LEI DA REFORMA PSIQUIÁTRICA E A IMPORTÂNCIA DA APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOLOGIA E O DIREITO PENAL

LEI DA REFORMA PSIQUIÁTRICA E A IMPORTÂNCIA DA APROXIMAÇÃO ENTRE A PSICOLOGIA E O DIREITO PENAL

PSYCHIATRIC REFORM LAW AND THE IMPORTANCE OF THE APPROACH BETWEEN PSYCHOLOGY AND CRIMINAL LAW

Artigo submetido em 20 de junho de 2024
Artigo aprovado em 25 de junho de 2024
Artigo publicado em 30 de junho de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 55 – Junho de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Felipe de Castro Busnello[1]

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo abordar a aproximação histórica entre a psicologia e o direito penal, mostrando a importância da interdisciplinaridade e da interpretação do direito penal a partir das regras e princípios estabelecidos na Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, são estudadas questões relacionadas à periculosidade, medida de segurança, exame criminológico, e, especialmente, à Lei nº 10.216/01, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, que introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a noção de cidadania à maneira de se lidar com a loucura.

Palavras-chave: Psicologia. Direito penal. Interdisciplinaridade.

ABSTRACT: The present work aims to address the historical rapprochement between psychology and criminal law, showing the importance of interdisciplinarity and the interpretation of criminal law based on the norms and principles established in the Federal Constitution of 1988. In this sense, we studied issues related to dangerousness, security measures, criminological examination, and, especially, Law n 10.216/01, known as the Psychiatric Reform Law, which introduced into the brazilian legal system the notion of citizenship in the way of dealing with madness.

Keywords: Psychology. Criminal law. Interdisciplinarity.

1. Relação entre o direito penal e saúde mental:

Como será discutido ao longo do presente trabalho, na atualidade, as soluções dos complexos casos apresentados aos profissionais do direito devem ser construídas através da interdisciplinaridade, ou seja, da interface entre diversas áreas do saber além do próprio direito, como, por exemplo, a psicologia, a psiquiatria, a neurologia, o serviço social, entre outras.

Interdisciplinaridade consiste na ideia de que nenhuma ciência consegue, isoladamente, abranger a complexidade dos fenômenos que envolvem as relações humanas. O conflito é inerente ao ser humano, e, enquanto a justiça tem como principal objetivo regular as relações entre pessoas, a psicologia visa compreender os indivíduos e as razões de seus atos. Historicamente, a área penal foi a primeira esfera do Direito a se relacionar com a psicologia, seguida por diversas outras, como família, infância e juventude.

Segundo Evani Zambon Marques da Silva e Lídia Rosalina Folgueira Castro[2]:

Trabalhar sob uma perspectiva interdisciplinar não significa demarcar fronteiras, mas acreditar que, a partir de um conhecimento profundo e atualizado sobre os alcances e limites de cada área, é possível construir novas realidades ao abarcar entendimentos de uma e de outra.

[…]

A visão interdisciplinar, que a psicologia e o direito constroem, busca junto aos tribunais o efetivo resgate da dignidade da pessoa humana, enquanto ser que pensa, vive e é dotado de subjetividade. Transformar o indivíduo, não apenas em sujeito de direito, mas em pessoa digna e em plenas condições de exercer a sua cidadania, tem sido o lema da psicologia jurídica.

Sobre a dignidade humana, nos ensina o eminente Professor Marco Antonio Marques da Silva que[3]:

A dignidade decorre da própria natureza humana[4], o ser humano deve ser sempre tratado de modo diferenciado em face da sua natureza racional. É no relacionamento entre as pessoas e no mundo exterior, e entre o Estado e a pessoa, que se exteriorizam os limites da interferência no âmbito desta dignidade. O seu respeito, é importante que se ressalte, não é uma concessão ao Estado, mas nasce da própria soberania popular, ligando-se à própria noção de Estado Democrático de Direito.

Reconhecendo a importância da relação entre a psicologia e o direito, a Resolução nº 75/2009 do CNJ, que dispõe sobre os concursos para ingresso na Magistratura em todos os ramos do Poder Judiciário nacional, estabelece a psicologia judiciária como uma das disciplinas do concurso (“noções gerais de direito e formação humanística”). Tal Resolução foi alterada em 2023 pela Resolução nº 531 do CNJ, que instituiu o Exame Nacional da Magistratura, e também prevê a necessidade de o exame conter questões versando sobre “noções gerais de direito e formação humanística”.

