LIMITES DE MONITORAMENTO POR MEIOS TELEMÁTICOS COMO COMPROVAÇÃO DE FALTA GRAVE E DE JUSTA CAUSA – O TEMA 237 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL APLICADO ÀS RELAÇÕES DE EMPREGO NO CONTEXTO DO TRABALHO REMOTO

LIMITES DE MONITORAMENTO POR MEIOS TELEMÁTICOS COMO COMPROVAÇÃO DE FALTA GRAVE E DE JUSTA CAUSA – O TEMA 237 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL APLICADO ÀS RELAÇÕES DE EMPREGO NO CONTEXTO DO TRABALHO REMOTO

30 de setembro de 2024 Off Por Cognitio Juris

LIMITS ON MONITORING BY TELEMATIC MEANS AS PROOF OF SERIOUS MISCONDUCT AND JUST CAUSE – THEME 237 OF THE SUPREME FEDERAL COURT APPLIED TO EMPLOYMENT RELATIONSHIPS IN THE CONTEXT OF REMOTE WORK

Artigo submetido em 25 de junho de 2024
Artigo aprovado em 01 de julho de 2024
Artigo publicado em 30 de setembro de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 56 – Setembro de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
João Henrique Costa Leite Guidorizzi[1]

Sumário: 1 Introdução; 2 O Tema 237 do Supremo Tribunal Federal; 3 Revisão da jurisprudência; 4 Entendimento doutrinário; 5 Normas que regulamentam a matéria; 6 Análise crítica; 7 Conclusão.

1 INTRODUÇÃO

A evolução tecnológica trazida ao longo dos anos mudou significativamente o modo que vivemos e, dentre as mudanças mais relevantes, temos as profundas alterações no modelo de prestação de serviços e da relação entre empregadores e trabalhadores. As diversas inovações tecnológicas, como o computador pessoal e os smartphones, descentralizaram o poder diretivo do empregador, que não mais se vale da força de trabalho dos trabalhadores dentro do ambiente fabril, mas sim nos seus diversos locais de trabalho espalhados pelo Brasil e mundo.

Atualmente, os novos paradigmas de gestão vêm redefinindo o papel do empregador na organização do trabalho. Ao invés de um exercício unilateral do poder diretivo, a gestão participativa e a valorização do capital humano passam a ser prioridades nas empresas modernas, acentuado pela evolução tecnológica que permitiu outras formas de trabalho e, mais recentemente, uma emergência sanitária mundial que redefiniu conceitos na forma de organização do trabalho. Neste sentido, leciona Luiz Marcelo Figueiras de Góis:


“A partir da década se 70 do século passado, as relações de trabalho mundiais sofreram profundas modificações. O incremento da tecnologia – notadamente da robótica e do microcomputador – aliado à crise do petróleo colocaram em xeque o modelo de relação de emprego até então existente. Uma das conseqüências desse fenômeno foi a tendência à descentralização de atividades por parte do empregador, que, sucumbindo a pressões econômicas de um mundo recém-globalizado, expulsou para fora de seus muros o trabalho que não se mostrava estritamente relacionado ao seu core business. ” )[2]

O exercício do poder diretivo do empregador é um tema central do Direito do Trabalho, já que o empregador possui o poder de dirigir a atividade laboral e definir as regras de organização do trabalho. Contudo, este poder deve ser exercido de forma equilibrada, respeitando os direitos dos empregados e garantindo um ambiente de trabalho saudável e produtivo. Isso porque o empregado, antes de estar submetido às regras do seu ambiente laboral, deve ser visto sob uma perspectiva humanista, ou seja, a pessoa individual sob a qual recaem os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal.

Pode-se dividir o poder diretivo do empregador em três características, sendo o poder de organização, o poder de controle e o poder disciplinar. O primeiro, consiste na liberdade do empregador em organizar o seu negócio da forma como melhor lhe aprouver, estabelecendo as diretrizes necessárias para o alcance do principal objetivo do negócio, que é a obtenção do lucro, seja pela venda de um produto ou pela prestação de algum serviço.

