EM QUE MEDIDA AS CRÍTICAS DE KELSEN COM RELAÇÃO AO TRABALHO DE EHRLICH NÃO PODERIAM SE VOLTAR CONTRA SUA PRÓPRIA OBRA, CONSIDERANDO SUA TEORIA SOBRE A INTERPRETAÇÃO E A APLICAÇÃO DO DIREITO?

EM QUE MEDIDA AS CRÍTICAS DE KELSEN COM RELAÇÃO AO TRABALHO DE EHRLICH NÃO PODERIAM SE VOLTAR CONTRA SUA PRÓPRIA OBRA, CONSIDERANDO SUA TEORIA SOBRE A INTERPRETAÇÃO E A APLICAÇÃO DO DIREITO?

1 de junho de 2017 Off Por Cognitio Juris

TO WHAT EXTENT KELSEN’S CRITICISM OF EHRLICH’S WORK COULD NOT TURN AGAINST HIS OWN WORK, CONSIDERING HIS THEORY ON THE INTERPRETATION AND APPLICATION OF LAW?

Artigo submetido em 28 de abril de 2017
Artigo aprovado em 03 de maio de 2017
Artigo publicado em 01 de junho de 2017

Cognitio Juris
Volume 07 – Número 17 – Junho 2017
ISSN 2236-3009

Autor(es):
Bruna de Bem Esteves[1]

Resumo: Diante do entendimento de Kelsen de que os órgãos julgadores seriam responsáveis pela criação de normas jurídicas, o presente artigo pretende investigar em que medida as críticas de Kelsen com relação ao trabalho de Ehrlich não poderiam se voltar contra sua própria obra, em especial no que tange às suas considerações sobre a interpretação e a aplicação do direito.

Palavras-chave: Kelsen. Ehrlich. Interpretação jurídica. Aplicação do direito.

Abstract: Considering Kelsen’s understanding of creation of norms by the Judiciary, this paper intends to investigate if the Kelsen’s criticisms of Ehrlich’s work could turn against his own theory, especially in relation to his positions about interpretation and application of the law.

Keywords: Kelsen. Ehrlich. Legal interpretation. Application of the law.

Sumário:

  • 1. Introdução e delimitação do tema
  • 2. Críticas ao trabalho de Ehrlich
  • 2.1. Sincretismo metodológico entre a ciência jurídica e a sociologia do direito
  • 2.2. Confusão entre o “ser” e o “dever-ser”
  • 2.3. Distinção equivocada entre normas jurídicas e proposições jurídicas
  • 2.4. Confusão entre normas jurídicas e outras normas sociais
  • 2.5. Confusão entre normas jurídicas e fatos
  • 2.6. Separação equivocada entre o direito e o Estado
  • 3. Pertinência das críticas feitas por Kelsen a Ehrlich à sua teoria de interpretação e de aplicação do direito
  • 3.1. Sincretismo metodológico entre a ciência jurídica e a sociologia do direito
  • 3.2. Confusão entre o “ser” e o “dever-ser” e entre normas jurídicas e fatos
  • 3.3. Distinção equivocada entre normas jurídicas e proposições jurídicas
  • 3.4. Confusão entre normas jurídicas e outras normas sociais e separação equivocada entre o direito e o Estado
  • 4. Considerações finais: As críticas de Kelsen com relação ao trabalho de Ehrlich poderiam se voltar contra sua própria obra, considerando sua teoria sobre a interpretação e a aplicação do direito?
  • 5. Referências bibliográficas

1. Introdução e delimitação do tema

De acordo com o entendimento de Ehrlich, a verdadeira ciência do direito –, que consistiria na sociologia do direito –, deveria observar e investigar, por método indutivo, o “direito vivo”,[2] ou seja, o direito que, mesmo não tendo sido fixado prescrições jurídicas, dominaria a vida dos indivíduos. Por essa razão, os documentos jurídicos –, tais como contratos, estatutos, declarações de vontade –, constituiriam a principal fonte para o conhecimento desse direito.[3]

