
INCLUSÃO E EFETIVIDADE: A APLICABILIDADE DAS COTAS DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA (PCDs) NO TRABALHO TEMPORÁRIO
16 de junho de 2025INCLUSION AND EFFECTIVENESS: THE APPLICABILITY OF DISABILITY QUOTAS IN TEMPORARY EMPLOYMENT IN BRAZIL
Artigo submetido em 12 de junho de 2025
Artigo aprovado em 16 de junho de 2025
Artigo publicado em 16 de junho de 2025
Cognitio Juris Volume 15 – Número 58 – 2025 ISSN 2236-3009 |
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Autor(es): Ana Paula de Almeida[1] |
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RESUMO: Este artigo analisa a aplicabilidade da política de cotas para pessoas com deficiência (PCDs) às empresas de trabalho temporário, conforme o artigo 93 da Lei nº 8.213/1991. Embora a política afirmativa busque promover a inclusão e a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, sua aplicação a esse modelo contratual suscita dúvidas quanto à efetividade da medida. A partir da análise normativa, jurisprudencial e prática, examina-se se a inclusão de pessoas contratadas sob o regime da Lei nº 6.019/1974 na base de cálculo da cota legal contribui de forma concreta para os objetivos da norma. São considerados aspectos como a transitoriedade dos vínculos, a ausência de integração ao quadro permanente das empresas fornecedoras de mão de obra, e a dificuldade de adaptação funcional e de acessibilidade nos ambientes de trabalho, sob responsabilidade das tomadoras de serviços. A análise conclui que a política de cotas, para ser efetiva neste contexto, demanda uma interpretação normativa compatível com a realidade operacional do setor, evitando que a inclusão se restrinja a uma obrigação formal. Sugere-se, por fim, a adoção de critérios normativos específicos e medidas compensatórias que viabilizem a inclusão profissional de PCDs de forma concreta, sem comprometer a segurança jurídica das empresas envolvidas.
ABSTRACT: This article examines the applicability of disability hiring quotas to companies engaged in temporary labor supply, under Article 93 of Law No. 8,213/1991. Although the affirmative policy aims to promote inclusion and equal opportunities in the labor market, its implementation in this contractual model raises questions about its effectiveness. Through a normative, jurisprudential, and practical analysis, the study assesses whether including individuals hired under Law No. 6,019/1974 in the quota calculation base effectively fulfills the law’s purpose. The article addresses key issues such as the transient nature of these contracts, the lack of integration into the permanent staff of the labor providers, and the structural limitations for implementing accessibility measures in the workplace, which are typically under the control of service recipients. The findings indicate that a literal interpretation of the quota requirement may undermine its intended outcomes. The article advocates for a normative framework that reflects the operational realities of temporary labor supply and proposes compensatory alternatives to ensure meaningful inclusion of persons with disabilities, while safeguarding legal certainty for companies.
Palavras chaves: Inclusão social; Trabalho temporário; Pessoas com deficiência (PCDs); Cotas de PCDs; Políticas afirmativas; Direito do Trabalho; Legislação trabalhista.
Keywords: Social inclusion; Temporary employment; Persons with disabilities (PWDs); Disability quotas; Affirmative policies; Labor Law; Labor legislation.
1. INTRODUÇÃO
A inclusão de pessoas com deficiência (PCDs) no mercado de trabalho é um dos pilares das políticas afirmativas voltadas à promoção da igualdade material[2] e da redução das barreiras estruturais que dificultam o acesso desses indivíduos a oportunidades dignas de emprego. No Brasil, essa inclusão é impulsionada pelo artigo 93 da Lei nº 8.213/1991[3], que estabelece a obrigatoriedade de as empresas com 100 (cem) ou mais empregados destinarem um percentual de suas vagas para pessoas com deficiência ou reabilitados da Previdência Social.
A norma tem como finalidade concretizar valores constitucionais como a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF/88[4]) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º, IV, da CF/88[5]), garantindo que PCDs tenham acesso ao mercado formal de trabalho em condições equiparadas às dos demais trabalhadores. Entretanto, a aplicação da cota a determinados segmentos empresariais suscita questionamentos jurídicos e operacionais, especialmente no contexto das empresas de trabalho temporário, cujo modelo de contratação é regido por normas próprias, estabelecidas na Lei nº 6.019/1974.
O trabalho temporário, conforme definido pela legislação, tem por finalidade atender a demandas excepcionais das empresas tomadoras de serviço, seja pela necessidade transitória de substituição de pessoal, seja para suprir acréscimos extraordinários de serviço. A peculiaridade desse regime contratual — caracterizado pela transitoriedade e pela ausência de vínculo permanente entre a pessoa contratada para a execução de trabalho temporário e a empresa fornecedora de mão de obra — suscita questionamentos sobre a compatibilidade da exigência legal de reserva de vagas para pessoas com deficiência nesse modelo de contratação.
A aplicação do artigo 93 da Lei nº 8.213/1991 às empresas de trabalho temporário esbarra em desafios interpretativos, sobretudo quanto à inclusão de pessoas contratadas sob esse regime na base de cálculo da cota legal. Como a política afirmativa visa promover a inclusão profissional em vínculos estáveis e duradouros, a contabilização de pessoas contratadas para a execução de trabalho temporário — cujos contratos possuem curta duração e alocação direta nas empresas tomadoras — pode comprometer a efetividade da medida. Esses vínculos, por sua própria natureza, não oferecem a estabilidade necessária para a inserção consistente e o desenvolvimento profissional das pessoas com deficiência. Considerando a natureza especial desse regime, há controvérsia quanto à inclusão dessas pessoas na base de cálculo da cota prevista no artigo 93 da Lei nº 8.213/91, uma vez que não integram o quadro permanente de empregados da empresa fornecedora de mão de obra.
