FUNÇÃO SOCIAL E SOLIDÁRIA DA EMPRESA: IMPORTÂNCIA DO ACESSO AO CRÉDITO NA LEI 14.112/20 NA PANDEMIA DO COVID-19
28 de julho de 2022SOCIAL AND SOLIDARITY FUNCTION OF THE COMPANY: IMPORTANCE OF ACCESS TO CREDIT IN LAW 14.112/20 IN THE COVID-19 PANDEMIC
Cognitio Juris Ano XII – Número 41 – Edição Especial – Julho de 2022 ISSN 2236-3009 |
Autores: Sandro Marcos Godoy Mário Junio Gonçalves dos Santos Samuel Pedro Custodio Oliveira |
RESUMO: O artigo objetiva analisar a importância da empresa para sociedade, contextualizando a sua relação com a Ordem Econômica, com fulcro central no acesso ao crédito introduzido pela Lei 14.112/2020 como ferramenta para cumprimento da função social e solidária da empresa. O problema de pesquisa está na crise econômico-financeira e sanitária gerada pela pandemia do COVID-19 afetou a economia mundial, sendo necessário nesse momento a intervenção do Estado para manutenção das empresas. As disposições contidas na nova Lei de eram insuficientes para garantir segurança jurídica para o financiador de uma empresa em recuperação judicial e com advento na Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falências, com isso, conclui-se que os mecanismos foram criados para garantir o acesso ao crédito com segurança e auferir mais celeridade, com aumento das possibilidades de garantias e mais opções de agentes econômicos para financiar. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica com o método dedutivo.
Palavras-chave: Função social da empresa; Lei 14.112/2020; Recuperação Judicial.
ABSTRACT: The article aims to analyze the importance of the company towards the society, contextualizing its relationship with the Economic Order, with a central focus on access to credit introduced by the Law 14.112/2020 as a tool to fulfill the social and solidarity function of the company. The research problem lies in the economic-financial and health crisis created by the COVID-19 pandemic that affected the world economy, requiring State intervention to maintain business “as usual”. The provisions contained within the new Law were insufficient to secure legal certainty to the financier of a company that is in judicial recovery. With the enactment of the Judicial and Extrajudicial Bankruptcy Recovery Law, it is concluded that mechanisms were created to access credit safely and faster, with increased possibilities for guarantees and more options for economic agents to finance the recuperation. The methodology used was the bibliographic research with the deductive method.
Keywords: Social function of the company; Law 14.112/2020; Judicial recovery.
INTRODUÇÃO
Com a evolução concomitante do direito e da sociedade, a teoria da empresa é hodiernamente erigida sob a premissa da função social e solidária da empresa em harmonia com os ditames constitucionais, visando auferir o máximo de benefícios econômicos e sociais.
Destarte, a relação empresa e sociedade possui uma importância simétrica em razão das externalidades positivas geradas pela atividade empresarial: mais empregos, maiores são as oportunidades de mobilidade social e de erradicação da pobreza, além da arrecadação de receitas para os cofres públicos por meio dos impostos para subsidiar as políticas públicas, sem olvidar que o bem-estar social é alcançado, dentre diversos fatores, também por meio acesso ao trabalho que garante dignidade da pessoa humana.
Partindo dessa inferência, a problemática de pesquisa do presente artigo incide em: qual é a importância do acesso ao crédito para a empresa em um momento de crise econômico-financeira? A importância do tema está vinculada com a crise exacerbada pelo contexto da pandemia do Coronavírus, SARS-CoV-2 (COVID-19).
Desse modo, a pesquisa objetiva analisar a importância da empresa para sociedade, contextualizando a sua relação com a Ordem Econômica e relacionando a importância do acesso ao crédito para manutenção de um negócio viável e cumprimento da função social e solidária, bem como análise dos novos dispositivos legais de financiamento introduzidos pela Lei 14.112/2020.
No primeiro capítulo, apresenta-se a exposição sobre a importância da empresa no contexto da Ordem na Constituição Federal de 1988. No segundo capítulo, abordará o princípio da função social e solidária da empresa. Por último, a importância do acesso ao crédito para as empresas e as inovações da Lei 14.112/2020.
A metodologia utilizada será pesquisa bibliográfica em artigos científicos, revistas e livros, nacionais e internacionais, com autores especializados na temática, utilizando o método dedutivo e a pesquisa qualitativa.
