DOS PROGRAMAS ESPIÕES NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

DOS PROGRAMAS ESPIÕES NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

30 de setembro de 2024 Off Por Cognitio Juris

SPY PROGRAMS IN THE BRAZILIAN ORDER

Artigo submetido em 24 de setembro de 2024
Artigo aprovado em 28 de setembro de 2024
Artigo publicado em 30 de setembro de 2024

Cognitio Juris
Volume 14 – Número 56 – Setembro de 2024
ISSN 2236-3009
Autor(es):
Glauce Teodoro Martins Dias[1]

Resumo: Este artigo disserta acerca da utilização de programas maliciosos pelos órgãos e agentes públicos na persecução penal impulsionado pelo ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1143 – ADPF 1143 – pela Procuradoria-Geral da República e a pesquisa do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec) sobre hacking governamental. Desta forma, analisamos os direitos fundamentais e humanos que envolvem a matéria, a atuação e disseminação dos também chamados malwares nos equipamentos tecnológicos pessoais, a lacuna da legislação no país, a ADPF 1143, a partir de material bibliográfico, para chegar a entendimento acerca da necessidade ou desnecessidade da regulamentação desses programas no país.

Palavras-chave: Programas Espiões, Malwares, Programas- Maliciosos.

Resumen: Este artículo analiza el uso de programas maliciosos por parte de organismos y agentes públicos en la persecución penal impulsado por la presentación de la Denuncia de Incumplimiento del Precepto Fundamental 1143 – ADPF 1143 – por parte del Ministerio Público y la investigación del Instituto de Investigaciones en Derecho y Tecnología de Recife (IP.rec) sobre piratería gubernamental. De esta manera, analizamos los derechos fundamentales y humanos que involucran la materia, la acción y difusión del llamado malware en equipos tecnológicos personales, el vacío de legislación en el país, la ADPF 1143, con base en material bibliográfico, para llegar a una comprensión sobre la necesidad o innecesaria regulación de estos programas en el país.

Palabras clave: Programas Espía, Malware, Programas Maliciosos.

Sumário:

  1. Introdução
  2. Direitos Fundamentais e Humanos
  3. Programas Espiões
  4. Da Legislação
  5. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1143
  6. Conclusão
  7. Referências bibliográficas

Introdução

          A legislação brasileira atual não dá espaço para a utilização de programas espiões na persecução penal ou qualquer outra forma de uso destes pelo Estado, em que pese os argumentos daqueles que sustentam a necessidade sua prática em razão do avanço tecnológico, contudo, o ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade Por Omissão com Pedido de Medida Cautelar pela Procuradoria Geral da República e, posteriormente, sua conversão para Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1143[2], a fim de provocar o Legislativo a atuar tem gerado intensa discussão.

          Com efeito, não é de hoje que a mídia tem veiculado notícias[3] do uso de programas espiões no território brasileiro por órgãos e agentes públicos, ainda que estes não possuam qualquer autorização legal para fazê-lo, e causado espanto aos cidadãos brasileiros que tomam conhecimento da informação, gerando ainda celeuma entre os operadores de direito. Tal cenário também já se verificou em outros países[4] e é fonte de discussão em outras Cortes Constitucionais.

          Em novembro de 2022, o Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec) divulgou importantes dados da pesquisa feita no Brasil acerca de contratos de fabricantes e representantes comerciais de malwares com a Administração Pública, revelando, assim, a prática do hacking no país por agentes públicos e órgãos públicos[5].

          Isso porque os também chamados malwares possibilitam o acesso irrestrito a dispositivos móveis e fixos de instituições e de pessoas humanas, podendo alcançar informações em processamento ou armazenadas e ferindo, por isso, direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988 e que são irradiação no ordenamento jurídico brasileiro de Direitos Humanos.

A evolução tecnológica alcançada pela civilização atual revolucionou o modo de vida da pessoa humana impactando em todas as suas dimensões:  atividades profissionais e estudantis se desenvolvem em ambiente virtual, assim como os relacionamentos – sejam amigáveis, amorosos ou familiares – são iniciados e/ou mantidos por aplicativos de relacionamento – WhatsApp, Instagram, Facebook, Tiktok etc. – em espaços virtuais.

