O INTERESSE PÚBLICO COMO FUNDAMENTO PARA AS SOLUÇÕES NEGOCIADAS NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O INTERESSE PÚBLICO COMO FUNDAMENTO PARA AS SOLUÇÕES NEGOCIADAS NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

28 de julho de 2022 Off Por Cognitio Juris

THE PUBLIC INTEREST AS A BASIS FOR THE SOLUTIONS NEGOTIATED WITHIN THE SCOPE OF PUBLIC ADMINISTRATION

Cognitio Juris
Ano XII – Número 41 – Edição Especial – Julho de 2022
ISSN 2236-3009
Autores:
Nilton Carlos de Almeida Coutinho[1]
Marcelo Farina de Medeiros[2]
Tiago Cappi Janini[3]
Emerson Ademir Borges de Oliveira[4]
Fabíola Colombani[5]

RESUMO: A morosidade de o Poder Judiciário resolver conflitos, principalmente os que envolvem a Administração Pública, faz com que se desenvolvam métodos alternativos de solução de litígios, originando o sistema multiportas de acesso à justiça. Todavia, o uso dessas soluções negociadas ainda encontra resistência no âmbito da Administração Pública, sobretudo pelos dogmas tradicionais da supremacia e indisponibilidade do interesse público. Com isso, tem-se o seguinte problema: é possível conciliar o princípio da indisponibilidade do interesse público com o uso de métodos de solução de conflitos que não a jurisdição? Para solucionar a questão suscitada, utiliza-se o método dedutivo, com pesquisa bibliográfica. O objetivo geral do estudo é analisar o princípio da indisponibilidade do interesse público como fundamento e não obstáculo ao uso de métodos alternativos de solução de lides pela Administração Pública. Os objetivos específicos são: apresentar o contexto da crise do judiciário e do acesso à justiça; analisar o sistema multiportas de acesso à justiça e os meios alternativos de solução de demandas existentes na legislação; por fim, investigar se há ou não conflito entre as soluções negociadas em âmbito da Administração Pública com o princípio da indisponibilidade do interesse público. Ao final, conclui-se que, a partir da constitucionalização do direito administrativo, o uso de métodos alternativos de solução de demandas é instrumento para a realização do interesse público.

PALAVRAS-CHAVE: Métodos alternativos de solução de conflitos; interesse público; justiça multiportas.

ABSTRACT: The slowness of the Judiciary to resolve conflicts, especially those involving the Public Administration, causes the development of alternative methods of dispute resolution, giving rise to the multi-door system of access to justice. However, the use of these negotiated solutions still encounters resistance in the field of public administration, especially by the traditional dogmas of supremacy and unavailability of the public interest. This has the following problem: is it possible to reconcile the principle of unavailability of the public interest with the use of conflict-solving methods other than jurisdiction? To solve the question raised, the deductive method is used, with bibliographic research. The general objective of the study is to analyze the principle of unavailability of the public interest on the basis and not an obstacle to the use of alternative methods of solution of lides by the Public Administration. The specific objectives are: to present the context of the crisis of the judiciary and access to justice; to analyze the multi-door system of access to justice and the alternative means of resolving existing demands in the legislation; finally, investigate whether or not there is a conflict between the solutions negotiated under the Public Administration with the principle of unavailability of the public interest.  Finally, it is concluded that, from the constitutionalization of administrative law, the use of alternative methods of solution of demands is an instrument for the realization of the public interest.

KEYWORDS: Alternative methods of conflict resolution; public interest; multi-door justice.

INTRODUÇÃO

A constante ampliação dos conflitos entre a Administração Pública e os sujeitos privados têm graves reflexos no Poder Judiciário, uma vez que implica em uma multiplicação dos números de processos instaurados, elevando consideravelmente as taxas de congestionamento da justiça. Como resultado tem-se uma jurisdição morosa e de pouca efetividade.

Para resolver esse problema, tem-se buscado ampliar as formas de resolução de conflitos, abandonando-se o dogma de que a jurisdição é o único instrumento capaz de solucionar lides. Com a edição do Código de Processo Civil de 2015 o movimento da Justiça Multiportas ganha força, e os métodos alternativos de resolução de litígios são sobremaneira estimulados.