1. O PAPEL DA EMPRESA NA ORDEM ECONÔMICA CONSTITUCIONAL
Na Ordem Econômica da Constituição Federal de 1988 (CF/88) as empresas são os principais atores devido ao modelo capitalista de economia de mercado adotado, com a atuação e intervenção do Estado na economia de forma excepcionalíssima.
Objetivo dessa intervenção mínima do Estado na economia é consequência do princípio da livre iniciativa, postulado como premissa da Ordem Econômica ao lado da valorização do trabalho humano, esse segundo princípio reforça a importância da dignidade da pessoa humana em todas as relações, inclusive as de cunho econômico.
A essência da livre iniciativa vem sendo adotada desde as primeiras Constituições, desde a Constituição do Império já havia previsão para não proibir nenhuma categoria de trabalho, indústria ou comércio, como aponta Tavares (2011). Fato este fruto de uma evolução social, o direito acompanhando as mudanças que ocorreram na sociedade, mais especificamente na parte econômica, sobre a intervenção do Estado na Economia. Sendo na CF/88 atingiu o seu ápice como princípio fundamental da República e princípio da Ordem Econômica.
Na Carta Magna de 1988, observa-se que há traços tanto do liberalismo econômico de Adam Smith, como exemplo princípio da livre iniciativa no art. 170, caput da CF/88, quanto do Keynesianismo, quando no art. 170, VIII, CF/88, busca do pleno emprego, ambos previstos no capítulo de Ordem Econômica.
Livre inciativa não é meramente a liberdade para o empreendedor iniciar o seu próprio negócio e gerenciá-lo segundo a sua vontade, é ademais, englobando a liberdade contratual e a liberdade para empreender sem obstáculos do Estado na sua atividade econômica, criando amarras, seja por meio regulamentário, fiscal ou intervenção direta na propriedade.
O professor Eros Grau (2010) ensina não haver duas ordens econômicas, uma neoliberal e outra intervencionista previstas na CF/88, por a Constituição ser um sistema dotado de coerência, não há contradição em suas normas.
O supracitado autor ainda vai além, destaca que: “Todo esse conjunto de princípios, portanto, há de ser ponderado, na sua globalidade” (GRAU, 2010, p. 196). Sendo assim, analisa-se a Constituição na totalidade e nunca de forma fragmentada.
Esses princípios são harmônicos e se complementam, porquanto é por meio da livre iniciativa que se proporciona a busca pelo pleno emprego e é da valorização do trabalho humano que se alcança a dignidade da pessoa humana e justiça social, logo sem livre iniciativa não há emprego.
A dicotomia entre os interesses do empresário, trabalhador, acionista, consumidores e da sociedade é um desafio para alcançar a justiça social, primazia da ordem econômica no art. 170 da CF/88, necessitando uma ponderação dos ônus a todos os envolvidos.
Em um cenário de crise a intervenção é necessária para corrigir as chamadas falhas de mercado, quando o mercado não aloca de forma eficiente os recursos escassos.
Nesse contexto de pandemia, Hanson et al (2020), ponderam que a excepcionalidade da atual alta incerteza macroeconômica reforça a necessidade de intervenção governamental.
A CF/88, art. 174, estabeleceu que: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” (BRASIL, 1988). Verifica-se que é dever do Estado atuar como agente normativo, regulamentador e fomentador na atividade econômica, para criar um ambiente em prol da livre inciativa com incentivos e políticas públicas que fomentem o setor privado e impulsionem o desenvolvimento econômico e de forma richote: com mais empresas – mais empregos, maior valorização do trabalho e mais dignidade humana.
A intervenção do Estado na economia também é necessária de modo a evitar abusos a arbitrariedades que extrapolem a função social da empresa e resguardar a proteção da concorrência no mercado, dos consumidores, manutenção dos empregos e auxílio as pequenas e médias empresas, conforme preconiza a ordem econômica do art. 170 da CF/88.
Verifica-se que o Estado como agente normativo nos últimos anos elaborou profundas reformas em diversas legislações federais como a Reforma trabalhista (2017), Lei de Liberdade Econômica (2019), Reforça Previdenciária (2019) e Nova Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falências (2020), sob o pretexto da criação de um ambiente econômico que proporcione maior segurança para o empresariado brasileiro.