Da mesma forma, o avanço tecnológico impactou profundamente as atividades estatais e a forma do Estado efetivar serviços públicos – agendamento e atendimento de consultas médicas online, atendimentos online da Defensoria, audiências virtuais etc. – gerando, inclusive, a necessidade de se proteger as pessoas vulneráveis tecnologicamente[6], ou seja, aquelas que por não terem acesso a ferramentas tecnológicas podem não se beneficiar de serviços ou, mesmo, não os acessar, se impostos apenas de forma virtual.

De um lado os defensores desse acesso remoto irrestrito aos dispositivos fixos e móveis sustentam que tal medida é necessária já que os agentes do crime também evoluíram tecnologicamente e impedir a ação estatal nesse sentido seria manter os poderes públicos em condição desigual na persecução penal. De outro lado, os defensores do não acesso questionam o ataque a direitos fundamentais do cidadão no Estado Brasileiro.

Portanto, num passado recente, o uso de tal ferramenta tecnológica, também recente, estava vinculado a ação de criminosos[7] dado o potencial de invasão e de possibilidade de causar danos aos invadidos, contudo, no atual cenário observa-se também a sua vinculação aos poderes estatais, tanto em nível nacional, como internacional e global, motivo pelo qual este estudo se faz ainda mais necessário.

Este artigo, tomando por verdadeira a lacuna legislativa para tal prática estatal, objetiva, assim, dissertar sobre os direitos humanos e fundamentais envolvidos na questão, os programas de espionagem e a sua aplicação, a lacuna quanto a matéria na legislação brasileira e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1143 a partir de pesquisa de material bibliográfico.

A finalidade de tal artigo é, então, o entendimento das variáveis – malwares – que compõem este cenário, seus impactos sobre os direitos fundamentais de cidadãos, especialmente os que tutelam o direito de privacidade, intimidade e a inviolabilidade do sigilo das comunicações pessoais, para concluir-se ou não pela necessidade de referida normatização pelo Estado e, se essa primeira possibilidade se mostrar afirmativa, com que parâmetros isso deve se realizar.

  1. Direitos Fundamentais e Humanos

Os direitos fundamentais no Brasil estão previstos no artigo 5.º da Constituição Federal de 1988[8] – CF/88 – e têm como escopo a proteção da pessoa humana frente ao Estado, que ora deve agir para protegê-la, ora deve deixar de atuar para protegê-la. Não se trata de direitos taxativos, mas que podem ser ampliados por força do regime e dos princípios adotados no país.

Tais direitos são irradiação dos Direitos Humanos no território brasileiro e resgatam períodos históricos da humanidade que culminaram na construção histórica de direitos humanos. Norberto Bobbio[9] nos ensina este caráter histórico de referidos direitos:

“os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”

Importante rememorarmos aqui a Carta Magna de 1215 que também nos remete a um desses importantes momentos da história: o período em que o Absolutismo monárquico estabelecia o rei como uma figura divina na terra, cabendo a ele acusar, julgar e condenar ou absolver seus súditos, conforme seus próprios interesses e convicções. O rei era irresponsável por seus atos. Não existia, portanto, uma normativa prévia que determinasse quais os direitos ou deveres dos súditos e muito menos os do rei.

A sociedade medieval europeia compunha-se de clero, nobreza e povo. Na referida Carta, o Rei João Sem Terra, pressionado pela instabilidade da época e pela nobreza, se comprometia a respeitar leis[10]. Ainda que significasse dar direitos a pequeno grupo, trata-se de importante embrião para alcançar-se ao longo da evolução das civilizações a limitação do Estado, impondo-lhe deveres e responsabilidades, e a declaração de direitos aos governados.

          Assim se observa o movimento político e jurídico que culminou nas Constituições escritas e em que houve a imposição da burguesia de limitação do poder aos Estados Monarquistas.

          Também as duas guerras mundiais e os holocaustos impostos, na primeira aos armênios, e, na segunda, aos judeus, negros, homossexuais, ciganos e pessoas com limitações físicas, têm profundo impacto na Declaração Universal de Direitos do Homem em 1948[11], declaração esta que em que tais direitos ganham a característica de universalidade, e ecoam nos ordenamentos jurídicos dos Estados até hoje.

