuldades para o avanço da responsabilização civil por danos ao clima.

As mudanças climáticas são resultado de quase dois séculos de emissões de gases causadores do efeito estufa, sendo um fenômeno somente percebido na segunda metade do século XX. Além disso, possuem escala global, constituindo o maior desafio para o direito ambiental. Os danos, por exemplo, por tempestades cada vez mais potentes possuem uma multiplicidade de agentes causadores, não somente restritos àquela região geográfica, mas com origem em todo o planeta. Ainda, embora haja consenso científico entre a emissão desses gases pelos seres humanos e o consequente agravamento do aquecimento global, restam dúvidas dos tribunais, muitas vezes, se determinada ação realmente contribuiu para a existência do dano climático, dada a multiplicidade de possíveis agentes causadores.

Assim, considerando que a teoria do risco integral e, consequentemente, o regime da responsabilidade civil objetiva são adotados no direito ambiental brasileiro, é importante analisarmos as teorias do nexo de causalidade que mais se adequam a esse cenário, para que seja possível identificarmos, com maior precisão, os responsáveis pela reparação de danos ambientais. Para a nossa análise, é importante entender quem o ordenamento jurídico considera como poluidor. O Art. 3º, IV da Política Nacional do Meio ambiente responde que é “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”. Assim, é possível perceber a opção do legislador em não fazer distinção entre poluidores diretos e indiretos. Este é mais um instrumento utilizado pelo legislador para dar o máximo de eficácia à proteção ambiental.

Uma das teorias do nexo possíveis de serem adotadas é a da equivalência de condições, a qual dialoga exatamente com a indistinção dada, pela legislação, entre poluidores diretos e indiretos. Para essa teoria, todas as ações que contribuíram, mesmo que minimamente, para o dano, e sem as quais a ação não haveria resultado em dano, são responsáveis. “Se um fato integrou a série de condições desencadeantes do efeito danoso, é possível concluir que ele foi sua causa[21].”

 A autora, porém, identifica que essa teoria não é adequada ao regime da responsabilidade civil ambiental no Brasil, pois é incompatível com a equivalência entre causas e concausas trazidas pela Política Nacional do Meio Ambiente. Com a adoção da teoria, caso algum agente demonstre que o dano teria ocorrido mesmo sem que tivesse agido, poderia haver exclusão de responsabilidade, o que não é aceito pela legislação.

Uma outra teoria possível é a da causalidade adequada. Para ela, é preciso analisar se, postumamente à ocorrência do dano, uma determinada conduta seria adequada para a sua existência. “Com isso, para que exista nexo causal, a ação deve ser idônea para produzir aquele resultado. A noção de causalidade adequada supõe que na pluralidade de casos será causa aquilo que normalmente ocorre em situações semelhantes[22].” O mesmo problema se apresenta aqui com relação à teoria da equivalência de condições: contrariando o regime da responsabilidade objetiva, esta teoria permitiria a exclusão de responsabilidade por algum tipo de concausa.

Para encontrar uma teoria do nexo adequada para a responsabilização por danos ambientais, é necessário considerarmos que: (a) o direito ambiental brasileiro não permite exclusões de responsabilidade, pois seu regime é o da responsabilidade objetiva; (b) as teorias mais tradicionalmente utilizadas pelo direito civil permitem a existência de hipóteses em que poluidor indireto não seja responsabilizado, contrariando a Política Nacional do Meio Ambiente e; (c) a busca pelo nexo não deve dificultar, muito menos impossibilitar, a determinação do agente cuja conduta contribuiu para a existência do dano.

Não é demais relembrar que o ordenamento jurídico pátrio coloca a proteção ao meio ambiente em posição de preponderância. O regime diferenciado de responsabilidade civil em matéria ambiental demonstra tal relevância: o dano ambiental resulta em perda de qualidade de vida de toda a coletividade, devendo ser cessado e reparado, vedando-se que um dano permaneça produzindo efeitos negativos. Lembremos: o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental.

Em se tratando de mudanças climáticas, esse entendimento é ainda mais vital. As dificuldades já elencadas para a determinação de nexo de causalidade entre uma conduta e um dano causado pela mudança do clima não podem ser empecilho para a imputação do dever de reparar. Se as teorias clássicas não respondem suficientemente a essa questão, é necessário explorar alguma teoria que solucione essa problemática.

