EVOLUÇÃO DA INTERPRETAÇÃO DA PARIDADE DE ARMAS DIANTE DAS TEORIAS DO PROCESSO, DOS MODELOS PROCESSUAIS ESTATAIS E DA VIRADA TECNOLÓGICA

EVOLUÇÃO DA INTERPRETAÇÃO DA PARIDADE DE ARMAS DIANTE DAS TEORIAS DO PROCESSO, DOS MODELOS PROCESSUAIS ESTATAIS E DA VIRADA TECNOLÓGICA

31 de maio de 2023 Off Por Cognitio Juris

EVOLUTION OF THE INTERPRETATION OF PARITY OF ARMS IN THE FACE OF PROCESS THEORIES, STATE PROCEDURAL MODELS AND THE TECHNOLOGICAL TURN

Artigo submetido em 10 de março de 2023
Artigo aprovado em 16 de março de 2023
Artigo publicado em 31 de maio de 2023

Cognitio Juris
Ano XIII – Número 46 – Maio de 2023
ISSN 2236-3009

Autor:
Rafael Drumond Pires Viana[1]

RESUMO: As assimetrias entre partes no tocante à produção probatória e outras faculdades processuais, que já eram grandes em meados do século XX, foram ampliadas com a utilização de ferramentas decorrentes da inteligência artificial por grandes litigantes pós virada tecnológica no Direito Processual. Como o cenário de desigualdade preocupa e pode gerar consequências, realizamos uma análise histórica da interpretação do conceito da paridade de armas de acordo com as teorias do processo e os modelos processuais estatais, por meio de revisão bibliográfica e do Processualismo Jurisdicional Democrático, a fim de verificar uma possível evolução interpretativa e qual seria o seu grau de mínimo de exigência da garantia. A partir disso, foram perquiridas possíveis consequências da utilização desigual de ferramentas tecnológicas com fins processuais e lançadas luzes para discussões sobre medidas para atenuar os contrastes.

PALAVRAS-CHAVE: PARIDADE DE ARMAS – TEORIDAS DO PROCESSO – MODELOS PROCESSUAIS ESTATAIS – VIRADA TECNOLÓGICA – INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

ABSTRACT: The asymmetries between parties regarding the production of evidence and other procedural powers, which were already large in the mid-twentieth century, were expanded with the use of tools arising from artificial intelligence by large litigants after the technological turn in Procedural Law. As the scenario of inequality is worrying and can have consequences, we performed a historical analysis of the interpretation of the concept of parity of arms according to the theories of the process and the state procedural models, through a bibliographical review and the Democratic Jurisdictional Processualism, in order to verify a possible interpretative evolution and what would be the minimum degree of requirement of the guarantee. From this, possible consequences of the unequal use of technological tools for procedural purposes were inquired and lights were shed for discussions on measures to mitigate the contrasts.

KEYWORDS: PARITY OF WEAPONS – PROCESS THEORIES – STATE PROCEDURAL MODELS – TECHNOLOGICAL TURN – ARTIFICIAL INTELLIGENCE

1. Introdução

A ideia de garantir igualdade entre as partes envolvidas em processos judiciais nem sempre foi abordada de forma abrangente e consistente nos sistemas jurídicos. Em muitos casos, a paridade de armas não recebeu a devida atenção das teorias e modelos processuais. Apesar disso, embora de forma não linear e uniforme, a interpretação dessa garantia evoluiu ao longo do tempo, com uma tendência geral em direção a uma compreensão mais material e concreta dessa igualdade, em contraposição a uma abordagem estritamente formalista.

Mas fato é que sempre houve desigualdades entre litigantes. Em princípio, relacionadas a possibilidade de contar com melhores advogados e maior facilidade de acesso aos julgadores e ao próprio Poder Judiciário.

A partir do século XX, contudo, houve uma mudança na dinâmica dos processos judiciais, favorecendo litigantes que estavam mais familiarizados com demandas repetitivas, em detrimento daqueles que raramente precisavam recorrer aos tribunais. Isso se deu em grande parte graças ao surgimento de uma advocacia especializada e estratégica, que buscava obter resultados favoráveis em grande escala.

Se o panorama já era de contrastes, ele foi ampliado com o advento da virada tecnológica no Direito Processual, quando a introdução de novas tecnologias, influenciadas pela adoção de medidas neoliberais de supervalorização da eficiência e da celeridade, aceleraram as etapas de virtualização de procedimentos, automatização de tarefas e transformação dos modos de ação e trabalho.

 Desde o momento em que os grandes litigantes, fazendo uso destas tecnologias, conseguiram canalizar a análise e a mineração de dados para fins processuais, eles passaram a gozar de novas vantagens no tocante à produção probatória, ao gerenciamento de risco de processos e outras faculdades processuais. Por outro lado, os pequenos litigantes, que já sofriam desvantagens antes mesmo da virada tecnológica no direito processual, ficaram ao largo de boa parte das inovações e, consequentemente, tiveram sua assimetria ampliada em relação aos grandes litigantes.

Como a crescente assimetria informacional entre litigantes na era digital gera preocupações e consequências que precisam ser consideradas, no próximo tópico deste artigo, discutiremos como litigantes experientes já se beneficiavam de vantagens desde o século passado para defender apenas seus interesses pessoais, seja em juízo ou extrajudicialmente. Além disso, exploraremos como a ascensão do neoliberalismo impulsionou a utilização de tecnologias de inteligência artificial no Direito Processual, abrindo caminho para novas ferramentas com fins processuais.

Uma vez elucidado esse cenário, será perquirido qual seria a abrangência da garantia de paridade de armas entre partes, ou qual seria a sua exigência mínima. A história do Direito Processual revela momentos de maiores e menores preocupações distributivas entre litigantes. E a interpretação variou de acordo com as teorias do processo e os modelos processuais estatais que prevaleceram.

Mais adiante, discorremos sobre as teorias do processo no contexto dos modelos processuais estatais, com o objetivo de identificar qual foi o alcance da exigência de paridade de armas em cada um dos casos. O objetivo do ensaio histórico é, possivelmente, perceber uma evolução na interpretação da paridade de armas, para, posteriormente, indagar como seria a sua interpretação perante o Processualismo Jurisdicional Democrático, o modelo constitucional de processo e a norma fundamental processual contida no atual CPC.