Nesse ponto, o uso de métodos alternativos de solução de demandas pela Administração Pública, alicerçada nas pedras de toque da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade do interesse público, acaba entrando em conflitos com dogmas tradicionais de um Estado autoritário.

Com isso, tem-se o seguinte problema que norteia esta investigação: é possível conciliar o princípio da indisponibilidade do interesse público com o uso de métodos de solução de conflitos que não a jurisdição? Para solucionar a questão suscitada, utiliza-se o método dedutivo, com pesquisa bibliográfica.

O objetivo geral do estudo é analisar como conciliar o princípio da indisponibilidade do interesse público com o uso de métodos alternativos de solução de lides pela Administração Pública. Os objetivos específicos são: apresentar o contexto da crise do judiciário e do acesso à justiça; analisar o sistema multiportas de acesso à justiça e os meios alternativos de solução de demandas existentes na legislação; por fim, investigar se há ou não conflito entre as soluções negociadas em âmbito da Administração Pública com o princípio da indisponibilidade do interesse público.

1 ACESSO À JUSTIÇA E A CRISE DO JUDICIÁRIO

A Constituição Federal tem o acesso à justiça como garantia constitucional (art. 5º, caput e incisos XXXIV, XXXV), prevendo inclusive ferramentas para a sua efetividade, tais como a criação de juizados especiais, a gratuidade da justiça às pessoas carentes, a organização e manutenção de defensoria pública em todos os Estados Federados etc. A ampliação do acesso à justiça teve resultado, não havendo dúvidas sobre a sua efetividade, em relação ao direito de petição ao Poder Público, porém, como consequência da massificação da litigiosidade perante o judiciário houve uma crise na administração da justiça, no tocante à demora da prestação jurisdicional e ao dano marginal dela advindo.

Destaca Sadek (2014, p. 60):

O Judiciário acaba por se transformar em órgão estatal responsável pela solução de litígios, sobretudo do setor público federal, estadual e municipal, dos bancos, das empresas prestadoras de serviços. Sobra pouco espaço para a instituição cumprir suas atribuições constitucionais relacionadas à garantia dos direitos e à composição dos conflitos de interesses. Ademais, a demanda por direitos, longe de ser universal, provém de setores privilegiados da sociedade. Em consequência, dado o volume de processos e o perfil dos que postulam judicialmente, a instituição sofre de inchaço, cuja dilatação, além de dificultar sua atuação, contribui para a construção de uma imagem negativa junto à população.

Nesse sentido, o departamento de pesquisas judiciárias do Conselho Nacional de Justiça – CNJ divulgou, no ano de 2011, que do grupo dos 100 maiores litigantes do Poder Judiciário nacional, 95% dos processos envolviam apenas três setores, sendo o maior litigante o Poder Público, englobando as esferas federal, estadual e municipal, seguido das instituições financeiras e, por fim, as empresas de telecomunicação: Setor público federal (38%), Bancos (38%), Setor público estadual (8%), empresas de Telefonia (6%) e Setor Público municipal (5%). (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2011).

Tem-se, portanto, que o Poder Judiciário gasta grande energia, empenho e tempo resolvendo conflitos dos três grandes grupos de litigantes, comprometendo a prestação jurisdicional dos demais conflitos sociais, o que gerou a chamada crise do judiciário.

O Conselho Nacional de Justiça tem uma ferramenta que demonstra a taxa de congestionamento dos Tribunais. A taxa de congestionamento, segundo o Conselho Nacional de Justiça (2019, p. 78) é o “indicador que mede o percentual de casos que permaneceram pendentes de solução ao final do ano-base, em relação ao que tramitou (soma dos pendentes e dos baixados)”. Estes índices são publicados anualmente no Relatório da Justiça em Números e revela um cenário preocupante: A Justiça Estadual apresenta taxa de congestionamento de 73,9%, enquanto na Justiça do Trabalho a taxa em questão é de 52,8%, e na Justiça Federal é de 69,6%. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019, p. 95).

A taxa de congestionamento e o elevado número de demandas que são ajuizadas todos os dias comprometem a efetividade da jurisdição. A justiça brasileira é, portanto, caracterizada como ineficiente, pois não dá conta do contingente de litígios pendentes. A estrutura do Poder Judiciário é incompatível com os litígios complexos do contexto socioeconômico contemporâneo, de modo que uma demanda que necessite de instrução mais aprofundada sofre pela lentidão da conclusão do processo judicial, uma das principais críticas da sociedade e, também, uma afronta ao princípio constitucional da razoável duração do processo.