Um exemplo do impacto da empresa para a sociedade é o fim das operações da empresa multinacional Ford no Brasil, conforme levantamento da DIEESE (2021) a saída da Ford resulta em uma perde de mais de 118.000 mil (cento e dezoito mil) postos de trabalho direitos, indiretos e induzidos. Com o fechamento de uma companhia e a perda de milhares de empregos, isso reflete em todo o sistema ao seu redor, já que a queda na renda impacta diretamente no poder de compra daquela região, sem olvidar nos fornecedores, compradores e prestadores de serviços da cadeia que também são afetados. Além disso, Fernandes, Haddad e Dias (2021) em seu estudo sobre o impacto da saída da Ford no Estado de São Paulo, avaliaram, por meio do método de extração hipotética, o prejuízo para região em termos agregados estimados em R$3,83 bilhões de reais em um ano em São Paulo e no Brasil a perda chega em torno de R$5,25 bilhões.
A empresa Ford também foi um grande expoente atinente a função social e solidária, conforme Rocha (2016) em seu estudo listou as contribuições da Ford Foundation para o Brasil, a qual contribuiu com milhões de dólares para fomento da formação de pesquisadores no Brasil, nas palavras da autora:
FF apoiou a formação de pesquisadores e docentes em tempo integral, através da concessão de bolsas de estudo nos EUA. Investiu na modernização de bibliotecas e laboratórios, disponibilizando recursos para investimento em infraestrutura institucional necessária para pesquisas, principalmente em economia atrelada aos processos de expansão industrial e agrícola no Brasil. (ROCHA, 2016, p. 97).
Como exemplo supracitado da Ford é possível verificar a vultuosa importância e impacto da empresa na geração de benefícios econômicos e sociais, também de forma suntuosa o emprego da função social e solidária em sua fundação.
2. A EMPRESA E A SUA FUNÇÃO SOCIAL E SOLIDÁRIA
A revogação de parte do Código Comercial de 1850 influenciado pela teoria dos atos de comércio francesa pelo Código Civil de 2002, adotando a teoria da empresa, ocorreu em razão do descompasso entre a legislação com a realidade, a qual não era suficiente para as novas atividades que não eram abrangidas e com o tempo ganharam relevância. E até mesmo antes da nova legislação entrar em vigor a doutrina e jurisprudência já aplicavam a nova teoria, na prática (COELHO, 2020).
Frazão (2017, online) explica o objetivo da função social é “[…] reinserir a solidariedade social na atividade econômica sem desconsiderar a autonomia privada, fornecendo padrão mínimo de distribuição de riquezas e de redução das desigualdades. ”
Segundo Coelho (2020) o novo direito comercial é principiológico e a função social da empresa não pode ser limitada ou eliminada por nenhuma lei. Diniz (2018, p. 397) complementa asseverando que “há uma nova empresarialidade fundada na função social e na boa-fé objetiva […]”.
Nesse compasso, leciona Sacromone:
A atividade empresarial deverá ser preservada sempre que possível em razão de sua função social. A empresa gera riqueza econômica, assegura os empregos e a renda e contribui com o crescimento e desenvolvimento social do País, e deverá ser, dessa forma, sempre que possível, preservada (SACRAMONE, 2021, p.24).
A função social não é apenas o cumprimento de uma obrigação negativa, como, por exemplo: não poluir, não sonegar, não atentar contra os direitos trabalhistas, mas, também, como uma obrigação positiva, conforme pondera o professor Eros Grau:
O que mais releva enfatizar, entretanto, é o fato de que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário — ou a quem detém o poder de controle, na empresa — o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem (GRAU, 2010, p. 250).
Na mesma direção, Diniz (2018) explica que a função social é um poder-dever de o empresário desenvolver atividade empresarial em favor da coletividade e cita como exemplos de cumprimento da função social funções assistências aos seus empregados, como creche, plano aposentadoria e plano de saúde.
Dessa maneira, não basta o empresário apenas não causar um maleficio a sociedade, deve-se buscar criar por meio da sua atividade econômica auferir benefícios para o sistema.
Atinente a essa questão de a empresa desenvolver uma conduta voltada a promoção do social, Santiago e Medeiros expõem a função da solidariedade:
O princípio da solidariedade foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro através do art. 3º, I, da Constituição Federal de 1988, como pressuposto do Estado Democrático de Direito, volvido para a convivência em um ambiente social focado em construir uma sociedade livre, justa e solidária (SANTIAGO; MEDEIROS, 2017, p. 113).