Para o segundo, tem-se que o poder de controle consiste na capacidade do empregador em controlar o seu negócio, estabelecendo regras e direcionamentos de forma a definir os papéis e responsabilidades dentro da empresa. Contudo, ainda que o empregador seja revestido deste poder, mister se faz que o poder seja aplicado de maneira contida, tendo em vista que outros princípios constitucionais não podem ser desprestigiados em face ao poder de controle do empregador.

O principal exemplo é a revista íntima. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem jurisprudência consolidada no sentido de que a revista íntima pode existir, desde que não haja desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e privacidade, ou seja, evitando contatos físicos e/ou outras medidas que possam colocar o ser humano em uma situação de constrangimento. Já para o terceiro – e em decorrência do poder de controle -, temos o poder disciplinar, que é o poder do empregador em penalizar os trabalhadores que eventualmente não cumpram as diretrizes impostas.

O poder disciplinar, no entanto, deve ser tratado de forma contida, utilizando-se dos limites estabelecidos pela lei – como as previsões do artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para a aplicação da justa causa. A jurisprudência do TST é pacífica no sentido de que as punições aos trabalhadores não podem refletir em perda de benefícios, penalizações em pecúnia (desconto salarial), dentre outras penalizações que sejam flagrantemente prejudiciais aos trabalhadores.

Contudo, para aplicação das medidas disciplinares mencionadas alhures, o empregador precisa obter vasta prova a fim de comprovar a conduta inadequada do trabalhador. Porém, os novos modelos de gestão não mais possibilitam uma fiscalização ostensiva das atividades do trabalhador, muito pelo fato de que, pela maioria das vezes, o trabalhador não está presente fisicamente nas dependências do empregador.

Considerando a impossibilidade de fiscalização física e direta, o empregador, detentor dos meios de produção e com certo poderio financeiro, passou a valer-se dos recursos tecnológicos para fiscalização (como análise do status dos trabalhadores nos comunicadores internos, pontos eletrônicos, etc.), sendo alguns deles de forma furtiva, como instalação de programas de monitoramento.

Porém, em razão deste novo modelo de trabalho, é notório que a vida profissional do trabalhador se confundiu, nestes últimos anos, com sua própria vida pessoal, em um modelo onde a sua residência também é seu local de trabalho. Ainda, a facilidade de conexão dos dispositivos modernos leva a uma grande parcela destes trabalhadores a utilizar dos recursos cedidos pelos empregadores para facilitar a sua comunicação pessoal, acessando seus e-mails pessoais e outros aplicativos destes aparelhos.

Uma vez que estes dados pessoais dos trabalhadores estão disponíveis e registrados nos aparelhos dos empregadores, além de fiscalizados por estes, uma questão emerge dessa situação: o poder diretivo do empregador pode sobrepujar o direito à inviolabilidade das comunicações do trabalhador? Ainda, quais são os limites de fiscalização do empregador e como essa fiscalização pode ser obtida?

Paralelamente ao questionamento da seara trabalhista, o Supremo Tribunal Federal (STF) também enfrentou suas controvérsias, principalmente no âmbito criminal, relacionadas às obtenções de prova e a possibilidade de utilização destas, qualificando-a como ilícita ou lícita para fins processuais. Deste ponto surgiu, ainda em 2009, o julgamento do Tema 237 deste Tribunal, que definiu os limites de obtenção de prova.

A intersecção destes dois temas, portanto, é o que se propõe este estudo: uma reflexão sobre as obtenções de prova do empregador como base para medidas disciplinares à luz das decisões do STF sobre o tema, bem como sua aplicação no âmbito trabalhista. Com efeito, este trabalho tem como objetivo a análise das decisões proferidas sobre o tema, bem como uma discussão crítica sobre a ponderação dos princípios exposta acima.