Além disso, há um aspecto estrutural a ser considerado. As empresas de trabalho temporário atuam como intermediárias na contratação e colocação de pessoas à disposição de empresas tomadoras de serviços, que assumem a direção e o controle das atividades desempenhadas. Essa dinâmica afasta a ingerência direta das empresas fornecedoras de mão de obra sobre o ambiente laboral das pessoas contratadas sob o regime da Lei nº 6.019/1974, o que dificulta a adoção de medidas de acessibilidade e adaptação funcional compatíveis com a política de inclusão de pessoas com deficiência.
Diante desse contexto, este artigo tem como objetivo analisar a aplicabilidade das cotas de PCDs às empresas de trabalho temporário, considerando os fundamentos legais, as decisões jurisprudenciais sobre o tema e os desafios práticos enfrentados pelo setor. A análise busca demonstrar a necessidade de uma interpretação compatível com a realidade desse modelo de contratação, garantindo que a obrigação imposta pela legislação atinja seus fins de forma efetiva e equilibrada.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1. Políticas Afirmativas e a Proteção Legal das Pessoas com Deficiência (PCDs) no Trabalho
A inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho constitui uma das principais expressões das políticas afirmativas, que visam corrigir desigualdades estruturais e garantir a igualdade material.
Álvaro Ricardo de Souza Cruz[6], conceitua as ações afirmativas como:
“As ações afirmativas podem ser entendidas como medidas públicas e privadas, coercitivas ou voluntárias, implementadas na promoção/integração de indivíduos e grupos sociais tradicionalmente discriminados em função de sua origem, raça, sexo, opção sexual, idade, religião, patogenia física/psicológica, etc”
A partir desse conceito, percebe-se que as ações afirmativas não se limitam ao aspecto jurídico, mas têm uma função social mais ampla, buscando a inserção de grupos que historicamente enfrentaram barreiras para acessar direitos fundamentais, incluindo o mercado de trabalho. São medidas que podem ser temporárias ou permanentes, com o objetivo de reduzir desigualdades e garantir oportunidades efetivas.
No Brasil, a proteção às pessoas com deficiência no acesso ao mercado de trabalho se fundamenta em um arcabouço normativo robusto, com destaque para a Constituição Federal de 1988, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 6.949/2009) e a Lei nº 8.213/1991, que consagram o dever do Estado e da iniciativa privada de promover a acessibilidade e a inclusão social dessas pessoas.
A Constituição Federal consagra a proteção às pessoas com deficiência em diversos dispositivos, destacando-se o artigo 7º, XXXI[7], que proíbe qualquer discriminação em relação a salários e critérios de admissão de trabalhador portador de deficiência, e o artigo 37, VIII[8], que determina a reserva de um percentual de cargos e empregos públicos às pessoas com deficiência. O princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III) e o valor social do trabalho (artigo 1º, IV) também servem como pilares para a formulação de políticas inclusivas, conferindo respaldo constitucional à legislação infraconstitucional que disciplina a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
A principal norma que regulamenta a reserva de vagas para pessoas com deficiência no setor privado é o artigo 93 da Lei nº 8.213/1991, que estabelece percentuais mínimos de contratação conforme o porte da empresa:
“Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) de seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas com deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:
I – até 200 empregados: 2%;
II – de 201 a 500 empregados: 3%;
III – de 501 a 1.000 empregados: 4%;
IV – mais de 1.000 empregados: 5%.”
A finalidade da norma é garantir que as pessoas com deficiência tenham acesso ao emprego formal em condições igualitárias, fomentando a inclusão social e profissional por meio da promoção de um ambiente de trabalho acessível. Além de estabelecer a obrigatoriedade da reserva de vagas, a legislação impõe sanções às empresas que descumprem essa determinação incluindo a aplicação de multas administrativas e outras penalidades indiretas, como possíveis condenações em Ações Civis Públicas propostas pelo Ministério Público do Trabalho.
Contudo, a aplicação do artigo 93 da Lei nº 8.213/1991 exige uma interpretação contextualizada, levando em conta a realidade prática e operacional das empresas e a natureza do vínculo estabelecido com seus empregados.
Nesse cenário, Miguel Reale[9] leciona sobre a atividade interpretativa, destacando que: “o ato de interpretar uma lei importa, previamente, em compreendê–la na plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, desse modo, determinar o sentido de cada um de seus dispositivos. Somente assim, ela é aplicável a todos os casos que correspondam àqueles objetivos. Como se vê, o primeiro cuidado do hermeneuta contemporâneo consiste em saber qual a finalidade social da lei, no seu todo, pois é o fim que possibilita penetrar na estrutura de suas significações particulares.”
Além dessa perspectiva, a hermenêutica jurídica reforça a importância de métodos e critérios para a correta aplicação das normas. Como ensina Carlos Maximiliano[10]: “Hermenêutica é o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do direito. É a teoria científica da arte de interpretar. Interpretar é descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Determinar o sentido e o alcance das expressões do direito.”
Portanto, a interpretação normativa deve ir além da literalidade da lei, buscando sua finalidade e aplicação coerente com a realidade social e econômica.
