JUIZ DAS GARANTIAS: MODELO BRASILEIRO E A COMPATIBILIDADE COM PRINCÍPIOS REGENTES DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1 de dezembro de 2021GUARANTEE JUDGE: BRAZILIAN MODEL AND COMPATIBILITY WITH RULING PRINCIPLES OF THE DEMOCRATIC STATE OF LAW
Cognitio Juris Ano XI – Número 37 – Dezembro de 2021 ISSN 2236-3009 |
Autores: Evenllyn Kalianne Nascimento da Silva[1] Sheyla Cristina Ferreira Santos Queiroz² |
RESUMO: O presente estudo visa analisar a figura do juiz das garantias, instituto criado para assegurar a imparcialidade do julgador e das garantias processuais inerentes ao acusado na persecução penal, conforme estabelecido no ordenamento jurídico brasileiro e qual o seu grau de concordância com os princípios regentes do Estado Democrático de Direito, com ênfase naqueles que embasam a tríade Direito Constitucional, Penal e Processual Penal, que serviram como fundamento da sua criação. A importância de sua implementação no âmbito nacional impacta diretamente o jus puniendi estatal, pois o juiz atuará na fase pré-processual, salvaguardando os direitos individuais do investigado, bem como a legalidade da investigação, findando sua competência com o recebimento da denúncia, garantindo, em tese, a imparcialidade do julgador nos dois momentos imprescindíveis para que se alcance de forma eficaz a verdade real e uma resposta satisfatória à sociedade e respeito ao sistema acusatório. Para o desenvolvimento da pesquisa utiliza-se o método de abordagem qualitativa com procedimentos e técnicas de pesquisa bibliográfica e documental, método dialético, procedimento histórico e ainda, livros, artigos e leis. Sendo assim, conclui-se que se está diante de uma medida incompatível com o sistema de princípios componentes do Estado Democrático de Direito, visto que, ainda que vise prevenir alguns danos, traz prejuízos maiores que podem causar a instabilidade institucional, obstar o exercício da democracia e diminuir a eficiência da resposta estatal.
Palavras-chave: Juiz das Garantias. Garantias Processuais Penais. Princípios Processuais. Pacote Anticrime.
ABSTRACT: The present study aims to analyze the figure of the judge of guarantees, the institute created to ensure the impartiality of the judge and the procedural guarantees inherent to the accused in criminal prosecution, as established in the Brazilian legal system and its degree of agreement with ruling principles of the Democratic State of Law, with emphasis on those that support the triad Constitutional, Criminal and Criminal Procedural Law, which served as the foundation of its creation. The importance of its implementation at the national level directly impacts the state jus puniendi, whereas the judge will act in the pre-procedural phase, safeguarding the individual rights of the investigated, as well as the legality of the investigation, ending its competence with the receipt of the report, guaranteeing, in theory, the impartiality of the judge in the two essential moments so that the real truth and satisfactory response to society and respect for the accusatory system are effectively reached. For the development of the research, the qualitative approach method is used with bibliographic and documentary research procedures and techniques, dialectical method, historical procedure and also books, articles and laws. Therefore, it is concluded that it is faced with a measure incompatible with the system of component principles of the Democratic Rule of Law, since, although it aims to prevent some damage, it brings further damage that can cause institutional instability, hinder the exercise of democracy and decrease the efficiency of the state response.
Keywords: Guarantee Judge. Criminal Procedural Guarantees. Procedural Principles. Anti-Crime Package.
1 INTRODUÇÃO
As transformações sociais advindas do comportamento humano em sociedade influenciam a composição e alteração do plano jurídico interno. No âmbito social, quando há a prática de um delito, nasce a necessidade de fornecer uma resposta ao público atingido, levando-se em consideração que, no Brasil, a Justiça é um dos objetivos nacionais, conforme a Carta Republicana. Observa-se que uma das áreas que tem sido impulsionada por tais transformações é a processual penal, a qual, por sua finalidade, qual seja, o exercício adequado do direito de punir pelo Estado, tem-se revelado cada vez mais carente de estratégias que auxiliem seu funcionamento a atingir sua finalidade de forma eficaz e responder satisfatoriamente à demanda criminal.
Todavia, é de bom tom destacar que o Estado Democrático de Direito se apresenta em facetas diversas quanto aos seus princípios, sendo latente que estes sejam equilibrados para a manutenção da Democracia quando da aplicação das leis e regular exercício estatal. Dentre os princípios resguardados e enfaticamente analisados no âmbito criminal, por serem basilares, estão o do Juiz Natural, da Imparcialidade, da Legalidade e da Verdade Real, visto que possibilitam a adequada manifestação do sistema acusatório, adotado pelo ordenamento jurídico pátrio. Além disso, concentram-se, consideravelmente, na figura do juiz, que deve apresentar-se como observador e solucionador do conflito, sem se deixar contaminar por sentimentos ou convicções pessoais.
Diante de tal quadro, o Direito Processual Penal recepcionou as alterações da Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019, denominada ‘Pacote Anticrime’, com incerteza quanto à execução de alguns dos institutos trazidos em seu âmago, bem como obscuridade quanto à compreensão de seus impactos reais no âmbito criminal. Dentre os tópicos que compõem esta celeuma, está a instituição do modelo brasileiro do Juiz das Garantias, cuja função primordial concentra-se em atuar na fase pré-processual com o fito de garantir a legalidade da investigação, bem como as garantias do investigado, nos moldes do sistema acusatório. Assim sendo, a figura suscita indagações quanto à importância de seu papel nos moldes em que foi configurado, levantando dúvidas sobre se personifica um meio de combate à Síndrome de Dom Casmurro no Processo Penal, isto é, se evita que a figura do julgador assuma posturas com o fim de se chegar uma verdade pré-determinada, como a produção de provas de modo a induzir o seu próprio convencimento a chegar a determinada conclusão, mesmo que ainda inconcluso o processo investigativo ou se não materializa uma necessidade real, tal qual pensou o legislador ao propor sua introdução no seio nacional.
Conforme exposto, trata-se de um instituto que afeta consideravelmente a realização da investigação e o meio probatório, visto que sua função finda quando do recebimento da denúncia, levantando questionamentos acerca de quão congruente esta figura se apresenta com a finalidade do processo penal e do direito penal, pois atinge diretamente o estabelecimento da competência, cria um impedimento para que não haja atuação na fase processual, requerendo uma segunda vista sob a sistemática constitucional acusatória.
Deste modo, visto que sua inserção no ordenamento jurídico pátrio pode culminar em modificações na organização da estrutura judiciária e no andamento processual das lides, bem como clamam por atenção os fundamentos de sua propositura, é cabível e adequado analisar, antes de mais nada, do ponto de vista, principiológico seu funcionamento e harmonia com o ordenamento jurídico tendo-se em conta a complexidade de sua aplicação e os interesses nacionais tutelados, sendo este o objeto do presente estudo.
Para o desenvolvimento deste artigo, utiliza-se uma abordagem qualitativa, com procedimentos e técnicas de pesquisa bibliográfica e documental, método dialético, procedimento histórico, com utilização de livros, artigos, lei, doutrina e jurisprudência.