Acesso à Justiça visa não só a acessibilidade ao Poder Judiciário, mas também que ele produza resultados que sejam individual e socialmente justos. (CAPPELLETTI; GARTH, 2002, p. 3).

Corolário do acesso à justiça, o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal garante e inafastabilidade da jurisdição. Pode parecer redundância, mas na verdade o que o constituinte quis deixar claro é que na República Federativa do Brasil deve se proporcionar não só acesso formal ao Poder Judiciário, mas de qualidade, que proporcione tutela jurisdicional efetiva, tempestiva e adequada (WATANABE, 2017, p. 88).

Resta superada a ideia novecentista de que o acesso à justiça se satisfaz somente ao aspecto formal. Desde o advento dos direitos humanos e sociais, no século XX, inspirado pelos ideais de igualdade e fraternidade da Revolução Francesa e nas revoluções socialistas, mas, em especial na reconstrução jurídica dos países na confluência ideológica entre os modelos liberal e socialista (experimentados e refutados, pelos abusos de ambos), adotando-se um modelo de Estado Social, o Direito passou a ser compreendido como um direito fundamental de um sistema jurídico que visa a assegurar a liberdade, mas tendo no Estado o ente que assegura que a liberdade dos sujeitos não se torne instrumento de injustiças. Tal modelo de Estado Social, garantindo liberdade, mas atribuindo função social aos institutos do liberalismo, passa também por uma nova função do juiz, no processo civil, que desempenha uma dupla posição: é paritário no diálogo, porém hierárquico na decisão.

O jurista, portanto, deve encarar que as técnicas processuais servem para atender interesses sociais e que as cortes não constituem a única forma de solução de conflitos, mas existem formas alternativas ao sistema judiciário.

O trabalho de Cappelletti e Garth, a obra “Acesso à Justiça”, identificou algumas barreiras a serem enfrentadas visando a efetivação de tal postulado. Destacou a primeira onda de acesso à justiça como sendo assistência judiciária aos menos favorecidos economicamente; a segunda como uma representação jurídica adequada aos interesses difusos e coletivos; e no que denominou como terceira onda de acesso à justiça, a obra aponta a necessidade de ampliar da informalização de procedimentos de resolução de conflitos (CAPPELLETTI; GARTH, 2002, p. 12).

Conforme exposto, a Constituição Federal já havia assegurado a gratuidade da justiça e a representação adequada por meio das defensorias públicas. Faltava, então, a criação de um sistema multiportas de métodos alternativos de solução de conflitos e equivalentes jurisdicionais para vir ao encontro da aludida terceira onda de acesso à justiça.

É oportuno enfatizar, outrossim, que o Código de Processo Civil reproduz o princípio da inafastabilidade da jurisdição, no caput do seu artigo 3º, em que dispõe: “não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito”. Trata-se de manifestação do direito de ação a enfatizar que o Estado prestará jurisdição que contemple resposta ao requerimento a ele dirigido. Conforme destaca Gonçalves (2016, p. 117), nos parágrafos mencionado artigo 3º, do CPC, é prevista a utilização dos métodos alternativos de solução de conflitos como instrumentos para apresentar a adequada solução da controvérsia.

A mediação e a conciliação, portanto, são ferramentas do direito fundamental de acesso à justiça. Assim, a legislação nacional teve que incorporar no direito de acesso à justiça os meios alternativos de solução de conflitos, criando um sistema multiportas de acesso à justiça.

2 SISTEMA MULTIPORTAS DE ACESSO À JUSTIÇA

O Tribunal Multiportas foi criado por iniciativa de Frank Ernest Arnold Sander, professor da faculdade de Direito de Harvard, na década de setenta, do século passado.

O Tribunal Multiportas é uma instituição inovadora que direciona os processos que chegam a um tribunal para os mais adequados métodos de resolução de conflitos, economizando tempo e dinheiro tanto para os tribunais quanto para os participantes ou litigantes (ALMEIDA et al., 2012, p. 26).