Para Santiago e Medeiros (2017) a responsabilidade social é corolário do princípio da função solidária da empresa, a qual se crida que o empresário tem a capacidade de transformar o ambiente ao seu redor.
A mudança do comportamento egoísta das empresas que visavam lucro predatório a qualquer preço para um viés de função social e solidária, com retorno de benefícios econômicos e sociais, está interligada com a evolução da sociedade, porquanto as novas tecnologias que proporcionam maior eficiência para atividade empresarial, também convêm como meio de informação e resistência para a população, ora consumidores, filtrarem as empresas com benesses para sociedade que, ainda que sutilmente, sofrem coação advinda dessa resistência para se adequar ao novo modelo de mercado.
Exemplo dessa transformação pode ser vislumbrada na empresa transnacional Coca-Cola, que em quase 130 anos desde a sua fundação e como refrigerante mais vendido do mundo, também foi obrigada adequar-se com produção de embalagens retornáveis visando diminuir agressão ao meio ambiente e acrescentando uma nova fórmula com Stévia (adoçante natural) que está relacionada com os problemas de saúde.
Almeida (2003) relembra que em um passado recente o objetivo da atividade empresarial estava no acúmulo de capital sem levar em consideração o meio para atingir essa finalidade e, o modelo atual mais sustentável, assevera a mudança de comportamento da sociedade.
Nesse sentido, reafirmam Neto e Passarelli:
Diferentemente da forma como ocorria a atividade empresarial do século passado – por exemplo o descaso com os direitos humanos e a despreocupação com a poluição ambiental -, na atualidade a sociedade exige que a empresa contribua e participe ativamente com questões sociais e, mesmo que opere em benefício próprio, contribua com a sociedade e atenda suas necessidades, participando de ações de apoio à educação, programas de auxílio a pessoas carentes, e outras ações que, via de regra, agregam e tragam benesse social (NETO; PASSARELLI, 2016, p. 179).
Adam Smith no século XVIII ao argumentar a “mão invisível” e a autorregulação do mercado, explicou que quando surgisse um novo nicho mais rentável o capitalista iria automaticamente fazer a migração visando o lucro. Parafraseando com esse pensamento, verifica-se também esse fenômeno nas empresas atuais, que buscam a migração para produção e produtos mais sustentáveis, compatíveis com as novas demandas da sociedade.
Ainda seja em razão do marketing para melhorar imagem, atrair investimentos ou consumidores, as empresas que buscam meios de produção e matéria-prima sustentável ou investem em programas sociais, como projetos e fundações para promoção do bem-estar de uma parcela mais vulnerável da sociedade, essas atitudes acabam por gerar externalidades positivas.
3. A CRISE ECONÔMICA E O ACESSO AO CRÉDITO
No cenário macroeconômico brasileiro, a dinamicidade do mercado impulsionada diariamente pela evolução da tecnologia e o fenômeno da globalização, faz com que o cenário internacional afeta a economia interna, sendo assim, as crises globais como a grande depressão de 1929 com a quebra da Bolsa de New York e a crise de 2008 também advinda dos Estados Unidos, fruto da especulação imobiliária e do acesso ao crédito indiscriminado aos norte-americanos que culminou na falência do banco Lehman Brothers, afetou diretamente o Brasil com aumento do preço do dólar e consequentemente da inflação, dificuldade no acesso ao crédito e diminuição do financiamento internacional.
Exemplo de como o acesso ao crédito é essencial para atividade empresarial, pode ser verificado no caso da gigante empresa chinesa Evergrande, do ramo de construção civil, em que 2021 devido ao alto endividamento não conseguiu tomar novos empréstimos e com dívida bilionária e sem novos créditos, a notícia no cenário internacional sobre a especulação de uma possível falência foi suficiente para afetar as bolsas de valores ao redor do mundo e pode afetar diretamente o Brasil com a demanda reprimida nas exportações para a China.
A crise mundial sanitária e econômica do Coronavírus foi tão vultuosa quanto as crises anteriores, no Brasil o Sistema Financeiro Nacional (SFN) precisou de auxílio governamental para manter as operações com liquidez, para isso Banco Central estabeleceu oito medidas para injetar 1,2 trilhão de reais aos bancos brasileiros para auferir segurança ao sistema e ajudar na concessão de crédito (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2020).