Os conhecimentos da psicologia podem otimizar a aplicação da justiça, isto é, tornar as soluções dos operadores do direito mais efetivas e justas. Destaca-se, nesse sentido, a existência de psicólogos nos quadros dos Tribunais de Justiça brasileiros, para o atendimento das mais diversas demandas, respeitadas as especificidades locais.

Em seguida, como se sabe, o estudo e a interpretação das normas e institutos jurídicos devem ser feitos de uma forma integrada e sistemática, que leve em consideração o ordenamento jurídico como um todo, em especial as normas da Constituição Federal de 1988, lei fundamental do nosso país. Portanto, a relação entre o direito penal e a saúde mental não deve se restringir ao conhecimento da parte geral do código penal e da Lei nº 7.210/94 – Lei de Execução Penal.

De acordo com Marco Antonio Marques da Silva[5]:

Na justiça penal, os princípios constitucionais avultam em importância, porque têm como objetivo a proteção do direito de liberdade do indivíduo. […] Num Estado Democrático de Direito, o sistema do direito penal deve ter como limite os direitos humanos acolhidos pela Constituição Federal, nos tratados e convenções internacionais. Este o caráter conciliador do direito penal, uma vez que a pena não desestimula o crime. O respeito incondicional aos direitos fundamentais, no âmbito do direito penal, e às garantias individuais, no do processo penal indicam a verdadeira vocação de uma democracia. Assim, a eficiência do Estado, com relação à criminalidade moderna, embora possa se diferenciar, quanto aos meios, mas não pode ignorar estas garantias. O cumprimento dos princípios constitucionais que norteiam a persecução criminal e o processo penal será o verdadeiro primado das garantias individuais, efetivando os direitos fundamentais inscritos na nossa Carta Magna.

Nesse contexto, compete à Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a quem incumbe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados (artigo 134 da Constituição Federal), buscar em sua atuação diária dar efetividade às normas previstas na Constituição da República.

No que diz respeito à saúde mental, no âmbito do direito, para que o tratamento da pessoa com transtorno mental, que comete um ato tipificado como crime, seja compatível com os direitos humanos, não basta a aplicação do Código Penal e da Lei de Execução Penal, sendo necessária a observância de outras normas, especialmente da Lei nº 10.216/01, marco da reforma psiquiátrica no Brasil e que introduziu a noção de cidadania à maneira de se lidar com a loucura. Além disso, como já dito, para a verdadeira promoção da saúde mental também deve haver a atuação de profissionais da área da psicologia.

Sobre o tema, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo editou a Tese Institucional nº 10/08, que trata da Lei nº 10.216/01, pois “é atribuição institucional da Defensoria Pública promover a defesa dos indivíduos portadores de doença mental que tenham cometido crimes, garantindo-lhe todos os direitos legalmente previstos”[6]. Tal Tese representa o posicionamento da Instituição sobre o assunto, tendo por escopo “orientar a atuação dos Defensores Públicos atuantes no âmbito criminal, tanto nas Varas Singulares, quanto na Execução Penal, no que tange à aplicação das medidas de segurança”[7], e tem o seguinte conteúdo: “a Lei nº 10.216/01, marco da reforma psiquiátrica no Brasil, derrogou a parte geral do Código Penal e da Lei de Execuções Penais no que diz respeito à medida de segurança”. “Não se pode olvidar que a aplicação da Lei nº 10.216/01 à medida de segurança traz importantíssimos avanços em matéria de saúde mental, estendendo-se à medida de segurança os festejados avanços da reforma psiquiátrica”[8].

2. Saúde mental no código penal:

A abordagem da saúde mental no Código Penal parte da imputabilidade, que é tratada como um critério biopsicológico normativo, ou seja, híbrido. Assim, para se aferir a imputabilidade de alguém não basta o aspecto normativo (definição por normas), sendo necessário recorrer à interdisciplinaridade, com a atuação de profissionais de diversas áreas. Em outras palavras, sobre a inimputabilidade dos agentes com doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, depende-se de análise psicológica e/ou psiquiátrica.

Discorre o artigo 26 do código penal:

“É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.