Segundo Sander (Apud ALMEIDA et. al., 2012, p. 29-30), o sistema multiportas proporciona ao jurisdicionado a possibilidade de escolha do método a ser adotado para resolução do seu conflito, contribuindo para a inserção dos sujeitos da relação de direito material, também no centro das ações do processo, estabelecendo a paridade no diálogo processual.

Tem-se, portanto, que o sistema multiportas visa à pacificação social, seja de forma judicial ou extrajudicial, mas sempre buscando a identificar o meio mais adequado para a resolução de cada conflito. Conforme leciona Didier Junior (2017, p. 185), para esta nova justiça, a solução estatal nos litígios que permitem autocomposição passa a ser ultima ratio.

A resolução hierárquica, por decisão judicial cogente, portanto, não é o único meio de solucionar conflitos de interesses. Há nítida evolução legislativa no intuito de se oportunizar e estimular a resolução de conflitos por meios alternativos. Por exemplo: O Tratado de Assunção, de 23 de março de 1991, e o Protocolo de Buenos Aires, de 23 de julho de 1998 estimulam a arbitragem nos conflitos do Mercosul; a lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, que regula os Juizados Especiais Cíveis, estimula a autocomposição, mediante audiência de conciliação; a lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, regula a arbitragem no Brasil; e, em especial, a Resolução CNJ n.º 125, de 29 de novembro de 2010, que instituiu a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos, combinada com o Código de Processo Civil (lei 13.105, de 16 de março de 2015) e com a lei da mediação (lei 13.140, de 26 de junho de 2015) formam um microssistema de meios alternativos de resolução de conflitos, com princípios, instrumentos e regulamentação sobre a autocomposição dos conflitos.

Destaca Tartuce (2019, p. 73) que a Resolução n. 125/2010, do Conselho Nacional de Justiça, deixa claro que o papel do Poder judiciário é o de orientar os litigantes sobre as diferentes formas para compor o conflito, sugerindo, gratuitamente, o meio mais adequado para o deslinde da questão, antes mesmo de uma demanda judicial.

No mesmo sentido Lessa Neto (2015, p. 3) informa que o Código de Processo Civil adota o sistema multiportas de solução de conflitos, de modo que cada conflito possa ser encaminhado para o meio mais adequado à sua solução. Segundo o doutrinador: “Resolver conflitos assume um significado mais amplo e rico que o de julgar um litígio. Trata-se de uma mudança paradigmática. Redimensiona-se o papel do processo e do Poder Judiciário” (LESSA NETO, 2015, p. 3).

Destaca-se, outrossim, no Código de Processo Civil, o artigo 6º, que traz como norma fundamental o princípio da cooperação, dispondo que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.

A consagração da cooperação, como princípio do processo civil, está intimamente relacionada com a valorização da participação das partes no processo. Há, no Código de Processo Civil, portanto, nítida promoção à valorização da vontade das partes no exercício do autorregramento, seja no tocante ao processo, seja em relação ao direito material disponível. O aludido código dedica um capítulo inteiro à mediação e conciliação.

Como antes mencionado, as formas alternativas de solução de conflitos são meios que põem as partes como protagonistas da solução da controvérsia, tratando-se de meios que privilegiam o autorregramento da vontade e do direito material em disputa.

Se é certo que a conciliação e a mediação não podem ser tratadas como novidade, no ordenamento jurídico pátrio, é certo que com o advento do Código de Processo Civil e da lei de mediação inovou-se na forma como essas técnicas são estimuladas e utilizadas. Passa-se, portanto, a demonstrá-las.

3 MEIOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS

Os meios alternativos de resolução de conflitos buscam a sua solução fora da jurisdição Estatal. São divididos em quatro espécies: autotutela, arbitragem, autocomposição e mediação.

A autotutela constitui uma imposição de um interesse sobre a sujeição do outro, mediante o emprego de força. É uma forma remota de solução de conflito e hoje excepcionalíssima em um Estado Democrático de Direito, apenas adotada em casos como os de legitima defesa, desforço imediato diante de esbulho, apreensão do bem com penhor legal, dentre outros.