Assim, para Patrícia Iglecias, o nexo deve ser analisado à luz da norma jurídica que busca defender, sendo muito mais um elemento jurídico, e não fático.

É necessário recorrer a uma teoria que justifique juridicamente a imputação de obrigação de reparar o dano, até porque essa obrigação pode se configurar não só quando o dano foi causado, mas também em situações de ameaça de dano injusto Reconhecido o direito ao meio ambiente como direito da personalidade, como um direito fundamental do homem, as limitações ao pleno desenvolvimento da pessoa, decorrentes da má utilização de componentes do meio ambiente, são por si só causa de responsabilidade civil[23].

Desta forma, Patrícia Iglecias defende a utilização da teoria do escopo da norma jurídica violada. A proteção do meio ambiente deve observar a aplicação de dois princípios básicos: o da prevenção e o da precaução. Assim, o direito ambiental não visa à responsabilização somente quando observado o dano, pois o objetivo primeiro da proteção ambiental é evitar que o dano aconteça. A existência de dano deve ser a exceção, e não a regra. Assim, para a autora, “a obrigação de reparar os danos causados constitui uma consequência jurídica de uma norma relativa à imputação de danos, o que implica que a averiguação do nexo de causalidade apenas se possa fazer a partir da determinação do fim específico e do âmbito de proteção da norma que determina essa consequência jurídica[24]”.

Qual é, portanto, a norma jurídica que estaria sendo violada para a assunção de dano em sua modalidade jurídica? A proteção ambiental é norma fundamental do texto constitucional brasileiro, tratando-se o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado de direito fundamental e essencial à dignidade humana.

Importante verificar que a violação da norma e, consequentemente, a existência do dano, pode ocorrer de três maneiras distintas. A primeira refere-se à existência de dano por ser ultrapassado o limite de tolerabilidade para a absorção dos impactos das atividades humanas pelo meio ambiente. Assim, é necessário o entendimento de que as atividades humanas sobre o meio ambiente geram impacto e não seria possível que, diante de tal afirmativa, todo tipo de impacto resultasse em responsabilização.

É por isso que o direito ambiental trabalha com o conceito do limite de tolerabilidade. O seu ponto de ultrapassagem ocorre quando o meio ambiente não é mais capaz de absorver os impactos de maneira orgânica, a partir do que é possível constatar a existência de dano.

Neste ponto, podemos concluir algo fundamental para o direito ambiental: não há direito de poluir. Assim, mesmo que um agente exerça suas atividades de fiel acordo com o que estabelece licença ambiental expedida pelo órgão responsável, estando, portanto, dentro dos limites da legalidade, ele será responsabilizado se a sua atividade fizer exceder tais limites de tolerabilidade. Uma conduta como essa, portanto, pode não ensejar a responsabilização na esfera administrativa, uma vez que a conduta se deu dentro da legalidade do licenciamento ambiental, mas com certeza estará sujeita à responsabilização civil se verificado dano.

A segunda forma de violação à norma se dá quando a conduta ocorre de maneira ilícita. Assim, portanto, ocorreria se um agente desenvolvesse atividade econômica que impacte o meio ambiente sem a devida autorização da autoridade ambiental. Neste ponto, é importante distinguir dano jurídico de dano fático. Mesmo que a atividade ilícita não provoque danos, ou seja, não exceda os limites de tolerabilidade dentro dos quais o próprio meio ambiente consegue absorver os impactos gerados, há um claro descumprimento de dever legal, qual seja o de exercer atividade potencialmente poluidora sem permissão. O dano por ilegalidade encontra respaldo no Art. 186 do Código Civil Brasileiro: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

A terceira forma de dano é a que mais dialoga com a nossa proposição sobre a utilização da teoria do escopo da norma jurídica violada: trata-se do abuso de direito. A figura desse instituto aparece no Art. 187 do Código Civil: “Também comete ato ilícito aquele que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Assim, no abuso de direito, não foi excedido o limite de tolerabilidade, tampouco houve ato ilegal. Houve, na verdade, transgressão ao objetivo principal de uma norma, fazendo com que um ato aparentemente legal esconda uma ilegalidade. Isso fica ainda mais claro quanto às mudanças climáticas.

Sabemos que esse fenômeno antrópico é causado pela grande concentração de gases causadores do efeito estufa na atmosfera, e que essa concentração decorre de atividades humanas, sobretudo a emissão desses gases pela indústria e pelos automóveis, e o desmatamento, uma vez que a vegetação é um elemento importantíssimo para a absorção eficaz desses gases.