Segundo Hanson et al (2020) a recessão econômica advinda do COVID-19 é diferente das recessões anteriores, porquanto a viabilidade a longo prazo das empresas será mais difícil devido à queda abrupta de receita nos últimos meses e da dificuldade de pagamento das obrigações fixas, sendo assim, o fluxo de caixa futuro pode impedir as empresas ao acesso de crédito, não conseguindo sobreviver à pandemia sem o apoio do governo, além da própria incerteza quanto à trajetória do Coronavírus.
O fechamento temporário do comércio, a restrição de acesso presencial e as medidas de distanciamento social para prevenir o avanço da doença atingiram a liquidez das empresas, diminuindo a demanda, porém mantiveram os custos com encargos trabalhistas, tributários, fornecedores e manutenção dos negócios, ocasionando para muitos a incapacidade de cumprimento das obrigações vencidas, situação que, ainda que o ativo fosse maior que o passivo poderia acarretar em uma crise econômico-financeira, porquanto o objetivo primordial da empresa é o lucro.
Concessão de crédito está relacionada com a confiança do mercado na política econômica do país, as suas normas jurídicas precisam garantir a segurança jurídica e a proteção do credor, por isso a transparência nas contas é fundamental.
Os efeitos negativos pedido de recuperação judicial como o dano de imagem e restrição imediata de acesso ao crédito, sem olvidar na burocracia, gera estímulos ao empresário, agente racional, a postergar o pedido de recuperação judicial até as últimas consequências.
Nessas situações, conforme explica Fernandes (2021) pode ocorrer a falha de mercado chamada assimetria de informação, fazendo com que o credor empreste quando o devedor não estiver mais em situação de solvência, incentivando o devedor a adiar a divulgação da sua situação de insolvência, com objetivo de continuar a receber esses empréstimos, à espera de conseguir uma saída milagrosa para a crise.
Referido autor supracitado menciona a suma importância do acesso ao crédito para as empresas e economia, e relembra os benefícios do crédito para o crescimento econômico já são conhecidos desde Stuart Mill no século XIX e em Schumpeter no início do século XX, todavia, também, alerta para o efeito negativo que pode gerar na economia caso o crédito seja mal controlado, podendo levar ao problema de insolvência, conforme exemplo já mencionado da crise americana do Subprime de 2008, em que houve concessão de crédito indiscriminado para pessoas que não possuíam garantias.
Expostos os problemas e as dificuldades do empresário ter acesso ao crédito em uma circunstância de crise econômico-financeira da empresa, acentuado pela crise econômica da pandemia, tornou-se indispensável a intervenção estatal para auxiliar as empresas atravessarem esse momento, uma das medidas foi a edição da reforma de Lei de Falências e Recuperação Judicial e Extrajudicial (LRF), Lei nº 14.112/2020, fundamental para auxiliar no acesso ao crédito como meio de preservação da empresa e, doravante será discutido as inovações e melhorias da aludida legislação.
3.1 A LEI 14.112/20 E AS INOVAÇÕES NO ACESSO AO CRÉDITO
Historicamente a primeira Lei de Falências brasileira foi elaborada em 1945 via Decreto-lei nº 7.661/45, no final do Estado Novo na Era Vargas, em um contexto histórico em que havia uma intervenção inexorável do Estado na economia, sem abertura de mercado.
Sessenta anos depois, em 2005, a legislação de falência foi atualizada pela Lei 11.105/45, momento em que o Brasil estava em um período de crescimento econômico, com a economia já globalizada e abertura de mercado.
Todavia, com o declínio da economia brasileira em recessão iniciado em 2014, o Congresso iniciou a discussão uma reforma da legislação de falência e recuperação judicial e extrajudicial, pois com as transformações no cenário econômico, a Lei de 2005 já não era suficiente para suprir as necessidades jurídicas e econômicas advindas das novas mudanças, desse modo, dois anos antes da entrada em vigor da nova lei de falências, surgiu a primeira tentativa de mudança via PL 10.220/2018, o qual já trazia inovações relativas ao acesso ao crédito, por exemplo, DIP Financing previsto no art. 69-A, inclusive havia previsão da atual “Seção IV-A, do Financiamento do Devedor e do Grupo Devedor durante a Recuperação Judicial”, que consta no do “CAPÍTULO III – DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL” (BRASIL, 2018, p. 27). Apesar da iniciativa legislativa de mudança o projeto não prosperou e foi arquivado.