No caso das empresas de trabalho temporário, esse aspecto ganha ainda mais relevância, uma vez que tais organizações não contam com um quadro permanente de pessoal, atuando predominantemente na intermediando de pessoas contratadas sob o regime da Lei nº 6.019/1974 para prestarem serviços às tomadoras. Diante desse contexto, José Pastore[11] destaca a importância da flexibilidade na implementação da inclusão, ressaltando que:
“Nos últimos 30 anos, o sistema de cotas evoluiu bastante na direção da flexibilidade. Em muitos países, a contratação de portadores de deficiência mais severa dá as empresas a possibilidade de contá-los em dobro ou em triplo. Em outros, certas atividades são excluídas da obrigatoriedade da cota (construção civil, mineração, trabalho a bordo e outras). Nesses casos, o número de posições existentes nessas atividades é descontado do total da força de trabalho da empresa.”
Essa observação reforça a necessidade de uma análise aprofundada sobre a compatibilidade da cota de PCDs com o regime jurídico do trabalho temporário. O desafio está em conciliar a obrigação legal com a realidade desse modelo de contratação, garantindo que a inclusão ocorra de forma efetiva e sem comprometer a viabilidade do setor.
Dessa forma, a aplicação da cota no trabalho temporário não pode se restringir a uma leitura literal da norma, mas deve considerar sua efetividade real e os desafios práticos envolvidos no cumprimento da política afirmativa. A hermenêutica jurídica, ao direcionar a interpretação das leis para sua finalidade social e para a coerência com o contexto em que se inserem, impõe a necessidade de uma aplicação normativa que preserve tanto o princípio da inclusão quanto a sustentabilidade desse regime de contratação.
2.2. O Trabalho Temporário e Sua Regulamentação na Legislação Brasileira
O trabalho temporário é uma modalidade especial de contrato de trabalho prevista na Lei nº 6.019/1974, que tem por finalidade atender a necessidades transitórias das empresas tomadoras de serviço. De acordo com o artigo 2º da referida lei:
“Art. 2o – Trabalho temporário é aquele prestado por pessoa física contratada por uma empresa de trabalho temporário que a coloca à disposição de uma empresa tomadora de serviços, para atender à necessidade de substituição transitória de pessoal permanente ou à demanda complementar de serviços.” (Redação dada pela Lei nº 13.429, de 2017)
O regime jurídico do trabalho temporário difere significativamente do contrato de trabalho comum, sobretudo em relação à sua duração e às partes envolvidas na relação contratual, como explica Carlos Henrique Bezerra Leite[12]:
“O trabalho temporário, pois, envolve três pessoas: a) a empresa tomadora do serviço (também chamada empresa cliente); b) a empresa de trabalho temporário, que é a prestadora desse serviço; e c) o trabalhador temporário, que é designado pela empresa de trabalho temporário para prestar serviços transitórios para a empresa tomadora (ou cliente).”
Nesse modelo, a prestação de serviços ocorre por meio de uma empresa de trabalho temporário, que contrata a pessoa para a execução de trabalho de natureza transitória e a coloca à disposição de uma empresa tomadora. A duração do contrato está vinculada à necessidade que lhe dá causa, respeitado o limite máximo de 180 dias, prorrogáveis por mais 90 dias, nos termos do artigo 10 da Lei nº 6.019/1974[13], com a redação dada pela Lei nº 13.429/2017.
A pessoa contratada sob o regime da Lei nº 6.019/1974 possui vínculo empregatício com a empresa de trabalho temporário, mas não integra o quadro permanente desta, tampouco da empresa tomadora de serviços. Durante o período em que presta serviços, submete-se ao poder diretivo da empresa tomadora, que determina suas funções, supervisiona sua realização e assegura as condições de segurança, higiene e salubridade, conforme previsto nos artigos 55 e 58, do Decreto nº 10.854/2021[14]. Ao final do contrato, com o encerramento da necessidade transitória que justificou a contratação, o vínculo se extingue automaticamente, sem direito à estabilidade ou à continuidade da relação de trabalho, salvo as exceções previstas em lei ou reconhecidas pela jurisprudência.
Ressalta-se que o vínculo jurídico estabelecido não equivale ao contrato tradicional regido pela CLT, considerando as especificidades do regime da Lei nº 6.019/1974. Isto é, diferentemente do contrato de trabalho comum, essa modalidade se caracteriza pela transitoriedade do vínculo e pela ausência de vínculo permanente entre a pessoa contratada para a execução de trabalho e a empresa fornecedora de mão de obra.
Essa peculiaridade do trabalho temporário levanta a questão da aplicabilidade da cota de PCDs a essa modalidade contratual. Se a finalidade da política afirmativa é garantir a inclusão da pessoa com deficiência em vínculos de trabalho estáveis e contínuos, faz sentido exigir que as empresas de trabalho temporário cumpram a cota legal considerando pessoas contratadas de forma transitória, que não integram seu quadro permanente?
A exigência de que as empresas de trabalho temporário cumpram integralmente a cota de PCDs precisa ser analisada sob a ótica da razoabilidade e da segurança jurídica, evitando distorções que possam comprometer tanto a finalidade da norma — que visa à inclusão social das pessoas com deficiência — quanto a dinâmica operacional desse setor.