A arbitragem é consiste em uma heterocomposição, em que um terceiro resolve o conflito existente. É destinada para litígios que envolvem direitos disponíveis. É fundada na autonomia da vontade de pessoas capazes e possui regramento próprio, na lei da Arbitragem (Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996).

A autocomposição, como a própria análise semântica indica, consiste na negociação das partes envolvidas na relação de direito material, que com ou sem auxílio de terceiro, constroem um resultado por si, para a solução do conflito, mediante concessões mútuas, ou por identificação de interesses comuns. A mediação e a conciliação são espécies de autocomposição. Ambas, no processo civil, contam com o auxílio de um terceiro, mediador, ou conciliador, que atua de forma a facilitar o diálogo entre das partes, fazendo que identifiquem pontos passíveis de transação.  O que os difere é a forma de atuação. Enquanto o conciliador pode propor soluções, o mediador deve somente auxiliar para que as partes compreendam melhor as questões e reestabeleçam o diálogo, de modo que elas próprias criem as soluções possíveis. Nesse sentido os parágrafos 2º e 3º, do art. 165, do Código de Processo Civil:

§ 2º O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que não houver vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as partes conciliem.

§ 3º O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios mútuos.

Como se vê, em razão da maior ou menor influência na construção do resultado a conciliação é o meio de autocomposição mais adequado para as demandas que envolvem casos em que não haja vínculo anterior entre as partes, enquanto a mediação é o método mais apropriado aos casos em envolvam litígio em que houver vínculo anterior entre as partes, tais como demandas de direito de família, de vizinhança, entre outras.

A conciliação é um método para resolução de conflitos baseado na colaboração das partes, portanto não contencioso, sendo mais afeta aos conflitos unidimensionais. Neste método ocorre a facilitação da comunicação entre as partes por um terceiro neutro e imparcial, objetivando um acordo. (SILVA, 2013, p. 186). O terceiro atua de forma incisiva para facilitar o acordo, pois nesse método não se objetiva otimizar ou reestabelecer relação entre as partes.

Vale registrar que apesar de o Código de Processo Civil dispor que a conciliação deve ser mediada por um terceiro, preferencialmente um conciliador, isso não retira do magistrado o poder/dever de estimular a conciliação a qualquer tempo, conforme disposto no artigo 139, inciso V, do CPC.

A conciliação pode ser realizada antes ou durante o processo. É comum a conciliação prévia, visando a evitar a demanda judicial, até mesmo em conflitos que envolvem interesses difusos, como, por exemplo, ocorre nos termos de ajustamento de conduta, nos inquéritos civis ambientais. Outros exemplos bem-sucedidos de conciliação prévia, como forma de evitar demandas judiciais, são o Posto Avançado de Conciliação Extraprocessual, do Tribunal de Justiça de São Paulo e o programa de mediações da Fundação Procon.

A mediação, por sua vez, embora também se trate de uma forma de autocomposição, tem viés e regramento próprio (artigo 1º, parágrafo único).

Considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia (BRASIL, LEI Nº 13.140,2015).

A mediação visa a identificação de “benefícios mútuos”, com o acordo (art. 165, § 3º, CPC). Segundo Goretti (2017, p. 162-163) a mediação pode ser compreendida sob três pontos de vista: como processo; como técnica; e como filosofia. Processual, pois a mediação constitui uma sequência de atos concatenados de visando uma solução dialogada, autônoma e compartilhada do conflito. Técnica, pois há técnicas e princípios a serem utilizados pelo mediador visando a promover o diálogo e restabelecer a relação das partes. E ética, pois deve-se promover que as partes se pautem na ética da alteridade e no princípio da validação, de modo que o mediador deve “estimular os interessados a perceberem-se reciprocamente como seres humanos merecedores de atenção e respeito”. (art. 1, inciso VIII, do anexo III, da Resolução CNJ m. 125/2010).

A doutrina nacional enxerga na mediação uma orientação transformativa, e, portanto, indicada para conflitos que envolvam relações continuadas. Dessa forma, o mediador atua como facilitador da comunicação entre os mediados, aproximando-os, não atuando decisivamente na resolução do entrave. (GUILHERME, 2018, p. 73).