 Isso será feito por meio de revisão de literatura e do processualismo jurisdicional democrático, marco teórico adotado para este artigo. Em sua obra “Prcesso Jurisdicional Democrático”, na qual foi desenvolvido o referido marco teórico, Dierle Nunes realiza uma análise crítica dos modelos processuais estatais até propor que, da constante tensão entre os modelos, é possível extrair as melhores características para criar um sistema comparticipativo e policêntrico, sem protagonistas, compatível com o Processo Constitucional, no qual o juiz assume a função de garantidor dos direitos fundamentais, inclusive os processuais, e a construção das decisões é fruto do mais adequado debate democrático (NUNES, 2012).

Somente compreendendo a abrangência da exigência de paridade de armas para o modelo constitucional de processo e para o Processualismo Jurisdicional Democrático, pode-se, ao final, chegar-se à conclusão de quais serão os desafios, objetivos e as consequências da utilização de ferramentas jurídico tecnológicas de forma assimétrica por litigantes, o que será feito no encerramento deste artigo.

2. A Acentuação da Assimetria Informacional Entre Litigantes

Por mais que diversos autores tenham feito importantes constatações sobre a paridade de armas, o estudo sobre a sua abrangência se justifica e ganha relevância em um contexto de alargamento da assimetria informacional entre litigantes pós virada tecnológica no Direito Processual. Entretanto, antes de abordar este cenário é necessário demonstrar que, mesmo antes da virada tecnológica, os litigantes habituais já gozavam de vantagens em relação aos litigantes ocasionais.

Em Why the Haves Come Out Ahead, GALANTER assevera que, na segunda metade do século vinte, em relação às pessoas jurídicas que mais utilizavam e se beneficiavam dos processos judiciais para a resolução de conflitos, o senso comum foi complacente com: a leviandade corporativa; a busca temerosa por vantagens seletivas; o uso agressivo da litigância e com a ausência de responsabilidade criminal destas. Uma pessoa física qualquer e pouco habituada a solucionar seus conflitos em juízo, por outro lado, sofreria severas consequências, jurídicas e morais, de tais intensões (2018, p. 27).

A prevalência desta mentalidade deu azo a ataques à normas que favoreciam os mais vulneráveis, enquanto os atores que mais se beneficiam do sistema jurídico não tiveram sua capacidade afetada. Estes litigantes, mais habituados ao sistema, acabaram se beneficiando não somente de vantagens estruturais, mas até mesmo culturais e de determinadas prerrogativas exclusivas.

Novamente segundo GALANTER, os referidos litigantes habituais são aqueles players que possuem duas características gerais. A primeira delas é possuir recursos financeiros suficientes para perseguir seus interesses a longo prazo. Já a segunda, é ter vivenciado um repetente contato com demandas similares (2018, p. 47). A junção dessas duas características permitiu-lhes desenvolver estratégias para, mesmo antes da virada tecnológica no Direito Processual, gozar das seguintes vantagens:

  1. Redigir a maioria dos contratos e estruturar transações a partir de um conhecimento prévio (2018, p. 48);
  2. Contar com uma advocacia e demais profissionais especializados para o seu nicho de atuação (2018, p. 48, 72 e 73));
  3. Adotar estratégias calculadas para maximizar ganhos em demandas semelhantes, por mais que isso envolva risco de resultados desfavoráveis em algumas delas (2018, p. 51);
  4. Manipular jurisprudência favorável por meio da interposição de recursos somente em demandas nas quais considera-se haver maiores chances de resultado final favorável (2018, p. 52) e
  5. Exercer lobby político para influenciar na criação legislativa das normas, inclusive sobre as normas da própria litigância (2018, p. 51).

Em resumo, o que se observava até então era que, em diferentes esferas, os litigantes habituais já tinham condições de colocar em pauta o que fosse do seu interesse e prevenir a apreciação do que não fosse (GALANTER, 2018, p. 54 e 55). Ocorre que essa assimetria, que já era relevante, ganhou uma delimitação de contornos ainda mais significativa a partir da virada tecnológica.

A virada tecnológica, a propósito, teve início no contexto de medidas politico-institucionais neoliberais adotadas pelos países, precipuamente a partir da década de 1990, que supervalorizaram a rapidez e a eficiência da vertente decisória, bem como a sistematização de estratégias processuais (NUNES, PAOLINELLI, 2022, p. 17). A partir destes objetivos e de uma armazenação e mineração de dados sensitivamente superior, ocorreu um avanço das três etapas da virada tecnológica, quais sejam: a virtualização dos procedimentos, a automatização de tarefas e a transformação dos modos de ação e trabalho.

Em decorrência desse avanço tecnológico, surgiram novas ferramentas jurídicas com o intuito de obter vantagens processuais voltadas à produção probatória, gerenciamento de risco de processos e celebração de acordos. Mais especificamente, sobressaíram-se as seguintes vantagens:

  1. As legal techs (ferramentas jurídicas) que ampliaram as possibilidades probatórias, a exemplo da utilização de algoritmos para traçar perfis;
  2. A possibilidade de se dificultar o processo de obtenção de provas da parte contrária por meio de sistemas de tecnologia;
  3. O emprego de analytics (jurimetria) para prever decisões judiciais e gerenciar riscos e
  4. A possibilidade de serem utilizados nudges em propostas de acordo com o intuito de enviesar a parte contrária.

 Não obstante, mais uma vez, essas vantagens vêm sendo usufruídas quase que exclusivamente pelos litigantes habituais. E, concentradas essas e outras ferramentas em poder predominante dos litigantes habituais, corre-se o risco do que os professores Engstrom e Gelbach denominam de distopia da litigância, que vem a ser a situação na qual um pequeno grupo de litigantes controlaria as vantagens informacionais decorrentes da tecnologia jurídica (2020, p. 61).

Diante desse quadro, fica clara nossa preocupação com a assimetria informacional entre litigantes, o que justifica, consequentemente, a necessidade de se averiguar qual é o grau de equivalência de utilização de meios e faculdades processuais pelas partes para o Processualismo Jurisdicional Democrático  e modelo constitucional de processo.

3. A Paridade de Armas para as Teorias do Processo no Contexto dos Modelos Estatais da Modernidade

Conforme adiantado na introdução, para constatar o grau de paridade de armas exigido entre partes, faz-se necessário analisar quais foram as interpretações que prevaleceram ao longo da história recente do Direito Processual, de acordo com as diferentes teorias do processo e modelos processuais estatais. A breve pesquisa histórica permitirá compreender, de acordo com o marco teórico adotado, qual é a abrangência atual da paridade de armas, para, posteriormente, lançar luzes sobre quais são os riscos e quais deverão ser as consequências da utilização assimétricas de ferramentas da inteligência artificial com fins processuais.