          Desta forma, são direitos dos cidadãos a privacidade, a intimidade e a inviolabilidade do sigilo das comunicações pessoais, todos previstos na CF/88 e tendo sido irradiados pela construção histórica dos direitos humanos. Tais direitos são os ofendidos quando há intrusão de programas de monitoramento em equipamentos pessoais. Na experiência alemã de enfrentamento aos programas de espionagem surge, inclusive, novo direito, o da integridade e confidencialidade que nos remete novamente à Bobbio:

“(…) o fato mesmo de que a lista desses direitos esteja em contínua ampliação não só demonstra que o ponto de partida do hipotético estado de natureza perdeu toda a plausabilidade, mas nos deveria tornar conscientes de que o mundo das relações sociais de onde essas exigências deriva é muito mais complexo, e de que, para a vida e para a sobrevivência dos homens, nessa nova sociedade, não bastam os chamados direitos fundamentais, como os direitos à vida, à liberdade e à propriedade.”

          Desta forma, em que pese a necessidade do Estado de ajustar-se ao avanço tecnológico a fim de cumprir com efetividade as suas competências, isso não pode ser feito sem reserva legal e sem reserva jurisdicional em prejuízo de referidos direitos, sob pena de ruptura do Estado Democrático de Direito.

          A Declaração Universal de Direitos Humanos eleva a democracia como o regime mais adequado para o exercício dos direitos humanos e a sua ruptura, por consequência, reflete na fragilidade desses direitos.

  • Programas Espiões

No último dia 25 de janeiro, reportagem veiculada pelo portal de notícia G1[12], assim como outros importantes portais do país, afirmava que a Agência Brasileira de inteligência – ABIN – monitorou irregularmente políticos, policiais, jornalistas e juízes pelo software de espionagem israelense First Mile.  

O monitoramento efetuado pela referida agência de inteligência é possível através de programas de espionagem que se popularizaram nas últimas décadas e, embora no exemplo acima observa-se o mau uso político de referida ferramenta, seu uso não está restrito a atividades de perseguição política ou de inteligência, podendo, por exemplo, se fazer contra pessoas comuns na esfera penal.

Tais programas são passíveis de instalação física ou mesmo remota, sendo esta instalação a mais comum, em dispositivos móveis e fixos a fim de permitir o acesso irrestrito a arquivos processados ou em processamento, fotos, vídeos e outros materiais, com possibilidade, inclusive, de captar imagens e sons em tempo real no raio permitido pelos equipamentos invadidos.

Os malwares infectam o dispositivo hospedeiro, utilizando-se de vulnerabilidades de segurança apresentadas pelos próprios dispositivos, de e-mails enviados a pessoa alvo, como também, se disseminam pela rede de internet.

Nota-se que as empresas de tecnologia produzem os dispositivos que se revelam vulneráveis e devem/deveriam ser atualizados. Não obstante isso, pela lógica do mercado capitalista, também se observa a disseminação de ofertas –deep web ou dark web – desses malwares que, conforme alertado, se valem dessas vulnerabilidades.

Outro ponto a se observar é que os programas de espionagem, largamente adquiridos pelo Estado Brasileiro[13], são de empresas internacionais, ou seja, também não se pode afirmar que o próprio país não esteja sendo alvo de espionagem ao utilizar tais ferramentas, considerando-se, inclusive, as denúncias anteriores de Edward Snowden[14].

Os programas espiões são, portanto, parte da enorme evolução tecnológica alcançada pela humanidade nas últimas décadas e tal avanço parece ser irreversível, devendo o Estado Brasileiro ajustar-se a essa nova realidade. Como toda ferramenta, essa tecnologia pode ser usada para fins lícitos, como também, pode ser utilizada para fins ilícitos, razão pela qual é imprescindível a regulamentação.

Do exposto, fica evidente que a realidade posta transcende a questão de direitos humanos e passa por uma discussão necessária da ética na tecnologia. Mas, para além da questão da ética, fica ainda mais evidente que o Brasil precisa de leis e políticas públicas sérias de fomento ao estudo, pesquisa e criação de tecnologia no país.