Visando discorrer sobre o objeto deste estudo, além de uma breve introdução, o presente trabalho foi estruturado com um item direcionando à função estatal,o modelo adotado no Brasil do sistema acusatório, bem como quais as ideias norteadoras que levaram à propositura do instituto em análise, seguido de uma breve explanação acerca dos princípios nucleares que compõem aquele sistema, uma breve discussão sobre quais os casos divergência e convergência principiológicas do ordenamento com a figura do Juiz das Garantias e encerrando com algumas considerações finais.
Debruçando-se sobre o ordenamento brasileiro na forma que se apresentava antes da proposição da inserção da figura do juiz das garantias, questiona-se se aquele já não se munia de mecanismos consideráveis para prover uma solução pertinente às demandas apresentadas e, em caso positivo, se é elementar que o instrumento de reforço para que se atinja tais resultados se corporifique na figura do Juiz das Garantias e nos impactos por ele abarcados.
2 A FIGURA DO JUIZ DAS GARANTIAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A presente seção visa expor as novidades legislativas contidas no juízo das garantias, por meio de uma análise sucinta a função do Estado e sua conexão com o âmbito criminal, as bases que fundamentam o instituto em foco e os princípios utilizados como norteadores do campo legislativo com ênfase no diálogo entre os elementos de índole constitucional e processual penal.
Compreender a função estatal e sua atuação no seio social apresenta-se como elemento vital a fim de que se observe sua atuação na seara criminal, dando forma às suas contribuições e lançando luz sobre sua atuação no âmbito legislativo, como foi o caso do Pacote Anticrime, que resultou de uma tentativa de resposta do Estado para a coletividade diante do quadro penal e processual penal observado hodiernamente.
A polissemia do termo ‘Estado’ abre portas a conceitos variados, todavia, como gestor dos interesses sociais, a definição mais adequada está naquela que explicita sua finalidade, qual seja: viabilizar a coexistência harmônica dos interesses de índole individuais e coletivos (NADER, 2014, p. 153). É de bom tom destacar que visando sua manutenção em uma sociedade, o Estado conecta-se com outros entes e institutos, quais sejam a Democracia e o Direito. Segundo Bobbio (2004, p. 109), a democracia moderna assenta-se na soberania dos cidadãos enquanto participantes das decisões que obrigam a coletividade, todavia, estes decidem no momento em que depositam seu voto na urna. Já o Direito é um instrumento criado pela vivência coletiva utilizado como meio de controle e regência da vida social. Quando em contato com os institutos anteriores, surge o Estado Democrático de Direito que, segundo Nader (2014, p. 156), é caracterizado pela proteção efetiva aos direitos humanos, sendo imprescindível para sua concretização que o Estado se estruture de acordo com o clássico modelo dos poderes independentes e harmônicos, agasalhados por uma ordem jurídica coerente e um Estado que se apresenta como poder sancionador e pessoa jurídica portadora de obrigações. Ademais, é fundamental que haja participação popular na administração pública, o que se daria por meio da eleição de seus representantes.
Dentre os poderes basilares do Estado Democrático de Direito, merece especial destaque o Poder Legislativo, visto que é sua função precípua a criação de leis, ditando o Direito e criando limitações e viabilizando o exercício de direitos fundamentais, observando as necessidades sociais, bem como os fatos e hábitos oriundos do comportamento coletivo.
2.1 DA PROPOSITURA LEGISLATIVA DO JUIZ DAS GARANTIAS
No Direito Penal a função legislativa é substancial, visto que se presta a propiciar a observância dos Direitos Humanos, com especial destaque à liberdade, à igualdade e a um julgamento justo e público por um tribunal independente e imparcial quando o cidadão encontrar-se respondendo por uma acusação contra si, direitos estes que encontram refúgio nos arts. III e XI da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), in verbis:
Artigo III
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
[…] Omissis
Artigo XI
1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.(ONU, 1948)
Dado o exposto, o legislador apresenta-se de forma destacada, visto que é o responsável por dar os contornos legais dos direitos a serem tutelados pelo Estado, suscitando sempre a necessidade de que haja uma atenção sobre suas inovações no âmbito nacional, principalmente em se tratando da tentativa de oferecer resposta às exigências inerentes à vida em sociedade.
No caso da lei sub oculis, o objetivo centrava-se em aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, interferindo, dentre outros aspectos, na persecução criminal, respeitando, em tese, o Sistema Acusatório estampado no inciso I do art. 129 da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), instituindo o Ministério Público (MP) como titular da ação penal e que caberá a outro integrante da relação processual atuar como julgador, o juiz natural, conforme o art. 5º, LIII do mesmo documento. Conforme Távora (2017, p. 55), a função do juiz atuar com imparcialidade ao apreciar as provas colacionadas ao processo, tornando possível e efetivo o uso de todos os meios de defesa que se mostrarem necessários.
Diante disto, o legislador, numa tentativa de assegurar os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, instituiu a figura do Juiz das Garantias que atua na fase pré-processual e não teria seu convencimento previamente influenciado, nos dizeres de Silveira (2009, p. 89):
Não tendo emitido juízo sobre a oportunidade e conveniência de diligências que invadem direitos fundamentais do investigado, tampouco sobre pedidos cautelares, o magistrado entra no processo sem o peso de ter decidido a favor ou contra uma das partes. Não leva consigo o passivo da fase pré-processual. […] Não colaborou na identificação das fontes de prova. Não manteve o flagrante nem decretou a prisão preventiva. Não impôs o sequestro de bens. Não autorizou a interceptação de conversas telefônicas nem a infiltração de agentes, etc. etc. […] Como as suas impressões digitais não foram deixadas no inquérito, é razoável supor que estará em melhores condições de avaliar crítica e imparcialmente o trabalho desenvolvido naquela fase.
Conforme explicita o referido autor, é este o espírito do Juiz das Garantias: com bases fincadas na imparcialidade, que deve ser atributo inerente ao julgador como sujeito processual, conceder ao investigado os meios adequados para que se defenda das acusações que lhe foram imputadas e não tenha seus direitos violados. Ao destacar a separação entre as funções, o autor atinge o ponto vital do pensamento que guia e aconselha a instituição da política pública analisada: a não contaminação, teórica, do magistrado que deriva da não atuação do julgador em fase anterior e preserva a claridade elementar visando o julgamento do conflito em sua forma mais próxima da imparcialidade.
Com efeito, haveria, conforme destacado no trecho retromencionado, uma espécie de carga valorativa da fase pré-processual que teria a aptidão de minorar o julgamento imparcial esperado. Outro ponto destacado pelo autor é a possibilidade de correção de eventuais desrespeitos a postulados processuais que possam ter ocorrido, quando menciona a avaliação crítica e imparcial dos atos feitos até a entrega dos autos em suas mãos.
A referida figura conecta-se com diversos princípios componentes do ordenamento jurídico pátrio que se apresentam medulares em se tratando da ordem jurídica nacional. De toda maneira, nem sempre encontra-se em posição harmônica do ponto de vista principiológico.