Na visão do autor, a análise de documentos jurídicos deveria ser ainda complementada pela observação direta dos fatos sociais, já que as disposições contidas nesses documentos somente constituiriam “direito vivo” na medida em que fossem obervadas pelas partes.[4]

Dentre os documentos jurídicos, que consistiram na principal fonte para o conhecimento do “direito vivo”, as decisões judiciais ocupariam papel de destaque. Afinal, as decisões dos tribunais –, assim como as determinações legais –, encontrariam fundamento nas regras de agir pelas quais os indivíduos se orientam, que, por sua vez, derivariam justamente dos hábitos, relações de dominação e relações jurídicas concretos.[5]

Diferentemente, no entendimento de Kelsen, as normas pertencentes aos escalões superiores do ordenamento jurídico definiriam o procedimento para a elaboração e poderiam, até mesmo, delimitar o conteúdo das normas dos escalões inferiores. No entanto, para o autor, essa relação entre as normas de diferentes escalões não seria tão rígida, pois os atos de produção e de execução das normas ainda possibilitariam alguma margem de livre apreciação por parte dos atores jurídicos.

Nesse contexto, durante o processo de criação de normas jurídicas ou de julgamento de processos judiciais, as regras vigentes deveriam ser tratadas como molduras que abrigariam várias interpretações, todas disponíveis para escolha por partes dos atores jurídicos.[6] Assim, a aplicação de normas jurídicas não deveria garantir uma única solução correta para determinado problema jurídico, mas diversas soluções igualmente corretas, ainda que somente uma delas adquirisse o status de direito positivo.

Para Kelsen, não existiria um critério capaz de esclarecer qual, dentre as possíveis interpretações contidas dentro da moldura de uma norma jurídica, seria a mais adequada em relação às demais.[7] Em decorrência disso, durante a aplicação de normas, além de um ato de interpretação, existiria também um ato de vontade por parte dos atores jurídicos, consistente na escolha de uma dentre as possíveis soluções reveladas pela interpretação.[8]

Contudo, somente a interpretação efetuada pelos órgãos aplicadores do direito seria considerada autêntica por ser a única capaz de efetivamente criar direito, ao assumir a forma de uma lei ou de um tratado de direito internacional (possuindo caráter geral) ou de uma decisão judicial (possuindo caráter individual).[9] Tendo em vista essa prerrogativa, segundo Kelsen, seria possível, inclusive, que os órgãos aplicadores de direito produzissem normas que se situassem fora da moldura apresentada.[10]

Diante do exposto, se, na visão de Kelsen, são os órgãos julgadores que, em última instância, criam o direito, dentro ou fora da moldura que lhes é fornecida,[11] o presente artigo pretende investigar em que medida as críticas proferidas por Kelsen contra o trabalho de Ehrlich não poderiam se voltar contra sua própria obra, em especial no que tange às suas considerações sobre a interpretação e a aplicação do direito.

Afinal, como destaca Agostino Carrino, ainda que seja criticado por Kelsen, o entendimento de Ehrlich de que fatos sociais podem ser incorporados aos sistemas jurídicos durante a elaboração de decisões judiciais, em última instância, não se distancia do próprio posicionamento de Kelsen, considerando que, em sua teoria sobre a interpretação, o autor reconhece aos juízes a função de criar normas. Nas palavras de Agostino Carrino:

 “Questa posizione di Ehrlich [anche quando ci si torva in presenza di sistemi giuridici chiusi, quindi, il momento della decisione significa um apertura allá società, un ingressi di elementi propriamente sociali nel sistema giuridico], pur essendo criticata da Kelsen, non differisce, in ultima analisi, dalla stessa posizione di Kelsen, quando questi, nella sua teoria dell’interpretazione, riconosce al giudice uma funzione di creazione normativa.”[12][13]

2. Críticas ao trabalho de Ehrlich

Apesar de todas as críticas proferidas por Kelsen contra o trabalho de Ehrlich estarem relacionadas,[14] no presente capítulo, adotar-se-á um esforço de identificação de cada uma dessas críticas, com o propósito de investigar, no próximo capítulo, quais poderiam ser consideradas pertinentes às considerações de Kelsen sobre a interpretação e a aplicação do direito.