  • Da Legislação

Conforme anteriormente afirmado, os direitos fundamentais e garantias estão previstos no artigo 5.° da Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Os que se referem a privacidade, intimidade e inviolabilidade do sigilo das comunicações estão situados nos incisos X e XII:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

(…)

XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;    

Mais uma vez é preciso considerar que não há uma legislação própria no país para o uso de malwares. Houve, contudo, regulamentações como a Lei de interceptação Telefônica, à Lei de investigação de organizações criminosas e ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que preveem, respectivamente, hipóteses em que se dará autorização judicial para a interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática e, no caso das duas últimas leis, a figura do agente infiltrado virtual.

A Lei n.º 9296/96, também conhecida como Lei de Interceptação, regulamenta o artigo XII, parte final, do artigo 5º da CF/88, acima reproduzido. Na referida lei, anterior ao impacto do surgimento desses programas maliciosos, está abarcada a interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática. [15]

          Ocorre que a Lei em comento tem um potencial invasivo e de lesividade muito menor do que aquele possibilitado pelos programas de espionagem e, ainda que haja a inclusão do artigo 10-A, com redação dada pela Lei n.º 13964, para incluir a possibilidade de captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, inclusive sem determinação de ordem judicial, tais determinações não tem o condão de normatizar tais práticas de espionagem uma vez que os malwares proporcionam intrusão muito maior.

          Também a Lei n.º 12850/2013 que define a organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção de prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal, é apontada como normatização suficiente para o agir estatal.  Da mesma forma que a lei anterior, o potencial de intrusão é muito menor do que os referidos programas.

          Faz se importante também observar a Lei n. 12.965/14 – Marco Civil da Internet – que estabelece princípios, garantias direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Destaque-se o artigo 2.° da referida lei que eleva como um dos fundamentos do uso da internet no Brasil no inciso II os direitos humanos[16]:

“Art. 2º A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como:

(…)

II – os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais;

(…).”

Também o artigo 7. ° da mesma lei[17] reforça direitos fundamentais aos usuários da internet no país, restando claro que a lei em comento está em consonância com o Estado Democrático de Direito:

“Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:

I – inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

II – Inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei;

III – inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial;

(…).”

Da mesma forma, o artigo 8. ° da referida lei[18] corrobora as garantias do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações:

“Art. 8º A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet.

Parágrafo único. São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que violem o disposto no caput, tais como aquelas que:

I – impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo das comunicações privadas, pela internet; ou

II – em contrato de adesão, não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil.”

Ainda pode-se citar a Lei n.13709[19], que data de 4 anos após o marco civil internet, e que dispõe sobre a proteção de dados pessoais, também conhecida como LGPD, tendo esta também como fundamentos, entre outros, o respeito à privacidade, autodeterminação informativa, a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião, a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; os direitos humanos.

Aury Lopes Junior explica que “meio de obtenção de prova ou mezzi di ricerca dela prova como denominam os italianos, são instrumentos que permitem obter-se, chegar-se à prova. Não é propriamente ‘a prova’, senão meios de obtenção”.[20]

Assim, observa-se que os malwares constituem meio atípico de prova no processo penal brasileiro e, por isso, não cabendo sua utilização pelas polícias ou Ministérios Públicos, seja em qualquer nível da federação, como também, não sendo possível democraticamente seu uso por outros órgãos e agentes públicos, ressaltando ainda que nestes últimos não se encontra sequer a competência investigativa.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro assevera que “Segundo o Princípio da Legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite. No âmbito das relações entre particulares, o princípio aplicável é o da autonomia da vontade.” Referido princípio está estritamente vinculado à observância dos direitos individuais pelo Estado Democrático de Direito.

Portanto, a pesquisa no ordenamento jurídico brasileiro resulta em uma negativa de lei para o uso de programas de espionagem e, estando o Estado, pois, restrito a agir na presença de lei, sendo proibida a atuação sem lei, deve haver responsabilização de quem agiu ou age em desconformidade.

Da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1143 – ADPF 1143

O ajuizamento da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1143 , inicialmente uma Ação Direta de inconstitucionalidade por Omissão com Pedido de Medida Cautelar, pela Procuradoria-Geral evidencia a ausência de legislação no país para a utilização dos programas de espionagem pelo Estado brasileiro.