Com a pandemia em 2020 e a necessidade de o Estado dar uma resposta a nova crise econômica e criar um cenário viável para recuperação das empresas, a discussão da reforma da Lei nº 11.105/05 foi retomada por meio do PL 4.458/2020, que resgatou dispositivos do antigo PL 10.220/2018, com um trâmite célere devido as circunstâncias da pandemia foi aprovado e entrou emvigor a Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020, atualizando a lei nº 11.105/05.
O direito como fenômeno histórico, social e política é influenciado por contextos político-econômicos conforme a época, buscando coadunar com o mundo fático e durante os anos o direito falimentar acompanhou essas mudanças, pois ora a legislação trazia benesses ao credor e outrossim ao devedor, com a proteção legal oscilando como um pêndulo. Com influência na legislação norte-americana a mudança de 2005 foi baseada na divisão equilibrada dos ônus e houve superação do dualismo pendular (COSTA, 2015).
A reforma de 2020 feita para criar um sistema de insolvência mais eficiente, pois a legislação considerou o interesse de todos e não somente os credores e, caso haja um atrito entre os interesses do credor versus do sistema, o segundo deve prevalecer, conforme defende uma das correntes norte-americanas (WARREN, 1993).
Portanto, o objetivo da legislação é realocar os ativos na economia e para isso introduziu novos mecanismos de crédito para auxiliar o devedor a manter a sua atividade econômica em razão dos benefícios econômicos e sociais externalizados, por isso há decisões que colocam os credores em situação pior na recuperação judicial do que seria na falência por força do princípio da função social da empresa.
Apesar da importância da empresa para a sociedade, nem todas as atividades empresariais devem ser mantidas, pois o ônus suportado pelos credores e todo o sistema somente se justifica se houver a viabilidade econômica e a função social da empresa, ou seja, se continuar gerando emprego e renda, pagando os tributos e fazendo circular bens e serviços, caso contrário, o caminho deve ser a falência, porque a tentativa de recuperar uma empresa inviável que não gera benefícios econômicos e sociais acaba por prejudicar todo o sistema econômico (COSTA, 2015).
Na crise econômico-financeira a “concessão de novos créditos por instituições financeiras ou investidores é essencial para o desenvolvimento das atividades empresariais da recuperanda” (SACRAMONE, 2021, p. 197).
A dificuldade de acesso ao crédito para a empresa que entra com o pedido de recuperação judicial era um dos problemas amiúde, conforme Almeida, Alves e Gonçalves (2021, p. 220) as “instituições financeiras – com raras exceções – não disponibilizam crédito novo para esses empresários”. Por causa do preconceito com o empresário em crise, que fica marcado negativamente e quando consegue acesso ao crédito nessa posição encontra altas taxas
O desafio então era criar um mecanismo de financiamento para ajudar o empresário em crise e, ao mesmo tempo, trazer segurança jurídica para a instituição financeira ou investidor, tendo em vista o alto risco de emprestar crédito para alguém nessa situação.
O art. 69-A[1] da LRF importou da doutrina norte-americana o DIP Financing (debtor-in-possessing-financing), importante mecanismo de financiamento para o devedor em recuperação judicial, pois até o advento da Lei 14.112/20 a instituição financeira não possuía segurança jurídica para fazer empréstimos ao devedor em crise, devido alto risco de não reaver os valores em caso de inadimplemento ou convolação em falência, porque a classificação dessa natureza seria de crédito extraconcursal conforme art. 67 DA LRF, e o financiador estaria na quinta posição de ordem de pagamento com a legislação antiga, contudo com a mudança passou a ter uma posição especial, apenas atrás das despesas do administrador judicial e os créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial vencidos dos últimos três meses anteriores à decretação da falência, com limite de apenas cinco salários-mínimos por trabalhador, conforme prevê os arts. 84, 150 e 151 da LRF.
Como objetivo da recuperação judicial é a preservação da empresa, o acesso ao crédito nesse momento é fundamental para continuação da atividade empresarial, no contrato de financiamento os bens em oferecidos em garantia na modalidade do DIP não se submeterão a eventual falência, estarão protegidos por garantias, segundo art. 69-A da LRF, pela oneração ou alienação fiduciária.