2.2 DAS ATRIBUIÇÕES DO JUIZ DAS GARANTIAS E MODIFICAÇÕES PRÁTICAS
Objetivando discorrer sobre as competências direcionadas ao juízo das garantias, utilizou-se como leitura base utilizada a obra do processualista Rogério Sanches Cunha: ‘Pacote Anticrime – Lei n. 13.964/2019’, onde o mesmo tece comentários acerca das modificações legislativas trazidas pela Lei n. 13.964/2019.
Apesar de sua ligação com o Direito Penal e o Direito Constitucional, o Direito Processual Penal estampou a inserção do Juiz Das garantias na legislação pátria, sofrendo modificações em seu principal diploma legal, O Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, Código de Processo Penal (CPP), que foi substancialmente alterado, recebendo, dentre outros, o art. 3º-A e seguintes, conforme se observa:
Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. (BRASIL, 2019)
Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (BRASIL, 2019)
Os referidos artigos apresentam o Juiz das Garantias como figura garantidora de direitos individuais já garantidos pela legislação interna, bem como explicita a adoção do Sistema Acusatório como o sistema processual do âmbito criminal e atribui-lhe uma função inicial que norteará as demais: atuar na fase pré-processual de forma a controlar a legalidade nesse momento da persecutio criminis.
Já o art. 3º-B é o responsável por listar, em um rol não exaustivo, as atribuições dessa figura. Algumas das quais carentes de comentários transdisciplinares, visto que, apesar de ser uma norma processual penal, afeta diretamente princípios constitucionais e institutos componentes da matéria penal. O inciso I do art. 3º-B da Lei n. 13.964/2019 enuncia que compete ao Juiz das Garantias “receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal”. Em outras palavras, deve-se comunicar de imediato, nos termos da Magna Carta, a prisão de qualquer indivíduo e o local onde se encontre ao juiz competente e à família do preso ou a alguém por ele indicado.
Frente a isto, segue a segunda atribuição do Juiz das Garantias, estampado no inciso II do art. 3º-B do Pacote Anticrime de forma lógica e sequencial, visto que trata-se da recepção do auto de prisão em flagrante com o intuito de que possa ser feito o controle da legalidade da prisão, com a devida atenção ao que preleciona o art. 310 do Código de Processo Penal. Sem demora, em até 24 horas contadas da realização da prisão, deve haver a audiência de custódia, ocasião em que o juiz decidirá se a prisão deve ser relaxada, caso seja ilegal; podendo ser convertida em prisão preventiva; ou se haverá a concessão de liberdade provisória, mediante fiança ou não. O procedimento mencionado leva ao disposto no inciso III, qual seja: “zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo”. É visível no trecho apresentado a preocupação em garantir que seja respeitada a dignidade do indivíduo, neste caso atrelada à sua liberdade de ir e vir.
Notável é a tutela dos direitos do investigado no decorrer dos passos citado, o juiz aqui zelará para que o direito fundamental à liberdade, estampado no caput do art. 5º da Carta Republicana de 1988, que constitui, nos termos do inciso IV do § 4º do art. 60 do mesmo diploma, cláusula pétrea, que, conforme Masson (2015, p. 125), constitui um “núcleo intangível […] imunizado contra possíveis alterações”. Tão forte é a proteção a este direito que a não realização da audiência de custódia no prazo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão ensejará a responsabilidade administrativa, civil e penal, se não embasada em motivo idôneo e que justifique a omissão, cônsono o § 3º do art. 3º-B da Lei n. 13.964/2019.
O inciso IV, em sequência traz a prerrogativa do Juiz das Garantias de ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal. Nestes moldes, trata-se da “simples comunicação da abertura do inquérito à instância judicial, já que a tramitação ocorrerá entre a polícia e o Ministério Público”. O inciso V atribui-lhe o poder de decisão acerca do requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, sendo aquela reservada a situações excepcionais, quando fundamental a sua decretação ou manutenção. É de sua competência também, nos moldes do inciso VI, a prorrogação da prisão provisória ou outra medida de natureza cautelar e eventual substituição ou revogação destas, sendo garantido, em se tratando da prisão provisória, o exercício do contraditório em audiência pública e oral. Além disso, “o juiz pode, mesmo de ofício, revogar a prisão preventiva ou substituir cautelar por ele mesmo decretada, desde que surja fato novo que não mais justifique sua manutenção”. A assertiva observação destaca a força da tutela dos direitos fundamentais do investigado neste caso, pois concede à matéria status de ordem pública, cabendo ao juiz apreciar a situação fática e aplicar a medida necessária ao momento pré-processual, visando a manutenção da legalidade e garantias inerentes ao cidadão durante todo o procedimento. (CUNHA, 2020, p. 79-81)
Cabe à figura em análise decidir acerca do requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, sendo garantidos o contraditório e a ampla defesa a serem exercidos em audiência pública e oral, nos moldes do inciso VII. Ora, conforme destaca Cunha (2020, p. 84), quando da produção antecipada de provas e das não repetíveis, há a sujeição ao manto do contraditório diferido, visto que “são revestidas de eficácia probatória sem a necessidade de serem renovadas no curso da ação penal”. Aqui nota-se relevante alteração e distribuição de competência, visto que a atribuição prevista no inciso I do art. 156 do CPP sofreu assunção pelo Juiz das Garantias, observe-se:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (BRASIL, 1941)
Relevante é destacar que ao apreciar o estado em que se encontra a investigação, faculta-se ao julgador decidir sobre as medidas necessárias a serem tomadas durante a fase pré-processual, sofrendo críticas quanto à confusão de papel dos personagens da investigação. O processualista retromencionado (2020, p. 84) diz que “a um só tempo o juiz se transforma em delegado de polícia e promotor de Justiça”, visto que ordena a produção de prova ao delegado ainda que antecedente à ação penal, de titularidade do Ministério Público, absorvendo-lhes as atribuições.
Em matéria de prisão, cabe também à figura sub oculi a prorrogação da duração do inquérito, apreciando as razões apresentadas pelo delegado, quando o investigado encontra-se preso, de acordo com o estampado no inciso VIII do art. 3º-B da Lei Anticrime. É vital observar que o prazo disponível conclusão do inquérito quando sofreu alteração quando o investigado encontrar-se preso, dado que o § 2º do mesmo artigo define o prazo de 15 (quinze) dias quando imprescindível a prorrogação do procedimento investigatório, que deve ocorrer somente uma vez e com a devida solicitação da autoridade policial e oitiva do Ministério Público. O autor destaca que há uma uniformização de prazos nesse caso quer a investigação seja de competência da Justiça Federal ou Estadual, com o devido respeito ao disposto na legislação especial.
É também incumbência do Juiz das Garantias, em concordância com o inciso IX, determinar o trancamento de inquérito policial no caso de inexistência de fundamento razoável à respectiva instauração ou seu prosseguimento. Conforme preleciona o processualista (2020, p. 86), o trancamento de inquérito policial é situação excepcional que só deve ocorrer quando comprovada a atipicidade da conduta, causa de extinção de punibilidade ou evidente ausência de indícios de autoria ou de prova a respeito da materialidade do delito. Em conformidade com o mesmo autor, essa decisão deve ser encarada como habeas corpus de ofício, desafiando reexame necessário, observando-se o disposto no inciso I do art. 574 do CPP, ipsis litteris:
Art. 574. Os recursos serão voluntários, excetuando-se os seguintes casos, em que deverão ser interpostos, de ofício, pelo juiz:
[…] Omissis
II – da que absolver desde logo o réu com fundamento na existência de circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena, nos termos do art.