2 O TEMA 237 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O STF, em julgamento do RE 402717 PR (gerador do Tema 237 da Tabela de Repercussão Geral deste Tribunal), tinha o objetivo de verificar se é possível a utilização de áudio “espacial”, ou seja, no ambiente em que o sujeito está, como meio de prova lícita. Neste momento, os Ministros fincaram o entendimento de que a obtenção da gravação feita por um dos interlocutores da conversa, ainda que sem o conhecimento do outro, é válida para fins de prova.

A leitura dos Ministros sobre o tema, ainda, é no sentido de que, salvo situações de flagrante prestígio ao sigilo, como no caso do paciente/médico e outros exemplos, o que deve prevalecer é a verdade real dos fatos em uma situação de ser necessário sopesar entre isso e a garantia constitucional de inviolabilidade das comunicações (art. 5º, inciso X, XII e LVI da Constituição Federal).

Contudo, o gatilho interessante – e que nos interessa para fins de análise jurídica – é a ressalva feita pelo acórdão, no sentido da forma de obtenção desta gravação. Isso, pois, se a referida prova foi obtida mediante intromissão de terceiro, que furtivamente toma conhecimento do teor da comunicação entre as partes envolvidas sem ser parte efetiva (partícipe ou interlocutor), ela é ilegal pois se equipara ao grampo ou interceptação (utilização de qualquer tecnologia conectada a outro dispositivo para fins de investigação e/ou espionagem). Neste sentido, a ementa do referido julgado:

Criminal. Conversa telefônica. Gravação clandestina, feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro. Juntada da transcrição em inquérito policial, onde o interlocutor requerente era investigado ou tido por suspeito. Admissibilidade. Fonte lícita de prova. Inexistência de interceptação, objeto de vedação constitucional. Ausência de causa legal de sigilo ou de reserva da conversação. Meio, ademais, de prova da alegada inocência de quem a gravou. Improvimento ao recurso. Inexistência de ofensa ao art. 5º, incs. X, XII e LVI, da CF. Precedentes. Como gravação meramente clandestina, que se não confunde com interceptação, objeto de vedação constitucional, é lícita a prova consistente no teor de gravação de conversa telefônica realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, se não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação, sobretudo quando se predestine a fazer prova, em juízo ou inquérito, a favor de quem a gravou.

Este entendimento é importante para a análise proposta, pois ainda que a jurisprudência consolidada do Tribunal admita a gravação por um dos interlocutores da conversa como meio de prova lícita, não há a admissão da gravação feita por um terceiro e/ou a gravação obtida mediante meio furtivo, que possa ser confundida com o “grampo telefônico”. As provas obtidas neste tipo de situação, portanto, são ilícitas.

3 REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA

Diante das informações aqui apresentadas, o TST buscou admitir o mesmo entendimento trazido pelo STF, no sentido de que as obtenções das provas para fins de aplicação de medidas disciplinares só seriam possíveis quando nos moldes estabelecidos pela instância máxima da Justiça. Abaixo, um exemplo da referida decisão:

Dessa forma, como regra geral, é vedada a violação do sigilo das comunicações sem a autorização dos interlocutores. Contudo, há que se distinguir a gravação obtida por interceptação da conversação alheia, essa considerada ato ilegal e abusivo, e, portanto, meio ilícito de prova – do registro de conversa própria. Assim a gravação de conversa, quando realizada por um dos interlocutores, é admissível no processo do trabalho como meio de prova válido, porquanto não afronta a inviolabilidade e a vida privada, revelando lícito exercício do direito de defesa.[3]

Veja que os Tribunais Regionais (neste caso, o Tribunal Regional do Trabalho da 3a Região), em perfeita consonância com o STF, aplicou o entendimento contido no Tema 237 mencionado alhures, de modo a admitir o entendimento da Corte e uniformizar a sua jurisprudência, mesmo que em uma relação de trabalho. Aqui, sob o aspecto da aplicação de casos semelhantes no caso concreto, acertada a decisão do Tribunal infraconstitucional.