3.1. Paridade de Armas Para a Teoria do Processo como Contrato no Contexto do Liberalismo Processual

O primeiro momento de maior preocupação com o Direito Processual ocorreu em meio às revoluções liberais do século XIX, com destaque para a Revolução Francesa. Com as revoluções e o Iluminismo, prevaleceu a perspectiva liberal, fruto da concepção de Estado Liberal-burguês de que os cidadãos seriam autossuficientes e que não necessitariam da intervenção estatal para a defesa de seus direitos (NUNES, 2012, p. 56-57).

Tamanho privatismo, aliada aos fatos de que, até então, os sistemas processuais eram marcados por normas heterogêneas e esparsas (TARUFO, 1980, p. 7-8), bem como pela pluralidade de jurisdições, gerou a necessidade de construção de um novo modelo que atendesse aos interesses burgueses e que solucionasse seus conflitos privados, tudo isso afastando ao máximo ingerência estatal. Foi com base nesses pressupostos que foram elaboradas as primeiras grandes codificações processuais, tal qual o Código de Processo Civil Francês de 1806.

A principal consequência da influência do liberalismo no processo foi a supervalorização do princípio dispositivo, que quase não abria exceções para inciativas do juiz e decisões de ofício, de modo que as partes, através de seus advogados, se tornaram protagonistas e responsáveis pela marcha processual. Lado outro, o juiz tornou-se um mero espectador passivo, sem qualquer possibilidade de interpretação que não respeitasse estritamente a autonomia da vontade (NUNES, 2012, p. 76-78).

 Outras características marcantes foram, dentro de um traço formalista e de distanciamento do juiz, a preferência da escritura em detrimento da oralidade, a proibição da imediatidade do juiz com as partes e provas e a utilização de um sistema tarifário de valoração de provas (NUNES, 2012, p. 64-65). Nesse contexto, o processo passou a ser visto como pertencente às partes ou, em outras palavras, como um contrato ou quase contrato.

Sobre a abrangência da paridade de armas no período, exigia-se somente uma mera paridade formal entre as partes, já que se pressupunha, de forma equivocada, que todos teriam os mesmos direitos e as mesmas condições econômicas e sociais (DENTI; TARUFFO, 2004, p. 20). Ou seja, bastava que as partes tivessem, em tese, as mesmas oportunidades, pouco importando se, por diferentes motivos, uma das partes estivesse mal representada ou não representada por advogado e, muito menos, se tivesse dificuldade de produzir determinado tipo de prova, enquanto a outra tivesse facilidade.

Esse ponto de vista estritamente formal da paridade de armas prejudicou especialmente os litigantes com menos recursos para contratar advogados, posto que, na prevalência do liberalismo processual e, consequentemente, do protagonismo das partes, aquelas que possuíssem advogados mais bem talhados, que se valiam de táticas protelatórias e recursos e táticas abusivas, levavam ampla vantagem (NUNES, 2012, p. 65). Agravando ainda mais o quadro, em certos momentos, os juízes não eram escolhidos por critérios técnicos e eram remunerados pelas próprias partes, gerando arbitrariedades e privilégios para os litigantes mais fortes (DENTI, TARUFFO, 2004, p. 15-17).

Sendo assim, durante o liberalismo processual e quando o processo era percebido como um contrato entre as partes, a paridade de armas era estritamente formal e não havia maiores preocupações distributivas no tocante às desigualdades de condições probatórias, sobretudo considerando que, dada a supervalorização do princípio dispositivo, a atuação do juiz ficava limitada à condição de mero espectador e homologador da autonomia da vontade das partes.

3.2. Paridade de Armas Para a Teoria do Processo como Relação Jurídica no Contexto da Socialização e da Pseudo-Socialização (Neoliberalismo) Processuais

A igualdade formal alcançada com as revoluções liberais do século XIX não foi suficiente para solucionar problemas decorrentes da profunda desigualdade social que persistia na virada do século XX. Neste mesmo século, grandes crises financeiras e guerras demandaram maior atuação estatal para reconstruir as sociedades. Especialmente no segundo pós-guerra, o Estado colocou-se no papel de promotor da economia e da organização social.

No campo processual, a visão contratualista do processo e o liberalismo processual haviam ocasionado degenerações e insatisfações com as desigualdades entre partes, que não foram amenizadas por uma atuação do Judiciário. O resultado foi uma busca por, de um lado, o enfraquecimento do papel das partes e do legislador e, do outro, a atribuição do protagonismo do processo ao juiz, o que teve início na Alemanha com as propostas de Menger, Klein e Bülow de criação de novo modelo processual (BAHIA, NUNES, PEDRON, 2021, p. 88).

Levando em conta esse objetivo, foi desenvolvida a Teoria do Processo como Relação Jurídica, que compreendia o processo não mais como um negócio entre as partes, mas como uma relação jurídica pública e autônoma, independente da relação de direito material. Ela também é trilateral (entre autor, réu e juiz), complexa (há direitos, deveres e ônus entre as partes) e dinâmica (desenvolve-se progressivamente até um ato final) – WAMBIER, 2015, p. 172 e 173. Seus grandes méritos foram perceber o processo como público e, principalmente, diferenciar a relação de direito material da relação de direito processual (DIAS, 2018, p. 107).

Ao delegar tamanha importância à figura do magistrado, esta teoria partia do pressuposto de que os juízes seriam – ou deveriam ser – operadores do direito com distinto conhecimento jurídico, social e econômico, capazes de serem os porta-vozes do sentimento jurídico do povo. Para BÜLLOW, o juiz chegaria ao ponto de criar o direito, ainda que contra legem (2003, p. 37).  No Brasil, ganhou destaque a pesquisa de DINAMARCO, que defendeu que o instrumentalismo do processo seria positivo para, em conjunto com uma suposta sabedoria e sensibilidade do magistrado, realizar escopos metajurídicos (sociais, políticos e econômicos), compensando eventuais déficits de igualdade entre as partes (2001, p. 270-273).