411. (BRASIL, 1941)
O tema possui tamanha repercussão social que admite-se recurso à instância superior de forma ‘automática’ por encerrar a atuação estatal, mostrando desinteresse social em desvendar o tema. Frente à importância da matéria é natural que seja necessária uma reanálise por instância superior. Cunha (2020, p. 87) traz um questionamento acerca desta atribuição: poderia o juiz das garantias conceder habeas corpus contra seus próprios atos? O autor explica que há divergência doutrinária sobre o tema, onde uma corrente assevera que não e a outra enxerga como dever do magistrado de corrigir um erro cometido por ele mesmo, devendo findar o constrangimento ilegal.
O inciso X preleciona que caberá ao Juiz das Garantias “requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação” (CUNHA, 2020, p. 87). Trata-se, na crítica aqui delimitada, de um inciso dúbio, visto que não menciona a necessidade de provocação ou não o que, vai de encontro ao sistema acusatório, demandando requerimento do interessado, devendo a inércia do julgador ser absoluta, repelindo a adoção de qualquer medida, de ofício, que promova a decisão de acusar, numa clara tentativa de tutelar a imparcialidade.
Na sequência, o inciso XI traz um rol não exaustivo sobre requerimentos a serem apreciados pelo Juiz das Garantias, dentre os quais: interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática, afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico; e a busca e apreensão domiciliar, que harmonizam-se magistralmente com o previsto no sistema acusatório e a função jurisdicional que por ele deve ser exercida. Todavia, no tocante ao acesso a informações sigilosas e outros meios de obtenção de prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado, apresentam-se de forma genérica e, conforme o processualista (2020, p. 88), são atribuições genéricas e contrárias à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).
A atribuição subsequente, estampada no inciso XII é o “julgamento do habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia”, levantando, desde já, discussões acerca da sua aplicabilidade. Em primeira análise, quando o órgão do Ministério Público ocupa a posição de autoridade coatora, o penalista (2020, p. 89) explicita que há duas posições a respeito. Inicialmente, o julgamento do referido remédio constitucional caberia ao magistrado de 1º grau, perante o qual oficia o membro do Ministério Público. Outra corrente entende que o julgamento seria de incumbência do Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, caso a autoridade coatora seja membro do Parquet Federal, com aplicação do inciso III do art. 96 da Magna Carta, que diz que constitui competência privativa dos Tribunais de Justiça o julgamento de membros do Ministério Público nos crimes comuns e de responsabilidade. Assim, trata-se de uma atribuição controversa que precisa encontrar estabilidade tendo em vista sua aplicação efetiva, assim como mais clareza quanto ao seu sentido.
No bojo do inciso XIII, concede-se ao Juiz das Garantias a competência para “determinar a instauração de incidente de insanidade mental”. Esta atribuição encontra guarida no art. 149 do CPP, que abre a possibilidade de instauração do incidente de sanidade mental quando houver comprometimento da integridade mental do acusado, podendo ser instaurado de ofício ou a requerimento. No entanto, assertivo é o comentário de o autor (2020, p. 90) acerca da colisão entre a vedação do art. 3º-A do CPP sobre a iniciativa do juiz na fase de investigação e a respectiva possibilidade de instauração do incidente.
A competência seguinte é de visceral importância quando se trata da persecutio criminis, visto que decidirá sobre a existência ou não da fase processual, qual seja: “XIV – decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código”. É importante expor o conteúdo do art. 399 da Lei Processual Penal, que traz em seu âmago que, em se tratando do recebimento da denúncia ou queixa, caberá ao magistrado designar data para que ocorra a audiência e as respectivas intimações dos sujeitos processuais. Em consonância com o apresentado, Cunha (2020, p. 90) faz uma observação acerca da confusão legislativa quando da elaboração desse dispositivo legal, visto que o magistrado não poderia permanecer até essa fase, já que extrapola sua função, adentrando na fase processual. Todavia, o autor também destaca que sua decisão, embora dotada de mérito, não vincula o juiz da instrução e julgamento, que assumirá o processo após o recebimento da denúncia ou queixa.
O inciso XV traz como função do magistrado assegurar que o investigado tenha acesso aos elementos informativos e probatórios colacionados à investigação criminal, excetuando as diligências em andamento. Trata-se da observância da publicidade dos atos públicos e abertura com o fim de que haja o exercício do contraditório em paridade de armas, isto é, em condição de igualdade no tocante ao conhecimento do conteúdo presente no procedimento.
Inserto pelo inciso XVI, o encargo seguinte possui natureza curiosa, apresentando-se sob a seguinte redação: “deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia”. É sabido que as partes podem indicar assistentes técnicos, todavia, o que se questiona é o momento da sua atuação. Esse questionamento divide a doutrina sob o argumento de que, por um lado, devido ao caráter inquisitorial e investigatório do inquérito, não haveria espaço para o contraditório, tendo o indiciado tendo este direito temporariamente tolhido. Por outro lado, defende-se que a prova pericial é peculiar e frequentemente irrepetível, não podendo o interessado perder a oportunidade de questionar o laudo quando de sua feitura, pensamento que encontra guarida no dispositivo em análise (CUNHA, 2020).
Na sequência, o inciso XVII atribui ao Juiz das Garantias a competência de “decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação”. O acordo de não persecução é um meio alternativo de solução de conflito criado primordialmente no âmbito nacional pelo Conselho Nacional do Ministério Público e com contornos recentemente definidos no art. 28-A do CPP e incorpora a justiça consensual ao âmbito criminal. Quando da sua feitura, participam do ajuste o Ministério Público bem como o investigado e seu patrono e há assunção de obrigação de cumprimento de condições distintas à sanção penal imputada. Assim, caberá ao magistrado analisar a legalidade do respectivo acordo, podendo homologar o acordo, se contém condições adequadas; considerá-las inadequadas, insuficientes ou abusivas, devolvendo-o ao Parquet visando a reformulação ou entender inaplicável ao caso concreto devolvendo ao Ministério Público para eventuais complementações ou cumprimento da denúncia.
Encerra rol de atribuições do art. 3º-B a atribuição genérica contida no inciso XVIII, exposta sob a forma “outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo”. Assim, abre-se espaço para que o magistrado exerça o controle da legalidade da investigação criminal quando necessário à tutela dos direitos fundamentais sempre que se fizer necessário nessa fase pré-processual.
Destarte visível a tentativa do legislador de fortalecer a política de vigilância no exercício da legalidade no âmbito penal, algumas atribuições não se adequaram ao prescrito na legislação nacional de forma geral, carecendo de meios que a estabilizem e dissipem eventuais dúvidas que podem surgir acerca das matérias tocadas pelas mudanças. Imprescindível se mostra também o alinhamento com os princípios embasadores da persecução criminal, suscitando possíveis alterações a fim de que seja alcançada a desejada harmonia.