2.1. Sincretismo metodológico entre a ciência jurídica e a sociologia do direito

De acordo com Kelsen, o fenômeno jurídico poderia ser estudado por duas ciências distintas –, a ciência jurídica e a sociologia jurídica –, com objeto e método completamente diversos, dependendo da maneira como o direito fosse observado. Ao considerar o direito como um conjunto de regras deônticas, a ciência jurídica adquiriria contornos de uma ciência normativa e valorativa, assim como a ética e a lógica. Por sua vez, ao considerar o direito como um conjunto de regras ônticas do comportamento humano, a sociologia jurídica adquiriria contornos de uma ciência indutiva e explicativa, assim como as ciências naturais.[15][16]

Diante dessa diferenciação, Kelsen conclui que a sociologia do direito, como ciência indutiva e explicativa, seria essencialmente diversa de uma ciência jurídica como a sua, que se propõe a conhecer não o que efetivamente “é”, mas o que “deve ser”. Por essa razão, questiona se seria adequado empregar a mesma denominação de “ciência do direito” para ambos os tipos de conhecimento cientifico, fornecendo a impressão de que seus objetos e métodos seriam comuns.

Na visão de Kelsen, seria inadmissível o sincretismo metodológico entre a ciência jurídica (normativa) e a sociologia do direito (explicativa), tal qual adotado por Ehrlich, por provocar confusões entre as problemáticas dos dois tipos de conhecimento cientifico.[17] Afinal, para Kelsen, por meio da sociologia jurídica somente seria possível determinar a regularidade de um evento, mas jamais atribuir um juízo de valor às condutas dos homens ou estabelecer os direitos e os deveres de determinado individuo –,[18] ou seja, extrair de um “ser” um “dever-ser”.[19]

2.2. Confusão entre o “ser” e o “dever-ser”

No entendimento de Ehrlich, não haveria, no direito, uma determinação objetiva daquilo que “deve-ser”. Por essa razão, para decidir que condutas deveriam realizar, os indivíduos deveriam sempre se pautar pelos comportamentos usuais.[20] Entretanto, na visão de Kelsen, ao assumir que as regras do agir humano consistiriam em regras segundo as quais não só se age, mas se deveria agir, Ehrlich estaria confundindo os dois significados possíveis da palavra “regra”.[21]

Nesse sentido, de acordo com Kelsen, de regras extraídas da observação dos fatos não decorreriam quaisquer indicações sobre o plano normativo. Em outras palavras, do fato de que algo costuma ser feito não seria possível deduzir logicamente que aquilo deveria ser feito. Na visão do autor, para fazer decorrer de um “ser” um “dever-ser” seria necessário pressupor a existência de uma norma jurídica, ética ou lógica, por exemplo. Do mesmo modo, também não seria possível deduzir logicamente nenhuma proposição do “ser” a partir de proposições do “dever-ser”.[22]

2.3. Distinção equivocada entre normas jurídicas e proposições jurídicas

Kelsen aponta como um dos principais aspectos da obra de Ehrlich o entendimento de que o direito consistiria num conjunto de normas jurídicas, e não apenas de proposições jurídicas.[23] De acordo com Kelsen, a fim de comprovar o acerto desse posicionamento, Ehrlich sustenta que antigamente não existiam proposições jurídicas, mas somente os ordenamentos de cada um dos grupos sociais. No entanto, para Kelsen, esse argumento demonstra justamente a confusão de Ehrlich. Afinal, o ordenamento interno de cada um dos grupos sociais não equivaleria a um conjunto de regras ônticas –, prova disso seria o fato de o próprio Ehrlich considerar tais ordenamentos como prescrições de “dever-ser”.