(…) 1. A gravação de conversa telefônica por um dos interlocutores, ainda que sem o conhecimento da outra parte, não constitui prova ilícita e pode ser utilizada em juízo . 2. A inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas, prevista no art. 5º, XII, da Constituição Federal, está direcionada à interceptação da conversa telefônica por terceiros estranhos ao diálogo. (…)[4]

O próprio TST, em decisão recente, pôde enfrentar o tema e aplicar, da mesma maneira que a decisão do Tribunal Regional, o ratio decidendi enfrentado pelo STF.  Dessa forma, é natural pensar que os acórdãos acima mencionados trazem uma realidade fática relacionada a um modelo de trabalho anterior, como a obtenção de gravações em reuniões onde há participação ativa do interlocutor ou o e-mail corporativo, que é incontroversamente o meio de trabalho do trabalhador e, portanto, deve se sujeitar às regras e Políticas internas do empregador.

Para fins de análise, contudo, o estudo propõe ir além, pois quando se trata de foro íntimo dos trabalhadores (comunicadores pessoais, e-mails pessoais, aplicativos de banco, etc.), motivo desta análise, a jurisprudência costuma divergir, como é possível verificar nos julgados abaixo, divididos por correntes.

A primeira corrente entende que, para que as provas obtidas nas comunicações pessoais dos trabalhadores sejam válidas, é necessária a ciência inequívoca de que o empregador estabeleceu os limites de utilização do equipamento e que isso será monitorado. No caso de não haver ciência inequívoca, a prova é ilícita:

Assim, improvado pela ré, que cientificou expressa e previamente seus empregados de que haveria monitoramento da utilização do Skype, não poderia ter adentrado ao seu conteúdo, incidindo em violação da privacidade, vedada pelo disposto no art. 5º, X e XII, da CF. E a prova assim colhida é inválida, não se prestando à finalidade almejada pela ré, Isto já ensejaria a convolação da rescisão em dispensa injusta. Não bastasse, o próprio conteúdo do e-mail afasta qualquer possibilidade de justa causa, já que a reclamante não fez mais que desabafos diante da situação que encontrou no estoque, valendo lembrar que a reclamada extinguira o estabelecimento e estava em processo de instalação em outro local, sendo normal a instabilidade momentânea entre os empregados, até que as coisas se acomodassem. E a linguagem irreverente é própria da conversa livre entre trabalhadores, mormente não tendo a reclamante a menor ciência de que estava sendo espionada pelo empregador. Recurso provido para julgar insubsistente a justa causa. [5]

Na segunda corrente, outra parte da jurisprudência entende que, uma vez que a ferramenta de comunicação é utilizada para o trabalho, é possível o monitoramento e as provas obtidas dali seriam lícitas, pois a comunicação é equiparada à comunicação no ambiente de trabalho. Aqui, é necessário que esteja presente a ciência inequívoca do trabalhador também:

Apesar de o skype se tratar de ferramenta de comunicação acessível ao público em geral, quando destinada pelo empregador como ferramenta de trabalho, equipara-se à ferramenta corporativa. Portanto, não ofende o direito à intimidade, tampouco viola o sigilo da correspondência, o acesso pelo empregador ao conteúdo das mensagens trocadas pelos seus empregados em computadores da empresa, durante o expediente de trabalho, mormente quando cientificados os trabalhadores dessa possibilidade.[6]

Por fim, a terceira corrente vai no sentido de que, ao acessar seu conteúdo pessoal pelo computador corporativo, o trabalhador deu autorização tácita para o monitoramento, assumindo o risco. Dessa maneira e de forma adicional, se restar comprovado que não houve violação de login e senha, a prova é lícita.