3 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO PROCESSO PENAL
O processo penal tem o dever de ir ao encontro da manutenção dos direitos expostos pela Carta Republicana e ir de encontro às arbitrariedades estatais, observando a necessidade de efetividade da prestação jurisdicional. Levando-se em conta que o processo penal é o meio do qual dispõe o Estado quando o objetivo é a efetivação da tutela jurisdicional no âmbito social, assim como todo procedimento, é necessário que possua postulados que o norteiem a fim de que atinja sua finalidade.
Destarte os múltiplos significados que podem ser atribuídos à palavra “princípios”, a adoção mais adequada em se tratando de ramos do Direito é, conforme Lima (2017, p. 42) “mandamentos nucleares de um sistema”. E como tais, é fundamental que seu funcionamento seja harmônico e consoante as garantias abraçadas pela Magna Carta. São matérias basilares à construção do Direito Processual Penal e efetivação da função estatal no âmbito penal de forma a satisfazer a demanda social por soluções sem deixar de observar os direitos dos indivíduos investigados, resultado de um processo de luta histórica.
Devido à abrangência da temática, os princípios não se limitam a um rol e apresentam-se na Constituição e na legislação infraconstitucional, já que alguns decorrem da evolução social e do aperfeiçoamento da legislação ao momento enfrentado pelo convívio coletivo. Assim, é de bom tom analisar os núcleos do processo criminal e sua convergência com a instituição do Juiz das Garantias.
Ainda, é razoável observar a tríade que compõe o sistema acusatório constitucional, visto que na Constituição Federal garante-se que o julgamento deve dar-se por autoridade competente, a ação penal pública incondicionada será promovida pelo Ministério Pública e a defesa, em sua forma ampla e técnica, será realizada por sujeito distinto dos retrocitados. No entanto, sabe-se que a investigação não é fase processual, porém, as alterações do Pacote Anticrime podem trazer inovações nesse âmbito e funcionar como uma espécie de ampliação na parte defensiva.
3.1 PRINCÍPIOS EXPRESSOS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
O princípio da presunção de inocência, também chamado de não culpabilidade ou estado de inocência, possui previsão expressa no inciso LVII do art. 5º da Carta Republicana de 1988, que traz como condição para que se considere um indivíduo culpado o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. O instituto em análise encontra respaldo no art. 8º,2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.”.
Ao se pensar na propositura do Juiz das Garantias e no princípio sub oculis, salta aos olhos a conexão entre ambos, visto que uma das funções daquele seria a observância desse princípio durante o processo investigativo, de modo que o investigado não tivesse sua culpa “antecipada” antes de exauridas as medidas necessárias à apuração de sua conduta e correlação com o delito que ensejou a investigação.
No tocante a imparcialidade do juiz, esse é o bem maior a ser resguardado ao se propor a cisão entre os magistrados na persecução criminal, atuando um na fase pré-processual e outro na fase processual. Pois, objetivando proteger a imparcialidade do julgador, que seria de substancial relevância para que o Direito Penal e Processual Penal atingisse seu mister, o magistrado deveria manter-se como observador e não interveniente do procedimento, sem tomar partido em relação a qualquer um dos envolvidos. Nota-se que, ao manter-se imparcial, o magistrado deve observar e adotar como regra a presunção de inocência do investigado, de modo que, ao longo do processo deve manter-se como observador, apreciando os requerimentos, caso ocorram e decidindo conforme o que já fora colacionado aos autos, visando tornar robusto o lastro probatório.
A título de ilustração da aplicação do axioma da imparcialidade, está prevista no inciso II a recepção do auto de prisão em flagrante e o respectivo exercício da legalidade da prisão. Ora, a partir das circunstâncias apresentadas, o julgador deverá proceder, representando o interesse coletivo, acerca da restrição ou não da liberdade do acusado. Além disso, é cabível relembrar que o direito de liberdade pode ser tolhido, todavia, os demais direitos e garantias individuais previstos no ordenamento jurídico mantêm-se e devem ser observados, visto que imprescindíveis à dignidade humana.
Este princípio decorre imediatamente dos incisos XXXVII e LIII art. 5º da Lei Maior de 1988, que tratam, respectivamente, da vedação do juízo ou tribunal de exceção e garante a condução do processo e da sentença por autoridade competente (TÁVORA, 2017). Seria ele então o cerne da figura do Juiz das Garantias, justificando a separação dos julgadores e da atribuição de competências legalmente previstas, de modo que caso o procedimento adentrasse à parte processual, seguiria, teoricamente, sem mácula nas mãos de um outro julgador cuja imparcialidade havia sido conservada.
Estampado no inciso LV do art. 5º da CRFB, o princípio do contraditório possui a seguinte redação: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Sua função primordial é fornecer ao julgador todos os elementos necessários à sua convicção acerca da existência ou não do delito. Apesar disso, a doutrina e a jurisprudência entendem que o contraditório é de observância obrigatória na fase processual, não na fase investigatória, devido ao trecho “em processo judicial ou administrativo”. Destarte, nota-se que o Juiz das Garantias garante o exercício do contraditório na fase investigatória, conforme o inciso XV do art. 3º-B do CPP “quando se fizer necessário”, excluindo as diligências em andamento. Neste caso, ilustrar-se-ia uma inovação no âmbito administrativo da investigação, aumentando o alcance do contraditório nesta fase.
Decorrente do mesmo dispositivo constitucional, a ampla defesa é visualizada como um direito, uma garantia de que os envolvidos poderão contrapor-se ao que foi colacionado visando a formação da convicção do julgador, na busca da verdade real. Observa-se que resguarda não apenas os envolvidos, mas a coletividade, visto que ao descobrir o ocorrido e responder conforme as provas apresentadas é de interesse social e garante que o Estado exerça o jus puniendi adequadamente.
O juiz natural é a autoridade competente a exercer o julgamento de um indivíduo acusado da prática de determinado delito. O inciso LIII do art. 5º da CRFB tutela essa prerrogativa sob a seguinte redação: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Ora, frente a figura do Juiz das Garantias nota-se que esse princípio é passível de ser modificado pela sua implantação a nível nacional, visto que o juiz natural para processar e julgar passa a ser fisicamente distinto daquele que acompanhou os elementos investigatórios e tutelou a legalidade do procedimento até que se iniciasse a fase processual. Afinal, haveria modificação do princípio constitucional do juiz natural frente a implementação da figura em análise?
3.2 PRINCÍPIOS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS
Dentre os princípios infralegais que cercam o processo penal, alguns deles aqui expostos merecem uma análise detalhada acerca de sua correlação com a figura do Juiz das Garantias de forma a permitir um olhar integrado e com o fim de tecer comentários e indagações. São núcleos que, unidos ao constitucionalmente tutelado, regem o procedimento de investigação e, se necessário, posteriormente o de julgamento com intuito de alcançar a paz social sob as melhores condições disponíveis e em simetria sistêmica.
Sobre os princípios como componentes de um sistema processual penal que visa garantir direitos ao investigado, Ferrajoli (2002, p. 73) diz que: “Estes princípios, todos eles formuláveis como proposições de implicação ou condicionais, estão na realidade ligados entre si”. Os princípios funcionam, conforme o autor retromencionado, como formas de prescrever como deve ocorrer o sistema penal eficaz e que satisfaça o sistema penal no qual estão inseridos.