Dessa forma, o cumprimento da cota deve ser interpretado à luz de um critério que equilibre os meios e os fins da norma, assegurando que sua aplicação esteja em conformidade com as especificidades do regime de trabalho temporário. Nesse contexto, a hermenêutica jurídica exerce um papel essencial, pois permite uma leitura que não apenas respeite o texto legal, mas que também leve em consideração sua função social e sua efetividade prática, garantindo a inclusão sem desconsiderar as limitações inerentes ao modelo de contratação temporária. Como leciona Tércio Sampaio Ferraz Júnior[15]:
“A doutrina subjetivista insiste em que, sendo a ciência jurídica um saber dogmático (a noção de dogma enquanto um princípio arbitrário, derivado de vontade do emissor de norma que lhe é fundamental), é, basicamente, uma compreensão do pensamento do legislador; portanto, interpretação ex tunc (desde então, isto é, desde o aparecimento da norma pela positivação da vontade legislativa), ressaltando-se, em consonância, o papel preponderante do aspecto genético e das técnicas que lhe são apropriadas (método histórico). Já para a doutrina objetivista, a norma goza de um sentido próprio, determinado por fatores objetivos (o dogma é um arbítrio social), independente até certo ponto do sentido que lhe tenha querido dar o legislador, donde a concepção da interpretação como uma compreensão ex nunc (desde agora, isto é, tendo em vista a situação e o momento atual de sua vigência), ressaltando-se o papel preponderante dos aspectos estruturais em que a norma ocorre e as técnicas apropriadas a sua captação.”
O princípio da proporcionalidade e da razoabilidade também desempenha um papel fundamental na interpretação das normas jurídicas, exigindo que sua aplicação seja equilibrada e compatível com os fins que se pretende alcançar. Esse entendimento é reforçado pelo Ministro Maurício Godinho Delgado, do Tribunal Superior do Trabalho (TST) ao afirmar que “Nessa linha, pelo princípio da proporcionalidade e razoabilidade, os comandos resultantes das normas jurídicas devem ser interpretados segundo critério que pondere o adequado equilíbrio entre meios e fins a elas vinculados, através de um juízo de verossimilhança, sensatez e ponderação.” [16]
Dessa forma, a interpretação das normas relacionadas à cota de PCDs no trabalho temporário deve considerar não apenas a literalidade da lei, mas também a sua efetividade prática, garantindo que a inclusão ocorra de maneira viável e condizente com a dinâmica desse modelo de contratação.
3. A APLICABILIDADE DA COTA DE PCDS ÀS EMPRESAS DE TRABALHO TEMPORÁRIO
3.1. O Objetivo da Cota Legal e a sua Compatibilidade com o Trabalho Temporário
A política de reserva de vagas para pessoas com deficiência, prevista no artigo 93 da Lei nº 8.213/1991, tem como principal objetivo promover a desse grupo no mercado formal de trabalho, assegurando-lhes acesso a empregos estáveis e oportunidades de desenvolvimento profissional. A norma reflete o compromisso do ordenamento jurídico com a efetivação do princípio da igualdade material, garantindo que pessoas com deficiência tenham condições equitativas de acesso ao emprego e promovendo a diversidade no ambiente de trabalho.
Contudo, quando essa exigência é aplicada às empresas de trabalho temporário, surgem questionamentos sobre sua compatibilidade com a natureza desse modelo de contratação.
O princípio da função social da empresa, previsto no artigo 170, III, da CF/88[17], reforça o dever das empresas de contribuir para a inclusão e o bem-estar social. Contudo, esse princípio deve ser interpretado de forma equilibrada, levando em consideração não apenas a responsabilidade social da empresa, mas também sua viabilidade econômica e a realidade operacional de suas atividades.
O trabalho temporário, regulamentado pela Lei nº 6.019/1974, tem como característica essencial a transitoriedade dos vínculos empregatícios, sendo utilizado para suprir demandas específicas das empresas tomadoras de serviço. Nesse modelo, a pessoa contratada sob o regime da referida lei é admitida para atender a uma necessidade temporária — como a substituição de pessoal permanente ou o acréscimo extraordinário de serviços, —, sendo dispensada quando cessada essa necessidade, respeitados os limites de duração previstos em lei.
Diante dessa realidade, a exigência de cumprimento da cota de PCDs pelas empresas de trabalho temporário pode não atingir plenamente sua finalidade, uma vez que a curta duração das contratações sob esse regime dificulta a inclusão efetiva e contínua de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. A inserção dessas pessoas no ambiente laboral pressupõe medidas estruturais e funcionais, — como acessibilidade, adaptação do posto de trabalho e capacitação contínua, —, que se tornam mais difíceis de implementar em um modelo marcado pela alta rotatividade e pela realocação frequente entre diferentes empresas tomadoras de serviço.
Outro ponto crítico é a estabilidade necessária para a inclusão profissional das pessoas com deficiência. O artigo 93 da Lei nº 8.213/1991 pressupõe que os beneficiários da cota tenham continuidade na relação trabalho, de modo a possibilitar o desenvolvimento de habilidades, a participação em programas de capacitação e a adaptação ao ambiente laboral. No entanto, a natureza transitória do contrato regulado pela Lei nº 6.019/1974 não assegura essa possibilidade, o que gera dúvidas sobre a efetividade da política afirmativa nesse contexto.
A verdadeira inclusão vai além da contratação formal; ela exige condições concretas para que a pessoa com deficiência se desenvolva e cresça profissionalmente. A transitoriedade inerente ao trabalho temporário pode comprometer essa finalidade, transformando o cumprimento da cota em um procedimento meramente estatístico, sem impacto real na trajetória profissional dessas pessoas.