Na referida ADPF, a Procuradoria- Geral da República vem pedir ao Supremo Tribunal Federal que fixe prazo para o Legislativo agir na regulamentação do uso de programas de espionagem no país, uma vez que este uso já é observado:

“É que, a partir dos mais recentes avanços tecnológicos, houve uma proliferação global de ferramentas de intrusão virtual, utilizadas no âmbito de serviços de inteligência e de órgãos de repressão estatais, para a vigilância remota, secreta e invasiva de dispositivos móveis de comunicação digital, sob pretexto de combate ao terrorismo e ao crime organizado.”[21]

            Com efeito, a ADPF 1143 está em tramitação no Supremo Tribunal Federal com a relatoria do Ministro Cristiano Zanin, chamando este, inclusive, audiências públicas nos últimos dias 10 e 11 de junho do presente ano a fim de se aprofundar a discussão sobre referida matéria que contou com diversos amicus curiae.

            A petição da Procuradoria Geral da República revela preocupação com a aquisição de programas de espionagem internacionais, tais como o Pegasus, um malware de criação israelense que detém grande potencial de intrusão em dispositivos informáticos.

            Tal preocupação já foi revelada anteriormente pelo alto Comissariado da ONU[22] que classificou a situação de programas de espionagem em prática, especialmente o Pegasus, como alarmante uma vez que deixa todos os cidadãos vulneráveis.

Conclusão

Inicialmente, nota-se que a questão do uso de malwares no Brasil e no mundo transcende a violação de direitos humanos e fundamentais, tratando-se do abandono da ética no avanço humano na área de tecnologia. Mas o que causa enorme espanto é que a ADPF 1143 é ajuizada ao Supremo Tribunal Federal em razão da atuação de órgãos e agentes públicos em desconformidade com o ordenamento jurídico, ou seja, agindo quando não tem permissão para atuar.

Diante de todo cenário exposto, é forçoso considerar que a prática de hacking governamental estatal que se dá aqui é violadora de direitos fundamentais e humanos dos cidadãos brasileiros. O Estado não é irresponsável, logo, só pode agir vinculado a lei e, quando se afasta desta, deve haver a promoção de responsabilidades ou estaremos fatalmente diante de uma democracia muito frágil e, por isso mesmo, muito próxima da ruptura do Estado Democrático de Direito. O Estado não pode desrespeitar direitos fundamentais a pretexto de efetivar outros direitos.

O avanço tecnológico e seu profundo impacto no modo de vida social e no desenvolvimento das competências estatais parece irreversível. Ainda que o uso de malwares não pareça o mais adequado e democrático, diante do cenário observado, não só de crimes domésticos, mas de crimes que extrapolam o território nacional ou mesmo que ameaçam a soberania do país, faz necessária e urgente a regulamentação pelo Estado dos programas de espionagem, contudo, com critérios bastante definidos que observem direitos fundamentais e humanos já consagrados, além da possibilidade de se estabelecer novos direitos.

Da mesma forma, a fim de se observar a segurança deste Estado, a lei deve prever o desenvolvimento urgente de programas de monitoramento pelo próprio Estado brasileiro para uso tanto na persecução penal no país, como também, para sua agência de inteligência. A experiência dos últimos anos tem demonstrado que é perigoso confiar em malwares internacionais. Ainda que possa não ser uma tarefa fácil, é completamente possível. O desconhecimento tecnológico faz o país refém e passível de nova colonização.

Assim, pela decisão de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1143, o Brasil tem, pela sua Corte Constitucional, a oportunidade se estabelecer como um verdadeiro Estado Democrático de Direito no mundo, profundamente comprometido com os mais nobres direitos e garantias do cidadão, ou mostrar o quando ainda é uma democracia muito jovem e, portanto, frágil.

Referências Bibliográficas

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[1] Mestranda, PPG em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura – EPM. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

[2] SUPREMO FEDERAL. Disponível em < Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br)>  Acesso em 16/06/24.