O direito ambiental, que tem como princípio o desenvolvimento sustentável, visa à compatibilização das atividades econômicas com a proteção do meio ambiente, devendo ambos estarem em equilíbrio. Porém, diante da constatação do fenômeno das mudanças climáticas e de como ele ocorre, devem os agentes de atividades que possam causar risco buscar formas de preveni-lo.

Dada a dificuldade na aferição do nexo causal fático quanto às mudanças climáticas, assim como sua irreversibilidade, deve o direito ambiental adotar entendimento para prevenir esse fenômeno. O dano jurídico por abuso de direito poderia ocorrer, por exemplo, se um agente não adota matrizes energéticas mais limpas em relação aos combustíveis fósseis, mesmo sabendo do estado de degradação climática. Uma vez tratar-se de consenso científico, porém de difícil aferição nos casos concretos, os danos ao clima devem ser remediados de maneira preventiva, sem a necessidade da aferição de um nexo causal fático[25].

Esse mecanismo de responsabilização tem papel de destaque no quadro das mudanças climáticas, pois a atuação individual do proprietário ou possuidor deve ocorrer de forma a respeitar a função socioambiental da propriedade e ações contrárias gerarão responsabilização, ainda que por abuso do direito. “É preciso buscar alternativas para o desafio das mudanças climáticas, de forma que seu impacto seja considerado previamente, evitando assim a ocorrência de danos, numa verdadeira atuação preventiva[26]”.

Tratamos, até aqui, de danos materiais, ou seja, danos concretos ao meio ambiente, tanto em sua função reparatória quanto em sua necessária função preventiva. Porém, há um outro tipo de dano que é causado com a degradação ambiental: o dano extrapatrimonial, ou dano moral.

Assim, toda vez que um ano ao meio ambiente provoque danos à personalidade, acarretando dor e sofrimento, haverá a responsabilidade de reparar, nos termos do Art. 5º da Constituição Federal em seus incisos V e X. O dever de reparar dano moral está também presente no Art. 186 do Código Civil brasileiro. Para Patrícia Iglecias, “o direito ambiental patrimonial caracteriza-se pela perda da qualidade de vida[27].” Como o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado é essencial à própria qualidade de vida dos indivíduos, trata-se de um direito de personalidade.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação BRASIL. Constituição Federal de 1988[28];

Na verdade, a personalidade não se desenvolve sem um meio ambiente sadio e equilibrado. O simples fato de existirmos já gera uma interação com o meio que nos cerca. Por isso, o reconhecimento do meio ambiente como direito da personalidade integra e completa a concretude dos outros direitos da personalidade, já que tem forte ligação com o direito à vida.

Com isso, é muito importante notar que o dano ambiental extrapatrimonial não estará condicionado à verificação da existência de dor ou sofrimento propriamente ditos, como ocorre com o regime comum de dano moral. Como o dano ambiental é um dano ao direito de personalidade do indivíduo, afetando a sua qualidade de vida e a sua saúde, esses elementos podem ser aferidos de maneira abstrata, uma vez que circunscritos na noção de perda de qualidade de vida.

Ainda assim, Patrícia Iglecias adverte que “nem todo dano ambiental será dano extrapatrimonial, somente aqueles mais significativos, ditos intoleráveis, serão indenizáveis[29]”. Contudo, embora prescinda da existência de dor e sofrimento de maneira própria, o dano ambiental extrapatrimonial pode também surgir como decorrência desses sentimentos, uma vez que pode afetar as relações de um grupo de indivíduos com certo bem ambiental. É o caso de diversos povos indígenas, que consideram os bens da natureza, como os rios, como divindades. Um dano a um bem ambiental nessas condições também ensejaria em dano moral por sensações próprias de dor e sofrimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento desta pesquisa permite uma ampla visão sobre o cenário atual sobre o direito das mudanças climáticas no Brasil. São as conclusões:

O Brasil possui vasta legislação para a proteção do meio ambiente, incluídos todos os seus microssistemas, entre eles o da proteção do clima. É urgente a aplicação de tal legislação, de modo a efetivar um direito fundamental e difuso, essencial à sadia qualidade de vida.