No entendimento de Kelsen, não haveria sentido lógico em se considerar determinados contratos como vinculantes sem pressupor uma norma que atribuísse àquela espécie de acordo de vontades referida obrigação. Em outras palavras, uma promessa somente seria vinculante se fosse considerada como condição de um “dever-ser”, de uma obrigação, independentemente da precedência de qualquer fato ou juízo empírico.[24] Por essa razão, mesmo nas épocas primitivas, um acordo era percebido como vinculante ao pressupor como válida a proposição jurídica segundo a qual os acordos, em sua generalidade, deveriam ser considerados vinculantes.[25]

Além disso, considerando que Ehrlich entende as normas jurídicas como regularidades de ação que, diferentemente das proposições jurídicas, não estariam contidas em uma lei ou em um texto de direito,[26] Kelsen também sustenta que, para serem consideradas proposições jurídicas, não haveria qualquer necessidade de que suas prescrições estivessem registradas por escrito.[27]

2.4. Confusão entre normas jurídicas e outras normas sociais

Na visão de Ehrlich, as várias espécies de normas sociais (jurídicas, morais, religiosas, etc.) e as transgressões a essas diversas espécies de normas provocariam sentimentos de diversa intensidade nos indivíduos.[28] Por essa razão, para identificar normas jurídicas dentre as diversas normas sociais, no entendimento de Ehrlich, bastaria verificar a intensidade do sentimento suscitada pela norma em questão e pela sua violação.[29]

Nesse contexto se insere a “teoria do reconhecimento” de Ehrlich, que se propõe a definir o ordenamento jurídico a partir do ponto de vista dos destinatários, e não dos operadores do direito.[30] Com isso, Ehrlich considera excluídas do ordenamento jurídico as normas que, apesar de reconhecidas como direito pelo aparato coercitivo, não são reconhecidas como tal pelos indivíduos.[31]

Entretanto, para Kelsen, o sentimento gerado pelas normas sociais consistiria em um fato psicológico, que seria relevante para a psicologia social, e não para o direito.[32] Afinal, competiria à psicologia social investigar as origens das representações deônticas das normas como fatos psicológicos e as causas pelas quais certos homens valoram (juridicamente) determinado fato de certo modo.

Nesse sentido, para Kelsen, sob a perspectiva de uma ciência que apenas observa as valorações atribuídas pelos homens, conforme proposto por Ehrlich, o sistema jurídico não seria reconhecido nem como um conjunto de normas pressupostas como válidas, nem como valores objetivos, consistindo num evento indiferente às valorações, baseado apenas na regularidade do comportamento humano. Na percepção de Kelsen, o objeto dessa ciência não seria o direito, mas as opiniões dos homens acerca do direito, identificadas pela observação de seu comportamento. Nas palavras do autor:

Una sociologia che non si occupi dei valori ma delle valutazioni degli uomini, non è una scienza valutativa, ma esplicativa di valori. Per essa il diritto non è una norma presupposta come valida né um valore oggetivo, ma un evento reale di per sé indifferente ai valori, un comportamento umano, psichico e físico, che va còlto nella sua regolarità. A rigore, il suo oggeto non è il diritto, ma il modo di pensare, di sentire o di volere il diritto, vale a dire le opinioni che gli uomini hanno del diritto, e cio che per esse fanno o non fanno.[33][34]

2.5. Confusão entre normas jurídicas e fatos

De acordo com Kelsen, Ehrlich considera que um importante resultado de sua pesquisa consiste na identificação daquilo a que atribui a qualificação de “fatos do direito”. Ehrlich considera como “fatos do direito” tudo aquilo que o espírito humano associa a regras. Nesse sentido, segundo o autor, a via por meio da qual os fatos tornar-se-iam “fatos do direito” seria o costume.[35]

No entanto, para Kelsen, Ehrlich estaria, mais uma vez, confundindo a pressuposição lógica de uma norma jurídica com a precedênciatemporal de um fato.[36][37] Na sua visão, enquanto a norma jurídica constituiria direito sem fazer referência a qualquer fato concreto, o fato não constituiria direito exclusivamente por si, já que seria privado de significado se não fosse confrontado com determinada norma ou com determinado valor objetivo.[38] Desse modo, como os fatos não poderiam constituir direitos ou criar relações jurídicas, as normas sempre deveriam preceder logicamente os fatos sobre os quais se aplicam para que esses fatos pudessem se tornar juridicamente relevantes.[39]

2.6. Separação equivocada entre o direito e o Estado

Segundo Kelsen, uma característica da sociologia do direito de Ehrlich seria a completa separação entre o direito e o Estado.[40][41] No entanto, para Kelsen, o simples fato de Ehrlich cogitar a existência de um direito estatal já implicaria, de um ponto de vista jurídico-normativo, o reconhecimento do direito estatal como ordenamento único ou mais elevado.