Portanto, a exigência de cumprimento da cota de PCDs pelas empresas de trabalho temporário deve ser analisada sob o prisma da proporcionalidade e razoabilidade, ponderando se a inclusão de pessoas contratadas sob esse regime na base de cálculo realmente contribui para os objetivos da norma ou se resulta apenas em uma obrigação formal, desprovida de eficácia social significativa.
3.2. A Base de Cálculo da Cota e o Papel das Empresas de Trabalho Temporário
A obrigatoriedade de cumprimento da cota de PCDs está vinculada ao número total de empregados da empresa, conforme estabelece o artigo 93 da Lei nº 8.213/1991. No entanto, no caso das empresas de trabalho temporário, a composição dessa base de cálculo gera controvérsias, uma vez que a maior parte das pessoas contratadas por essas empresas não integra um quadro fixo, sendo admitidas exclusivamente para a execução de atividades temporárias em benefício de terceiros.
As empresas de trabalho temporário possuem um quadro administrativo fixo e reduzido, responsável pela gestão da intermediação de mão de obra temporária. Contudo, a maior parte das pessoas por elas contratadas é admitida exclusivamente para atender demandas específicas das empresas tomadoras de serviço, sem integração ao quadro permanente da fornecedora de mão de obra (empresa de trabalho temporário).
A controvérsia reside no fato de que a pessoa contratada sob o regime da Lei nº 6.019/1974 não integra o quadro permanente da empresa de trabalho temporário, uma vez que é alocada nas empresas tomadoras de serviço e submetida ao poder diretivo destas. Nesse contexto, a exigência de cumprimento da cota de PCDs considerando essas contratações desconsidera a realidade operacional da empresa fornecedora de mão de obra, que, embora formalmente responsável pelo vínculo jurídico, não exerce controle sobre a gestão diária das atividades desempenhadas pelas pessoas contratadas sob esse regime. Essa desconexão entre a obrigação legal e a dinâmica contratual pode comprometer a coerência e a efetividade da política afirmativa.
Um argumento relevante nesse debate é a analogia com a exclusão da pessoa contratada sob o regime da Lei nº 6.019/1974 da base de cálculo da cota de aprendizes. O Decreto nº 11.479/2023[18], ao regulamentar a aprendizagem profissional, expressamente excluiu essa modalidade contratual da base de cálculo da respectiva cota, sob a justificativa de que não atende à sua finalidade, que pressupõe continuidade e formação técnico-profissional. Aplicando a mesma lógica, a inclusão de pessoa contratada para a execução do trabalho temporário na base de cálculo da cota de PCDs poderia contrariar a essência da política afirmativa, voltada à promoção da inclusão, da estabilidade e do desenvolvimento profissional em médio e longo prazo, — requisitos dificilmente compatíveis com o trabalho temporário.
Ademais, o Decreto nº 10.854/2021[19], ao regulamentar diversas normas trabalhistas, reforça a distinção entre os contratos regidos pela Lei nº 6.019/1974 e os vínculos empregatícios típicos, ao estabelecer que o poder diretivo , no caso do trabalho temporário, é exercido pela empresa tomadora de serviços, e não pela empresa fornecedora de mão de obra. Esse dispositivo fortalece o entendimento de que a empresa de trabalho temporário não detém controle efetivo sobre o ambiente e a dinâmica da prestação dos serviços, o que fragiliza a atribuição de responsabilidade pelo cumprimento da cota de PCDs.
Diante desse cenário, torna-se essencial analisar a aplicação da cota de PCDs de forma compatível com a realidade das empresas de trabalho temporário, garantindo que a política afirmativa seja implementada de maneira eficaz, sem desconsiderar as especificidades desse modelo contratual.
3.3. Desafios Práticos na Aplicação da Cota de PCDs ao Trabalho Temporário
Além das questões jurídicas, a aplicação da cota de PCDs às empresas de trabalho temporário enfrenta dificuldades operacionais que podem comprometer sua efetividade. Entre os principais desafios práticos, destacam-se:
- Alta rotatividade e limitação temporal da contratação: A contratação sob o regime da Lei nº 6.019/1974 está vinculada à duração da necessidade transitória que a justifica, observados os limites legais de até 270 dias. Esse fator dificulta a adaptação do ambiente de trabalho às necessidades das pessoas com deficiência, bem como a implementação de programas de inclusão e qualificação profissional, reduzindo a efetividade da política afirmativa.
- Ausência de controle direto pela empresa de trabalho temporário: As pessoas contratadas sob o regime da Lei nº 6.019/1974 atuam nas dependências da tomadora de serviços e seguem suas diretrizes operacionais. Por esse motivo, a fornecedora de mão de obra não exerce ingerência direta sobre o ambiente laboral, o que dificulta a implementação de medidas de acessibilidade e adaptação necessárias à efetiva inclusão de pessoas com deficiência.
- Dificuldade de monitoramento da cota: Como as pessoas contratadas sob o regime da Lei nº 6.019/1974 são constantemente realocados para diferentes empresas tomadoras, a aferição do percentual exigido pela legislação torna-se um desafio. Diferentemente das empresas com quadro permanente, em que o número de empregados se mantém relativamente estável, a flutuação da força de trabalho nessas contratações inviabiliza a definição e o acompanhamento de uma cota fixa de PCDs, tornando o cumprimento da exigência legal ainda mais complexo.