A imputabilidade é vista como um elemento da culpabilidade, e é composta por dois aspectos: a possibilidade de entendimento sobre o caráter ilícito do fato e a possibilidade de comportamento de acordo com tal entendimento. É considerado imputável o agente que reúne os dois aspectos; inimputável o que não os reúne; e semi-imputável o que os reúne parcialmente ou que possui apenas um deles.

2.1. Periculosidade e os sistemas do duplo binário e vicariante:

Em 1940 o sistema de imposição de penas e medidas de segurança adotado pelo código penal era o conhecido como duplo binário; a reforma da parte geral do código penal de 1984 trouxe o sistema vicariante.

Com base em um critério de periculosidade, o sistema do duplo binário previa a possibilidade de aplicação simultânea de pena e medida de segurança. A periculosidade do agente poderia ser presumida por lei ou decorrer de declaração judicial, e era mais importante do que a própria prática do fato para a imposição de uma medida de segurança.

Ao conceber a medida de segurança, o artigo 77 do código penal de 1940 produziu o conceito de periculosidade como categoria jurídica abrangente de portadores de transtorno mental infratores da lei: “Quando a periculosidade não é presumida por lei, deve ser reconhecido perigoso o indivíduo, se a sua personalidade e antecedentes, bem como os motivos e circunstâncias do crime autorizam a suposição de que ele venha ou torne a delinquir”.

Após 1984 o conceito de periculosidade passou a ser exclusivo para inimputáveis ou semi-imputáveis, e não mais se admite a imposição conjunta de pena e medida de segurança.

A periculosidade é baseada no prognóstico de reincidência do indivíduo, para “defesa coletiva” em relação aos danos previsíveis que ele poderia causar. Trata-se de um conceito especificamente jurídico, e não da área da saúde mental, criado para legitimar a imposição de tratamentos psiquiátricos compulsórios pelo direito, e que nos parece de constitucionalidade duvidosa, em razão de violar o princípio da presunção de inocência (Artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988).

Destaca-se, assim, que conforme artigo 4º, § 1º, da Resolução nº 12/2011 do Conselho Federal de Psicologia, é vedado ao psicólogo, em sua atuação no cárcere, aferir periculosidade e elaborar prognóstico de reincidência: “Na perícia psicológica realizada no contexto da execução penal ficam vedadas a elaboração de prognóstico criminológico de reincidência, a aferição de periculosidade e o estabelecimento de nexo causal a partir do binômio delito-delinquente”. Embora a Resolução em questão tenha sido declarada nula por decisão judicial, o conteúdo do mencionado dispositivo permanece representando o posicionamento de profissionais da Psicologia sobre a matéria.

2.2. Medidas de segurança: cuidado ou repressão?

Apesar de a lei diferenciar pena e medida de segurança, a medida de segurança como consequência de um ato ilícito deve ser considerada espécie de sanção penal.

As modalidades de medida de segurança previstas no código penal são a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado, e o tratamento ambulatorial (artigo 96).

O artigo 97 do Código Penal estabelece os critérios para a imposição da medida de segurança, definindo que se aplica internação para crimes apenados com reclusão e tratamento ambulatorial para delitos apenados com detenção. A regra trazida por este dispositivo é inadequada pois se o pressuposto é de que a medida de segurança é um tratamento, e não uma pena, o critério para a imposição de internação ou tratamento ambulatorial deveria ser o quadro clínico do indivíduo, e não o tipo de pena aplicada. Um agente que pratica um crime apenado com detenção como, por exemplo, o infanticídio, pode ter um transtorno mental muito mais grave do que uma pessoa que pratica um crime de furto, que é apenado com reclusão. Diante disso e considerando o contexto da reforma psiquiátrica, há decisões judiciais no sentido de que caso o laudo demonstre a suficiência do tratamento ambulatorial para o sentenciado, ainda que o crime praticado seja apenado com reclusão, ele pode ser submetido a tratamento ambulatorial.

Sobre o tema, discorre Cezar Roberto Bitencourt que “é necessário examinar as condições pessoais do agente para constatar a sua compatibilidade ou incompatibilidade com a medida mais liberal. Claro, se tais condições forem favoráveis, a substituição se impõe”.[9]

No que diz respeito ao prazo da medida de segurança, estabelece o artigo 97, § 1º, do código penal: “A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimodeverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos”.