Nesse sentido, em se tratando de programas de envio e recebimento de mensagens instantâneas, como o “MSN Messenger”, quando o interlocutor opta por salvar os históricos de suas conversas, eles são mantidos, em regra, em uma pasta desprotegida do computador, sendo desnecessário o uso de senha para acessá-los. Assim, pode-se concluir que, no presente caso, ao manter os referidos arquivos em local desbloqueado, deixando de apagá-los, o reclamante assumiu os riscos de tal ato, não se podendo imputar ilegalidade à prova produzida pela empresa, que não violou correspondência sigilosa do autor (art. 5º, XII, da CR/88) cuja prova demonstra inexistência de horas extras, na medida em que o próprio reclamante confessa gozo de intervalo. Situação diversa, obviamente, se verificaria caso a empresa tivesse se apropriado indevidamente da senha do e-mail pessoal do empregado, pois o acesso às mensagens enviadas por tal via digital, inegavelmente, apenas é possível por meio do uso do login e da senha do usuário do serviço.[7].

4 ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO

Diante da situação exposta alhures, os entendimentos doutrinários fincam suas teses definindo o poder diretivo do empregador como base para a análise dos limites de atuação. Jorge Neto e Jouberto de Quadros definem o poder diretivo como “um desdobramento do direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF) e é um dos elementos do conceito de empregador (art. 2º, CLT) ”. E continuam definindo-o como “a faculdade legal que é concedida ao empregador, de comandar a prestação pessoal dos serviços, organizando-a, controlando-a e punindo o trabalhador, se for necessário”.

Portanto, natural que o poder diretivo do empregador, uma vez presente na relação de emprego, é importante para a definição de atividades, organização do trabalho e direcionamento das atividades empresariais de modo que o empregador atinja seu objetivo, que é a obtenção do lucro mediante a venda dos produtos ou prestação dos serviços.

Este poder é, também de forma incontroversa, aplicado mediante a elaboração de normas e regulamentos internos que possam auxiliar na organização dos trabalhos. Isso ocorre em razão da lacuna legislativa que possa indicar as bases de criação destes documentos. Jorge Neto e Jouberto de Quadros mencionam, ainda:

“O regulamento de empresa é fonte do Direito do Trabalho, pois traça normas quanto às condições de trabalho dentro da empresa. No Brasil, diante da omissão legislativa, quando ocorre a formulação de um regulamento, geralmente é imposto de forma unilateral pelo empregador.[8]

Contudo, ainda que o detentor do capital tenha amplos poderes quando comparado ao trabalhador, este poder deve ser aplicado de maneira contida, ainda que definido mediante seus regulamentos internos. Sérgio Pinto Martins leciona neste sentido:

“Poderá o empregador monitorar a atividade do empregado no computador. Isso de certa forma já é feito, como no controle de produção por toques no teclado; verificação de entrada e saída de dados por registros feitos pelo próprio computador; que inclusive indicam horário; da Intranet etc. O empregador deverá tomar cuidado de não fazer um controle vexatório e quanto a dados pessoais do empregado, pois um dos princípios da República Federativa do Brasil é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição). A intimidade da pessoa é um direito relativo à personalidade. Determina o inciso X do art. 5º da Constituição que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. O inciso XII do art. 5º da Lei Maior prevê que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. O sigilo de comunicação de dados, como o e-mail, é também inviolável. Entretanto, essa regra não pode ser entendida de forma absoluta, principalmente diante da má-fé do empregado. Em casos de interesses relevantes, que podem, posteriormente, ser examinados pela Justiça, o empregador poderá monitorar os e-mails do empregado, desde que digam respeito ao serviço. Não se pode dizer que haveria violação da privacidade do empregado quando o empregador exerce fiscalização sobre equipamentos de computador que lhe pertencem. Ressalte-se que o correio eletrônico, em muitos casos, é da empresa e não do empregado. O telefone utilizado para acesso à Internet é do empregador. Assim, o recebimento da comunicação é do empregador e não do empregado, como na hipótese de questões relacionadas apenas com o serviço”.[9]