Diante dessas dificuldades, a exigência de cumprimento da cota de PCDs pelas empresas de trabalho temporário evidencia um impasse normativo: se, por um lado, a política afirmativa visa promover inclusão e desenvolvimento profissional, por outro, a natureza transitória das contratações previstas na Lei nº 6.019/1974 pode comprometer esses objetivos. Nesse contexto, a interpretação da norma não deve se restringir a um viés estritamente formalista, mas considerar se a imposição da cota nesse modelo contratual de fato concretiza a inclusão ou apenas resulta uma obrigação meramente quantitativa, sem efetividade social.
Essa questão tem sido objeto de controvérsia no campo jurídico, com entendimentos divergentes sobre como compatibilizar os princípios da inclusão social e da razoabilidade. Portanto, é necessário examinar como a jurisprudência têm se posicionado, a fim de compreender se há margem para uma interpretação mais coerente com a realidade das empresas de trabalho temporário e os objetivos da legislação trabalhista.
4. INTERPRETAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA SOBRE A APLICAÇÃO DA COTA DE PCDS AO TRABALHO TEMPORÁRIO
4.1. O Entendimento dos Tribunais do Trabalho sobre a Aplicação da Cota de PCDs no Trabalho Temporário.
A obrigatoriedade de cumprimento da cota de PCDs pelas empresas de trabalho temporário tem sido analisada pelos tribunais trabalhistas sob diferentes perspectivas, especialmente no que se refere à compatibilidade dessa exigência com a natureza transitória das contratações previstas na Lei nº 6.019/1974. Embora a legislação não estabeleça distinção expressa entre essas contratações e os vínculos empregatícios típicos para fins de apuração da cota, as decisões judiciais têm interpretado a matéria à luz dos princípios da razoabilidade, da inclusão social e da finalidade da norma.
Uma linha de entendimento sustenta que a cota deve ser observada com base apenas nas pessoas que integram o quadro permanente da empresa de trabalho temporário, excluindo-se da apuração aquelas contratadas a execução de trabalho temporário junto a terceiros. Esse posicionamento fundamenta-se na incompatibilidade entre a natureza transitória dessas contratações e os pressupostos da política afirmativa, que visa à inclusão contínua e ao desenvolvimento profissional em contextos de maior estabilidade — elementos ausentes nesse modelo contratual. Tal interpretação tem sido adotada em decisões judiciais, como se observa nos seguintes casos:
“O trabalho temporário, ajustado por prazo determinado, não se coaduna com a finalidade das cotas previstas no artigo 93 da Lei nº 8.213/1991, uma vez que essas relações transitórias não garantem a estabilidade e a adaptação necessárias para a inclusão efetiva das pessoas com deficiência no mercado de trabalho.” (TRT-12 – ROT: 00001844220225120028, Relator: MARCOS VINICIO ZANCHETTA, 4ª Câmara, Data de Publicação: 16/06/2023)
“A aplicação literal do artigo 93 da Lei nº 8.213/1991 às empresas de trabalho temporário desconsidera a peculiaridade desse modelo de contratação, que não se confunde com a relação empregatícia tradicional. A inclusão de trabalhadores temporários na base de cálculo da cota comprometeria a efetividade da política afirmativa, pois a constante rotatividade desses vínculos inviabiliza a adaptação ao ambiente de trabalho e a permanência necessária para que a inclusão seja real e não meramente estatística.” (TRT-9 – ROT: 00010334220175090652, Relator: ARCHIMEDES CASTRO CAMPOS JUNIOR, 5ª Turma, Data de Publicação: 22/05/2019)
Por outro lado, há decisões que defendem a inclusão das pessoas contratadas sob o regime da Lei nº 6.019/1974 na base de cálculo da cota de PCDs, sob o argumento de que a legislação não estabelece prevê exceções quanto à modalidade contratual. Segundo essa interpretação, a exclusão dessas contratações poderia restringir o alcance da política de inclusão, contrariando o objetivo normativo de ampliar as oportunidades de trabalho para pessoas com deficiência.
“A norma que estabelece a reserva de vagas para pessoas com deficiência não distingue entre empregados permanentes e temporários, razão pela qual a empresa de trabalho temporário deve observar o percentual mínimo exigido pelo artigo 93 da Lei nº 8.213/1991.” (AIRR – 2047-02.2012.5.02.0371, Relator Ministro: Mauricio Godinho Delgado, Data de Julgamento: 16/08/2017, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 08/09/2017)
O entendimento acima, contudo, não foi unânime entre os julgadores da 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST). O ministro Agra Belmonte apresentou voto divergente, argumentando que o trabalho temporário constitui uma modalidade contratual especial, voltada à execução de atividades transitórias e sem integração ao quadro permanente da empresa fornecedora, motivo pelo qual não deveria ser considerado na base de cálculo da cota de PCDs:
“Dessa forma, não é difícil concluir-se que o contrato temporário constitui-se numa modalidade especial de contratação, não sendo o trabalhador considerado empregado nem da empresa tomadora e nem da prestadora e, em consequência, não está obrigada a empresa prestadora, no caso concreto, a cumprir com as exigências do artigo 93 da Lei 8.213/91, no tocante ao preenchimento das cotas para pessoas portadoras de deficiência.