A indeterminação temporal e a necessidade de “cessação de periculosidade” permitem que as medidas de segurança se prolonguem durante anos, a depender dos laudos psiquiátricos e das decisões judiciais. Os “tratamentos”, não raras vezes, se tornam mais gravosos do que as penas previstas em lei, se os indivíduos a elas submetidos imputáveis fossem.

O artigo 97, § 2º, do código penal trata da perícia médica: “A perícia médica realizar-se-á ao termo do prazo mínimo fixado e deverá ser repetida de ano em ano, ou a qualquer tempo, se o determinar o juiz da execução”. De acordo com o artigo 176 da Lei de Execução Penal, é possível que esse exame seja realizado ainda que antes do prazo mínimo fixado.

O artigo 175 da Lei de Execução Penal trata detalhadamente sobre o exame de cessação de periculosidade; participam da perícia médicos e psicólogos, que elaboram um relatório circunstanciado a ser enviado para o Juiz.

O artigo 97, § 3º do código penal estabelece que a desinternação ou liberação é obrigatoriamente condicional. Isso significa que com a vinda do relatório circunstanciado formulado pela equipe técnica atestando a cessação da periculosidade, o indivíduo será liberado, mas a medida só será definitivamente extinta se ele não praticar nenhum fato indicativo da persistência da periculosidade no prazo de 01 (um) ano.

Defende-se, também, a possibilidade de desinternação progressiva, como uma etapa intermediária, de forma que, mesmo não cessada a periculosidade, o indivíduo possa aos poucos retornar ao convívio social, se readequando à sociedade e refazendo com ela os seus laços. Isso porque muitos profissionais da área da saúde, como psicólogos e psiquiatras, são convictos de que o quadro psiquiátrico da pessoa com transtorno mental que é internada pode se agravar ainda mais; a internação não é um tratamento, mas contenção, e deveria ser utilizada apenas em períodos de surto, devendo o indivíduo, após, retornar ao convívio social.

Sobre o estabelecimento adequado, afirma Luiz Regis Prado que “o hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, local em que devem ser feitas as internações, veio substituir – em tese – os antigos manicômios judiciários presentes na legislação de 1940”.[10]

O artigo 99 do código penal descreve os “direitos do internado”: “O internado será recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a tratamento”.

É importante destacar que a Lei nº 12.313/2010 alterou a Lei nº 7.210/1984 para prever a assistência jurídica ao preso dentro do presídio e atribuir competências à Defensoria Pública. Foi incluído na Lei de Execução Penal o artigo 81-A: “A Defensoria Pública velará pela regular execução da pena e da medida de segurança, oficiando, no processo executivo e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos os graus e instâncias, de forma individual e coletiva”. Tal previsão é claramente fruto do princípio constitucional da ampla defesa, disposto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988. Significa que ao acusado o Estado deve proporcionar a mais ampla defesa, sendo que ao réu que não possua condições financeiras, será sempre e obrigatoriamente nomeado defensor, conforme artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

Sobre o assunto, além da atuação ordinária de Defensores nos processos de execução, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo possui um Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC), órgão interno, de caráter permanente, que tem como missão primordial prestar suporte e auxílio, tanto administrativa quanto judicialmente, a Defensores Públicos sobre direitos específicos ou gerais de pessoas presas ou internadas, fazendo inspeções nos estabelecimentos prisionais e trabalhando em temas como a política ‘Mães em Cárcere’[11].

No mais, conforme Lei Complementar estadual nº 988/2006, as Unidades da Defensoria Pública do Estado de São Paulo são capacitadas com Centros de Atendimento Multidisciplinar, visando ao assessoramento técnico e interdisciplinar dos Defensores Públicos para o desempenho das atribuições da Instituição, que poderão contar com profissionais e estagiários das áreas de psicologia, serviço social, engenharia, sociologia, estatística, economia, ciências contábeis e direito, dentre outras.

3. Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216/01) e a Resolução nº 487/2023 do CNJ:

A falência dos mecanismos de internação foi um dos elementos que ensejou a criação da Lei nº 10.216/01, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, que trouxe importantes mudanças no campo da saúde mental e se aplica às medidas de segurança.