A segurança jurídica é um dos pilares do estado democrático de direito e a sua ausência afeta as escolhas dos agentes econômicos por criar custos de transação, inibindo o investimento no mercado, a inclusão do art. 69-B[2] na LRF objetivou eliminar qualquer dúvida nessa questão, tendo em vista a possibilidade de um financiador de boa-fé investir em uma empresa em recuperação judicial e ser surpreendido por uma decisão judicial que afete a sua garantia de crédito, nesse sentido, o referido artigo criou essa norma cogente que impede que uma decisão judicial, em qualquer grau recursal, modifique a natureza do crédito ou as garantias outorgadas pelo devedor ao financiador de boa-fé.
Sacramone (2021) afirma que o tratamento especial oferecido ao agente financiador dentre os demais credores é necessário para criar incentivos para disponibilização de recursos que podem fazer a diferença na continuidade da atividade empresarial.
O art. 69-C[3] da LRF, confere a possibilidade de constituição de uma nova garantia subordinada ou garantia de segundo grau, o que já ocorre no caso da hipoteca previsto no art. 1.476 do Código Civil, porém na LRF a garantia se estende para as outras formas clássicas como hipoteca, penhor e anticrese, não sendo admissível alienação fiduciária ou cessão fiduciária, conforme §2º[4] do art. 69-C da LRF (BARROS NETO, 2021).
Essa nova garantia não prejudica o credor originário, porquanto o §º1 do referido artigo explica “a garantia subordinada, em qualquer hipótese, ficará limitada ao eventual excesso resultante da alienação do ativo objeto da garantia original” (BRASIL, 2020), por essa razão, não necessita de sua anuência do possuidor da garantia principal, Almeida, Alves e Gonçalves (2021) ressaltam a importância desse dispositivo que garante celeridade e segurança jurídica.
A Lei também descreve um rol de legitimados autorizados a financiar a empresa em crise, conforme art. “art. 69-E. O financiamento de que trata esta Seção poderá ser realizado por qualquer pessoa, inclusive credores, sujeitos ou não à recuperação judicial, familiares, sócios e integrantes do grupo do devedor” (BRASIL, 2020). Dessa maneira, a variedade de agentes de financiamento maximiza as chances de acesso ao crédito e a previsão legal desse dispositivo afasta qualquer dúvida quanto a legitimidade da operação.
Sacramone (2021) ressalta a inaplicabilidade da regra do art. 141, §1º da LRF, que impede que o bem onerado ou transferido esteja livre de ônus no caso oneração ou alienação constituída por agentes do art. 69-E da LRF, assegurando que o financiador não poderá sofrer limitações de direitos em razão de seu contrato.
Além auferir legitimidade a vários agentes econômicos, também possibilitou qualquer pessoa ou entidade garanta o financiamento com alienação fiduciária de bens ou direitos, conforme art. 69-F[5] da LRF.
Barros Neto (2021, p. 128) explica que o objetivo dos arts. 69-E e 69-F são pautados na preservação da empresa, pois “a intenção do dispositivo é permitir que a maior variedade e quantidade de agentes econômicos possam se interessar pelo financiamento do devedor, no objetivo maior de superação da crise”.
Outro problema que causava insegurança para o investidor devido assimetria de informação sobre as finanças da empresa era a possibilidade de uma eventual convolação em falência, devido ao art. 117 da LRF, que em regra, os contratos não se resolvem pela falência e podem ser cumpridos pelo administrador judicial com autorização do Comitê para evitar o aumento do passivo. Sacromone (2021) explica que o art. 69-D[6] é uma exceção à regra, criada para diminuir o risco provocado pela falência, e caso os recursos não tenham sido transferidos de forma integral, não há possibilidade de o administrador judicial exigir a continuação do financiamento, mantendo se as garantias até o limite do que foi efetivamente repassado a empresa antes da sentença que convola a recuperação judicial em falência, conforme parágrafo único do supracitado artigo[7].
Os novos mecanismos de acesso ao credito para o devedor no momento de crise econômico-financeira da recuperação judicial expostos pela reforma da Lei da 14.112/2020, são fundamentais e harmônicos com o objetivo dessa medida, exposta no art. 47 da Lei 11.101/05:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica (BRASIL, 2005).