Note-se que o doutrinador, ao trazer o poder diretivo do empregador em comparação com a questão relacionada à violabilidade das transmissões telemáticas, faz uma importante distinção no sentido das comunicações que são realizadas somente para o serviço. Em seu entendimento, portanto, o empregador tem amplos poderes para dirigir e punir os trabalhadores, contudo, este poder é limitado, atingindo somente as comunicações necessárias à atividade, como no caso de e-mails corporativos. É evidente que a conclusão é pela preservação dos direitos constitucionais garantidos, como aqueles contidos no inciso XII do art. 5º da Constituição Federal, a qual este autor concorda de maneira inequívoca.

Este é o mesmo entendimento de Emilio Gonçalves, que afirma que o trabalhador, ainda que sujeito às normas do empregador, não perde a sua qualidade de ser humano. Vale dizer, o trabalhador não abandona sua condição de pessoa humana ao adentrar o local de trabalho, seja pessoalmente ou virtualmente:

“No exercício de sua atividade profissional, subordinada à autoridade do empregador, não perde o empregado a sua qualidade de pessoa, impondo-se, em consequência, da parte do empregador, o respeito à dignidade do trabalhador, o que implica a inoperância das normas baixadas pelo empregador que, direta ou indiretamente, venham ferir a dignidade do trabalhador. ”[10]

Ou seja, é possível concluir, diante da análise doutrinária, que o poder diretivo do empregador deve ser aplicado de forma moderada e em respeito aos limites constitucionais. Por outro lado, o trabalhador, ao assumir a figura que lhe é auferida quando inserido no contexto de uma organização empresarial, não perde suas características humanas e, diante disso, ainda está sujeito às normas constitucionais que lhe foram garantidas. Em uma ponderação de princípios, portanto, parece lógico a este autor que aqueles direitos relacionados à pessoa humana devem sobrepujar as regras empresariais quando estas ferirem o que é garantido pela Carta Magna.

5 NORMAS QUE REGULAMENTAM A MATÉRIA

Considerando se tratar de assunto relativamente novo e com bastante enfoque apenas na última década, a legislação que regulamenta o tema carece de riqueza de detalhes. Dessa maneira, reportamo-nos à Constituição Federal para estabelecer os limites e os direitos fundantes ao tema mencionado acima.

Como exemplo, temos os incisos X, XII e LVI do artigo 5º da Constituição Federal, que estabelecem o quanto abaixo mencionado:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; 

LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

A CLT, conforme mencionado alhures, é omissa na questão, sendo que todos os entendimentos estabelecidos em controvérsias do tipo foram obtidos mediante construção jurisprudencial, remetendo a análise utilizando-se normas internas dos empregadores como baliza, além das hipóteses de falta grave trazidas pelo artigo 482 deste diploma legal.

6 ANÁLISE CRÍTICA

Naturalmente, à medida em que o tempo passa e os avanços tecnológicos vão ocorrendo, não é difícil concluir que o trabalhador tem sido ao mesmo tempo privilegiado e prejudicado, ainda que de forma tácita. Isso porque, ainda que os modelos de trabalho remoto representem certa medida de conforto para o grupo de trabalhadores, que não mais necessita percorrer grandes distâncias no transporte público para chegar ao local de trabalho, há a banalização de alguns institutos importantíssimos à proteção da saúde e do bem-estar laboral.

Podemos citar como exemplos as horas extras habituais que são cobradas em razão da facilidade do trabalho nas residências, a não observância de normas aplicáveis à saúde e ergonomia no ambiente residencial como forma de viabilização do trabalho decente em casa, as cobranças excessivas por resultados, considerando o movimento prejudicial à economia que a emergência sanitária da Covid-19 trouxe para o mundo, dentre outras.