[3] O GLOBO. Disponível em <Inteligência da PM monitorou atuação de políticos e advogado de Direitos Humanos na favela do Jacarezinho (globo.com)> Acesso em 10/06/24; BRASIL DE FATO. <Especialista alerta para riscos nos usos de programas de | Política (brasildefato.com.br) >Acesso em 10/06/24; G1. Disponível em <First Mile: o que se sabe sobre o software espião usado pela Abin | Tecnologia | G1 (globo.com) > Acesso em 10/06/24.

[4] UOL. Disponível em < Grupo hacker acusa governo alemão de criar software para espionar cidadãos do país – 10/10/2011 – UOL Tecnologia – Da Redação> Acesso em 15/06/24.

[5] RAMIRO, André; AMARAL, Pedro; CANTO, Mariana; PEREIRA, Marcos Cesar M. Mercadores da insegurança: conjuntura e riscos do hacking governamental no Brasil. Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia: Novembro, 22.

[6] Disponível em <Brasil tinha 7,3 milhões de lares sem internet e 28,2 milhões de excluídos digitais em 2021 – Estadão (estadao.com.br)>Acesso em 16/06/24.

[7] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Disponível em <atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4036> Acesso em 22/06/24.

 __________________________________. Disponível em <atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5166> Acesso em 22/06/24.

[8] PRESIDENCIA DA REPÚBLICA. Disponível em < Constituição (planalto.gov.br)> Acesso em 16/06/24.

[9] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos/Norberto Bobbio; tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. – ed. [30ª Reimp.]. – Rio de Janeiro: GEN | Grupo Editorial Nacional. Publicado pela Editora Atlas, 2022. p 5.

[10] ‘(…) a Magna Carta deixa implícito pela primeira vez, na histórica política medieval, que o rei acha-se naturalmente vinculado pelas próprias leis que edita. Quinhentos anos antes, Santo Isidoro (560-636), bispo de Sevilha, já havia defendido a ideia de que o príncipe devia submeter-se às leis que ele próprio promulgara, pois “só quando também ele respeita as leis, pode-se esperar que elas sejam obedecidas por todos” (Sententiae III, 51.4).’COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos/ Fabio Konder Comparato. – 12 ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.  p 91.

[11] ONU. Disponível em < Declaração Universal dos Direitos Humanos | As Nações Unidas no Brasil> Acesso em 28/09/24.

[12]G1. Disponível em <First Mile: o que se sabe sobre o software espião usado pela Abin | Tecnologia | G1 (globo.com).>Acesso em 18/06/24.

[13] RAMIRO, André; AMARAL, Pedro; CANTO, Mariana; PEREIRA, Marcos Cesar M. Mercadores da insegurança: conjuntura e riscos do hacking governamental no Brasil. Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia: Novembro, 22.

[14]CARTA CAPITAL. Disponível em < Há 10 anos, Edward Snowden revelou um mundo sitiado pela espionagem americana – Mundo – CartaCapital> Acesso em 19/06/24.

[15] “A lei n.º 9.296/1996 veio legitimar a interceptação das comunicações telefônicas como meio de prova, estendendo também a sua regulação à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática (combinação dos meios de comunicação com informática) – e-mail (correio eletrônico), fax e outros – nos mesmos moldes em que autorizada constitucionalmente a interceptação telefônica propriamente dita, e para os mesmos fins.” PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. Direito Constitucional Descomplicado/Vicente Paulo, Marcelo Alexandrino. -3 ed., rev. e atualizada. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método: 2008.p. 124.

[16] PLANALTO. Disponível em < L12965 (planalto.gov.br) > Acesso em 28/09/24.

[17] ___________. Disponível em < L12965 (planalto.gov.br)> Acesso em 28/09/24.

[18] ________. Disponível em <L12965 (planalto.gov.br)> Acesso em 28/09/24.

[19] ________. Disponível em < L13709 (planalto.gov.br)> Acesso em 28/09/24.

[20] LOPES Jr, Aury. Direito Processual Penal/Aury Lopes Junior. 15 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.p. 227.

[21] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em < Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br)> Acesso em 28/09/24,

[22] ONU. Disponível em < Suposta espionagem com software Pegasus preocupa ONU – ACNUDH> Acesso em 28/09/24.