Aliás, nesse sentido foi a decisão do Juízo de primeiro grau, reformada pela Corte Regional, conforme se constata às fls. 210-212. Ante o exposto DIVIRJO do voto do Ministro Relator (Maurício Godinho Delgado), que nega provimento ao agravo de instrumento, e, por vislumbrar violação do artigo 93 da Lei 8.213/91, DOU PROVIMENTO ao agravo de instrumento da empresa SELLAN Consultoria Trabalhos Temporários Ltda. (autora na ação anulatória) para determinar o processamento do recurso de revista e, apreciando-o, DOU-LHE PROVIMENTO para restabelecer a sentença que declarou “nulo o auto de infração, por incluir na conta os trabalhadores temporários” (fl. 213).”
Essas divergências evidenciam a necessidade de uma interpretação que compatibilize a política afirmativa com a realidade do trabalho temporário, garantindo a efetividade da inclusão sem distorções na aplicação da norma.
4.2. Tendências Jurisprudenciais e Possíveis Caminhos para a Solução da Controvérsia
A divergência de entendimentos nos tribunais evidencia que a aplicabilidade da cota de PCDs às empresas de trabalho temporário permanece indefinida na jurisprudência, gerando insegurança jurídica para os empregadores e desafios na fiscalização da norma.
A análise dos precedentes judiciais revela a existência de duas correntes interpretativas sobre o tema. A primeira sustenta que, na ausência de previsão legal específica, não haveria fundamento jurídico para excluir as pessoas contratadas sob o regime da Lei nº 6.019/1974 da base de cálculo da cota de PCDs. A segunda corrente, por sua vez, argumenta que a transitoriedade dessas contratações inviabiliza a inclusão efetiva de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, tornando a exigência da cota incompatível com esse modelo contratual. Considerando a natureza especial desse regime e o fato de que essas pessoas não integram o quadro permanente da empresa fornecedora de mão de obra, a controvérsia sobre sua inclusão na base de cálculo da cota prevista no artigo 93 da Lei nº 8.213/91 permanece aberta na jurisprudência.
Do ponto de vista da finalidade da norma, a política afirmativa prevista no artigo 93 da Lei nº 8.213/1991 busca promover a inclusão e o desenvolvimento profissional de pessoas com deficiência. No entanto, sua aplicação às empresas de trabalho temporário pode resultar em um cumprimento meramente estatístico, sem assegurar condições efetivas de estabilidade, adaptação e crescimento profissional para as pessoas contratadas sob esse regime.
A interpretação mais compatível com os princípios da razoabilidade e da inclusão social é aquela que reconhece as especificidades do trabalho temporário, afastando a obrigatoriedade de inclusão das pessoas contratadas sob esse regime na base de cálculo da cota de PCDs, ou, ao menos, permitindo alternativas viáveis para o seu cumprimento.
Diante desse cenário, algumas diretrizes podem contribuir para compatibilizar a política afirmativa com as especificidades do trabalho temporário, promovendo maior segurança jurídica e efetividade na inclusão de pessoas com deficiência:
- Regulamentação específica: A ausência de normatização clara tem gerado interpretações divergentes nos tribunais. A edição de um decreto regulamentador ou uma eventual alteração legislativa poderia estabelecer critérios objetivos sobre a inclusão – ou não — das pessoas contratadas sob o regime da Lei nº 6.019/1974 na base de cálculo da cota de PCDs. Atualmente, projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional discutem ajustes na política de cotas, incluindo propostas voltadas ao trabalho temporário. O PL nº 6.159/2019, por exemplo, prevê a exclusão das pessoas disponibilizadas para terceiros da base de cálculo da cota, enquanto o PL nº 5.567/2016 propõe que apenas os empregados da área administrativa sejam considerados para fins de cumprimento da obrigação legal. Já o PL nº 4.702/2023 sugere a flexibilização da exigência, condicionando sua aplicação à inexistência de candidatos habilitados dentro de um prazo determinado.
- Interpretação teleológica da norma: A adoção uma leitura orientada pela finalidade da política afirmativa permitiria avaliar se a inclusão das pessoas contratadas sob o regime da Lei nº 6.019/1974 efetivamente contribui para a inserção profissional de pessoas com deficiência ou se presenta apenas um cumprimento formal de uma exigência legal, sem impacto concreto.
- Flexibilização para o setor: Considerando as particularidades do trabalho temporário, poderia ser admitida uma abordagem diferenciada, permitindo que as empresas cumpram a cota por meio de medidas compensatórias, como programas de capacitação para pessoas com deficiência, incentivos à sua contratação direta pelas empresas tomadoras de serviço ou parcerias com instituições especializadas no desenvolvimento e inclusão profissional de PCDs.
A uniformização do entendimento sobre a aplicação da cota de PCDs às empresas de trabalho temporário é fundamental para assegurar segurança jurídica aos empregadores e garantir que a política afirmativa seja implementada de forma eficiente, compatível com as especificidades desse modelo contratual e alinhada aos objetivos de inclusão social.
A adoção de uma interpretação equilibrada da norma evita que a política de cotas seja aplicada de maneira descontextualizada, desconsiderando a realidade operacional das empresas fornecedoras de mão de obra temporária. A harmonização entre inclusão e viabilidade jurídica é essencial para que exigência legal produza efeitos concretos, promovendo uma inserção profissional efetiva e socialmente relevante para as pessoas com deficiência.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho é um princípio fundamental da política afirmativa brasileira, consagrado no artigo 93 da Lei nº 8.213/1991. A exigência de reserva de vagas tem por finalidade assegurar igualdade de oportunidades, promover o desenvolvimento profissional e viabilizar a inserção dessas pessoas no ambiente laboral de forma estável e contínua. No entanto, a aplicação dessa obrigação às empresas de trabalho temporário suscita desafios interpretativos e operacionais, especialmente em razão da natureza transitória das contratações regidas pela Lei nº 6.019/1974 e da ausência de regulamentação específica sobre o tema.