Contudo, a pesquisa sugere que todas as questões mencionadas são tratadas pela legislação trabalhista pátria e, com efeito, existem limites que ali devem ser observados de maneira específica ou, ao menos, trazem alguma compensação – como no caso da remuneração acima da hora adicional nos casos de horas extras. Em outras palavras, são questões que derivam do ambiente de trabalho e que são resolvidas no ambiente laboral, se restringindo àquele ambiente ou, no máximo, levadas à Justiça Trabalhista para discussão da controvérsia estabelecida.

Porém, quando se fala sobre os limites na fiscalização do empregador, parece que outros tipos de princípios são violados e, com efeito, não se restringem mais ao ambiente laboral. Optando a jurisprudência por seguir decisões que privilegiem a obtenção da prova, independentemente da situação e utilizando apenas como base a equiparação entre grampo telefônico ou não (como ocorreu nos exemplos 2 e 3 acima), há clara e manifesta violação de princípios constitucionais como a inviolabilidade das comunicações telemáticas e, em interpretações mais abrangentes, violação à residência.

Dessa forma, não pode o autor concordar com as soluções apresentadas pela jurisprudência, que, ao se valer do julgamento do STF, não leva em consideração que o trabalhador exerce sua atividade em boa parte do seu tempo, se confundindo com sua vida pessoal praticamente. Diante disso, não é razoável que o trabalhador tenha seu ambiente pessoal fiscalizado, ainda que com o objetivo de encontrar faltas graves, simplesmente pela utilização de uma facilidade tecnológica que lhe é concedida pelo uso de equipamento empresarial – e, pasmem, de boa-fé, como o único objetivo de facilitar a sua comunicação e evitar a utilização do celular, por exemplo.

Com efeito, o que temos é uma ponderação de direitos fundamentais ao contrário, privilegiando o capital e o poder diretivo do empregador em detrimento do bem comum, do foro íntimo e da evolução tecnológica que se apresenta com o passar dos anos.

A jurisprudência, portanto, ao não considerar os aspectos específicos das relações de trabalho mencionadas alhures, incorre em abandono do ente que deve preservar ou, ao menos, balancear a relação, no caso, o trabalhador. Dessa maneira, este autor entende que a aplicação do julgamento do Supremo Tribunal Federal nas relações de trabalho deve ocorrer de maneira contida, limitando-se às comunicações entre empregadores e trabalhadores, pelos meios concedidos aos trabalhadores para realização das atividades, sendo certo que todo excesso que decorre daí (análise de comunicações pessoais dos trabalhadores, gravações de áudios espaciais no ambiente residencial, etc.) deve ser considerado como prova ilícita e, portanto, impossível de ser utilizada para aplicação de faltas graves.

Isso porque, ao aplicar de forma indistinta o teor do Tema 237, há uma diferença que não é considerada pela Justiça Trabalhista: o empregador não faz parte da comunicação que está “vigiando”. Em outras palavras, tomando como exemplo a utilização do áudio espacial obtido pelo empregador em seu dispositivo, este passa a ser o terceiro ente na comunicação, que já conta com o trabalhador e seu outro interlocutor (que, nos casos de trabalho remoto, pode ser algum ente familiar, por exemplo). Não é possível negar que há uma ação furtiva praticado por um ente terceiro, ainda que no horário de trabalho.

Por fim, não se pode confundir o ponto mencionado acima com a autorização para fiscalização dos equipamentos, contida em Políticas internas e nos contratos de trabalho. Este autor entende que este tipo de autorização se presta a verificar questões de utilização indevida do equipamento, como instalação de jogos nos computadores, utilização do e-mail corporativo para fins que não aqueles contidos no contrato de trabalho, dentre outros exemplos, não se confundido com autorização concedida pelo trabalhador para fiscalização dos seus pertences pessoais – em situação semelhante às revistas íntimas, onde é sabido que o empregador não pode revistar de forma ostensiva os pertences pessoais dos trabalhadores.