Em conformidade com o princípio do favor rei ou in dubio pro reo, em caso de dúvida, deve-se optar pela opção que favoreça o acusado, visto que na persecução criminal a matéria a ser apreciada envolve o direito de liberdade de locomoção. É mister ressaltar que uma condenação equivocada pode trazer consequências irreparáveis ao investigado em diversos âmbitos, podendo ferir sua dignidade como indivíduo. A título de exemplo, conforme menciona Távora (2017), tem-se no inciso VII do art. 386 do CPP que traz como hipótese de absolvição sumária o fato de “não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal” (BRASIL, 1941). Na situação em análise, por não se dispor de prova suficiente que embase o prosseguimento de uma possível condenação, é preferível que seja respeitado o direito de liberdade do indivíduo, mantendo-se intacta sua liberdade de locomoção.
Nas palavras de Lima (2017), embora admita-se a impossibilidade de se atingir no processo penal uma verdade absoluta, segue-se no ramo a busca da verdade. O princípio da verdade real encontra-se fundamentado no art. 156 do CPP, que em seu inciso I, que denota a importância da busca pela verdade no processo penal, visto que abre ao juiz a faculdade de, ainda em fase de investigação, determinar a produção de provas com potencial de importância considerável a fim de realizar o deslinde da situação e cuja produção possa exaurir-se pelas circunstâncias em que estão inseridas. Neste caso, valoriza-se a produção de provas que podem servir como fundamento do prosseguimento ou não da fase processual.
Ainda sobre o postulado exposto, evidente é sua busca na fase investigatória quando se atribui ao juízo das garantias a possibilidade de determinar o trancamento do inquérito policial baseando-se em ausência de fundamentos razoáveis à instauração ou prosseguimento do procedimento (IX) e poder de decidir quanto ao recebimento da denúncia ou queixa (XIV). Tão forte é a busca à satisfação deste princípio ainda na fase processual que, é dada ao julgador a força direcional a fim de que se pronuncie sobre eventual prosseguimento ou não da função estatal. Decidindo se a máquina judiciária deve ou não continuar a empreender esforços visando a elucidação de determinado fato, ou até mesmo se realmente há interesse jurídico-social em seu deslinde.
Ao observar, por exemplo, o § 4º do art. 3º-C da Lei n. 13.964/2019, que assegura o amplo acesso aos autos presentes na secretaria do juízo das garantias, salta aos olhos a presença da ampla defesa ainda em fase investigatória e a garantia de produção de provas a fim de influir no convencimento do julgador. Claro é, no caso em tela, que os princípios funcionam como um manto protetor no âmbito criminal, não apenas para o acusado, mas abraçando também o ordenamento jurídico interno e seu destinatário final, qual seja, a coletividade.
A compatibilidade principiológica é de suma importância não só do ponto de vista garantista, mas formal. É nesse tópico que cabe um olhar detalhado sobre o que traz em seu âmago o art. 3º-D, já que interfere diretamente na garantia de que o acusado deve ser julgado por um juiz natural cuja competência será definida por critérios previstos no CPP, observe-se:
Art. 3º-D. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo.
Parágrafo único. Nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo. (BRASIL, 1941)
Diante da simples leitura do artigo acima analisado, nota-se que houve o acréscimo ao rol até então observado no art. 252 do CPP. Sem embargo, tal impedimento decorre da ideia primordial que norteou a criação do Juiz das Garantias, pois este tem sua atuação somente nos atos que precedem o recebimento da inicial acusatória.
No tocante à preocupação quanto à possibilidade de mácula do princípio do juiz natural o art. 3º-E do Pacote Anticrime prescreve a observância a esse axioma sob o seguinte verbete: “O juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal” (BRASIL, 1941).
Frente ao exposto, é possível firmar as bases da discussão acerca da implementação da figura do Juiz das Garantias no Brasil e compreender as teses levantadas frente ao Supremo Tribunal Federal acerca de sua aplicação. Ora, modificar-se-á a estrutura judiciária para sua inserção? Seria esta uma forma excessiva de proteger o princípio da imparcialidade e estaria esta até então ameaçada?
4 DA VIABILIDADE DE APLICAÇÃO
Ao se falar a respeito de sistema garantista, conhecido como cognitivo ou de legalidade estrita, Ferrajoli (2002, p. 74) diz que se trata de um “modelo-limite, apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfatível”. Em seguida, lista em sua obra diversos princípios notáveis no processo penal, mas com destaque ao tema aqui abordado tem-se os seguintes axiomas: da legalidade, da jurisdicionariedade, do acusatório ou da separação entre juiz e acusação e do contraditório e ampla defesa. É coerente dizer que os postulados explicitados constituem o sistema processual penal brasileiro e são o cerne da discussão no que tange à adoção da política pública aqui esmiuçada.
Mudanças significativas, sejam em quais áreas forem, levantam questionamentos significativos e que auxiliam na consolidação da ideia inicial. Assim, diante de uma política pública com consequências a se considerar, não se poderia esperar algo diferente além do pedido de intervenção do âmbito judiciário quanto à sua aplicação. E isso se dá por diversos motivos, dentre os principais porque a medida toca o texto constitucional em pontos latentes, porque influencia em questões funcionais e porque além de executor da política pública proposta, o Judiciário é munido do dever de proteger o estabelecido na Carta Republicana, devendo agir com observância ao funcionamento sistêmico.
O art. 2º Carta de 1988 estabelece como facetas do poder que emana do povo o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, sendo independentes e harmônicos entre si. Ora, evidente a autonomia atribuída às formas de manifestação do poder democrático adotado pela nação. Para dar funcionalidade a essa previsão, é necessário que haja harmonia entre as competências distribuídas e os valores constitucionalmente consagrados, viabilizando a concretude da vontade popular alcançando seu grau máximo de eficiência, abrindo caminho para que o Estado tutele os interesses sociais.
Em harmonia com o sistema de pesos e contrapesos que norteia o Estado Democrático de Direito e zela pela sua manutenção e estabilidade, a alínea ‘b’ do inciso I do art. 96 da Carta Republicana atribui aos tribunais competência privativa para organizar os elementos que os compõem e são indispensáveis ao seu funcionamento, como secretarias, serviços auxiliares e juízos vinculados. Isto exposto, é clara a autonomia dada ao Poder Judiciário para que exerça sua autoadministração no tocante à distribuição de pessoal conforme julgue adequado. Tal organização dá-se por meio de uma Lei de Organização Judiciária.
A Lei de Organização Judiciária é prerrogativa prevista no § 1º e art. 125, caput, da Lei Maior, in verbis:
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.
§ 1º A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça. (BRASIL, 1988)
Primordialmente, observa-se que, a Lei de Organização Judiciária é atribuída aos componentes da Federação e que estes serão responsáveis por estabelecerem as competências dos tribunais. Destaca-se ainda que se trata de lei ordinária, visto que não há reserva para que a norma seja do tipo complementar e a iniciativa compete ao Tribunal de Justiça do respectivo ente. Trata-se de uma prerrogativa que permite que cada ente analise as necessidades, peculiaridades e recursos disponíveis para distribuir o judiciário de forma satisfatória em seu território, buscando a eficiência no desempenho da atividade jurisdicional.