Um ponto central da mediação é que os interessados possam ver nela benefícios mútuos. Esta finalidade é prevista tanto no artigo165, § 3º, do CPC, como no artigo 4º, § 2º, da Lei 13.140/2015. Segundo Gonçalves, isso se deve ao fato de o mediador atuar em situações em que estão presentes vínculos afetivos das partes, cujas relações irão continuar após a solução do conflito. (GONÇALVES, 2016, p. 399-400).

4 O INTERESSE PÚBLICO COMO FUNDAMENTO PARA AS SOLUÇÕES NEGOCIADAS NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

De início, é imperioso destacar-se que não se nega ao Estado a possibilidade do exercício da autotutela administrativa, a qual se constitui comoregra no direito público, nem da busca de uma proteção judicial em relação a seus direitos. Contudo, a autotutela e a sentença judicial acabam criando soluções que, não raras vezes, não atingem o escopo de pacificação social, no sentido de aceitação da decisão pelas partes, impulsionando a discussão acerca do uso de outras formas de solução de litígios.

Assim, não obstante o poder público possa, efetivamente, adotar medidas administrativas voltadas para a proteção dos seus interesses, é aconselhável, a depender da situação real, que se busque uma solução consensual e negociada entre as partes.

Há, nos últimos anos, uma modificação nos alicerces do Direito Administrativo, saindo de uma perspectiva de imperatividade para incorporar a convencionalidade. O modelo de Estado renascentista, que tem forte influência até hoje na organização política dos povos, é sustentado pela coerção, pela posição de superioridade do Estado e de submissão da população. Com a presença do Estado Democrático de Direito, tem-se início uma era de relações paritárias entre cidadãos e Poder Público.

Busca-se, nessa nova visão do Direito Administrativo, uma tutela que proporcione maior eficiência, transparência, celeridade e custo-benefício na resolução dos conflitos administrativos. O uso de métodos consensuais para a resolução de conflitos entre particulares e a Administração Pública, antes inimagináveis, começa a ganhar destaque.

Essa alteração de paradigma pode ser observada com a inclusão dos arts. 20 a 30 na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, pela Lei n. 13.140/2015, que trata da autocomposição no âmbito da administração pública, pela Lei n. 14.133/2021, que prevê a aplicação de métodos alternativos de solução de litígios nas contratações públicas e no próprio sistema de justiça multiportas previsto no Código de Processo Civil.

Nesse contexto, surge a questão, como aplicar as soluções negociadas no âmbito da administração pública diante do princípio da indisponibilidade do interesse público?

Tradicionalmente, o interesse público é posto como um dogma que cria um intransponível obstáculo à possibilidade de negociação entre cidadãos e Poder Público. As convicções ideológicas tradicionais, enraizadas na visão imperativa do Poder Público, consideravam a negociação do interesse público como algo impensável, o que faria ruir toda a construção dogmática do direito administrativo. Com isso, não se admitia a conciliação, a mediação e a arbitragem por parte da Administração Pública.

A base da construção teórica do direito administrativo sempre residiu na supremacia e na indisponibilidade do interesse público. De acordo com Mello (2014, p. 57), “Todo o sistema de Direito Administrativo, a nosso ver, se constrói sobre os mencionados princípios da supremacia do interesse público e indisponibilidade do interesse público pela Administração”.

Moreira Neto (p. 138) vê a necessidade de redefinição teórica do interesse público no Estado Democrático de Direito para que ele passe de obstáculo a aspecto essencial da administração pública por consenso. A desconstrução dos velhos dogmas que alicerçaram toda a teoria do direito administrativo nos últimos séculos é tarefa que demanda tempo e muito esforço.

O direito, nas últimas décadas, tem sido construído a partir de novos paradigmas, em que o texto constitucional assume papel determinante, funcionando como fonte normativa superior e não mais um espaço de dispositivos programáticos. Assim, os direitos fundamentais e os princípios são elevados a categoria de normas jurídicas. Com isso, os demais ramos do direito passam a ter a sua formulação a partir da Constituição.

Dentro desse contexto, explica Binenbojm (2005, p. 08) que:

[…] as feições jurídicas da Administração Pública – e, a fortiori, a disciplina instrumental e finalística da sua atuação – estão alicerçadas na própria estrutura da Constituição, a partir das quais o Estado-Administrador deverá organizar para proteger, promover e compatibilizar direitos individuais e interesses gerais da coletividade.