Ao falar em “atendimentos em saúde mental de qualquer natureza”, o artigo 2º da Lei da Reforma Psiquiátrica não exclui as medidas de segurança; pelo contrário, as abarca. Ademais, tal lei é posterior à parte geral do código penal, e trata especificamente sobre a questão da saúde mental.

O artigo 1º da lei traz o princípio da igualdade aplicado à assistência à saúde mental; o tratamento e a assistência são garantidos a toda e qualquer pessoa com transtorno mental, sem distinção de qualquer ordem.

Toda a execução da medida de segurança deve ser realizada no interesse de beneficiar exclusivamente a saúde da pessoa portadora de transtorno mental (artigo 2º, parágrafo único, inciso II). “A escolha do tratamento leva em conta exclusivamente o indivíduo portador do sofrimento mental, sua moléstia e suas necessidades”. “São as necessidades do sujeito portador da moléstia e não a segurança da sociedade que são levadas em consideração no momento da escolha terapêutica”[12].

Ademais, a internação não pode ser a regra, devendo ser medida subsidiária, utilizada apenas em casos de surto e pelo menor prazo possível (princípio da brevidade). No mesmo sentido, segundo o artigo 4º da lei, para que a pessoa com transtorno mental possa ser internada ela deve ter passado por todos os recursos extra hospitalares.

“Longe de ser a principal alternativa terapêutica, a internação psiquiátrica passa a ser o derradeiro recurso, buscado tão somente quando todas as outras alternativas terapêuticas não institucionais se mostrarem ineficazes. Mais que isso, a internação psiquiátrica limita-se aos casos de surto e dura exclusivamente o tempo de permanência do surto”.[13]

Os critérios de duração da internação compulsória são exclusivamente médicos (paciente em surto). “Assim, constatado a inimputabilidade penal do indivíduo autor de crime, o juiz deverá oferecer-lhe o tratamento devido, de acordo com a indicação médica. É o médico e não o magistrado quem decidirá a melhor terapêutica a ser destinada ao indivíduo”[14].

O artigo 3º da Lei da Reforma Psiquiátrica traz o princípio da solidariedade: trata da responsabilidade do Estado, “com a devida participação da sociedade e da família”. O tratamento de pessoas com transtorno mental deve ser realizado no SUS, em residências terapêuticas, nos CAPS, e não em manicômios que as retiram do convívio social. A lei em estudo repudia as instituições totais como alternativa terapêutica, e traz, em relação ao Estado, uma obrigação de fazer, consistente na instalação de CAPS e substituição de leitos por medidas comunitárias dentro do sistema geral de proteção à saúde. “A internação compulsória (leia-se medida de segurança), como qualquer outra modalidade de internação psiquiátrica, será efetivada em Hospital Geral, de acordo com os paradigmas do SUS (Sistema Único de Saúde) e somente nos casos em que qualquer outra alternativa terapêutica revelar-se completamente inócua”. “Com a Lei nº 10.216/01 “a prevalência da internação em Hospitais Psiquiátricos dá lugar à internação em Hospitais Gerais, em leitos comuns ou, no máximo, em ala psiquiátrica de Hospitais Gerais”.[15]

O artigo 5º da lei se preocupa com as pessoas que estão internadas há muito tempo. Por conta da dependência institucional e do grau de detrimento psicológico sofrido em razão da internação, essas pessoas deverão ser alvo de suporte social específico; a sua desinternação deve ser acompanhada, para que sejam minorados os efeitos da institucionalização. Fala-se em reabilitação psicossocial; a Lei parte do pressuposto de que a internação inabilita, surgindo a necessidade de reabilitação.

O artigo 6º fala do laudo médico circunstanciado de que depende a internação, e seu parágrafo único elenca, de modo exaustivo, três espécies de internação psiquiátrica, sendo qualquer delas absolutamente excepcional. A esfera penal tem como objeto de estudo a internação compulsória, que é a determinada pela Justiça, ou seja, a medida de segurança.

A internação compulsória não pode ser determinada ao bel-prazer do juiz, pois não confere “carta branca” ao Poder Judiciário; ela somente poderá ser indicada na hipótese de verificação da inimputabilidade, por laudo médico circunstanciado. A medida de segurança é uma internação determinada pela Justiça, ou seja, uma internação compulsória. A lei não confere ao Poder Judiciário discricionariedade para decretar internações psiquiátricas; assim, entende-se que a internação compulsória é somente uma medida de segurança[16].