Afinal, de acordo com Kelsen, na sua essência, o Estado não passaria de uma comunidade jurídica mais abrangente, com superioridade sobre os demais grupos sociais, uma espécie de suprema comunidade jurídica, que confere unidade social ao ordenamento.[42] No entendimento de Kelsen, se Ehrlich reconhece a existência de ordenamentos jurídicos nos grupos sociais de pequena dimensão, não poderia deixar de reconhecer esse atributo por parte do Estado.[43]

3. Pertinência das críticas feitas por Kelsen a Ehrlich à sua teoria de interpretação e de aplicação do direito

Tendo em vista o entendimento de Kelsen de que os órgãos julgadores seriam responsáveis, em última instância, pela criação de normas jurídicas, no presente capítulo, pretende-se analisar se as críticas apresentadas por Kelsen com relação ao trabalho de Ehrlich poderiam se voltar contra sua própria obra, em especial no que tange às suas considerações sobre a interpretação e a aplicação do direito.

3.1. Sincretismo metodológico entre a ciência jurídica e a sociologia do direito

Considerando que, para Kelsen, seria inadmissível adotar um sincretismo metodológico entre a ciência jurídica e a sociologia do direito, seria possível indagar se Kelsen não confundiria a problemática desses dois tipos de conhecimento jurídico ao assumir que, em última instância, seriam os órgãos judiciais que determinariam o conteúdo do direito, no momento em que escolhem, dentre as soluções apresentadas dentro (ou fora) da moldura das normas jurídicas abstratas, aquela que seria mais adequada para determinado caso concreto.

Com relação a esse possível questionamento, vale destacar, desde logo, que, apesar de as decisões judiciais demandarem uma análise indutiva, não seria possível, apenas por meio do estudo dessas decisões, determinar regularidades do comportamento humano, objetivo da sociologia jurídica. Por essa razão, acredita-se ser difícil sustentar que, ao admitir que as decisões transitadas em julgado criam direito, Kelsen incorra no criticado sincretismo metodológico entre a ciência jurídica e a sociologia do direito.

Kelsen, ademais, expressamente exclui do âmbito de investigação da ciência jurídica a análise de qual, dentre as soluções apresentadas dentro da moldura das normas, seria a “correta”. Nesse sentido, esclarece que: “[a] questão de saber qual é, dentre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a “correta”, não é sequer (…) uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, mas um problema de política do Direito.”[44]

3.2. Confusão entre o “ser” e o “dever-ser” e entre normas jurídicas e fatos

Também não se sustentaria o possível questionamento de que Kelsen, ao considerar que, em última instância, seriam os órgãos judiciais que determinariam o conteúdo do direito, estaria reconhecendo que proposições da ordem do “ser” (fatos) referentes às condutas humanas disciplinadas pelas decisões judiciais integrariam o objeto da ciência jurídica.

Isso porque, apesar de Kelsen reconhecer que as proposições referentes às condutas humanas contidas em normas jurídicas, tanto individuais quanto abstratas, seriam pertinentes para a ciência jurídica,[45] essas mesmas proposições, no seu entendimento, seriam da ordem do “dever-ser”, e não do “ser”. Afinal, para Kelsen, mediante a análise das proposições presentes nas decisões jurídicas jamais seria possível extrair qualquer conclusão sobre o comportamento dos indivíduos (fatos). De acordo com o autor:

As normas jurídicas não são, como já se salientou, afirmações, quer sobre acontecimentos futuros, quer sobre acontecimentos passados. Em regra, elas referem-se, na verdade, a uma conduta humana futura. Porém, nada afirmam sobre essa conduta, mas prescrevem-na, autorizam-na ou permitem-na. Pelo contrário, as proposições jurídicas formuladas pela ciência do Direito, são, de facto, asserções (enunciados), porém, não – como a lei natural – asserções no sentido de que algo acontecerá, mas – uma vez que as normas jurídicas por elas descritas prescrevem, autorizam ou permitem (positivamente) – no sentido de que, em conformidade com o Direito a descrever pela ciência jurídica, algo deve acontecer.[46]

3.3. Distinção equivocada entre normas jurídicas e proposições jurídicas

Como visto, enquanto Ehrlich considerava que as “normas jurídicas” consistiriam em regularidades de ação atribuídas a determinado grupo social e as “proposições jurídicas” integrariam um ordenamento escrito, Kelsen considerava que as “normas jurídicas” seriam enunciados elaborados por órgãos jurídicos para serem aplicados por esses órgãos e obedecidos pelos destinatários do ordenamento jurídico e as “proposições jurídicas” constituiriam enunciados elaborados pela ciência jurídica para descrever relações jurídicas.

Diante disso, tendo em vista que Ehrlich e Kelsen atribuem significados diferentes às expressões “normas jurídicas” e “proposições jurídicas” – e, em especial, que, enquanto Ehrlich enquadrava as decisões judiciais no conceito de “proposições jurídicas”, Kelsen as enquadrava no conceito de “normas jurídicas” –,[47] tem-se que a crítica de Kelsen com relação ao equívoco de Ehrlich na utilização desses termos não poderia se voltar contra suas considerações sobre a interpretação e a aplicação do direito. Afinal, Kelsen somente fazia as críticas porque entendia que Ehrlich deveria utilizar referidas expressões da mesma forma que ele.

3.4. Confusão entre normas jurídicas e outras normas sociais e separação equivocada entre o direito e o Estado

Acredita-se, também, que as críticas de Kelsen quanto à confusão de Ehrlich entre normas jurídicas e outras normas sociais e quanto à separação que Ehrlich propõe entre o direito e o Estado não poderiam se voltar contra suas considerações sobre a interpretação e a aplicação do direito. Afinal, ao admitir que, em última instância, seriam os órgãos judiciais que determinariam o conteúdo do direito, Kelsen reforça as características que distinguem as normas jurídicas das outras normas sociais e que identificam o direito com o Estado.

Nesse sentido, cabe destacar que, no entendimento de Kelsen, o sistema jurídico se diferenciaria dos demais sistemas sociais porque consistiria numa ordem de coação, que garantiria a prática de um ato de coerção contra desacatos aos comandos jurídicos.[48] Por sua vez, dentre os órgãos essenciais para a garantia da execução dos referidos atos de coerção contra qualquer descumprimento ao ordenamento jurídico estatal, estariam os responsáveis pelas decisões judiciais.

Ademais, segundo Kelsen, seriam justamente os órgãos judiciais, responsáveis pela aplicação das normas jurídicas gerais aos casos concretos, em conjunto com os órgãos legislativos, responsáveis pela produção dessas normas jurídicas gerais, que comporiam a ordem jurídica centralizada que distinguiria o Estado das primitivas ordens pré-estatais e das ordens supraestatais do direito internacional.[49] De acordo com o autor:

É, por isso, de rejeitar uma definição do direito que o não determine como ordem de coacção, especialmente porque só através da assunção do elemento coacção no conceito de Direito este pode ser distintamente separado de toda e qualquer outra ordem social, e porque, com o elemento coacção, se toma por critério um factor sumamente significativo para o conhecimento das relações sociais e altamente característico das ordens sociais a que chamamos “Direito”; e mais especialmente ainda porque só então será possível tomar em conta a conexão que existe – na hipótese mais representativa para o conhecimento do Direito, que é a do moderno direito estadual – entre o Direito e o Estado, já que este é essencialmente uma ordem de coacção e uma ordem de coacção centralizadora e limitada no seu domínio territorial de validade.[50]

4. Considerações finais: As críticas de Kelsen com relação ao trabalho de Ehrlich poderiam se voltar contra sua própria obra, considerando sua teoria sobre a interpretação e a aplicação do direito?