Como reforço, a autonomia judiciária é dada pelo art. 99 da Carta Constitucional que assegura ao referido Poder autonomia administrativa e financeira. Em outras palavras, trata-se de temática que foi de interesse do constituinte originário como meio de proteção à manutenção do Estado Democrático com o intuito de evitar que um Poder atuasse sobre a gerência do outro, podendo conduzir à instabilidade institucional. Observa-se que houve um cuidado com o sistema como um todo e seu funcionamento a longo prazo de forma proporcional e equânime para que o Poder pertencente ao povo se manifeste satisfatoriamente de acordo com a função primordial de suas facetas no âmbito Executivo, Legislativo e Judiciário.
É cabível lembrar que o Juiz das Garantias é, antes de mais nada, um magistrado, e como tal, submete-se ao que foi estabelecido à sua categoria. Assim, apesar de o legislador ter-se inspirado nos dilemas processuais e proposto a figura daquele como uma política pública que viria a sanar ou atenuar o uso desmedido da imparcialidade pelos juízos penais e estender um manto protetivo ao investigado neste aspecto, o art. 93 da Constituição Federal de 1988 é claro ao estabelecer que cabe ao Supremo Tribunal Federal dispor sobre o Estatuto da Magistratura e utilizar-se de Lei Complementar, visto que é matéria reservada a esta.
Isto exposto, nota-se um vício de formalidade já que incompetente o Poder Legislativo à propositura de mudanças neste aspecto. Ainda, houve a inobservância quanto ao tipo de lei que deveria regulamentar, uma vez que se trata de matéria que deve ser disciplinada por lei complementar, por sua importância, já que se trata da maneira como um dos integrantes do Judiciário organiza-se, sendo nítido seu caráter de gestão e justificável que a propositura se dê pelo Guardião da Carta Constitucional, visto que, em tese, estaria menos propenso a causar eventuais desequilíbrios ou ferir o que foi constitucionalmente consagrado.
É oportuno examinar conjuntamente aos demais critérios o princípio da eficiência, inserto na ordem constitucional em 1998 como decorrência de uma evolução no pensamento sócio-jurídico por parte do legislador, dado que, ainda que se estabeleçam bases firmes e congruentes no macrossistema legislativo se no plano fático e de execução das medidas e políticas públicas adotadas não atingem o fito para o qual foram elaboradas, tornando a lei um mecanismo falho e agregando dissabores procedimentais e finalísticos à sociedade como um todo, mas com especial ênfase no âmbito judiciário. Afinal, sabe-se que a Magna Carta consagrou como direito fundamental de todos aqueles submetidos à ordem jurídica brasileira a razoável duração do processo, no inciso LXXVIII do seu art. 5º (CRFB), sob o seguinte comando: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Dito isto, observa-se como dever do Estado não apenas utilizar-se do processo como meio hábil de oferecer resposta a um fato que trouxe consequências jurídicas, mas fornecer meios que propiciem a agilidade a essa resolução. Dentre esses meios encontram-se, obviamente, as políticas públicas, configuradas como medidas inseridas no sistema com o propósito de aprimorá-lo e beneficiar determinada área que carecia de mudanças ou aprimoramentos.
Assim, ao implantar uma política pública, principalmente quando de cunho nacional, é mister observar se atende aos princípios regentes da administração pública, com especial ênfase em relação ao princípio da eficiência, já que, caso inobservado, culminará em letra morta e tentativa infrutífera no âmbito social.
A respeito do prazo para implantação do Juiz das Garantias, o Ministro Luiz Fux destacou a sua desproporcionalidade na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 6.298/DF, cujo resultado foi a concessão de medida cautelar em 22 de janeiro de 2020, destacando alguns pontos importantes, quais sejam: a) o imediatismo no tocante à vigência das leis processuais, sendo sua aplicação incontinenti aos atos processuais seguintes. O ponto é visceral em se tratando da implementação do Juiz das Garantias, haja vista que a atuação de um magistrado na fase persecutória o impediria de atuar na fase seguinte, exigindo uma reestruturação quanto à distribuição dos magistrados no exíguo prazo de 30 (trinta) dias situação que, conforme colocado na decisão da ADI (BRASIL, 2020, p. 20) pelo Ministro, age “causando distúrbio também no exercício de suas funções (…) uma desorganização dos serviços judiciários em efeito cascata de caráter exponencial, gerando risco de a operação da justiça criminal brasileira entrar em colapso”. Outro ponto tratado (b) é quanto ao quantitativo insuficiente de magistrado nas comarcas brasileiras e insumos operacionais visando propiciar à política pública o alcance da finalidade planejada dentro do prazo mencionado. Na sequência, o magistrado destacou a inobservância (c) das dimensões territoriais brasileiras, pontuando o fato de que muitas comarcas possuem à disposição apenas um magistrado e, além disso, a dificuldade de deslocamento destes para atender à demanda nos moldes apresentados.
De tal modo, é visível o impacto institucional e que a implantação da medida processual em análise traria ao âmbito nacional, sendo cabível a ponderação de interesses que, embora ambos sejam tutelados pelo poder público, é devida uma reflexão mais prolongada acerca de suas repercussões que, por evidente, são inviáveis de aplicação no prazo de 30 (trinta) dias pelos motivos supra expostos. A instabilidade institucional é um risco severo e um caminho arriscado a se tomar na tentativa de proteger determinado bem jurídico de forma pontual e majora o potencial de desestruturação das bases nacionais, inclusive as principiológicas.
Outro ponto apontado pelo Ministro do Supremo no tocante à adoção do Juiz das Garantias diz respeito aos argumentos de apoio à ideia, isto é, os motivos relevantes que levariam à sua implementação, dentre os quais, encontra destaque o Direito Comparado. Neste caso, utiliza-se como modelo um país que já implementou e aponta-se os pontos interessantes ao país que está analisando a adoção ou não da medida. Conquanto, o ministro destaca a necessidade de que se aponte um país com particularidades aproximadas aos do país que aprecia a medida proposta, considerando aspectos culturais e políticos, divergências de cunho contextual, doutrinário e jurisprudencial, ao que se dá o nome de cherry-picking. Em tradução livre, ‘escolhendo cerejas’, seria uma forma de induzir o país que analisa a exequibilidade da proposta a observar os pontos positivos e funcionais da sugestão apresentada, tornando-a mais atrativa.
Especificamente quanto ao impedimento, o Ministro do Supremo aponta na mesma decisão aqui esmiuçada (BRASIL, 2020, p.19) que se trata de uma norma híbrida, visto que carrega em si alterações no processo penal brasileiro e “altera direta e estruturalmente o funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do país”, o que clamaria a observância do art. 96 da Carta Magna, já que haveria deslocamento de recursos materiais e humanos para fins de materializar uma reestruturação que atenda às finalidades em foco.