Essas caraterísticas, aliadas à predileção da oralidade sobre a escritura, representaram a era da socialização processual, em ruptura com o liberalismo processual. Contudo, conforme aprofundaremos mais adiante, a exagerada aposta exclusivamente no Estado-juiz conduziu à um ativismo judicial e no desprezo das alegações e contribuições das partes, o que gera reflexos até os dias de hoje (BAHIA, NUNES, PEDRON, 2021, p. 93).

Posteriormente, na segunda metade do século XX e, sobretudo a partir da década de 1990, medidas neoliberais implementadas principalmente por países em desenvolvimento geraram a supervalorização da celeridade e da eficiência decisória para atender certas diretrizes definidas pelo mercado financeiro no Consenso de Washington (NUNES; PAOLINELLI, 2022, p. 16-17). Apesar de se imaginar que a adoção de medidas neoliberais em âmbito processual geraria uma menor interferência do Estado-juiz nos conflitos, na verdade, o que se buscou foi a abstenção de um intervencionismo no tocante a implementação da função socializadora do processo. Noutra via, estimulou-se o ativismo judicial para atender aos interesses do mercado financeiro.

Via de consequência, ocorreu uma desnaturação da socialização processual pelo neoliberalismo, mantendo o protagonismo judicial precipuamente para, além de atender aos imperativos do mercado financeiro, (i) gerar uniformidade de decisões da forma mais rápida possível e sem preocupações com as peculiaridades dos casos concretos e (ii) simplificar etapas processuais, mesmo em prejuízo ao contraditório e em renúncia à oralidade.

Com essas explicações, fica claro que a socialização processual, em conjunto com a Teoria do Processo como Relação Jurídica, procurou suprir desigualdades entre as partes, inclusive no tocante à paridade de armas, atribuindo o protagonismo do processo ao juiz, que, sendo um operador do direito com profundos conhecimentos em diversas áreas do conhecimento, seria apto a compensar prejuízos. Entretanto, o modelo e a teoria em questão são falhos.

Na socialização processual, corre-se enorme risco de que a visão do magistrado esteja deturpada por enviesamentos que impliquem em desfavorecimento de partes e, consequentemente, em assimetrias na paridade de armas, formal e material. Tanto assim, que o neoliberalismo foi capaz de induzir um ativismo judicial para atender os interesses do mercado financeiro, assim como impor uma agenda de reformas e concepções processuais necessárias para garantir celeridade e uniformidade de decisões.

Diferentemente disso, jamais ocorrerá um verdadeiro avanço nos sistemas de justiça caso o aperfeiçoamento na formação fique restrita aos magistrados, e não atinja os demais operadores do direito (NUNES, 2012, p. 104). O aprimoramento geral favoreceria, inclusive, maior paridade de armas entre as partes.

Já a Teoria do Processo como Relação Jurídica, embora, repita-se, tenha o mérito de reconhecer a relação processual como pública e distinta da relação de direito material, ao reduzir a importância das partes e superestimar o papel do juiz, inviabiliza que a decisão seja construída considerando todos os argumentos das partes e as peculiaridades do caso concreto (NUNES, 2012, p. 176). Com isso, a teoria reduziu o processo à mero instrumento da jurisdição, formado por um conjunto de vínculos de subordinação ao juiz, sem que houvesse maiores preocupações distributivas materiais.

3.3. Paridade de Armas para a Teoria do Processo como Procedimento em Contraditório

Como visto, uma das principais críticas à Teoria do Processo como Relação Jurídica foi que, por meio dela, o processo poderia acabar servindo para legitimar as supostas pré-compreensões privilegiadas do juiz (NUNES, 2012, p. 105), desconsiderando a importância das contribuições das partes na construção da decisão final. Outra crítica relevante era que, ainda que a mencionada teoria tenha vislumbrado a existência de dois planos de relações – a material e a processual – ela ainda trazia a influência da visão contratualista do processo, na medida em que enxergava o processo como um conjunto de obrigações entre as partes e o juiz.

Com o intuito de solucionar esses problemas, que geraram, e ainda geram, gravíssimos prejuízos na elaboração e na interpretação de normas processuais, foram desenvolvidas novas teorias do processo, que, em comum, almejavam retomar um papel mais ativo e de maior influência das partes. Em um primeiro momento, a pesquisa que mais se destacou em contraposição à Teoria do Processo como Relação Jurídica foi a Teoria do Processo como Procedimento em Contraditório, desenvolvida pelo italiano Elio Fazzalari.

O ponto inicial da Teoria Fazzalariana é a diferenciação entre procedimento e processo, que seria essencial para definir o conceito e a finalidade do processo. Para FAZZALARI, o procedimento é um conjunto de atos preparatórios, regulado por uma estrutura normativa, visando um provimento. O provimento, por sua vez, é um ato estatal de caráter imperativo que encerra o procedimento (1989, p. 7-8). Em outras palavras, o procedimento é uma preparação para um provimento.

Enquanto isso, o processo seria uma espécie do gênero procedimento. Um procedimento só se tornaria um processo quando estivessem presentes dois requisitos essenciais, quais sejam: a participação dos interessados e, principalmente, a existência do contraditório entre eles (FAZZALARI, 1989, p. 57-58).

Cabe ressaltar, que Fazzalari promoveu uma releitura do contraditório, que deixou de ser visto como simples direito de defesa e participação. O contraditório seria, isso sim, uma garantia de participação em simétrica igualdade de oportunidades, em virtude do qual a contribuição dos destinatários é essencial para a formação da sentença (GONÇALVES, 2012, p. 152). Somente dessa forma os jurisdicionados ganham a relevância necessária para interferir na preparação do provimento jurisdicional e, automaticamente, entender como nasceu o ato estatal que interferirá nos seus direitos.

E o contraditório não deve ser observado apenas em determinados momentos processuais, mas sim antecipadamente em todos os módulos processuais, como forma de ampliação da participação dos interessados no provimento final (FAZZALARI, 1958, p. 861-862). Essa ideia de estrutura normativa levou, inclusive, a que a teoria fosse conhecida como Teoria Estruturalista do Processo (DIAS, 2018, p. 42).