Conforme visto, considerando que Kelsen e Ehrlich conferem significações diferentes aos termos “normas jurídicas” e “proposições jurídicas”, conclui-se que não seria possível que as ponderações de Kelsen quanto ao equívoco de Ehrlich no que tange ao uso dessas expressões não poderiam ser efetuadas contra sua teoria, até porque a crítica de Kelsen decorre justamente do fato de Ehrlich não utilizar esses termos da mesma maneira que ele.

Por sua vez, acredita-se que os problemas apresentados por Kelsen no que tange à confusão que Ehrlich, fazia entre normas jurídicas e outras normas sociais e no que tange à separação por ele proposta entre o direito e o Estado não poderiam se voltar contra sua teoria, pois, ao considerar que os órgãos judiciais definiriam, em última instância, o conteúdo do direito, Kelsen reforça tanto a diferenciação entre normas jurídicas e outras normas sociais quanto a identificação do ordenamento jurídico com o aparato estatal.

Portanto, dentre as críticas proferidas por Kelsen contra o trabalho de Ehrlich, somente as referentes ao sincretismo metodológico entre a ciência jurídica e a sociologia do direito e à confusão entre o “ser” (fatos) e o “dever-ser” (normas jurídicas) poderiam se voltar contra a contra as suas considerações sobre a interpretação e a aplicação do direito.

De todo modo, considerando que, com a análise das proposições presentes nas decisões jurídicas jamais seria possível extrair quaisquer conclusões sobre regularidades do comportamento humano, acredita-se ser difícil sustentar que Kelsen incorra no criticado sincretismo metodológico ou que confunda o mundo do “ser” (dos fatos) com o do “dever-ser” (das normas jurídicas).

Referências bibliográficas

EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Trad. de René Ernani Gertz. Brasília: UnB, 1986.

______, Eugen; KELSEN, Hans. Scienza giuridica e sociologia del diritto. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1992.

______, Eugen; KELSEN, Hans; WEBER, Max. Verso un concetto sociologico di diritto. Milano: Giuffrè, 2010.

HERTOGH, Marc (ed.). Living Law. Reconsidering Eugen Ehrlich. Oxford: Hart, 2009, pp. 127-156.

JACOBSON, Arthur J.; SCHLINK, Bernhard (ed.). Weimar. A Jurisprudence of Crisis. Berkeley: University of California Press, 2000, pp. 57-62 e 76-83. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João. Baptista Machado. Coimbra: Arménio Amado, 1984.


[1] Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP).

[2] Em contraposição ao “direito vigente” diante de órgãos estatais, dentre eles, os tribunais.

[3] EHRLICH, 1986, p. 378.

[4] EHRLICH, 1986, pp. 379-381.

[5] Nesse sentido, conforme destaca Ehrlich: A grande maioria das decisões judiciárias baseia-se nos hábitos, relações de posse, em contratos, estatutos, declarações de última vontade constatados pelos tribunais. Se quisermos compreender as generalizações, as uniformizações e as outras formas de criações de normas do juiz e do legislador, devemos conhecer antes de mais nada as bases que as motivaram (EHRLICH, 1986, p. 384).

[6] KELSEN, 1984, p. 464.

[7] KELSEN, 1984, pp. 467-468.

[8] KELSEN, 1984, p. 470; JACOBSON; SCHLINK, 2000, p. 82.

[9] Desde que transitada em julgado.

[10] KELSEN, 1984, pp. 470-471.

[11] A teoria de Kelsen, inclusive, não impediria que os órgãos judiciais escolhessem a interpretação que julgassem mais adequada com base na observação do “direito vivo” de determinada sociedade.

[12] EHRLICH; KELSEN, 1992, p. 20.