7 CONCLUSÃO

O objetivo deste trabalho era demonstrar, inicialmente, a evolução tecnológica aplicada às relações de trabalho, principalmente o trabalho remoto, e as consequências dali trazidas. Adicionalmente, a questão posta era a intersecção entre o Tema 237 do STF e as consequências na seara trabalhista, o que gera conflito de princípios e outras discussões relacionadas ao modo como o TST e seus Tribunais inferiores se posicionam diante de admissão de prova obtida por meio telemático.

Naturalmente, o trabalho se prestou a concluir que o Tema 237 do STF tem aplicação voltada para o meio criminal e, portanto, deve ser utilizado de maneira moderada pela seara trabalhista, principalmente pelo fato de que se trata de relação de boa-fé, além das particularidades trazidas por uma relação de emprego comum, que passa a fazer parte, muitas vezes de maneira indistinta, da vida do empregado.

É evidente que, por se tratar de tema novo, a jurisprudência e a legislação pátria ainda tem um caminho longo a percorrer, principalmente se considerarmos a lacuna contida na legislação trabalhista sobre o tema. Espera-se que este trabalho abra portas para que outros pesquisadores possam, na medida do possível, estabelecer conclusões precisas sobre o tema e provoca-lo sob diferentes pontos de vista, contribuindo assim para a melhoria das relações laborais, principalmente diante das rápidas transformações trazidas pela tecnologia. Contudo, o ponto de vista deste autor é importante para ressaltar que, ainda que o STF tenha fincado jurisprudência acerca do tema, o TST deve, utilizando-se da sua autonomia em discussões laborais, aplicar a regra considerando as particularidades de uma relação de emprego, principalmente relacionadas à boa-fé das partes e dos limites do empregador, sob pena da criação de decisões que privilegiem o caráter punitivo trazido pelo Artigo 482 da CLT em detrimento de tantos outros institutos laborais que preservem o bem-estar do empregador e princípios relevantes, como o da continuidade, da primazia da realidade e da norma mais favorável ao trabalhador, ente que, como sabemos, é vulnerável na relação.


[1] Advogado, Especialista em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Mestrando em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

[2] LUIZ MARCELO FIGUEIRAS DE GÓIS. O Benefício da Ordem e a Responsabilidade Subsidiária. Comentário de Jurisprudência. p. 2. 

[3] TRT-3 – RO: 00106869020155030107 0010686-90.2015.5.03.0107, Relator: Taisa Maria M. de Lima, Decima Turma

[4] TST – AIRR: 71672220115120035, Relator: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Data de Julgamento: 05/06/2019, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 07/06/2019)

[5] TRT-2 – RO: 6914820135020 SP 00006914820135020011 A28, Relator: RICARDO ARTUR COSTA E TRIGUEIROS, Data de Julgamento: 12/11/2013, 4ª TURMA, Data de Publicação: 25/11/2013

[6] TRT-12 – RO: 00007023820145120052 SC 0000702-38.2014.5.12.0052, Relator: GISELE PEREIRA ALEXANDRINO, SECRETARIA DA 3A TURMA, Data de Publicação: 11/09/2015

[7] TRT-3 – RO: 00938201104403009 0000938-68.2011.5.03.0044, Relator: Convocado Paulo Mauricio R. Pires, Primeira Turma, Data de Publicação: 27/04/2012,26/04/2012. DEJT. Página 92. Boletim: Sim.

[8] FRANCISCO FERREIRA JORGE NETO E JOUBERTO DE QUADROS CAVALCANTE. Direito do Trabalho. Atlas, 2019. 9ª Ed., pp. 454-461.

[9] SÉRGIO PINTO MARTINS. Direito do Trabalho. Atlas, 2012. pp 217-218. 

[10] EMILIO GONÇALVES. O poder regulamentar do empregador: o regulamento do pessoal na empresa. 2ª Ed., p. 35.