A partir dessas conclusões e considerando, também, que o processo não envolve vínculos obrigacionais, mas sim garantias de participação, Fazzalari afastou a concepção do processo como relação jurídica, conforme melhor explicado por Gonçalves, responsável por trazer a Teoria Fazzalariana ao Brasil, no seguinte trecho de sua obra:

O conceito de relação jurídica é o de vínculo de exigibilidade, de subordinação, de supra e infraordenação, de sujeição. Uma garantia não é uma imposição, é uma liberdade protegida, não pode ser coativamente oferecida e não se identifica como instrumento de sujeição. Garantia é liberdade assegurada. Se o contraditório é garantia de simétrica igualdade de participação no processo, como conciliá-lo com a categoria de relação jurídica? Os conceitos de garantia e de vínculo de sujeição vêm de esquemas teóricos distintos. O processo como relação jurídica e como procedimento realizado em contraditório entre as partes não se encontram no mesmo quadro, e não há ponto de identificação entre eles que permita sua unificação conceitual. (GONÇALVES, 2012, p. 113).

Acerca do entendimento de que o juiz, dotado de incrível saber, seria responsável por compensar desigualdades entre as partes mediante a aplicação de escopos metajurídicos (sociais, políticos, entre outros), como foi defendido por DINAMARCO (2001, p. 270-273), GOLÇALVES pontuou que, na realidade, todos os escopos são jurídicos, na medida em que foram acolhidos na ordem constitucional pela sociedade através do devido processo legal.

Aplicando o raciocínio acima, na ciência do Direito Processual Civil, não haveria outro escopo a ser observado pelo juiz a não ser o próprio ordenamento jurídico, eis que ele já contempla todas as ideologias sociais e políticas que o formaram. A consequência disso seria a limitação das possibilidades interpretativas do magistrado ao alcance pré-determinado pelo legislador.

Com isso, a Teoria Fazzalariana deu um importantíssimo passo adiante ao perceber que o processo não é somente um instrumento garantidor da aplicação do direito material. Não é mera técnica. Na verdade, para Fazzalari o processo é um garantidor do contraditório em simétrica paridade de armas em procedimentos.

Esclarecidas as bases acima, dentro do objetivo deste artigo, se faz necessário identificar qual seria o grau de exigência mínima e de abrangência da paridade de armas para a Teoria do Processo como Procedimento em Contraditório. Nas obras de Fazzalari e Gonçalves, a todo momento, foram feitas menções à exigência de simétrica paridade de participação para que seja verificado o verdadeiro contraditório (FAZZALARI, 1989, p. 80 e GONÇALVES, 2012, p. 109).

Dois pontos da interpretação da paridade de armas na Teoria Fazzalariana merecem destaques. O primeiro deles, mais facilmente constatável, é que a paridade de oportunidades e de participação deve ser simétrica. Nenhuma parte pode ter uma sequer oportunidade a mais do que a outra, por menor que seja.

O segundo deles é que, pelo menos a princípio, a exigência de simétrica paridade refere-se somente à oportunidade de participação, e não às condições de participação, consoante os seguintes trechos:

Hoje, seu conceito (de contraditório) evoluiu para de garantia de participação das partes, no sentido em que já falava Von Jhering, em simétrica paridade de armas, no sentido de justiça interna no processo, de justiça no processo, quando as mesmas oportunidades são distribuídas com igualdade às partes. (Destacamos) (GONÇALVES, 2012, p. 103).

O contraditório é a igualdade de oportunidades no processo, é a igual oportunidade de tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei.

É essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório enquanto garantia de simétrica paridade de participação no processo. (Destacamos) (GONÇALVES, 2012, p. 109)

Os fragmentos reproduzidos, levam a crer que, na Teoria Fazzalariana, o contraditório requer apenas que as partes tenham uma simétrica oportunidade de participação. Isto é, que a paridade de armas seria apenas formal e que o fato de uma parte não possuir condições materiais de exercer determinada faculdade processual seria irrelevante, desde que para ela fosse dada a oportunidade.

Essa impressão se confirma quando se considera a principal crítica sofrida pela Teoria Estruturalista do Processo, qual seja, a de que ela carece de uma preocupação com a aplicação dinâmica dos demais princípios constitucionais e trabalha exclusivamente com a técnica processual (NUNES, 2012, p. 207). Dentre os demais princípios constitucionais, cuja aplicação processual foi olvidada por Fazzalari, estão os da igualdade e o direito de produção de prova, que poderiam levar à uma aproximação material entre partes.

3.4. A Paridade de Armas para a Teoria Constitucionalista do Processo, Sob a Ótica do Processualismo Jurisdicional Democrático, no Contexto de Embate Entre o Liberalismo, a Socialização e o Neoliberalismo Processuais

A Teoria Estruturalista do Processo percebeu que não existem vínculos obrigacionais entre as partes, mas sim garantia de participação em simétrica paridade na formação das decisões. Percebeu, também, que as decisões não devem ser fruto de concepções prévias privilegiadas do magistrado, mas sim construídas no debate. Estas assimilações foram fundamentais para que se alcançasse uma procedimental democratização do processo (NUNES, 2012, p. 208).

Entretanto, a Teoria Fazzalariana descuidou-se da tendência de constitucionalização do processo, que ocorreu a partir do momento em que os Estados Democráticos de Direito estabeleceram, nos textos constitucionais, além do contraditório, múltiplas garantias processuais (DIAS, 2018, p. 108-109).

Um dos primeiros passos para tanto foi a Declaração dos Direitos Universais do Homem de 1948, que estabeleceu os direitos de ser ouvido “em condições de plena igualdade”, perante tribunal independente, imparcial e com direito a recurso. Concomitantemente, de acordo com GALEOTTI, o processo, como garantia constitucional, se consolidou a partir das Constituições do Século XX, quando as garantias processuais decorrentes dos direitos da pessoa humana se tornaram efetivas e exequíveis (1950).

BARACHO afirma que a constitucionalização do processo parte de determinadas premissas, das quais destacamos as seguintes: (i) reconhecimento da supremacia da Constituição sobre as normas processuais; (ii) o processo é uma garantia constitucional da pessoa humana e (iii) as leis processuais não podem tornar ilusórias as garantias processuais, nem privar o indivíduo de razoável oportunidade de fazer valer seu direito (2004, p. 69-70).

Imbuído destes pressupostos, o mexicano Héctor Fix-Zamudio, que, conquanto não tenha abandonado completamente a concepção do processo como relação jurídica (PIMENTA, 2020, p. 262), foi um dos grandes precursores da Teoria Constitucionalista do Processo, defendeu que o objetivo essencial do processo constitucional é assegurar a prevalência das garantias constitucionais. Em outras palavras, os direitos fundamentais estabelecidos nas constituições só são materializados e concretizados se assegurados pelas garantias processuais, que também protegem o próprio exercício da função jurisdicional (FIX-ZAMUDIO, 1977).