Existem elementos suficientes para o ajuizamento de ações de cunho climático, tanto de forma direta quanto indireta, o que permite a responsabilização do Estado Brasileiro e dos particulares na consecução do objetivo de proteger o planeta contra a mudança do clima. Além das leis específicas para esse fim, como a Política Nacional sobre Mudança do Clima, a legislação brasileira dispõe de sólidas estruturas que possibilitam a responsabilização por danos climáticos.

É necessário avançar no entendimento de que o regime de responsabilidade civil por dano ao meio ambiente é diferente daquele do direito civil comum. Com isso, torna-se especialmente relevante a correta aplicação dos princípios da prevenção e da precaução, de modo a aplicar o que a lei de fato pretende. A existência de danos ambientais deve ser exceção, e não regra.

Os litígios climáticos são importante instrumento para o aprofundamento da governança climática, dando novas orientações à opinião pública e mudando as estratégias dos empreendedores, trazendo a emergência climática para o centro da discussão sobre o desenvolvimento.

REFERÊNCIAS

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[1] Advogada. Mestra em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutoranda em Direito Ambiental Internacional pela Universidade Católica de Santos.

[2] PEEL, Jacqueline. OSOFSKY, Hari. Climate change litigation: regulatory pathways to cleaner energy. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 19.

[3] WEDY, Gabriel. Op cit. 2019. p. 33-34.

[4] PEEL, Jacqueline. OSOFSKY, Hari.Op cit. 2015. p. 28.

[5] Ibid. p. 10.

[6] SETZER, Joana. CUNHA, Kamyla. FABRI BOTTER, Amália. Introdução. In SETZER, Joana. CUNHA, Kamyla. FABRI BOTTER, Amália (organizadoras). op cit. 2019. p. 26. 

[7] Idem.

[8] SETZER, Joana. CUNHA, Kamyla. FABRI BOTTER, Amália. Panorama da litigância climática no Brasil e no mundo. In SETZER, Joana. CUNHA, Kamyla. FABRI BOTTER, Amália (organizadoras). Op cit. 2019. p. 70. 52

[9] WEDY, Gabriel. Op. cit. 2019.

[10] ALBERTO, Marco Antônio Moraes. MENDER, Conrado Hübner. Litigância climática e separação de poderes. In SETZER, Joana. CUNHA, Kamyla. FABRI BOTTER, Amália (organizadoras). Op cit. 2019. p. 119.

[11] Ibid. p. 130-131.

[12] LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Meio ambiente e responsabilidade civil do proprietário: análise do nexo causal. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 34.

[13] 78 BRASIL. Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002).

[14] BRASIL. Constituição Federal Brasileira de 1988.

[15] LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Op. cit. 2012.

[16] Idem. p. 57.

[17] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. A Responsabilidade civil ambiental das instituições financeiras. Artigo in Revista Consultor Jurídico, de 25 de novembro de 2017. Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2017-nov-25/ambiente-juridico-responsabilidade-civil-ambiental-instituicoes-financeiras]. Acessado em:17/06/2022

[18] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Tema Repetitivo nº 707. Recurso Especial nº 1374284/MG. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Data do Julgamento: 27/08/2014. Data da publicação no Diário de Justiça Eletrônico (DJe): 05/09/2014.

[19] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Responsabilidade civil ambiental e a reparação integral do dano. Artigo in Revista Consultor Jurídico, de 29 de outubro de 2016. Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2016-out-29/ambiente-juridico-responsabilidade-civil-ambiental-reparacao-integral-dano]. Acessado em 17/06/2022.

[20] LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Op. cit. 2012. p. 169. Apud GOMES CATALÁ, Lucía. Responsabilidad por daños al medio ambiente. Pamplona: Aranzadi, 1998. p. 161.

[21] LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Op cit. 2012 p. 146.

[22] Ibid. p. 150.

[23] Ibid. p. 159.

[24] Ibid. p. 163.

[25] LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Mudanças climáticas e responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. In LAVRATTI, Paula. PRESTES, Vanêsca Buzelato (organizadoras). Direito e mudanças climáticas 2: responsabilidade civil e mudanças climáticas. São Paulo: O Direito por um Planeta Verde, 2010. p. 69.

[26] LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Op. cit. 2010. p. 64

[27] LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Op cit. 2012. p. 135.

[28] BRASIL. Constituição Federal de 1988

[29] LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Op. cit. 2012. p. 138.