Como expõe o artigo da LRF, objetivo da manutenção da empresa economicamente viável ocorre em razão da importância da empresa para a sociedade, conforme discorrido ao decorrer do presente trabalho, portanto, a função social e solidária da empresa é alcançada também pelo acesso ao crédito e financiamento do empresário em crise.
A Lei 14.112/20 teve reconhecimento internacional no documento “Global Guide: Measures adopted to support distressed businesses through the COVID-19 crisis[8]”, um levantamento elaborado pelo Word Bank Group e INSOL International (2021) sobre medidas adotadas em 80 países para apoiar as empresas no período da COVID-19.
CONCLUSÃO
Com a mudança de paradigma na relação entre empresa e sociedade, hodiernamente e doravante, pautado no princípio da função social e solidária, a mudança de pensamento não apenas a dirige o comportamento dos empresários para uma obrigação de não fazer, ou seja, não apenas prejudicar a ordem tributária, direitos trabalhistas, meio ambiente, concorrência e consumidores, vai além, exige-se uma conduta positiva, ações para promoção do bem-estar social da coletividade,
A lei 11.101/05 foi um avanço na legislação da época e naquele momento de crescimento econômico atendia as demandas exigidas pela atividade empresarial, é claro, com ressalvas. E, com advento da crise na economia brasileira, surgiu a necessidade de adequação da lei para coadunar nova realidade econômica e política.
Os problemas amiúdes do empresário em situação de crise que solicitava a recuperação judicial era o dano de imagem acarretado por esse procedimento, causando automaticamente obstrução de financiamento no mercado pela falta de segurança jurídica, além do alto custo procedimental e alta burocracia desse processo, nesse ponto, a conjectura presente na LRF tem objetivo de sanar esses óbices.
A crise econômica advinda em 2014 foi exacerbada pela crise sanitária do COVID-19 no ano de 2020, momento em que a intervenção do Estado no mercado foi necessária para manutenção da atividade empresarial como um todo.
O instrumento do DIP Financing introduzido pela Lei 14.112/20 e as inovações em relação garantias e a tão almejada segurança jurídica do financiador do empresário em recuperação judicial, culminam por beneficiar todo o processo econômico, porquanto a empresa viável que consegue superar a crise é capaz de fazer a manutenção dos postos de trabalho, adimplir com as suas obrigações com os seus credores, continuar oferecendo os seus bens ou serviços para os consumidores e contribuindo com pagamento de tributos para promoção de políticas públicas.
Sob a premissa da função social e solidária as empresas geram externalidades positivas para a sociedade, dessa forma, legitimam o mecanismo de recuperação judicial da empresa, o qual com a nova reforma legislativa pretende auferir resultados positivos quanto o acesso ao crédito para os empresários em meio à crise econômico-financeira e promover a sua recuperação e manutenção dos benefícios econômicos e sociais.
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[1] Art. 69-A. Durante a recuperação judicial, nos termos dos arts. 66 e 67 desta Lei, o juiz poderá, depois de ouvido o Comitê de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor, garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante, para financiar as suas atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos.
[2] Art. 69-B. A modificação em grau de recurso da decisão autorizativa da contratação do financiamento não pode alterar sua natureza extraconcursal, nos termos do art. 84 desta Lei, nem as garantias outorgadas pelo devedor em favor do financiador de boa-fé, caso o desembolso dos recursos já tenha sido efetivado.
[3] Art. 69-C. O juiz poderá autorizar a constituição de garantia subordinada sobre um ou mais ativos do devedor em favor do financiador de devedor em recuperação judicial, dispensando a anuência do detentor da garantia original.
[4] § 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica a qualquer modalidade de alienação fiduciária ou de cessão fiduciária.
[5] Art. 69-F. Qualquer pessoa ou entidade pode garantir o financiamento de que trata esta Seção mediante a oneração ou a alienação fiduciária de bens e direitos, inclusive o próprio devedor e os demais integrantes do seu grupo, estejam ou não em recuperação judicial.
[6] Art. 69-D. Caso a recuperação judicial seja convolada em falência antes da liberação integral dos valores de que trata esta Seção, o contrato de financiamento será considerado automaticamente rescindido
[7] Parágrafo único. As garantias constituídas e as preferências serão conservadas até o limite dos valores efetivamente entregues ao devedor antes da data da sentença que convolar a recuperação judicial em falência.
[8] Guia Global: Medidas adotadas para apoiar empresas em dificuldades com a crise do COVID-19.