E qual seria o modelo processual estatal mais apto a permitir a efetividade das garantias propostas por este modelo constitucional de processo? Quem deveria ser o protagonista do sistema?

De acordo com o defendido por NUNES na obra “Processo Jurisdicional Democrático”, marco teórico adotado para este artigo, tanto o liberalismo, quanto o socialismo processual, ou mesmo a pseudo-socialização (neoliberalismo processual), inviabilizam que as decisões judiciais sejam construídas com a participação de todos os sujeitos processuais e levando em consideração as particularidades do caso concreto (2012, p. 176).

Haja vista o exposto nos tópicos acima, o liberalismo processual, ao tornar o juiz um mero espectador passivo, gerou profundas desigualdades entre as partes, fazendo com que, frequentemente, as decisões favorecessem os litigantes com condições de contar com melhores advogados. Já o socialismo processual, ao atribuir maior protagonismo ao juiz, por vezes com o intuito de promover escopos metajurídicos, exagerou na dose, a ponto desconsiderar a importância da participação democrática das partes na construção das decisões. A tônica neoliberal, por sua vez, se mostrou mais inadequada ainda, eis que só demonstrou interesse em um papel ativista judicial para atender a interesses de determinados atores do mercado e, sobretudo, por fazer crer que os únicos aspectos relevantes do processo seriam a eficiência e a celeridade, ainda que à custa da privação de garantias processuais.

Nesse contexto em que nenhum dos modelos se mostrou apto, NUNES propõe que, do embate entre o liberalismo e o socialismo processual, extrai-se o abandono dos protagonismos e a interdependência de todos os sujeitos processuais, em perspectiva policêntrica e comparticipativa, visando a implementação dos direitos fundamentais (2012). A proposta pode ser resumida nos seguintes trechos da obra:

Segundo os pressupostos da presente obra, na perspectiva democrática, será possível enxergar o processo não somente em sua dimensão técnica e de eficiência, de estrutura formal de construção dos provimentos, realizada em simétrica paridade de armas (FAZZALARI, 1958), mas também como estrutura de legitimação e formação dos provimentos, balizada por princípios processuais constitucionais dinâmicos, o que permitirá um controle formal e material das decisões e fornecerá os elementos constitutivos do seu conteúdo, mediante fluxo discursivo de todos os participantes (do imparcial e dos imparciais). (NUNES, 2012, p. 196)

Como uma das bases da perspectiva democrática aqui defendida, reside na manutenção da tensão entre perspectivas liberais e sociais, a comunidade de trabalho deve ser revista em perspectiva policêntrica e comparticipativa, afastando qualquer protagonismo e se estruturando a partir do modelo constitucional de processo. (NUNES, 2012, p. 215)

Disso se infere que, no contexto do embate entre o liberalismo e a socialização processual, sob a ótica do Processualismo Jurisdicional Democrático, o juiz não é o protagonista do sistema, mas um sujeito processual responsável por, dentre outras funções, garantir a eficácia dos direitos fundamentais. Isso não significa, contudo, que o juiz democrático deva ser indiferente à realidade social. Na verdade, o juiz deve, além de garantir a aplicação dos direitos fundamentais, assumir uma função institucional decisória, em um sistema de regras e princípios, com substrato extraído da propícia valoração do debate endoprocessual (NUNES, 2012, p. 199-200).

Desse modo, de acordo com o Processualismo Jurisdicional Democrático e o modelo constitucional de processo, a Constituição assegura diferentes garantias processuais, e não somente a do contraditório. Dentre estes direitos, estão os de produção probatória e de igualdade entre as partes, tratados por José Alfredo Baracho no trecho a seguir:

“O direito à prova correlaciona-se com a garantia constitucional da ação, bem como com o princípio geral da liberdade de prova. A norma jurídica que propõe limites absolutos à prova, deve ser considerada inconstitucional.

Outra regra técnica é a que se refere ao princípio da paridade dos litigantes. A paridade visa propiciar a projeção endoprocessual do princípio constitucional da igualdade formal. A organização do processo civil beneficia-se do princípio da igualdade, no sentido formal. Assegura-se, assim, a paridade de tratamento nas situações objetivamente similares.” (BARACHO, 2004, p. 79).

A liberdade probatória e a igualdade entre partes podem estar em aparente conflito caso uma das partes possa contar com faculdades processuais significativamente maiores do que a outra. É o caso, por exemplo, das vantagens de litigantes habituais em decorrência de sua familiaridade com determinados tipos de demandas, associada ao uso de ferramentas tecnológicas pós virada tecnológica no direito processual, conforme abordado no tópico 2 deste artigo.

Dentro do proposto para este estudo, para solucionar possível conflito entre estas duas garantias, é necessário apurar qual o grau de paridade de armas exigido pelo marco teórico adotado. Por mais desejável que fosse que todas os litigantes tivessem as mesmas condições de defender seus interesses em juízo, incluindo possibilidades probatórias, gerenciamento de riscos e demais faculdades processuais, não há como exigir uma simétrica paridade de armas material entre partes, tampouco o Processualismo Jurisdicional Democrático e o modelo constitucional de processo o fazem.

Em geral, as constituições do século XX de viés mais garantista dos direitos fundamentais asseguram amplo direito de produção probatória. No caso brasileiro não foi diferente, sendo constitucionalmente protegidos os “meios e recursos” inerentes ao exercício do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV) e inadmissíveis somente as provas obtidas por meios ilícitos (CF, art. 5º, LVI). Seguindo igual norte, segundo o art. 369 do CPC, as partes têm o direito de empregar os meios legais e moralmente legítimos para provar os fatos em que se fundam seu pedido ou a sua defesa.

Diante disso, em regra, o juiz garantidor dos direitos fundamentais não pode impedir que uma parte exerça o gozo de certa faculdade processual à que a outra parte não detenha acesso. Isso não significa, contudo, que as assimetrias, sobretudo as exacerbadas, não devam gerar consequências entre partes e sistêmicas.