Ainda debruçando-se sobre a carência generalizada da instituição da política pública sub oculis, destaca-se o fato de que não incidirá sobre as infrações penais de menor potencial ofensivo, por força do proposto no art. 3º-C da Lei n. 13.964/2019, tampouco sobre os processos cuja competência originária foi atribuída aos tribunais, sendo a lei regulamentadora a Lei n. 8.038, de 28 de maio de 1990, processos de competência do Tribunal do Júri, casos que versem sobre violência doméstica e familiar e aqueles cuja competência seja da Justiça Eleitoral, cônsono decidido na cautelar da ADI n. 6.298/DF (BRASIL, 2020, p.12).
Vale ressaltar que a essência do Direito Penal é estabelecer condutas repudiadas no convívio social, bem como a punição cabível no caso de sua ocorrência. Já o Direito Processual Penal apresenta-se como instrumento de concretização, o caminho a se percorrer para averiguar o acontecimento e suas circunstâncias, submetendo o caso a um terceiro que deve exercer o julgamento a respeito do acontecimento baseado nas provas que lhe forem apresentadas, oriundas de uma investigação nos moldes nacionalmente estabelecidos.
Frente a isto, cabe refletir se o foco protetivo da implementação do magistrado das garantias volta-se apenas a garantir o direito do indivíduo investigado, de forma isolada, desconsiderando o sistema como um todo ou se observa o interesse público de forma ampla, ou seja, abarca outros interesses sociais que se encontram igualmente latentes de providências, apresentando-se como uma medida adequada, quando observado de um ponto de vista macro e não apenas micro sistêmica.
Conforme apontou o magistrado quando da apreciação da medida cautelar da ADI n. 6.298/DF, é recomendável que haja a participação dos entes juridicamente interessados, como o Ministério Público, Defensoria Pública e do Poder Judiciário, considerando que podem munir o legislador de informações operacionais que o norteiem no que concerne à propositura da medida de forma realista e adequada ao panorama nacional e quanto à real condição do microssistema processual penal, produzindo, assim, uma política pública integrativa. Por tal motivo, considerou cabível a suspensão da implementação da medida pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias.
Expondo a complexidade da matéria, assim como seus impactos são dotados de relevante magnitude para os modus operandi dos envolvidos na seara criminal, seja em qual polo for, pois impacta a atuação dos sujeitos que compõem o processo penal e fase pré-processual, sob o argumento viável, no entanto não tão concreto do reforço protetivo acerca das garantias do investigado na persecução penal. Cabe pontuar de forma crítica e reflexiva sobre a existência ou não da harmonia diante da proposta apresentada, situação que, se fosse de fácil resolução, não clamaria intervenção do judiciário a fim de proporcionar uma pausa adequada para um estudo um pouco mais extenso. A Ação Direta de Inconstitucionalidade materializa a reação inicial dos interessados nacionalmente na matéria, mas afinal, há inconstitucionalidade?
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do estudo, interligaram-se institutos frutos do processo de evolução histórica natural do Direito, bem como sua conexão com direitos inerentes ao ser humano e a importância destes para a formação, manutenção e evolução, ainda que paulatina, da Democracia no âmbito interno. Ainda que precedente à Carta Republicana, o Código de Processo Penal brasileiro já nutria um arcabouço desejável para o alcance do sistema acusatório no país e diante de tal situação, só poderiam surgir, ao menos em tese, propostas para melhorá-lo. Posteriormente, surge a ideia de adotar uma separação entre os julgadores, uma espécie de meio de cindir ainda mais o papel do julgador no processo penal, preservando cândida sua imparcialidade, coluna dessa proposta.
Apesar da complexidade da matéria abordada no presente artigo, inicialmente, discorreu-se sintaticamente a respeito da figura do Estado, assim como a divisão da manifestação do poder que emana do povo, e exercido por seus representantes na forma tripartite Executivo, Legislativo e Judiciário, destacando-se o papel do legislador e correlacionando tais conceitos com o Estado Democrático de Direito e suas bases, assim como a importância entre os institutos Direito, Estado e Democracia facilitando a vivência pacífica no seio social. Outrossim, teceu-se breves comentários acerca da propositura do Juiz das Garantias, suas atribuições externalizadas no Código de Processo Penal e as modificações inicialmente notáveis advindas de sua propositura.
Logo após, através da seleção de princípios que exercem papel destacado quando se observa a manutenção do Processo Penal Brasileiro, pretendendo-se respeitar a ideia de garantias estabelecidas na forma do sistema acusatório, fez-se um breve contorno dos alicerces tocados pelas modificações, com maior ênfase pelo instituto em análise, visando, antes de mais nada, destacar quais premissas presentes na Magna Carta eram direta ou indiretamente atingidos, procedendo-se da mesma forma com os axiomas legais.
Em seguida, foi trazida à baila a liminar dada pelo Supremo Tribunal Federal, visando apaziguar o momento de euforia legislativa, objetivando evitar um pandemônio legal, concedendo um prazo maior direcionado à reflexão acerca das mudanças do ponto de vista do sistema processual geral, bem como oitiva dos componentes dessa mudança, levantando questionamentos e hipóteses que poderão ser decisivas quanto à escolha da adoção ou não da medida. Além disso, mencionou-se o uso da técnica denominada cherry-picking a fim de induzir à sua aplicação, destacando que o Direito Comparado nem sempre abarca as peculiaridades de cada país, sendo a suspensão, em um olhar inicial, a medida mais adequada antes de eventuais resultados de uma aplicação impulsiva.
Por certo, a figura esquadrinhada é dotada de pontos interessantes ao sistema, em especial à pessoa investigada, e obteve êxito em algumas nações nas quais foi adotada. Do ponto de vista principiológico, há identidade de ideais entre o Juiz das Garantias e diversos princípios norteadores da seara penal e também constitucional, quando elementar a essa área. No entanto, não é congruente analisar apenas sua compatibilidade com os postulados em si, mas trazer à memória a razão de ser destes. É mister relembrar que o Direito Penal materializa-se como instrumento de retributividade à ação de um indivíduo, todavia, isso não acontece de forma desorganizada, sua externalização dá-se por meio do Processo Penal. Ainda assim, as alterações feitas, em sua maioria, estendem os braços em torno da pessoa investigada de forma exacerbada, trazendo uma ideia de inversão de finalidade da seara penal que, por si só, não se justifica. Não se apresenta razoável modificar a distribuição jurisdicional adotada até o momento devido a um receio descabido de que as garantias processuais estariam sendo desrespeitadas.
Além do mais, a adoção da medida, nos termos que se apresenta hodiernamente, fere uma garantia fundamental de maior escala, que seria o princípio da inafastabilidade da jurisdição, visto que esta pode ser exercida de forma lenta, ferindo a razoável duração do processo, chegando a um limbo quanto a resposta que poderia ter sido fornecida pelo Estado em tempo hábil. Dito isto, conclui-se que se trata de uma medida incompatível do ponto de vista do sistema de princípios que compõem o Estado Democrático de Direito, pois, embora apresente um viés preventivo quanto à ocorrência de danos, traz danos maiores por outro, causando uma instabilidade na seara criminal e inviabilizando o exercício da Democracia, diminuindo até mesmo a eficiência da resposta Estatal, bem como sua celeridade.
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[1] Graduada em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).
² Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialista em Ciências Criminais pela UNISUL. Advogada com inscrição na OAB/PB. Professora universitária.