Diante disso, há que se (re)pensar o interesse público tendo como fundamento a sistemática constitucional, comprometida com a proteção e promoção dos direitos fundamentais de maneira que seja compatível com os anseios e necessidades da coletividade. A ideia do interesse coletivo como o único a justificar a atuação da Administração Pública, sobrepondo-se ao privado, precisa ser superada. Como explica Binenbojm (2005, p. 19) as dimensões individual e coletiva convivem, lado a lado, no texto constitucional, conclui que “[…] a expressão interesse público consiste em uma referência de natureza genérica, a qual abarca ambos, interesses privados e coletivos, enquanto juridicamente qualificados como metas ou diretrizes da Administração Pública”. Em outros termos, o interesse público pode se identificar tanto com a implementação de um interesse coletivo como de um interesse privado.

Com isso, o argumento de que são incabíveis soluções negociadas no âmbito da administração pública por afrontar o interesse público não pode prevalecer. A Administração precisa realizar um juízo de ponderação de todos os interesses e atores envolvidos na questão para que chegue a sua máxima realização. E, muitas vezes, o uso de métodos alternativos de solução de litígios é a melhor forma de se atingir o interesse público. É como diz Moreira Neto que o uso da composição de conflito pela Administração Pública não implica em “[…] negociar o interesse público, mas de negociar os modos de atingi-lo com maior eficácia”. (MOREIRA NETO, p. 154).

Não se nega que o interesse público seja o conjunto de interesses gerais da sociedade cuja realização é atribuída ao Estado. Mas ressalta-se que, a partir de uma leitura constitucional do direito administrativo, a sua aferição demanda do administrador público a ponderação, guiada pela proporcionalidade, para atingir o interesse público no caso concreto.

A “indisponibilidade do interesse público” decorre da natureza dos bens protegidos pela Administração Pública, surgindo o dever de realizar, proteger e garantir o interesse público. Contudo, a forma como se dará tal proteção encontra-se dentro da esfera de discricionariedade do poder público, o qual poderá optar pela alternativa que lhe pareça mais eficaz para a satisfação de tal interesse público. Assim, o gestor público, mediante juízo de conveniência e oportunidade pode decidir pela utilização do exercício da autotutela ou da solução negociada.

CONCLUSÃO

A utilização de outros métodos para a solução de conflitos que envolvam a administração pública é medida que vem sendo estimulada e desenvolvida pela legislação, com a preocupação de conferir maior estabilidade e efetividade às relações administrativa e, desse modo, o melhor cumprimento dos serviços públicos.

A aceitação de medidas negociadas no âmbito do Poder Público encontra resistência tendo em vista que a teoria tradicional do direito administrativo é ancorada nos dogmas da supremacia e indisponibilidade do interesse público. Todavia, com base no moderno direito constitucional, é preciso (re)pensar o conceito de interesse público, como fim do Estado.

O interesse público deve ser voltado para os fundamentos, fins e limites a que se subordinam os atos e medidas do Poder Público. No texto constitucional encontram-se estampados valores que representam os interesses públicos, que ora indicam para a coletividade ou para o indivíduo. Com isso, impõe-se ao administrador o dever jurídico de ponderar os interesses em jogo, sempre voltando-se à máxima concretização do interesse público, seja ele individual ou coletivo.

Assim, o interesse público sai da condição de obstáculo intransponível para o uso de métodos alternativos de solução de conflitos no âmbito da administração pública para transformar-se em pilar de sua sustentação.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tania; CRESPO, Mariana Hernandez. (Orgs.) Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil.Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012,

BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. Revista de Direito Administrativo, v. 239, p. 1–32, 2005. DOI: 10.12660/rda.v239.2005.43855.

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CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 2002.

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[1] Doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Procurador do Estado de São Paulo. Professor da Universidade de Marília.

[2] Mestre em direito pela Universidade de Marília – UNIMAR; Especialista em direito público pela Universidade Potiguar – UNP, Advogado e Professor titular de direito processual civil da Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE.

[3] Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do Centro de Educação e Pesquisa Almeida & Aguiar. Advogado.

[4] Pós-Doutorado em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Professor Titular da Universidade de Marília. Advogado.

[5] Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista. Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista. Professora da Universidade de Marília. Psicóloga.