Entre partes, a desigualdade não pode ser tamanha a ponto de impedir uma participação proporcionalmente adequada de um dos envolvidos, nem inviabilizar a sua influência na construção das decisões. Levando em consideração que a perspectiva democrática somente se implementará mediante a percepção do policentrismo processual, que exige que todos os atores envolvidos desempenhem suas funções de modo técnico racional e responsável (NUNES, 2012, p. 255), desproporções de grande monta requerem medidas do julgador para minorar assimetrias, mas mantendo, sempre que possível, as liberdades probatórias.

Já do ponto de vista sistêmico, passa a ser dever do Poder Judiciário ter como meta a adoção de medidas gerais que facilitem o uso de faculdades processuais por todas as partes, desde que não impliquem em favorecimentos, e sim na promoção de um grau maior de igualdade.

Portanto, a Teoria Constitucionalista do Processo realmente representou um avanço em relação às anteriores, sobretudo por compreender o próprio processo como uma garantia constitucional e o papel do processo como garantidor dos direitos fundamentais. Da mesma forma, o Processualismo Jurisdicional Democrático contribuiu com a bem-vinda proposta de afastar os protagonismos tão evidentes durante o liberalismo e a socialização processual, a fim de propiciar uma democratização processual.

 Mesmo frente à estas perspectivas, não há como se exigir uma simétrica paridade material de armas entre partes, por mais desejável que fosse, sob pena de violar o direito de utilização de faculdades processuais, inerente ao exercício da ampla defesa. O que deve ser buscado são medidas nos casos concretos e sistêmicas que atenuem a desigualdades, mas sem violar a ampla defesa e que diminuam desproporções extremas.

4. As Consequências da Utilização Assimétrica de Vantagens Tecnológicas com Fins Processuais Sob a Ótica do Processualismo Jurisdicional Democrático

De acordo com Engstrom e Gelbach, o cenário ideal seria aquele que as partes e o juízo tivessem acesso igualitário ao conhecimento e à possibilidade de emprego de ferramentas da inteligência artificial, de modo que não houvesse preocupações distributivas (2020). Todavia, a perspectiva conjuntural é distante do aludido quadro. Na verdade, o risco é muito maior de que ocorra o que os mesmos autores denominam de distopia da litigância, situação na qual apenas um pequeno grupo de litigantes controlaria as vantagens informacionais decorrentes da tecnologia jurídica (ENGSTROM e GELBACH, 2020, p. 61).

O problema também não estaria completamente solucionado se a assimetria for pequena entre autor e réu, mas grande entre eles e o juiz. Nessa hipótese, ocorrerá uma supremacia da litigância bilateral, na qual o papel do juiz perde relevância (ENGSTROM e GELBACH, 2020, p. 60), voltando à um revés do liberalismo processual.

Para evitar esses e outros riscos, é necessário amplo debate sobre o uso da tecnologia no campo processual. Não se olvida que o uso cada vez mais maciço de ferramentas jurídico tecnológicas promoverá releituras de institutos e refundação de técnicas processuais. No entanto, tudo deverá ser feito respeitando as normas fundamentais atinentes ao modelo constitucional de processo (BAHIA, NUNES e PEDRON, 2021, p. 140).

O objetivo deste artigo não é pré-determinar o alcance e as consequências do uso desproporcional de cada ferramenta jurídico tecnológica, mas apenas lanças luzes para interpretações e medidas que minorem assimetrias entre partes e entre elas e o juízo. Para tanto, o ponto de partida necessariamente deve ser as constatações do tópico anterior e o intuito deve ser o de atingir o cenário ideal acima descrito, que coaduna com o marco teórico (MALONE e NUNES, 2022, p. 268-287).

Após o recorte histórico foi possível atestar o acerto e as vantagens do modelo constitucional de processo e do Processualismo Jurisdicional Democrático. Mais especificamente, notamos uma maior aproximação à uma paridade material de armas, embora não se possa falar na sua exigência. O que se exige, nos casos concretos, é uma simétrica paridade formal de armas e a adoção de medidas para atenuar extremas desproporções materiais entre partes.

Grandes faculdades processuais, como as derivadas de ferramentas tecnológicas, também ensejam grandes responsabilidades. A produção de uma prova não usual e dificilmente verificável, como as provas baseadas em algorítmicos ou produzidas no bojo de aplicativos e sistemas tecnológicos próprios, devem vir em conjunto com uma explicação que ateste a confiabilidade do sistema.

Não se trata de qualquer explicação, mas uma que demonstre a transparência do modelo para todos, e não somente para matemáticos ou cientistas da computação, a fim de não tornar a inteligência artificial imune à contestações (O’NEIL, 2016, p. 27). Afinal, permitir que toda e qualquer prova minimamente digital seja considerada válida sem explicabilidade significaria dar carta branca à opacidade.

 Em todo caso, quando a definição do direito demandar esse tipo de prova, mas, em princípio, o ônus probatório não seja da parte que detenha o poder de produzi-la, será fundamental a inversão do ônus da prova. Tal mecanismo já era assegurado pelo art. 6º, VIII, do CDC, nas relações de consumo em que se constatar verossimilhança das alegações ou hipossuficiência do consumidor e quando for necessária uma aplicação dinâmica do ônus da prova, conforme o art. 373, § 3º, do CPC. Mas ganhou ainda mais força com a previsão no art. 42, § 2º da LGPD, que estabeleceu a inversão do ônus da prova em favor do titular dos dados discutidos sempre que for verossímil sua alegação, houver hipossuficiência probatória ou quando a produção da prova pelo titular for excessivamente onerosa (ROSSONI, 2020, p. 385).

Noutra frente, reafirmamos que passa a ser essencial a adoção de medidas pelo Poder Judiciário no âmbito da administração da justiça, para tentar promover uma isonomia geral e prévia de faculdades processuais, garantindo-se a relevância de todos os sujeitos processuais, incluindo o juiz, conforme recomenda o Processualismo Jurisdicional Democrático.

 Primeiramente, porque o juiz, destinatário da prova e garantidor dos direitos fundamentais, não pode ficar completamente alheio ao desenvolvimento de novas ferramentas tecnológicas pelas partes sem nem saber do que se tratam e sem a possibilidade de também fazer o uso delas. Isso acarretaria a diminuição do seu de poder de proferir decisão livre de enviesamentos algorítmicos e tecnológicos.

Segundo, porque uma atuação geral e prévia tem o condão de aproximação do cenário ideal – de condições isonômicas – no qual seriam necessárias menos intervenções distributivas.