Buscando dar efetividade à Lei da Reforma Psiquiátrica, a Resolução nº 487, editada pelo CNJ em 15 de fevereiro de 2023, instituiu a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e estabeleceu procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Interamericana dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei nº 10.216/01, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança.

4. Conclusão:

Em apertada síntese, verifica-se que ainda há muito a evoluir no que diz respeito à implementação das normas de direito penal atinentes à saúde mental, que precisam ser aplicadas sob o enfoque da interdisciplinaridade, e em observância à Constituição Federal de 1988. Embora a Lei nº 10.216 tenha trazido desde 2001 importantes mudanças legislativas sobre o assunto, no ano de 2023 o CNJ editou a Resolução nº 487, buscando garantir efetividade à Lei da Reforma Psiquiátrica.

No que diz respeito à internação compulsória, identificada como a medida de segurança, ela só deveria ser aplicada após o esgotamento de todos os outros tratamentos possíveis, exclusivamente em períodos de surto, e tendo como única finalidade atender os interesses da pessoa a ela submetida. Nesse sentido, a Defensoria Pública busca, no exercício das suas atribuições constitucionais diárias, garantir que a aplicação da norma ocorra de acordo com a Constituição, leis, Resolução do CNJ e normas internacionais de Direitos Humanos.

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[1] Defensor Público do Estado de São Paulo desde o ano de 2014. Graduado em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas, FMU, Brasil (2011). Com especialização em Curso de Pós-Graduação Lato Sensu pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus, FDDJ, Brasil (2013). Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

[2] CASTRO, Lídia Rosalina Folgueira e SILVA, Evani Zambon Marques. Psicologia Judiciária para Concursos da Magistratura. Edipro concursos. São Paulo, 2011, p. 09.

[3] MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Coord). Cidadania e Democracia: Instrumentos para a efetivação da dignidade humana. Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. Editora Quartier Latin do Brasil. São Paulo, 2008, p. 227.

[4] CAMARGO, Antonio Luís Chaves. Culpabilidade e Reprovabilidade Penal. São Paulo: Sugestões Literárias, 1994, p. 12 e 31.

[5] SILVA, Marco Antonio Marques da (Coord.). Igualdade na Persecução Criminal: Investigação e produção de provas nos limites constitucionais. Processo Penal e Garantias Constitucionais. Editora Quartier Latin do Brasil. São Paulo, 2006, p. 491.

[6] Trecho extraído da Tese Institucional nº 10/08 da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Fonte: https://www.defensoria.sp.def.br/institucional/edepe/pagina-inicial-edepe/teses-institucionais.

[7] Trecho extraído da Tese Institucional nº 10/08 da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Fonte: https://www.defensoria.sp.def.br/institucional/edepe/pagina-inicial-edepe/teses-institucionais.

[8] Tese Institucional nº 10/08 da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Fonte: https://www.defensoria.sp.def.br/institucional/edepe/pagina-inicial-edepe/teses-institucionais.

[9] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral 1. 13ª ed. Editora Saraiva, 2008. p. 704.

[10] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro Volume 1 – Parte Geral. 4ª ed. Editora Revista dos Tribunais, 2004. p 695. 

[11] Fonte: https://www.defensoria.sp.def.br/nucleos-especializados/pagina-inicial-nucleos-especializados/situacao-carceraria.

[12] Trechos extraídos da Tese Institucional nº 10/08 da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Fonte: https://www.defensoria.sp.def.br/institucional/edepe/pagina-inicial-edepe/teses-institucionais.

[13] Trecho extraído da Tese Institucional nº 10/08 da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Fonte: https://www.defensoria.sp.def.br/institucional/edepe/pagina-inicial-edepe/teses-institucionais.

[14] Trecho extraído da Tese Institucional nº 10/08 da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Fonte: https://www.defensoria.sp.def.br/institucional/edepe/pagina-inicial-edepe/teses-institucionais.

[15] Trechos extraídos da Tese Institucional nº 10/08 da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Fonte: https://www.defensoria.sp.def.br/institucional/edepe/pagina-inicial-edepe/teses-institucionais.

[16] Trechos extraídos da Tese Institucional nº 10/08 da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Fonte: https://www.defensoria.sp.def.br/institucional/edepe/pagina-inicial-edepe/teses-institucionais.