[13] Em tradução livre: Esta posição de Ehrlich [de que, mesmo nos sistemas jurídicos fechados, o momento da decisão representa uma abertura para a sociedade, com a possibilidade de ingresso de elementos propriamente sociais no sistema jurídico], mesmo sendo criticada por Kelsen, não difere, em última instância, da própria posição de Kelsen, quando ele, na sua teoria de interpretação, reconhece aos juízes uma função de criação normativa.

[14] Pode-se considerar que todas as críticas decorrem da distinção entre o “ser” e o “dever-ser” (EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. XIV).

[15] A ciência jurídica seria responsável por determinar, dedutivamente, quais as regras válidas do ordenamento jurídico, enquanto a sociologia do direito seria responsável por estabelecer, indutivamente, regularidades nos comportamentos dos indivíduos (HERTOGH, 2009, pp. 129-130).

[16] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, pp. XVIII-XIX; EHRLICH; KELSEN, 1992, p. 9.

[17] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, pp. 3-5; HERTOGH, 2009, pp. 129-130.

[18] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, pp.6-7.

[19] JACOBSON; SCHLINK, 2000, pp. 76-77, 57-58.

[20] EHRLICH; KELSEN, 1992, pp. 13-14.

[21] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. 8.

[22] HERTOGH, 2009, pp. 130-131.

[23] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. XV.

[24] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, pp. 16-17; EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. XIV.

[25] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, pp. 11-13; HERTOGH, 2009, pp. 131-132.

[26] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. XIV.

[27] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, pp. 14-15; HERTOGH, 2009, p. 132.

[28] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. 31; HERTOGH, 2009, p. 133.

[29] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. XIV; EHRLICH; KELSEN, 1992, p. 21.

[30] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. XV.

[31] EHRLICH; KELSEN, 1992, p. 31.

[32] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. 22; EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. XV; HERTOGH, 2009, p. 133; JACOBSON; SCHLINK, 2000, pp; 76-77, 59-60.

[33] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, pp. 23-24.

[34] Em tradução livre: “Uma sociologia que não se ocupa dos valores, mas das valorações dos homens, não é uma ciência valorativa, mas explicativa de valores. Nessa ciência, o direito não é uma norma pressuposta como válida nem um valor objetivo, mas um evento real indiferente aos valores, um comportamento humano, psíquico ou físico, cultivado na sua regularidade. A rigor, seu objeto não é o direito, mas o modo de pensar, de sentir e de querer o direito, ou seja, a opinião que os homens têm sobre o direito, e que, por isso, fazem ou deixam de fazer.”

[35] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, pp. 25-26.

[36] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, pp. 27-28; EHRLICH; KELSEN, 1992, p. 28.

[37] Desse modo, Ehrlich confundiria a gênese da regulação jurídica com a própria regulação jurídica e o lugar que comporta a premissa e a condição para a criação de um novo direito com o próprio direito

[38] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. 23; HERTOGH, 2009, pp. 131-132.

[39] HERTOGH, 2009, pp. 131-132.

[40] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. 34; EHRLICH; KELSEN, 1992, pp. 12-13, 17.

[41] Ao contrário de sua teoria de identificação entre o direito e o Estado (EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. XIV; EHRLICH; KELSEN, 1992, pp. 12-13; HERTOGH, 2009, p. 133).

[42] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. 37.

[43] EHRLICH; KELSEN; WEBER, 2010, p. 40.

[44] KELSEN, 1984, p. 469; JACOBSON; SCHLINK, 2000, pp. 76-77, 82-83.

[45] KELSEN, 1984, p. 109.

[46] KELSEN, 1984, pp. 134-135.

[47] “As proposições ou enunciados nos quais a ciência jurídica descreve estas relações [jurídicas] devem, como proposições jurídicas, ser distinguidas das normas jurídicas que são produzidas pelos órgãos jurídicos a fim de por eles serem aplicadas e serem observadas pelos destinatários do Direito.” (KELSEN, 1984, p. 111).

[48] KELSEN, 1984, pp. 75, 87.

[49] KELSEN, 1984, pp. 385-386.

[50] KELSEN, 1984, p. 87.