 Como sugestão de medida que poderia ser adotada cita-se, por ora, a disponibilização de dados jurisprudenciais com maior grau de mineração para facilitar a previsão de resultados. Para tanto, não se pode perder de vista que, quando se trata de uma política de administração da justiça, tudo é muito complexo e demanda uma série de pesquisas para apurar os riscos envolvidos. Mesmo assim, é bom que se tenha este propósito, que é uma das formas de solucionar grandes desigualdades entre partes.

Destarte, sob a perspectiva do modelo constitucional de processo e do Processualismo Jurisdicional Democrático, muito embora não seja exigida uma paridade material de armas, a acentuação da assimetria informacional entre litigantes pós virada tecnológica intensificou a necessidade de adoção de medidas para atenuar a desproporção, entre partes e sistêmica.

5. Conclusão

Em um primeiro momento de maior relevância do estudo do direito processual, fortemente influenciado pelo liberalismo, o processo foi visto como um contrato entre as partes, que assumiram o protagonismo do sistema e fizeram com que o juiz se colocasse na posição de mero espectador. Na prevalência desta visão, não houve grandes preocupações com desigualdades de condições de gozo das faculdades processuais entre as partes.

Noutro período, com a interferência de uma socialização promovida pelos Estados para solucionar problemas decorrentes de grandes guerras, o processo foi percebido como uma relação jurídica e buscou-se atribuir maiores poderes e responsabilidades ao juiz para amenizar desigualdades de condições entre as partes. A socialização processual também chegou a ser desnaturada pelo neoliberalismo, a fim de direcionar o ativismo judicial para atender a interesses de determinados atores do mercado financeiro e para transformar a eficiência e a celeridade em princípios com força valorativa acima dos demais.

Só que tamanho protagonismo do magistrado durante a socialização, assim como no liberalismo, não foi capaz de induzir à análise da interpretação da paridade de armas além da estritamente formal, na medida em que a participação das partes passou a não ser tão relevante para a construção da decisão, que, não bastasse, corre o risco de ser deturpada por concepções enviesadas do julgador.

Para solucionar os problemas decorrentes da atribuição de superpoderes ao juiz e da desconsideração da participação partes, a Teoria do Processo Como Procedimento em Contraditório surgiu como interessante alternativa. Por meio dela, o contraditório em simétrica paridade de armas foi alçado à condição sine qua non da existência do próprio processo. Desse modo, a participação das partes em cada módulo processual construiria a decisão final em conjunto com o juiz.

Ocorre que a Teoria Estruturalista do Processo careceu de uma preocupação com a aplicação dos demais direitos fundamentais e não significou um avanço rumo à uma maior paridade material de armas, sendo necessária a sua complementação pela Teoria Constitucionalista do processo. Por meio desta, o processo foi concebido como um próprio direito fundamental e garantidor da eficácia dos demais direitos fundamentais.

 O chamado modelo constitucional de processo coaduna com o Processualismo Jurisdicional Democrático, marco teórico escolhido, que prega o afastamento dos protagonismos que se fizeram presentes no liberalismo e na socialização processuais, em prol de um sistema policêntrico e comparticipativo, em que o aprimoramento constante e a participação de todos os sujeitos processuais são indispensáveis para a construção das decisões.

Com esses pressupostos da Teoria Constitucionalista do Processo e do Processualismo Jurisdicional Democrático, foi possível constatar que não há exigência de paridade material entre partes, mas apenas formal. Ao mesmo tempo em que é função do processo garantir uma igualdade entre partes, também é sua função proteger o direito de produção probatória, sob pena de ofensa ampla defesa.

 Nesse embate, é papel do juiz assegurar uma simétrica paridade formal de armas e o direito de gozo das faculdades processuais. Não obstante, quando a assimetria entre partes chegar ao ponto de inviabilizar que uma delas efetivamente influencie na formação das decisões, devem ser tomadas medidas para atenuar as desigualdades.

A propósito, ao longo deste artigo, procuramos demonstrar que a virada tecnológica no Direito Processual tende a aumentar a situações de grandes desproporções entre litigantes. Com esse intuito, foi visto que, desde antes da virada, em meados do século XX, a familiaridade dos litigantes habituais com demandas repetitivas permitiu-lhes desenvolver estratégias para colocar em pauta, judicial ou extrajudicialmente, somente o que lhes favorecesse. Isso começou a ser feito, principalmente, por meio de uma advocacia estratégica em prol de resultados favoráveis em larga escala.

Esse cenário de desigualdades se agravou a partir do momento em que, no contexto da virada tecnológica, os grandes litigantes aumentaram e canalizaram sua capacidade de armazenar e minerar dados para o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas. Tais ferramentas permitiram, por exemplo, a utilização de novos tipos de prova, como as baseadas em algorítmicos,  dificultar a obtenção de prova da parte contrária e análises jurimétricas jurisprudenciais.

Isso posto e, como visto pela evolução histórica da interpretação da paridade de armas, diante de grandes assimetrias informacionais entre as partes que impeçam a participação adequada de uma delas, sobretudo as decorrentes da utilização de ferramentas da inteligência artificial, são necessárias medidas do Poder Judiciário para atenuar as desigualdades. Não se propôs neste estudo esgotar quais seriam as consequências em cada caso, mas apenas sugerir ideias de providências que poderiam ser empregadas em geral e em casos concretos.

Nos casos concretos, ressaltou-se que as provas com alta tecnologia devem vir acompanhadas de explicações que possibilitem questionamentos até mesmo por profissionais que não são da área. Além disso, a aplicação da inversão do ônus da prova tornou-se importante para atribuir ao armazenador de dados uma maior responsabilidade de apresentá-los em juízo. Já em relação às providências gerais, com todas as cautelas, sugerimos a disponibilização de dados jurisprudenciais com maior grau de mineração, para facilitar a previsão de resultados à todos.

Enfim, por todo o exposto, voltamos a afirmar que, sob a perspectiva do modelo constitucional de processo e do Processualismo Jurisdicional Democrático, muito embora não seja exigida uma paridade material de armas, a acentuação da assimetria informacional entre litigantes pós virada tecnológica intensificou a necessidade de adoção de medidas para atenuar a desproporção, entre partes e sistêmica.

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[1] Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, na linha “O Processo na Construção do Estado Democrático de Direito”. Pós-Graduado Latu Sensu em Direito Civil Aplicado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos. Advogado.