A análise da jurisprudência revela a falta de uniformidade na interpretação da norma. Enquanto parte dos julgados defende a inclusão das pessoas contratadas sob o regime da Lei nº 6.019/1974 na base de cálculo da cota, sob o argumento de que não há fundamento legal para sua exclusão, outra corrente sustenta que a transitoriedade dessas contratações compromete a adaptação e o desenvolvimento profissional necessários para a efetividade da política afirmativa.
Diante da ausência de pacificação sobre a matéria, torna-se essencial a adoção de critérios normativos mais claros, — seja por meio da edição de regulamentação específica, seja pela consolidação de uma interpretação jurisprudencial coerente com a finalidade da política afirmativa. A flexibilização da política de cotas no contexto do trabalho temporário, mediante a adoção de medidas compensatórias, como programas de capacitação profissional, parcerias com instituições especializadas ou incentivos à contratação direta pelas empresas tomadoras, pode representar uma alternativa viável para equilibrar inclusão social e segurança jurídica.
Assim, a compatibilização da política de cotas com o modelo de trabalho temporário exige uma abordagem que transcenda o formalismo normativo e privilegie a efetividade da inclusão social. O aprimoramento legislativo e jurisprudencial sobre o tema é indispensável para assegurar que a reserva legal de vagas seja aplicada de modo eficaz, respeitando as especificidades do trabalho temporário e promovendo impactos concretos na empregabilidade das pessoas com deficiência.
REFERÊNCIAS
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CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas com deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
DELGADO, Maurício Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2017. p. 144.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 268.
FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O trabalho da pessoa com deficiência e a lapidação dos direitos humanos: o direito do trabalho, uma ação afirmativa. São Paulo: LTr, 2006.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho. 12. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
MADRUGA, Sidney. Pessoas com deficiência e direitos humanos: ótica da diferença e ações afirmativas. São Paulo: Saraiva, 2013.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 1.
PASTORE, José. Oportunidades de trabalho para portadores de deficiência. São Paulo: LTr, 2001.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 285.
SALLES, Raquel Bellini de Oliveira (Org.); PASSOS, Aline Araújo (Org.); LAGE, Juliana de Sousa Gomes (Org.). Direito, vulnerabilidade e pessoa com deficiência. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019.
[1] Mestranda em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Associada sênior do time trabalhista do escritório Pinheiro Neto Advogados.
[2]“[…] no Estado social, conquanto o direito à liberdade tenha permanecido íntegro, a relevância do direito à igualdade foi substancialmente acentuada, de tal sorte que o seu conceito passou a ter um sentido material, e não mais meramente formal. A garantia de igualdade no Estado social demanda, pois, atuação positiva, com a finalidade de reduzir as desigualdades socioeconômicas, mediante a distribuição equitativa de recursos.” CANELA JUNIOR, Osvaldo. Controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 51.
[3] “Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:
I – até 200 empregados……………………………………………………………………………….2%;
II – de 201 a 500…………………………………………………………………………………………3%;
III – de 501 a 1.000……………………………………………………………………………………..4%;
IV – de 1.001 em diante. ……………………………………………………………………………..5%.
V – (VETADO)”
[4] “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana.”
[5] “IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.”
[6] CRUZ, Á. R. de S. O direito à diferença. As ações afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e pessoas portadoras de deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
[7] “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXXI – proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência.”
[8] “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão.”
[9] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 285.
[10] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 01.
[11] PASTORE, José. Oportunidades de trabalho para portadores de deficiência. São Paulo: LTr, 2001.
[12] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho. 12. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 218.
[13]“Art. 10. Qualquer que seja o ramo da empresa tomadora de serviços, não existe vínculo de emprego entre ela e os trabalhadores contratados pelas empresas de trabalho temporário. (Redação dada pela Lei nº 13.429, de 2017)
§ 1º. O contrato de trabalho temporário, com relação ao mesmo empregador, não poderá exceder ao prazo de cento e oitenta dias, consecutivos ou não. (Incluído pela Lei nº 13.429, de 2017)
§ 2º. O contrato poderá ser prorrogado por até noventa dias, consecutivos ou não, além do prazo estabelecido no § 1o deste artigo, quando comprovada a manutenção das condições que o ensejaram. (Incluído pela Lei nº 13.429, de 2017)”
[14]“Art. 55. É responsabilidade da empresa tomadora de serviços ou cliente garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores quando o trabalho for realizado em suas dependências ou em local por ela designado.
Art. 58. A empresa tomadora de serviços ou cliente exercerá o poder técnico, disciplinar e diretivo sobre os trabalhadores temporários colocados à sua disposição;”
[15] FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 268.
[16] DELGADO, Maurício Godinho. Princípios de direito individual e coletivo do trabalho. São Paulo: LTr, 2017, p. 144.
[17]“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
III – função social da propriedade”
[18]“Art. 54. Ficam excluídos do cálculo da porcentagem do número de aprendizes a que se refere o caput do art. 51:
I – os empregados que executem os serviços prestados sob o regime de trabalho temporário instituído pela Lei nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974.”
[19]“Art. 58. A empresa tomadora de serviços ou cliente exercerá o poder técnico, disciplinar e diretivo sobre os trabalhadores temporários colocados à sua disposição.”